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VENDA EXECUTIVA
CADUCIDADE DO CONTRATO DE ARRENDAMENTO
Sumário
Sendo o contrato de arrendamento rural de prédio misto posterior ao registo da hipoteca, a relação arrendatícia decorrente desse contrato caduca por força do disposto no n.º 2 do artigo 824.º do CC.
Texto Integral
Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora
I – As Partes e o Litígio
Recorrentes: … (Executado) e (Arrendatário)
Recorrida: (…) Finance GMBH (Exequente)
Os presentes autos consistem em ação executiva sob a forma de processo comum.
II – O Objeto do Recurso
Designada que estava a venda por abertura de propostas em carta fechada de um prédio misto e de uma fração autónoma devidamente identificada nos autos, os ora Recorrentes apresentaram requerimento no processo com o seguinte teor:
«(…) requer a V.ª Ex.ª se digne dar sem efeito a venda aprazada para 10 de Abril de 2018 (conforme documento que junta), em virtude de quer no anúncio quer no edital e publicidade da venda na página informática, ser omisso em relação ao arrendamento e subarrendamento que onera o prédio misto identificado na verba n.º 3, do anúncio e do edital (doc. 1)».
Tal requerimento mereceu a seguinte decisão:
«Entende o tribunal que inexiste qualquer fundamento para dar sem efeito a venda executiva no que tange a qualquer um dos bens imóveis.
Com efeito, embora o prédio misto se ache alegadamente onerado com um contrato de arrendamento que foi objeto de subarrendamento, sucede que o mencionado contrato não subsistirá à venda executiva, em virtude do mesmo ter sido celebrado em momento posterior (ou seja data de 12.10.2009) à constituição da hipoteca (registada em 25.08.2005) que igualmente onera o prédio penhorado e que foi constituída a favor do e que atualmente se encontra na titularidade do credor reclamante (…) – Gestão de Activos, SA. A este propósito pode ler-se no Acórdão da Relação de Lisboa de 12.12.2013, Proc. n.º 88726/05.2YYLSB.L1-2 que: I - A norma do art.º 1057.º do Código Civil não é absoluta e conhece os mesmos limites, para tutela dos credores e adquirentes – terceiros relativamente à relação locatícia – que os próprios direitos reais sofreriam em hipótese de venda executiva. II – Assim, o arrendamento de imóvel, posterior à constituição de garantia como a hipoteca do mesmo, destarte prioritária, caduca com a venda, ex vi do art.º 824º, n.º 2, Código Civil.
E, inexistindo qualquer ónus que deva subsistir à venda executiva, inexiste qualquer fundamento para a sua publicitação (nos mesmos termos que não foi publicitada a hipoteca que igualmente onera o bem imóvel).
Nestes termos indefiro o requerido, devendo mantar-se a dada já designada para a abertura de proposta.
Custas pelo incidente anómalo a cargo do executado que fixo em 1 (uma) UC – artigo 7.º, n.º 8 e 4, do Regulamento das Custas Judiciais».
Inconformados, os Executado e arrendatário apresentaram-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que decrete que o arrendamento misto não caducou com a venda executiva. Concluem a sua alegação de recurso nos seguintes termos:
«I – O despacho prolatado a 10 de Abril de 2014,ainda não existia no mundo jurídico quando foi notificado ao mandatário do executado (…) via Citius com a referência: 109072618, em 9 de Abril de 2018.
Assim sendo a notificação efetuada antes da prolação de despacho que considerou o arrendamento e o subarrendamento caducos ex vi da alienação do prédio misto, deve ser considerada nula e de nenhum efeito prático e jurídico em virtude de ser inexistente à data de 9 de Abril de 2018, substituindo-se por outra que reponha a legalidade.
II - Deve ser prolatado acórdão que, ao contrário do que exarou o Exmo. juiz “a quo” que considerou que o arrendamento caduca ex vi do art.º 824.º, nº 2, do CC por força da venda executiva, por entender que não existe qualquer ónus que deva subsistir à venda executiva e que não existe qualquer fundamento para a publicitação do arrendamento, limitando o preceituado no artº 1057º do CC, que contém em si uma regra que é a exceção ao absolutismo dos direitos reais (emptio nom tollit locacio),violando que o n.º 2 do art.º 824º quer o art.º 1057º, ambos do CC, por erro de interpretação e aplicação seguindo a jurisprudência do acórdão que invocou.
O despacho em causa viola diretamente a CRP que garante a todos o direito à habitação».
Não foram apresentadas contra-alegações.
O objeto do recurso integra as seguintes questões:
- da nulidade da notificação do despacho recorrido;
- da caducidade do arrendamento por via da venda executiva.
III – Fundamentos
A – Dados a considerar
Aqueles que resultam do relato supra exposto e bem assim os seguintes:
- sobre o prédio misto cuja venda foi anunciada incide hipoteca voluntária registada a 25/08/2005 – cfr. certidão do registo predial junta aos autos;
- o «contrato de arrendamento rural» apresentado nos autos pelos Recorrentes tem por objeto o referido prédio misto, destinando-se o prédio arrendado «à regular exploração agrícola em qualquer modalidade e, ou, cultura que não cause danos ao solo nem ao coberto arbóreo, e com o âmbito previsto no art. 2.º da lei do arrendamento rural» – cfr. doc. junto aos autos;
- tal contrato de arrendamento contempla a data de 12 de Outubro de 2009 – cfr. doc. junto aos autos.
B – O Direito
Da nulidade da notificação do despacho recorrido
Os Recorrentes sustentam que a notificação do despacho recorrido deve ser considerada nula e sem efeito porquanto teve lugar no dia anterior à prolação do despacho.
Trata-se de questão suscitada ex novo em sede de recurso.
Ora, o recurso constitui o meio processual de modificar decisões e não de criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre. Tem em vista a reapreciação ou a reponderação das questões submetidas a litígio, já vistas e resolvidas pelo tribunal recorrido e não a pronúncia sobre questões novas. Donde, é unanimemente sustentado que não cabe invocar em sede de recurso questões que não tenham sido suscitadas perante o tribunal recorrido, conforme resulta do regime inserto nos arts. 627.º, n.º 1 e 635.º, n.º 3, salvo se a lei expressamente determinar o contrário (artigo 665.º, n.º 2, do CPC) ou nas situações em que a matéria é de conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2, do CPC, aplicável ex vi art. 663.º, n.º 2, do CPC).[1]
Para além disso, na ótica dos Recorrentes está em causa a prática pelo Tribunal de 1.ª Instância de um ato nulo. Então, tem aplicação o disposto nos arts. 195.º e ss do CPC, decorrendo do respetivo regime legal que da nulidade não cabe diretamente recurso, devendo ser arguida perante o respetivo tribunal decisor, no prazo de 10 dias – arts. 199.º e 149.º do CPC. Só posteriormente, no caso de discordância com o despacho que aprecie a arguição de nulidade, verificados que estejam os pressupostos para interposição do recurso, é que dessa decisão caberá recurso para o tribunal superior.
É que o objeto dos recursos não são nulidades, mas antes decisões judiciais; as decisões é que são impugnadas por via dos recursos, cabendo ao Tribunal superior apreciá-las, confirmando ou revogando. Ora, se ocorreu uma nulidade no processo, o Tribunal de recurso só pode conhecer dela por via da apreciação de decisão proferida em 1.ª Instância que dela tenha conhecido e que consubstancie a decisão recorrida.
Termos em que não se toma conhecimento da referida nulidade.
Da caducidade do arrendamento por via da venda executiva
A questão que foi suscitada em 1.ª Instância pelos ora Recorrentes reportava-se à irregularidade da publicidade da venda. Publicitada que foi a venda mediante propostas em carta fechada mediante anúncio e edital, foi requerido que a venda fosse dada sem efeito por a publicitação dela ser omissa quanto ao arrendamento e subarrendamento do prédio misto.
O que foi indeferido pelo despacho objeto do presente recurso com fundamento na inexistência de fundamento para se dar sem efeito a venda publicitada, até por que a relação arrendatícia caducará com a venda executiva; tal como não foi publicitada a hipoteca, não se impunha a menção do arrendamento.
Ora vejamos.
Nos termos do disposto no art. 817.º do CPC, normativo alusivo à publicidade da venda mediante propostas em carta fechada, «do anúncio constam o nome do executado, a identificação do agente de execução, o dia, a hora e o local de abertura das propostas, a identificação sumária dos bens e o valor a anunciar para a venda, apurado nos termos do n.º 2 do artigo anterior» – cfr. n.º 3 do art.º 817.º do CPC. E «Se a sentença que se executa estiver pendente de recurso ou estiver pendente oposição à execução ou à penhora, faz-se menção do facto no edital e no anúncio» – cfr. n.º 4 do art.º 817.º do CPC.
Portanto, a falta de menção, no anúncio e edital, de contrato de arrendamento ou de contrato de subarrendamento que incida sobre bem imóvel objeto da venda não constitui irregularidade que implique seja dada sem efeito a diligência de venda publicitada.
O Tribunal a quo mais consignou que o arrendamento não subsistirá após a venda executiva.
De facto, assim é.
O art. 824.º do CC estatui o seguinte:
«1. A venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida.
2. Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com exceção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo.
3. Os direitos de terceiro que caducarem nos termos do número anterior transferem-se para o produto da venda dos respetivos bens».
Em acórdão proferido por este Tribunal da Relação, subscrito pela ora relatora como adjunta[2], foi lavrado o seguinte sumário:
«1. A abrangência do n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil não pode partir da prévia operação de qualificação do direito do locatário como obrigacional ou real, dado que a mesma não esgota o tema face aos cruzamentos categoriais existentes neste domínio mas antes deve basear-se na ponderação dos interesses em presença à luz de critérios relacionados com o momento da constituição do arrendamento, do conceito de boa-fé contratual e dos efeitos registrais dos ónus incidentes sobre os imóveis.
2. Da interpretação dessa norma no domínio do arrendamento podem surgir três realidades distintas: (a) a locação anterior à penhora (ou ao penhor), dotada de publicidade inerente ao registo ou à posse: sobrevive à venda executiva; (b) a locação posterior ao registo da hipoteca: caduca com a venda; (c) a locação posterior à penhora: é, ab initio, ineficaz e caduca com a mesma venda.
3. A regra da transmissibilidade do artigo 20.º do Novo Regime do Arrendamento Rural não é aplicável em caso de venda executiva, quando o contrato de locação seja celebrado em momento posterior ao registo da hipoteca».
Por conseguinte, o arrendamento de imóvel constituído depois do registo de hipoteca caduca nos termos do n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil. Qualquer situação locatícia - registada ou não - constituída após o registo de hipoteca, arresto ou penhora é inoponível ao comprador do imóvel em sede de venda judicial, na justa medida em que após a concretização desta caduca automaticamente.
Entendimento que foi cristalizado na lei substantiva com a redação dada, pelo DL n.º 38/2003, de 8 de Março, ao art. 819.º do CC, passando a estatuir que «Sem prejuízo das regras de registo, são inoponíveis à execução os atos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados.»[3]
No caso em apreço, como o contrato de arrendamento rural através do qual o Exequente, na qualidade de dono do prédio misto, declarou arrendá-lo, é posterior ao registo da hipoteca, a relação arrendatícia decorrente desse contrato caduca por força do disposto no n.º 2 do art. 824.º do CC.
Não cabe levar em linha de conta o regime inserto no art. 1057.º do CC, que regula a transmissão de direito e obrigações do locador no caso da transmissão da posição contratual do locador, pois nenhuma transmissão dessa posição vem referida.
No tange ao regime constitucional, o mesmo não resulta colocado em crise, conforme alegam os Recorrentes.
O art. 65.º da CRP reporta-se à habitação e urbanismo. O n.º 1 de tal dispositivo determina que todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar. O n.º 2, por sua vez, estabelece as obrigações que recaem sobre o Estado para assegurar esse direito. Trata-se de direito fundamental que integra os «Direitos e deveres económicos, sociais e culturais» e os «Direitos e deveres económicos».
Os direitos fundamentais sociais são considerados como direitos a prestações estatais, podendo legitimar o cidadão a reclamar do Estado as prestações reconhecidas como fundamentais.
Ora, o direito à habitação nestes termos consagrado decorre de norma programática, sendo que as normas programáticas “são de aplicação diferida, e não de aplicação ou execução imediata, prescrevem obrigações de resultados, não obrigações de meios; mais do que comandos-regras explicitam comandos-valores; conferem ‘elasticidade’ ao ordenamento constitucional; têm como destinatário primacial – embora não único – o legislador, a cuja opção fica a ponderação do tempo e dos meios em que vêm a ser revestidas de plena eficácia (e nisso consiste a discricionariedade); não consentem que os cidadãos ou quaisquer cidadãos as invoquem já (ou imediatamente após a entrada em vigor da Constituição), pedindo aos tribunais o seu cumprimento só por si, pelo que pode haver quem afirme que os direitos que delas constam, máxime os direitos sociais, têm mais natureza de expectativas que de verdadeiros direitos subjetivos aparecem, muitas vezes, acompanhadas de conceitos indeterminados ou parcialmente indeterminados.”[4]
No caso versado nos autos, o arrendamento invocado assume a natureza de arrendamento rural. Não obstante, pode abranger construções destinadas à habitação do arrendatário (cfr. art. 2.º, n.º 1, do DL n.º 385/88, de 25/10, que foi revogado pelo DL n.º 294/2009, de 13/10 – o contrato de arrendamento rural apresenta a data de 12/10/2009). Ainda que o Recorrente arrendatário habite no prédio misto objeto de venda, o direito social consagrado no citado art. 65.º da CRP não obsta à aplicação do regime inserto nos arts. 819.º e 824.º do CC.
Termos em que se conclui inexistir fundamento para censura do teor do despacho recorrido.
As custas recaem sobre os Recorrentes – artigo 527.º, n.º 1, do CPC.
IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela total improcedência do recurso, em consequência do que se confirma a decisão recorrida.
Custas pelos Recorrentes.
Évora, 30 de Maio de 2019
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
Vítor Sequinho dos Santos
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[1] V. Ac. do STJ de 01/10/2002, in CJ-STJ ano X, 3, 65 e de 29/04/98, in BMJ 476/401; Ac. TRP de 12/01/2015 (Manuel Domingos Alves Fernandes).
[2] Ac. TRE de 26/04/2017 (Tomé de Carvalho).
[3] A redação anterior era a seguinte: «Sem prejuízo das regras de registo, são ineficazes em relação ao exequente os atos de disposição ou oneração dos bens penhorados».
[4] Jorge Miranda, Teoria do Estado e da Constituição, pág. 441.