ACIDENTE DE VIAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
PENSÃO POR INVALIDEZ DA CNP
Sumário


Sumário (do relator):

1.Tendo o peão iniciado a travessia de via pública sem atentar que um veículo automóvel se aproximava a uma distância não superior a 15 metros, mas circulando este numa localidade e em zona ladeada por habitações, a uma velocidade que excedia em cerca de 7kms/h a velocidade máxima permitida para o local, o atropelamento do peão é de imputar em partes iguais a este e ao condutor do veículo automóvel.

2. A impossibilidade da cumulação da indemnização fixada na sentença com a pensão por invalidez da CNP advém «do princípio geral que não permite, sob pena de locupletamento injustificado, que o mesmo evento danoso seja fonte de diversas receitas para a vítima e se transforme, assim, num negócio lucrativo e muito rendoso» (RLJ, nº.3539, pág. 31).

3. O DL 187/2007 de 10.05 dispõe no artº 6º, nº1, que “existindo responsabilidade civil de terceiro pelo facto determinante da incapacidade que fundamenta a atribuição da pensão de invalidez, não há lugar ao pagamento das respectivas prestações até que o somatório das pensões que o beneficiário teria direito, se não houvesse tal responsabilidade, atinja o valor da indemnização por perda de capacidade de ganho”.

4. Esse regime legal está instituído em benefício da Segurança Social e não do terceiro responsável pela incapacidade que fundamenta a atribuição da pensão, significando que o pagamento dessa pensão só se inicia ou é retomado uma vez esgotada pelo referido cálculo aritmético o valor indemnizatório que está obrigado a pagar o terceiro responsável.

Texto Integral


Acordam os Juízes da 1ª secção do Tribunal da Relação de Guimarães

I. (…) demandou nesta acção declarativa a ré “…” (actual “”), pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 243.354,71, acrescida de juros legais contados da citação, para ressarcimento dos danos patrimoniais e danos não patrimoniais sofridos em consequência do atropelamento de que foi vítima em 21.06.2013, na EN … que liga …, imputando a culpa ao condutor do veículo de matrícula …, pois conduzia à velocidade de 90km/hora num local onde o limite assinalado é de 50km/hora.

Na contestação, a ré pugna pela improcedência da ação, alegando para o efeito que o atropelamento é exclusivamente da culpa da vítima por, ao caminhar na berma direita da estrada, subitamente atravessou a via quando o veículo estava a cerca de 15 metros de distância, circulando a uma velocidade não superior a 40 km/hora.

II. No final dos articulados, foram enunciados os temas da prova, seguido de despacho de apreciação dos meios de prova requeridos pelas partes, entre os quais a realização de perícia para avaliação do dano corporal à pessoa do Autor, e no subsequente despacho de 26.04.2018 foi ordenada a apensação aos presentes autos do procº n.º … da Instância Local de Fafe, onde o o “Hospital(…) .” pediu a condenação da ré “…” no pagamento da quantia de €8.429,52, correspondente a custos de tratamento das lesões sofridas pelo autor em consequência do descrito acidente de viação.
Em sede de audiência foi admitido o articulado superveniente de 29.06.2018, em que a ré pediu o abatimento à indemnização que eventualmente deva pagar das verbas que o A. recebeu do CNP de pensão de invalidez, bem como das que vier a receber futuramente, à indemnização que haja de pagar ao A. José.

III. A sentença final julgo parcialmente procedente o pedido dos demandantes, tendo condenado a Ré seguradora: a) a pagar ao autor (..) a quantia de € 25.922,35 (vinte e cinco mil, novecentos e vinte e dois euros e trinta e cinco cêntimos), acrescida de juros de mora contados à taxa legal, vencidos e vincendos sobre a quantia de € 15.922,35 desde a data da citação, e vincendos sobre a quantia de € 10.000,00, desde a data da decisão, em ambos os casos até efectivo e integral pagamento; e b) a pagar ao “Hospital (…) a quantia de € 3.993,07, acrescida de juros vencidos e vincendos desde a citação da Ré até efectivo e integral pagamento.

IV. A ré seguradora recorre dessa sentença condenatória, tendo terminado com as seguintes conclusões:

1- Na douta sentença sob censura o julgador deu como provado que o A, depois de ter saído de sua casa, “circulou a pé pela berma direita da EN …, no sentido(…) ”, e que “ficou por momentos parado na berma” antes de iniciar o atravessamento da estrada;
2 - Esses factos não foram alegados pelas partes, as quais avançaram ambas com a versão de que o A, depois de sair de casa, iniciou o atravessamento da via;
3- No seu depoimento gravado no sistema H@bilus no dia 25/05/2018, nas passagens dos minutos 16m07s a 17m44s, e 26m50s a 27m18s, acima transcritas, a testemunha (…) , declarou que, quando avistou o Autor a parar na berma e não obstante não tenha notado qualquer ato que permitisse antever que iria atravessar a estrada, retirou o pé do acelerador do veículo e colocou-o sobre o pedal do travão.
4- Este facto é complementar em relação a outros alegados pelas partes nos seus articulados (cfr, nomeadamente, o alegado no artigo 9º da PI e 30º da contestação da Ré), é relevante para a boa decisão da causa e constitui um antecedente lógico relativamente à factualidade dos pontos 4 e 7 da matéria de facto dada como provada, sendo certo que sobre o mesmo foi exercido o devido contraditório pelos AA, nomeadamente no decurso da instância e contra-instância da aludida testemunha.
5- Assim, nos termos do disposto no artigo 5º n.º 2 alínea b) do CPC, deveria ter sido dado como provado que “quando o condutor do IP avistou o Autor a parar na berma, retirou o pé do acelerador e colocou-o sobre o pedal do travão”, o que se requer;
6- Assim não se entendendo e face à previsão da norma do artigo 5º n.º 2 alínea b) do CPC, ao não dar como provado esse facto o jugador deixou de se pronunciar sobre questão que deveria conhecer, o que sempre acarretaria a nulidade da douta sentença (cf. artigo 615º n.º 1 alínea d) do CPC), nulidade que, expressamente e a título subsidiário, se invoca.
7- Tal como se entendeu na fundamentação da douta sentença, é indiscutível que o A, ao atravessar uma estrada em local onde esta desenhava uma reta, com visibilidade de cerca de 100 metros para a sua esquerda, sem tomar qualquer cuidado ou se inteirar do transito que aí se processava, a 50 m de uma passadeira e num momento em que um veículo se aproximava de si e se encontrava a uma distância de cerca de 15 metros, violou a Lei e as mais elementares regras de prudência;
8. - Estas contravenções foram praticadas pelo A por ter agido com notória negligência e imprudência, já que é de censurar a atuação de alguém que, pretendendo atravessar a estrada, em local onde esta desenha uma reta e propicia perfeitas condições de visibilidade, o faz no momento em que um automóvel se encontra a uma distancia de poucos metros de si, sem tentar sequer aperceber-se do trânsito que se processa na via e fora da passadeira.
9- Julgamos que esse juízo de censura que é dirigido ao A deve conduzir à conclusão de que só este contribuiu para a eclosão do sinistro.
10- A conduta do automobilista não contribui para a ocorrência do acidente, nem para ao agravamento dos danos.
11- Não obstante se tenha provado que o automóvel circulava a uma velocidade de 57 km/h em local onde a velocidade máxima permitida era de 50 km/h, essa eventual infração não deu causa ao acidente, na medida em que mesmo que o carro circulasse a velocidade inferior o acidente ter-se-ia, igualmente, dado.
12- Os estudos de distâncias médias de travagem e paragem, elaborados por especialistas e disponíveis para consulta em vários sites – nomeadamente o da Prevenção Rodoviária Portuguesa, in www.prp.pt, onde é possível fazer uma simulação – indicam-nos que, em condições normais, um veículo que circula a 50 km/h necessita de cerca de 29 metros para se imobilizar e um veículo que circule a 40 km/h necessita de 21 metros para parar por completo.
13- Assim, mesmo a uma velocidade de 50 km/h, ou à de 40 km/h, o automóvel teria sempre colhido o autor a atravessar a estrada, em face da curta distância de não mais de 15 metros a que estavam um do outro quando o A iniciou essa travessia.
14- Daí decorre a total irrelevância da concreta velocidade de que ia animado o carro para a eclosão do acidente em apreço.
15- Tão pouco se pode dizer – e, aliás, o julgador apenas o refere como mera hipótese – que a circulação a velocidade inferior à que seguia o automóvel, associada o desvio, teria permitido evitar a colisão, já que, na verdade, esse desvio foi feito e, ainda assim não preveniu a colisão, sendo ainda certo que, fosse a uma velocidade de 50 km/h, fosse à de 40 km/h, aquele desvio à esquerda nunca alteraria a distância de paragem necessária, a qual se estenderia sempre por distância superior àquela a que o carro se encontrava do demandante quando este invadiu a estrada
16- Também não se provou que a ultrapassagem em 7km/h do limite estabelecido para o tenha contribuído para o agravamento dos seus danos.
17- A existência de efetiva relação entre a circulação a uma velocidade superior em 7 km/h à do limite para o local e o agravamento dos danos não surge como algo intuitivo, antes sendo natural admitir o inverso.
18- O A, fruto do embate, foi projetado a uma distância de 6,8 metros do local da colisão, o que não evidencia um impacto especialmente violento e seria igualmente de esperar que se verificasse, face à evidente diferença entre a massa do autor e do veículo, mesmo que o carro progredisse a velocidade inferior.
19- E, lendo-se a descrição dos danos sofridos, não se consegue detetar qualquer particularidade que surja associada àquele excesso de velocidade, na certeza de que, mesmo que o carro progredisse a velocidade inferior, o mero impacto no peão seria sempre suscetível de causar a projeção deste, a fratura de arcos costais e, não dispondo o A – como não tinha de dispor – de capacete, o traumatismo crânio encefálico que sofreu.
20- Cabia ao A provar que foi o excesso de velocidade (em 7km/h) que agravou os seus danos, ónus que não logrou satisfazer, não se podendo, também, presumir que tal tenha sucedido;
21- Logo, a velocidade a que seguia o veículo, atendendo às circunstâncias do acidente, não integra o seu processo causal, o qual nasce e se desenvolve apenas ao redor de um ato perfeitamente temerário do próprio A, que consistiu no atravessamento de uma estrada quando um carro se encontrava a 15 metros de si.
22- Tão pouco se pode concluir que, em face dos factos dados como provados, se impusesse ao condutor do automóvel uma atuação diversa;
23- Caminhando o A na berma e o automóvel na via, só se pode admitir que as trajectórias de ambos confluíssem se o veículo invadisse a berma, ou o peão a estrada.
24- A menos que se tivesse provado que alguma circunstância, associada à forma como o peão caminhava ou se posicionava na berma, impunha que o condutor tivesse previsto que o A iria ingressar na estrada, não seria de exigir ao automobilista outro comportamento senão o de observância dos normais deveres de prudência.
25- Como se defendeu, resulta da prova produzida que quando o condutor do IP avistou o A a parar na berma, retirou o pé do acelerador e colocou-o sobre o travão, o que corresponde à adoção de um comportamento prudente.
26- Logo, se esse facto vier a ser dado como provado, ficará reforçada a conclusão de que o condutor do automóvel, não se alheou da presença do A na berma, ainda que, como adiante se procurará demonstrar, nada impusesse que previsse a sua entrada na estrada
27- Os factos provados não revelam, de fora alguma, que o condutor do automóvel, confrontado com a presença do A na berma, pudesse ou, muito menos, devesse admitir que este, a dado passo, ocuparia a estrada para a transpor.
28- Perante um peão a caminhar na berma da estrada na direção de local onde existia uma passadeira, o que um automobilista pode e deve admitir é que o transeunte não tem como objetivo atravessa a via, muito menos fora do local adequado para o efeito.
29- Essa confiança é ainda reforçada pelo facto de, de acordo com os factos provados, o automobilista ter podido avistar o peão a uma distância de 100 metros, mas só depois de se encontrar a não mais de 15 este ter decidido atravessar.
30- Ademais, tão pouco se afigura relevante, pelo menos no sentido de se concluir que era imposto ao condutor do automóvel que previsse o atravessamento temerário que o A fez, que este, a dado passo, parou por momentos.
31- Não se provou que o A, depois de parar, tenha adotado alguma posição ou comportamento que pudesse sequer indicar, direta ou remotamente, que pretendia atravessar a estrada, sendo este comportamento, portanto, insuscetível de transmitir ao automobilista qualquer informação que impusesse alguma alteração da forma de condução.
32- Por outro lado, sabemos ainda que nem quando parou, nem quando começou a atravessar a estrada, o A olhou para a esquerda (isto é, para o lado de onde provinha o automóvel), o que um qualquer automobilista esperaria que ocorresse se fosse sua intenção do peão atravessar a estrada.
33- Ademais, mesmo se quisesse atribuir à mera paragem na berma a qualidade de indício da iminência do atravessamento da estrada – o que se nos afigura deveras insustentável – sabemos tão só que o A assim terá estado “por momentos” , o que não é suficiente para se concluir, com segurança, que essa paragem demorou um lapso de tempo suficiente para que o automobilista se apercebesse e interiorizasse que consistia num ato preparatório desse atravessamento.
34- Tão pouco ficou provada a concreta posição na qual o peão se imobilizou na berma, desconhecendo-se se o fez junto ao limite da estrada, ou mais afastado dele, o que também impede a formulação do juízo de previsibilidade que o julgador dirige ao automobilista.
35- Isto é, com todo o respeito por entendimento diverso, a mera presença do A a caminhar na estrada ou até a sua paragem momentânea, não podem ser entendidas como elementos que impusessem ao condutor do veículo um comportamento diferente, por não indiciarem a iminência de qualquer acontecimento que o justificasse.
36- A manifesta ilicitude e imprudência em que se traduziu tal atuação, impõe a conclusão de que o condutor do automóvel não tinha de contar com esse comportamento do A, devendo antes contar que nunca atravessasse a estrada naquelas circunstâncias.
37- Em face de tudo o exposto, considera a Ré que se impunha que fosse atribuída ao A a total responsabilidade pela eclosão do acidente e suas consequências.
38- Não surpreendemos no ato de condução do condutor do automóvel qualquer contributo para a produção do presente sinistro de forma culposa, não tendo a eventual infração, em 7 km/h do limite de velocidade do local contribuído para a ocorrência do acidente ou agravamento das suas consequências.
39- Já o A, ao dar início à travessia da faixa de rodagem, mesmo tendo podido avistar o automóvel à escassa distância de 15 metros, violou temerariamente todos os comandos legais supra apontados, colocando-se voluntariamente em perigo, o que acabou por conduzir à colisão que se veio a verificar.
40- Sem este facto, a colisão que ocorreu não se teria dado, o que faz com que a conduta do autor tenha sido a única adequada e idónea à produção do sinistro.
41- Em face de tudo quanto se deixou dito, deverá ser revogada a decisão do Tribunal recorrido e substituída por outra que, concluindo que a responsabilidade pela ocorrência do acidente é exclusivamente imputável ao autor, absolva a recorrente de todos os pedidos que contra si vêm deduzidos na ação principal e seu apenso.
42- Ainda que assim se não entendesse – o que não se aceita e apenas se concebe como mera hipótese académica – sempre, na pior das hipóteses e atento o circunstancialismo factual demonstrado, o Tribunal deveria ter concluído que a medida da contribuição do autor para a eclosão do sinistro é muito superior à do condutor do veículo.
43- Atento o exposto, à luz de um critério de justiça, não é razoável que os danos causados essencialmente pela conduta do autor sejam sobretudo suportados pela ora recorrente, pelo que, sempre no pior dos cenários, se deverão fixar os graus de contribuição do autor e do condutor automóvel para a ocorrência do acidente na proporção de 80% - 20%, desfavorável àquele, com as necessárias consequências legais.
44- E, consequentemente, deve ser revogada a douta sentença e reduzidas nessa proporção as verbas atribuídas na douta sentença, ou as que venham a ser consideradas devidas aos AA … e Hospital, o que, subsidiariamente, se requer.
45- Provou-se que o CNP reconheceu ao A o direito a uma pensão por invalidez com efeitos a partir de 23/01/2017, no valor mensal de 389,34€, 14 vezes por ano e que, por conta dessa pensão, o A recebeu do CNP, até Junho de 2018, a quantia de 7.639,86€.
46- Apesar de não se ter provado que a situação de invalidez determinante da atribuição ao A da pensão tenha resultado do acidente, é também verdade que as regras respeitantes a essa pensão impedem a sua cumulação com rendimentos de trabalho (cfr artigo 59º n.1 do DL 187/2007, de 10 de Maio).
47- A referida pensão é uma prestação que substitui os rendimentos de trabalho do pensionista e, consequentemente, não pode o A, por um lado, receber a pensão que supre essa perda e, por outro, uma indemnização com o mesmo fim.
48- Pelo que considera a Ré que, pelo menos tendo por referência as pensões que o A já recebeu e irá receber até à data do trânsito em julgado da decisão que puser termo a este processo, se impõe que se proceda ao respetivo abatimento na indemnização pelo défice permanente da integridade física.
49- Sendo abatidas essas pensões à indemnização a fixar a esse título (de 31.000,00€, ou, sem conceder, metade), a Ré ficará obrigada, em princípio, a entregar a concreta parcela abatida ao CNP, desde que seja provado, em momento oportuno, que a invalidez é decorrente do acidente.
50- Por outro lado, caso se opere esse abatimento até ao trânsito em julgado da decisão e se se provar, em momento oportuno, que a invalidez é decorrente do acidente, o CNP suspenderá o pagamento ao A da pensão até atingir o valor da indemnização por perda de capacidade de ganho que venha a ser fixada nestes autos.
51- Em face do exposto e na certeza de que se impõe o abatimento à indemnização pela perda de capacidade de ganho das quantias que o A já recebeu e irá receber até ao trânsito em julgado da decisão que venha a ser proferida nestes autos a título de pensão de invalidez, importa reconhecer que os autos não dispõem, de momento, dos elementos suficientes para fixar definitivamente a indemnização devida ao A pela perda de capacidade de ganho.
52- Portanto, entende a Ré que deve ser revogada a douta sentença na parte em que atribuiu ao A uma indemnização pela sua perda de capacidade de ganho/défice funcional permanente e, em sua substituição, deve ser proferida decisão que: a. - fixe a indemnização pelo défice permanente da integridade física do A em 31.000€ - b. - determine que a esse valor devem ser abatidas as pensões de invalidez que o CNP tenha pago e venha a pagar ao demandante a título de pensão por invalidez, até ao trânsito em julgado da decisão que ponha termo a este processo; c. relegue o concreto apuramento da indemnização devida para liquidação ulterior, até ao limite da quantia fixada e do valor no qual a Ré foi condenada a pagar (metade), dentro desses parâmetros e nesses termos, de forma a se poder obter a informação dos valores pagos pelo CNP e proceder ao seu abatimento na verba fixada a título de indemnização por este dano; d. estabeleça, em qualquer circunstância, como limite da liquidação o valor atribuído na sentença a este título e sempre limitada à parte do valor do pedido que ficar ainda disponível depois de proferido a decisão final que ponha termo à ação.
53- Requer, assim, a alteração da decisão proferida nestes termos.
54- Ainda que assim não se entendesse, sempre se imporia que se procedesse, desde já, ao abatimento na indemnização devida ao A pelo défice permanente da sua integridade física das quantias que este já recebeu a título de pensão de invalidez, a calcular por operação aritmética.
55- Com base nestes elementos é possível calcular as pensões que o A já recebeu no valor de 9220,98€, conforme cálculos efetuados no corpo destas alegações;
56- Ora, em face do exposto, deve ser abatida à indemnização a atribuir ao A pela perda de capacidade de ganho a quantia de 9220,98€ que recebeu, a esta data, a título de pensão de invalidez, o que se requer.
57- Por fim, mesmo que se entendesse que não deve ser efetuado o cálculo acima mencionado, sempre se imporia, pelo menos, que fosse abatida na indemnização a verba que sabemos já ter sido paga ao A até Junho de 2018, a título de pensão de invalidez ou seja, 7.639,86€, o que subsidiariamente, se requer,
58- A douta sentença sob censura violou as regras dos artigos 483º, 566º e fez menos boa interpretação das regras dos artigos 59º n.º 1 DL 187/2007, de 10 de Maio.

V. Factos considerados provados na sentença recorrida:

1. No dia 21.06.2013, cerca das 18:50 horas, na EN … que liga (..), na Rua …, lugar de …, freguesia de …, concelho de Fafe, ocorreu um acidente de viação;
2. O acidente consistiu no embate entre o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula … que nesse circunstancialismo de tempo e lugar era conduzido (…) seu proprietário, no sentido (..), e o Autor que realizava o atravessamento da referida via da direita para a esquerda atento o sentido de marcha do veículo IP;
3. O imóvel onde o Autor reside dispõe de um pequeno logradouro adjacente à EN …, separado desta por um muro em pedra com 1,20 de altura e com uma abertura sem cancela que permitia o acesso à margem direita da estrada, considerando o sentido do IP;
4. Momentos antes do acidente, o Autor saiu do mencionado logradouro e circulou a pé pela berma direita da EN …, no sentido (…), para procurar um gato de que era dono;
5. Na mesma ocasião, o condutor do IP seguia a sua marcha em aproximação ao local, pela metade direita da faixa de rodagem, a velocidade de, aproximadamente, 57 Km/ hora;
6. O condutor do IP prestava atenção ao tráfego que se fazia na EN …;
7. Ao aperceber-se que o referido felino se encontrava na faixa de rodagem da EN …, o Autor ficou por momentos parado na berma e, subitamente, em passo de corrida rápido, iniciou o atravessamento da estrada (Rua …) da direita para a esquerda, atento o sentido (…), com o intuito de apanhar o animal;
8. O Autor, completamente concentrado na perseguição ao aludido animal, entrou na faixa de rodagem alheado do trânsito de veículos que se fazia sentir na Rua …;
9. Sem olhar para a sua esquerda e sem atentar na aproximação do IP que, vindo desse lado, se encontrava a distância não superior a 15 metros do Autor;
10. Ocupando, assim, num primeiro momento, a metade direita dessa via, por onde circulava o IP;
11. Surpreendendo o condutor do IP que viu a sua linha de marcha subitamente cortada pelo Autor;
12. Na tentativa de se desviar do obstáculo provindo da sua direita, contornando o Autor, o condutor do IP travou e flectiu à sua esquerda;
13. No decurso dessa manobra e por virtude da dimensão do automóvel e da via, o IP transpôs a linha contínua pintada no eixo da via e invadiu parcialmente a metade esquerda da faixa de rodagem;
14. Porém, o Autor prosseguiu em correria o atravessamento da via, tendo ocupando, também, a metade esquerda da faixa de rodagem, atento o sentido do IP;
15. Vindo a ser embatido com a parte frontal do veículo automóvel de matrícula IP, quando já havia atravessado o eixo da via e se encontrava na metade esquerda da faixa de rodagem atento o sentido de marcha do IP, cerca de 0,75 m do eixo da via;
16. O Autor foi colhido sensivelmente a meio da frente do capot do IP e, de seguida, pelo pára-brisas desse carro tendo sido projectado para a frente;
17. Por força do embate do veículo … no corpo do Autor, este foi projectado para a berma esquerda, atento o sentido de marcha do veículo, a uma distância de cerca de 6,80 m do local do embate;
18. O acidente ocorreu no início de uma curva ligeira à esquerda, aberta e ampla, sendo precedido por uma recta com cerca de 100 metros de extensão, atento o sentido de marcha do IP;
19. O condutor do veículo automóvel podia avistar o Autor à distância de mais de 100 metros;
20. Do local onde iniciou o atravessamento da via, o Autor dispunha de visibilidade de toda a largura da faixa de rodagem para qualquer um dos lados, nomeadamente para a sua esquerda (o lado de Fafe), numa extensão de mais de 100 metros;
21. No local onde ocorreu o acidente, a estrada tem piso em asfalto betuminoso que na ocasião se encontrava seco e conservado, e a faixa de rodagem tem largura de 5,70 metros;
22. O acidente ocorreu na rua principal do lugar de (…), onde existem estabelecimentos, escola, cruzamentos e entroncamentos de acesso a loteamentos e casas, sendo a via marginada, de ambos os lados, por edificações urbanas;
23. A estrada nacional é o principal acesso a (…) para quem vem de Fafe e de Guimarães, tem intenso tráfego de veículos e de pessoas;
24. O local está assinalado com os sinais verticais de perigo A16a (passagem de peões) e de proibição C13 (proibição de exceder a velocidade máxima de 50 Km/hora);
25. No local existem bandas cromáticas transversais pintadas na via, designadas por M20, assinalando a necessidade de reduzir a velocidade e marca longitudinal separadora dos sentidos de trânsito – linha contínua pintada no eixo da via, designada por M1 -, assinalando a proibição de a pisar ou transpor e o dever de transitar à sua direita;
26. Existia na via uma passadeira destinada a peões, a cerca de 50 metros do local onde o Autor iniciou a travessia;
27. O IP é um veículo de marca (…) , do ano de 2009, tendo uma largura aproximada de 1,84 m entre rodados e 2,01 m entre espelhos retrovisores;
28. Em consequência do embate, o Autor ficou prostrado no solo, inanimado, sem resposta verbal nem abertura ocular, evidenciando ferida sangrante no couro cabeludo à esquerda e hematoma periorbitário à esquerda;
29. Em consequência directa do acidente, o Autor sofreu politraumatismo com traumatismo craniano e fracturas da coluna cervical e dorsal, designadamente: - contusões temporais direitas; - fractura parieto-temporal direita; - fractura das pars articular direita e da apófise articular superior e transversa à esquerda, em C6; - fractura da apófise transversa esquerda de C7, fracturas das apófises transversas esquerdas em D3 e D5; e - fractura das 1.ª e 4.ª costelas à esquerda;
30. Imediatamente após o acidente, foi assistido no local e transportado de ambulância para o Hospital de Braga, onde deu entrada como ferido muito grave, no Serviço de Urgência;
31. Ficou internado no Serviço de Neurocirurgia daquele hospital, sendo sedado, intubado e ventilado, desde 21.06.2013 até 26.06.2013;
32. Foi depois transferido para a Unidade de Cuidados Intensivos daquele hospital, onde permaneceu internado para continuação dos cuidados até 13.07.2013;
33. Em 13.07.2013 foi transferido para o Centro Hospitalar do Alto Ave, E.P.E., Unidade de Guimarães, onde permaneceu internado no Serviço de UG-Neurologia, até 12.08.2013;
34. Em 13.07.2013 foi transferido para o Hospital Agostinho Ribeiro, em Felgueiras, onde permaneceu internado na Unidade de Cuidados Continuados até 23.10.2013;
35. Regressou ao domicílio após alta hospitalar, onde permaneceu em situação de doença directa;
36. Durante os internamentos em cuidados intensivos e continuados, o Autor foi submetido a exames, análises e tratamentos, efectuou TAC cerebral, foi-lhe colocado sensor da PIC frontal direito e necessitou de suporte aminérgico e ventilação mecânica que manteve até 25.06.2013;
37. Desde a data do acidente que o Autor tem vindo a ser seguido em consultas nos serviços neurocirurgia, ortopedia e neurologia do Hospital de Braga e de Guimarães, com reavaliação clínica e imagiológica;
38. Por prescrição médica, fez consultas e tratamentos de medicina física e reabilitação na Clínica Fisiátrica de …, Lda., desde 07.11.2013 até 27.02.2015, diariamente, tendo efectuado cerca de 232 sessões;
39. Continuava, à data da propositura da acção, orientado em consulta externa nos serviços de neurologia do Hospital de Guimarães, para exames, tratamentos e avaliação das lesões;
40. O Autor teve alta definitiva no dia 11.09.2013, mas continuou a ser seguido na Consulta de Medicina Física e de Reabilitação do Hospital de Braga, onde ainda hoje se mantém;
41. Em consequência das lesões sofridas no acidente a que se reportam os presentes autos, o Autor: A) Ficou a padecer das seguintes sequelas permanentes: Crânio: Ligeiro Desequilíbrio, sem sinal de Roomberg associado; Membro Superior Esquerdo: Rigidez parcial do ombro, com diminuição da mobilidade da antepulsão (100º), abdução (80º) e rotação interna e externa, não consegue pôr a mão na nuca; Força muscular do membro com diminuição leve (grau 4/5); Membro inferior esquerdo: Mobilidade articular do membro preservada, porém com diminuição moderada da força muscular (grau 3-4/5); B) Sofreu um período de Repercussão Temporária da Actividade Profissional Total de 1219 dias, com consolidação médico-legal das lesões a 28.10.2016; C) Sofreu Quantum Doloris fixável no grau 4 de uma escala de gravidade crescente de 1 a 7 graus; D) Ficou a padecer de Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de 22 pontos, incompatível com o exercício da actividade habitual, embora compatível com outras profissões da sua área de preparação técnico-profissional; E) Ficou a padecer de uma Repercussão Permanente nas Actividades Desportivas e de Lazer de grau 2, numa escala de gravidade crescente de 1 a 7 graus;
42. Devido às lesões sofridas no acidente, o Autor teve, temporariamente: dificuldades de orientação e de memória, dificuldade articular frases e em manter conversação prolongada para além de alguns minutos; dificuldades na marcha, com défice de força e mobilidade nos membros superior e inferior esquerdos; necessitou do auxílio da mulher e filhas para se deslocar, alimentar, vestir e tratar da sua higiene pessoal;
43. Devido às lesões sofridas no acidente, o Autor tem: dificuldade acrescida em correr ou saltar, manter marcha prolongada, subir e descer escadas ou rampas inclinadas; dificuldade acrescida em exercer actividades agrícolas de cultivo da horta e jardinagem, ou outras ocupacionais que impliquem mobilidade e esforço físico com os membros superior e inferior esquerdos (artigos 50º e 53º da p.i.);
44. Durante o período de internamento o Autor foi submetido a diversos exames, análises, curativos e tratamentos;
45. Mercê das aludidas lesões, internamentos, curativos, sessões de fisioterapia e outros tratamentos, padeceu dores, incómodos, medos, angústia e sofrimento físico e psíquico;
46. Por via das lesões, o Autor necessitou de realizar vários exames complementares de diagnóstico e avaliação nos serviços de imagiologia das unidades hospitalares onde foi assistido;
47. Foi sedado e ventilado e foi submetido a vários exames radiológicos de RX e TAC´s;
48. O Autor sofreu constrangimentos, angústia e ansiedade, em sucessivas consultas, exames e tratamentos, passando parte do seu tempo nos hospitais, em clínica de fisioterapia, bem como em viagens e deslocações de casa para os hospitais e clínica, e vice-versa;
49. A realização dos exames radiológicos, as substâncias sedativas e os receios de infecções hospitalares, contribuíram para o sofrimento psíquico, inquietando-o e perturbando-o;
50. Em período anterior à data do acidente, o Autor exerceu a actividade profissional de operário na indústria da construção civil, com a categoria de servente, na empresa “(…) mediante contrato de trabalho celebrado em 19.10.2005, cessado em 29.02.2012 por extinção do posto de trabalho, sendo de € 612,00 o último salário auferido;
51. À data do acidente, o Autor encontrava-se desempregado, inscrito no IEFP na situação de procura activa de emprego (PAE);
52. Como servente da construção civil, o Autor tinha necessidade de transportar, deslocar, carregar e descarregar cimentos, areia, ferro, tijolos, recipientes de água, tintas e outros materiais e objectos pesados, confeccionar argamassas, limpar e lavar os locais de trabalho a fim de remover entulho e desperdícios, escavar, remover e transportar terras utilizando meios manuais, auxiliar a montar e retirar moldes de madeira das cofragens, desmontar e preparar a pedra nas obras e assentar pedras e outros materiais, percutindo-os com maços e ferramentas apropriadas, manobrar equipamento diverso de baixa tonelagem e/ou capacidade, nomeadamente dumpers, guinchos, monta-cargas e betoneiras;
53. As tarefas descritas no número anterior exigem esforço físico, agilidade de movimentos e locomoção e, para as executar, o Autor tem necessidade de permanecer e manter-se a trabalhar de pé por longos períodos de tempo, manusear cargas, ultrapassar desníveis, caminhar em pisos irregulares, subir e descer andaimes, bem como para adoptar posturas forçadas, designadamente de joelhos ou de cócoras;
54. Devido às sequelas do acidente o Autor não pode executar as tarefas descritas nos números anteriores, estando impossibilitado de exercer a sua actividade profissional habitual;
55. Desde o acidente até à presente data, o Autor não mais exerceu actividade profissional, nem auferiu qualquer rendimento do seu trabalho;
56. Antes da ocorrência do acidente, o Autor sofria de: - psoríase; - alcoolismo crónico que já motivara dois tratamentos de desintoxicação; - sequelas de fractura da anca direita, tratada cirurgicamente, e resultante de atropelamento anterior; - osteofitose posterior de C3 a C5, a moldar ligeiramente a medula;
57. As patologias mencionadas no número anterior, eram causa de dores, limitação de movimentos e necessidade acompanhamento médico;
58. Em deslocações pessoais em transportes públicos, para consultas, exames e tratamentos médicos, em viagens para Braga, Guimarães, Felgueiras e Fafe, o Autor despendeu, até à data da propositura da acção, a quantia de € 381,80;
59. Com o embate do veículo e projecção do Autor, os óculos que este usava no momento do acidente partiram e ficaram inutilizados, tendo que comprar uns novos, no que despendeu a quantia de € 179,00;
60. Em despesas com medicamentos, o Autor despendeu a quantia de € 283,91 (artigo 105º da p.i.);
61. No exercício da sua actividade de prestador de cuidados de saúde, o “Hospital(…) ” prestou serviços médicos a (…) , com o número de utente do Hospital de Braga (…), do dia 21 de Junho de 2013 ao dia 31 de Julho de 2014, às lesões por este sofridas no acidente descrito nos factos provados números 1 a 17 supra;
62. A assistência médica-hospitalar mencionada no facto provado anterior importou na quantia total de € 7.986,15, titulado pelas facturas números FHB2013/6902, FHB2014/1478, FHB2014/2485, FHB2014/4594, FHB2014/5152 e FHB2015/753, nos valores de € 7.695,25, € 80,68, € 31,00, € 62,00, € 94,00 e € 23,22, emitidas, respectivamente, em Dezembro de 2013, 31 de Março de 2014, 30 de Abril de 2014, 28 de Agosto de 2014, 23 de Setembro de 2014 e 17.02.2015;
63. O “Centro Nacional de Pensões – ISS, I.P.” reconheceu ao Autor o direito a pensão por invalidez com efeitos a partir de 23.01.2017, no valor mensal, anualmente actualizável, de € 389,34, 14 vezes por ano;
64. Por conta da pensão mencionada no facto provado anterior, o “Centro Nacional de Pensões – ISS, I.P.” pagou ao Autor, até Junho de 2018, inclusive, a quantia total de € 7.639,86;
65. O Autor nasceu 2 de Outubro de (..) (cfr. certidão de assento de nascimento junta a fls. 97);
66. Por contrato de seguro, válido e em vigor à data do acidente, celebrado entre (…) titulado pela apólice (…), foi transferida para a Ré a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo com a matrícula (..) (cfr. apólice junta a fls. 233 dos autos).

V. Cumpre apreciar e decidir.

No segmento de facto:

A recorrente conclui que os pontos 4 e 7 contém matéria não alegada pelas partes nos articulados, concretamente as passagens “circulou a pé pela berma direita da EN …, no sentido (…)”, e “ficou por momentos parado na berma”; e que, por outro lado, resultando do depoimento prestado pela testemunha (…) que “quando o condutor do IP avistou o autor a parar na berma, retirou o pé do acelerador e colocou-o sobre o pedal do travão”, deveria esse facto complementar ser incluído no acervo provado nos termos do 5º, nº2, alínea b), do CPC, e que a sua não atendibilidade constitui a nulidade prevista no artigo 615º, nº1, alínea d), do CPC.

No segmento de direito: A recorrente considera que a culpa na produção do acidente deve ser imputada exclusivamente ao autor e, a manter-se a decisão na parte relativa à fixação da indemnização em 31.000,00€, devem ser abatidos os valores pagos pela CNP ao autor a título de pensão de invalidez.

Vejamos a impugnação da decisão da matéria de facto.

É sabido que cabe às partes alegar os factos que integram a causa de pedir, e os que se baseiam em exceções invocadas, e só desses o julgador pode tomar conhecimento e adquirir para o processo, salvo as situações expressamente previstas no artigo 5º, nº2, do Cód. Proc. Civil (podem ser adquiridos pelo juiz “os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar”).

Isso prende-se com o princípio da auto-responsabilização das partes e a determinação dos factos a apreciar, porquanto o Juiz “deve, especialmente, abster-se de admitir como existentes factos relevantes para a decisão da causa que não constem do processo (quod non est in actis non est in mundo)”- A. dos Reis, CPC Anotado, V-p. 95.

A factualidade que é objecto de impugnação prende-se com o comportamento da vítima antes de ter sido embatido pelo automóvel.
A versão dos demandantes apresentada nos articulados era no sentido de que o peão saiu do seu logradouro, olhou para a esquerda e para a direita, e entrou na estrada ao constatar que não se aproxima qualquer veículo. Sai do âmbito dessa alegação, e é coisa diferente, afirmar que ele ainda caminhou na berma no sentido Fafe-Cabeceiras de Basto. Daí que na redação do ponto 4 dos factos provados deva prevalecer apenas que “momentos antes do acidente, o autor saiu do mencionado logradouro para procurar um gato de que era dono”.

Por sua vez, a versão da ré na contestação era que o autor estava no logradouro ocultado pela vegetação e, subitamente, saiu do seu interior a correr em direção à estrada. Dizer agora que afinal o condutor do veículo tirou o pé do acelerador e colocou-o sobre o pedal do travão, acautelando a travessia do peão que avistara é uma versão bem distinta.

Já o segmento do ponto 7 “ficou por momentos parado na berma” traduz uma resposta de índole explicativa sobre o comportamento da vítima antes de ter sido embatida pelo veículo. Na verdade, embora não se tendo provado a versão dos demandantes de que o peão olhou para a esquerda e para a direita antes de iniciar a travessia, a resposta explica que se apurou pelo menos que o autor parou por momentos na berma (fica desse modo excluída a versão da ré de que o autor saiu do logradouro de sua casa e inicia e de imediato entra na estrada a correr). Como refere o acórdão do STJ de 11.03.1992, “as respostas aos quesitos não têm de ser, necessária e simplesmente, afirmativas ou negativas, podendo ser restritivas ou explicativas, desde que se contenham na matéria articulada». (1)

Do mérito da causa.

O litígio respeita a um acidente de viação (atropelamento de um peão por um veículo automóvel em circulação), discordando a recorrente seguradora do entendimento da sentença que considerou haver culpas concorrentes (em igual medida) do peão e do condutor do veículo.

Em jeito de antecipação da decisão final, desde já se refere que nenhuma dúvida se suscita quanto ao acerto da solução e, em termos globais, sobre a validade dos fundamentos aduzidos.

É inegável a atuação ilícita do peão por ter objetivamente violado o específico dever de cuidado previsto no artigo 101º do CE, iniciando a travessia da EN 311 quando o veículo IP se aproximava a não mais de 15 metros. Naturalmente que o fez para salvar o seu felino (daí que nenhuma utilidade poderia retirar da passadeira existente a 50 metros) mas esse nobre propósito não o isenta do juízo de censura (2) uma vez que não devia ignorar que desse modo colocava em causa, como na verdade colocou, quer interesses alheios quer a sua própria segurança.

Mas o comportamento do condutor do automóvel não é totalmente alheio ao processo causal do acidente, pois também se revelou ilícito e culposo. Além de ter infringido o limite de velocidade estabelecido e sinalizado para o local (artigo 27º do CE), as específicas circunstâncias exigiam uma velocidade moderada pois circulava pelo interior de uma localidade ladeada por habitações (cf. artº 25º, nº1/c) e devia acautelar a necessidade de fazer parar o veículo na eventualidade de qualquer temeridade por banda do peão que avistou parado na berma direita da estrada (artigo 24º, nº1).

Termos em que se mostra correcta a distribuição de culpas fixada na sentença.

O STJ, no acórdão de 30 de março de 2017 (disponível no site www.dgsi.pt), resolveu no mesmo sentido um acidente de viação em que um veículo, circulando dentro de um perímetro urbano a uma velocidade não inferior a 60 km/hora, embateu num peão que fazia a travessia da estrada a 5 metros de distância.

Vale a pena tanscrever “data vénia” algumas das considerações aí expendidas:

É muito frequentemente glosada a frase de que aos condutores de veículos automóveis é inexigível contar com a negligência de outros utentes da via pública, conceito cuja valia está em franca decadência por diversos motivos.

O primeiro é o de que as vias públicas, mais a mais quando atravessam localidades e não têm características especiais, são locais de convivência entre os diversos utentes, maxime entre os veículos e os peões, cada um dos quais deve utilizá-las tendo em atenção os demais.

O segundo é o de que a condução automóvel, designadamente no que respeita ao factor da velocidade, deve ser exercida de tal modo que permita ao condutor imobilizar o veículo no espaço livre e visível à sua frente, o que, aplicado ao caso, implicaria também a atenção devida a outros possíveis obstáculos que se intrometessem na passagem do veículo.

O terceiro e principal factor é o de que o direito estradal vem avançando, muito por força das Directivas Europeias em matéria de seguro automóvel, no sentido da concessão de maior tutela aos utentes mais vulneráveis das vias públicas. Tal manifesta-se principalmente no regime do seguro obrigatório mas projecta-se igualmente no instituto da responsabilidade civil rodoviária que não pode ficar desfasado do nível de protecção que é projectado pelas Directivas e que se deve traduzir quer em modificações do direito interno, quer numa diversa percepção da problemática da circulação e dos riscos da circulação automóvel.

Ainda que tal não infirme a possibilidade de todos os utentes se harmonizarem, cumprindo as regras que sobre cada um incidem com vista a evitar a ocorrência de acidentes, pede-se aos condutores de veículos que tomem especiais cautelas e que circulem com uma especial atenção aos factores de risco que rodeiam a circulação designadamente quando circulem em localidades”.

A recorrente não questionou o valor das parcelas indemnizatórias fixadas para os danos patrimoniais e não patrimoniais, pretende tão só que sejam deduzidas as importâncias recebidas pelo autor da CNP a título de pensão de invalidez.

A impossibilidade de o autor cumular a indemnização fixada na sentença com a pensão por invalidez da CNP advém «do princípio geral que não permite, sob pena de locupletamento injustificado, que o mesmo evento danoso seja fonte de diversas receitas para a vítima e se transforme, assim, num negócio lucrativo e muito rendoso» (RLJ, nº.3539, pág. 31).

O DL 187/2007 de 10.05 dispõe no artº 6º, nº1, que “existindo responsabilidade civil de terceiro pelo facto determinante da incapacidade que fundamenta a atribuição da pensão de invalidez, não há lugar ao pagamento das respectivas prestações até que o somatório das pensões que o beneficiário teria direito, se não houvesse tal responsabilidade, atinja o valor da indemnização por perda de capacidade de ganho”.
Esse regime legal está instituído em benefício da Segurança Social e não do terceiro responsável pela incapacidade que fundamenta a atribuição da pensão, significando que o pagamento dessa pensão só se inicia ou é retomado uma vez esgotada por esse cálculo aritmético o valor indemnizatório que está obrigado a pagar o terceiro responsável.

Decisão:

Em face dos fundamentos expostos, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação.
Custas pela recorrente.

TRG, 9 de maio de 2019

Heitor Carvalho
Amílcar Andrade
Conceição Bucho


1. Como refere o acórdão do STJ de 11.03.1992, “as respostas aos quesitos não têm de ser, necessária e simplesmente, afirmativas ou negativas, podendo ser restritivas ou explicativas, desde que se contenham na matéria articulada”.
2. A fuga do gato para a estrada configura, por sua vez, a violação do dever de vigilância previsto no artigo 493º, nº1, do Código Civil.