CASSAÇÃO DO TÍTULO DE CONDUÇÃO
MEDIDAS DE SEGURANÇA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Sumário


I - O recurso para fixação de jurisprudência é um recurso excepcional, com tramitação especial e autónoma, que tem como objectivo a estabilização e a uniformização de jurisprudência, eliminando o conflito originado por duas decisões contrapostas a propósito da mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação.
II - Para além dos pressupostos de ordem formal (o trânsito em julgado de ambas as decisões, a interposição de recurso no prazo de 30 dias posteriores ao trânsito em julgado do acórdão recorrido, a invocação de acórdão anterior ao recorrido que sirva de fundamento ao recurso e a identificação do acórdão-fundamento, com o qual o recorrido se encontra em oposição), é necessária a verificação de outros pressupostos de natureza substancial, como a justificação da oposição entre os acórdãos e a verificação da identidade de legislação à sombra da qual foram proferidas as decisões.
III -A oposição de julgados pressupõe que nos dois acórdãos seja idêntica a situação de facto, que em ambos haja expressa resolução de direito e que a oposição respeite às próprias decisões e não aos seus fundamentos.
IV -Não existe oposição de julgados quando as situações de facto assumem contornos muito diversos, muito embora em ambos os acórdãos tenha sido abordada a mesma questão de direito relativa à aplicação da medida de cassação da carta de condução do art. 101.º do CP.
V - A específica natureza dos crimes constantes do catálogo presentes apenas no caso do processo donde emergiu o acórdão recorrido, por si só exigia outro tipo de ponderação que não se colocava face aos tipos legais presentes no caso do acórdão-fundamento.
VI - No acórdão-fundamento estavam presentes ilícitos não constantes no catálogo indicado no n.º 2 do art. 101.º do CP, o que releva para efeitos de verificação dos pressupostos de aplicação da medida de segurança da cassação da carta de condução.

Texto Integral

     AA, arguido no processo comum singular n.º 89/09.7GBMBR, do então Tribunal Judicial da Comarca de Moimenta da Beira, veio, nos termos dos artigos 437.º e seguintes do Código de Processo Penal, interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 11 de Dezembro de 2013, proferido no Recurso Penal registado sob o n.º 89/09.7GBMBR.P1 da 2.ª Secção, que reapreciou recurso interposto pelo arguido da sentença condenatória contra si proferida.

      Invoca oposição entre a solução deste acórdão e a preconizada pelo acórdão do mesmo Tribunal da Relação do Porto, datado de 5 de Janeiro de 2005, proferido no Recurso Penal n.º 4555/04, da 1.ª Secção, emergente de recurso interposto pelo condenado de sentença proferida no 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Peso da Régua, sobre situação alegadamente similar, o que expõe ao longo da motivação, de fls. 4 a 12, nos termos e com os fundamentos daí constantes, que remata com as seguintes conclusões:

1ª Há oposição de julgados quando dois Acórdãos da mesma Relação apreciando idêntica questão de direito chegam a soluções opostas.

2ª A situação idêntica apreciada no Acórdão recorrido e no Acórdão fundamento tem a ver com a cassação da carta de condução ao arguido.

3ª O Acórdão recorrido confirmou a cassação da carta de condução por considerar que o arguido praticando os crimes rodoviários em questão revela inaptidão e perigosidade para a condução de veículos.

4ª O Acórdão fundamento revogou a medida da cassação da carta de condução entendendo que a prática dos crimes rodoviários embora sejam causa necessária não são suficientes para a aplicação desta medida.

5ª Os pressupostos desta medida dependem, tal como refere o Exmo. PGA no seu parecer, da prática de crime resultante da própria condução ou com esta relacionado, sendo que a actuação do arguido esgota-se na própria condução, sem se prolongar na prática de outro crime diferente, tal como, de resto, foi entendido no Ac. da RP de 25-09-02 - processo 0240610.

6ª Na situação do Acórdão Recorrido, o arguido também esgotou a sua actividade na prática de crimes rodoviários (condução em estado de embriaguez e condução perigosa de veículo rodoviário).

7ª Assim sendo deve proferir-se Acórdão de Uniformização de Jurisprudência no sentido de que, a medida de cassação da carta de condução só dever ser decretada, quando, cumulativamente, o arguido seja condenado por crime resultante da condução ou com esta relacionado, mas que não se esgote na própria condução, e revele perigosidade ou inaptidão para o exercício da condução nos termos do artigo 101º nºs 1 e 2 do Código Penal. (Negrito nosso, a realçar o sentido proposto).

8ª Termos em que, assim se decidindo, se deve revogar o Acórdão recorrido na parte em que confirmou a cassação da carta de condução ao arguido, substituindo-se esta pela pena acessória de inibição de conduzir.

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      Cumprido o disposto no artigo 439.º, n.º s 1 e 2, do Código de Processo Penal, o Ministério Público, notificado apenas em 1-09-2014 por lapso da secretaria, conforme fls. 43, apresentou resposta a fls. 44/5, defendendo que:

No caso do acórdão fundamento, entendeu o TRP não se justificar a aplicação da medida de segurança de cassação do título de condução porque o arguido, nesse processo, foi condenado por crime de condução ilegal de veículo e, com essa condução ilegal, não foi afectada a segurança rodoviária ou criado perigo efectivo para a integridade de pessoas ou bens materiais.

Além desse crime, o arguido, nesse processo, apenas foi condenado por um crime de violação de proibições ou interdições que nada releva, em termos de perigosidade para a circulação rodoviária.

As situações de facto a que se reportam os acórdãos recorrido e fundamento nada têm de comum; são completamente distintas, sendo de realçar que na situação do acórdão recorrido, para além do mais, o arguido foi condenado pela prática de dois crimes expressamente previstos no artigo 101.º, n.º 2, do Código Penal – condução perigosa de veículo rodoviário e condução de veículo em estado de embriaguez.

Um dos fundamentos da admissão do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, segundo dispõe no artigo 437.º, n.º 1, do CPP, é que sobre a mesma questão de direito tenham sido proferidos acórdãos que assentem em soluções opostas.

O que não é o caso dos autos, porque os acórdãos alegadamente opostos invocados pelo arguido não se debruçam sobre a mesma questão de direito

   Entende que o recurso, por não se verificarem os respectivos pressupostos, não deverá ser admitido.

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      Mostram-se juntas certidões do acórdão recorrido – fls. 15 a 40 e de fls. 74 a 100 – e do acórdão fundamento – fls. 109 a 114 – sendo este por força do despacho de fls. 105.

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      Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer de fls. 49 a 55, concluindo não se poder afirmar a existência de divergência, relevante, sobre a questão jurídica em equação.

      “Bem pelo contrário, o que existe é até inteira convergência. Isto porque cada um dos arestos ditos em oposição partiu de distintos dados de facto, colocados em cada um deles de forma singular e autónoma. E em cada um dos seus respectivos exercícios, como facilmente decorre do supra evidenciado em 2.3.1 e 2.3.2, é inquestionável que nenhum deles tomou posição divergente sobre os pressupostos de aplicação da mencionada medida de segurança de cassação. A diferença, única aliás, resultou apenas do facto de, ao contrário do que sucedeu no âmbito do acórdão fundamento, no caso do acórdão recorrido estavam em causa crimes constantes do supra citado catálogo do n.º 2 do art. 101.º do Código Penal como susceptíveis de revelar inaptidão para o exercício da condução, inaptidão que, como se decidiu, ali se tinha, efectivamente, por verificada.

      Ora, a oposição de julgados pressupõe, como é sabido, decisões contraditórias sobre a mesma questão de direito, proferidas no domínio da mesma legislação. Porém, a decisão da questão de direito não pode ser desligada do substrato factual sobre a qual incide: a identidade ou similitude substancial dos factos constitui também condição para determinar a identidade ou a oposição de julgados. Uma conjugação factual que não seja coincidente, em ambas as situações, nos elementos relevantes que constituem a base de referência, identificação ou construção da hipótese que é objecto de decisão, com a aplicação da norma ou da dimensão normativa, simples ou complexa, não permite afirmar que soluções aparentemente coincidentes não sejam efectivamente diversas, vista a diferença de pressupostos de facto que, numa e noutra, constituem a base da decisão.

      Verifica-se portanto, no apontado quadro, que falham rotunda e inexoravelmente, os requisitos substanciais do recurso extraordinário interposto.


*

     Emitindo parecer, a final, pronuncia-se pela não verificação do requisito substancial previsto no artigo 437.º do CPP — oposição de julgados relativamente à mesma questão de direito —, motivo pelo qual o recurso extraordinário interposto deve, em conferência, ser rejeitado [artigos 440.º, n.ºs 3 e 4 e 441.º, n.º 1, do C.P.P.] (Realces do texto).

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      Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

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      O recurso para fixação de jurisprudência é um recurso excepcional, com tramitação especial e autónoma, tendo como objectivo primordial a estabilização e a uniformização da jurisprudência, eliminando o conflito originado por duas decisões contrapostas a propósito da mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação.

     Como se extrai do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Setembro de 1996, processo n.º 47.750, CJSTJ 1996, tomo 3, pág. 143, face à natureza excepcional do recurso, a interpretação das normas que o regulam deve fazer-se apertis verbis, ou seja, com o rigor bastante para o conter no seu carácter extraordinário e não o transformar em mais um recurso ordinário na prática. Ou, como se refere no acórdão de 23 de Janeiro de 2003, proferido no processo n.º 1775/02-5.ª, que citámos no acórdão de 12 de Março de 2008, no processo n.º 407/08-3.ª, in CJSTJ 2008, tomo 1, pág. 253 (5) e no acórdão de 19 de Março de 2009, processo n.º 306/09-3.ª, a interpretação das regras jurídicas disciplinadoras deste recurso deve fazer-se com as restrições e o rigor inerentes (ou exigidas) por essa excepcionalidade.

  

      Os pressupostos de prosseguimento do recurso decorrem, no essencial, do disposto nos artigos 437.º e 438.º do CPP.

      Estabelece o artigo 437.º do Código de Processo Penal, na redacção dada ao preceito pela 15.ª alteração introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, e intocado nas subsequentes alterações:

1. Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.

2. É também admissível recurso, nos termos do numero anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

3. Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.

4. Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.

5. O recurso previsto nos n.ºs 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público.

      Nos termos do n.º 1 do artigo 438.º do mesmo Código, o recurso para fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.

      O n.º 2 do mesmo preceito contempla a necessidade de observância de determinados requisitos, como o recorrente identificar o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação, devendo justificar a oposição que origina o conflito de jurisprudência.

      O “Assento n.º 9/2000”, de 30 de Março de 2000, publicado in Diário da República, I Série - A, de 27 de Maio de 2000, fixou jurisprudência no sentido de que, no requerimento de interposição de recurso deveria constar, sob pena de rejeição, para além dos requisitos exigidos no n.º 2 do artigo 438.º, o sentido em que deveria fixar-se a jurisprudência cuja fixação era pretendida.

      O acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 5/2006, de 20 de Abril de 2006, publicado in Diário da República, I Série - A, de 6 de Junho de 2006, que reputou ultrapassada a jurisprudência assim fixada, procedeu ao seu reexame,  e fixou-a no sentido de que no requerimento de interposição do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência o recorrente ao pedir a resolução do conflito não tem de indicar o sentido em que deve fixar-se jurisprudência.

 

      Sendo basicamente necessário o confronto de dois acórdãos que relativamente à mesma questão de direito assentem em soluções opostas, o artigo 437.º do Código de Processo Penal faz depender a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência da existência de determinados pressupostos e o artigo 438.º identifica o tempo, o modo e o efeito da interposição do recurso.

                                                                     *

      Verifica-se no caso em apreciação a legitimidade do recorrente, nos termos do n.º 5 do artigo 437.º do Código de Processo Penal.

     O acórdão fundamento foi proferido em 5 de Janeiro de 2005, tendo baixado à 1.ª instância em 9 de Fevereiro de 2005, após trânsito em julgado – certidão de fls. 109.

     O acórdão recorrido foi proferido em 11 de Dezembro de 2013, tendo transitado em 16 de Janeiro de 2014, conforme certificado a fls. 74.

      O presente recurso extraordinário de fixação de jurisprudência foi apresentado em 3 de Fevereiro de 2014, conforme fls. 2.

      Sendo fundamento do prosseguimento dos autos a interposição nos 30 dias subsequentes ao trânsito em julgado do acórdão recorrido, tal requisito mostra-se preenchido, pois o recurso deu entrada com observância daquele período temporal.

      Para além dos requisitos de ordem formal, como o trânsito em julgado de ambas as decisões, a interposição de recurso no prazo de 30 dias posteriores ao trânsito em julgado do acórdão recorrido, a invocação de acórdão anterior ao recorrido que sirva de fundamento ao recurso e a identificação do acórdão - fundamento, com o qual o recorrido se encontra em oposição, indicando-se o lugar da sua publicação, se estiver publicado, é necessária a verificação de outros pressupostos de natureza substancial, como a justificação da oposição entre os acórdãos, que motiva o conflito de jurisprudência e a verificação de identidade de legislação à sombra da qual foram proferidas as decisões.                 

      Como se extrai do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Outubro de 1989, in AJ, n.º 2, «É indispensável para se verificar a oposição de julgados:

a) – que as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito fixar ou consagrar soluções diferentes (e não apenas contraposição de fundamentos ou de afirmações) para a mesma questão fundamental de direito;

b) – que as decisões em oposição sejam expressas (e não implícitas);

c) – que as situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam, em ambas as decisões, idênticos.   

      A expressão “soluções opostas” pressupõe que nos dois acórdãos é idêntica a situação de facto, em ambos havendo expressa resolução de direito e que a oposição respeita às decisões e não aos fundamentos».

      Segundo o acórdão de 25 de Setembro de 1997, processo n.º 684/97-3.ª, in Sumários de Acórdãos do STJ, Gabinete de Assessoria, n.º 13, pág. 142, são pressupostos da admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência na oposição de acórdãos da mesma Relação:

- existência de soluções opostas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento;

- relativamente à mesma questão de direito;

- no domínio da mesma legislação;

- identidade das situações de facto contempladas nas decisões em confronto; e

- julgados explícitos ou expressos sobre idênticas situações de facto.

      No que respeita aos requisitos legais (decisões opostas proferidas sobre a mesma questão de direito e identidade de lei reguladora - requisitos resultantes directamente da lei) a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de forma uniforme e pacífica, aditou, de há muito e face ao disposto no artigo 763.º do Código de Processo Civil, a incontornável necessidade de identidade dos factos contemplados nas duas decisões e de decisão expressa, não se restringindo à oposição entre as soluções ou razões de direito.

      Segundo o acórdão de 15 de Novembro de 1966, processo n.º 61.536, BMJ n.º 161, pág. 354, não há oposição que legitime o recurso para o Tribunal Pleno quando o acórdão invocado em oposição só implicitamente se pronunciou sobre a questão controvertida.

      Como se extrai do acórdão de 23 de Maio de 1967, processo n.º 61.873, BMJ n.º 167, pág. 454, de entre os requisitos de seguimento de um recurso para o Tribunal Pleno, era “indispensável, ainda, segundo a orientação deste Supremo Tribunal, que sejam idênticos os factos contemplados nos dois acórdãos e que em ambos sejam expressas as decisões”. Neste sentido podem ver-se ainda os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Fevereiro de 1963, BMJ n.º 124, pág. 633; de 25 de Maio de 1965, BMJ n.º 147, pág. 250; de 08 de Fevereiro de 1966, BMJ n.º 154, pág. 263 e de 21 de Fevereiro de 1969, BMJ n.º 184, pág. 249.

      Segundo o acórdão de 13 de Fevereiro de 2008, processo n.º 4368/07-5.ª, a exigência de soluções antagónicas pressupõe identidade de situações de facto, pois não sendo elas idênticas, as soluções de direito não podem ser as mesmas. 

     A jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça tem sido constante neste sentido ao longo do tempo - cfr. acórdãos de 11-07-1991, processo n.º 42043; de 26-02-1997, processo n.º 1173, SASTJ, n.º 8, pág. 102; de 06-03-2003, processo n.º 4501/02-3.ª, in CJSTJ 2003, tomo 1, pág. 228; de 28-09-2005, processo n.º 642/05-3.ª, in CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 178; de 18-10-2006, processo n.º 3503/06-3.ª; de 23-11-2006, processo n.º 3032/06-5.ª; de 10-01-2007, processo n.º 4042/06-3.ª; de 06-02-2008, processo n.º 4195/07-3.ª; de 27-02-2008, processo n.º 436/08-3.ª; de 27-03-2008, processo n.º 670/08-5.ª; de 16-09-2008, processo n.º 2187/08-3.ª; de 03-04-2008, processo n.º 4272/07-5.ª, in CJSTJ 2008, tomo 2, pág. 194; de 02-10-2008, processo n.º 2484/08-5.ª; de 08-10-2008, processo n.º 2807/08-5.ª; de 12-11-2008, processo n.º 3541/08-3.ª, CJSTJ 2008, tomo 3, pág. 221; de 12-02-2009, processo n.º 3542/08-5.ª; de 15-04-2009, processo n.º 3263/08-3.ª; de 01-10-2009, processo n.º 107/07.3GASPS-B.C1-A.S1-3.ª; de 10-02-2010, processo n.º 583/02.0TALRS.L1-A.S1-3.ª, de 18-02-2010, processo n.º 12323/03.2TDLSB.L1-A.S1-5.ª; de 03-03-2010, processo n.º 6965/07.4TDLSB.L1-A.S1-3.ª; de 24-10-2013, processo n.º 1/03.7PILSB.CS1-5.ª; de 13-02-2014, processo n.º 1527/08.1GBABF.E1-A.S1-5.ª (Necessário que as situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam, em ambas as decisões, idênticos. Sempre que as decisões, recorrida e fundamento, partam de diferentes realidades de facto não têm como efeito fixar soluções diferentes para a mesma questão de direito) e n.º 1006/09.PAESP.P1.-B.S1-5.ª (Não se pode defender que a mesma factualidade tenha de corresponder a uma identidade absoluta).     

      Explicitam os citados acórdãos de 03-04-2008, de 02-10-2008, de 08-10-2008 e de 12-02-2009, todos do mesmo relator, que a expressão “soluções opostas” «pressupõe que nos dois acórdãos seja idêntica a situação de facto, em ambos havendo expressa resolução de direito e que a oposição respeita às decisões e não aos fundamentos; se nas decisões em confronto se consideraram idênticos factores, mas é diferente a situação de facto de cada caso, não se pode afirmar a existência de oposição de acórdãos para os efeitos do n.º 1 do art. 437.º do CPP».

      Segundo o acórdão de 13 de Fevereiro de 2008, processo n.º 4368/07-5.ª, a exigência de soluções antagónicas pressupõe identidade de situações de facto, pois não sendo elas idênticas, as soluções de direito não podem ser as mesmas. 

      E de acordo com o acórdão de 10 de Julho de 2008, processo n.º 669/08-5.ª e de 25 de Março de 2009, processo n.º 477/09-5.ª, o recurso tem de assentar em julgados explícitos ou expressos sobre situações de facto idênticas, sendo necessário, como requisito prévio, que tenha havido decisões jurídicas fundamentadas e expressas sobre o mesmo ponto de direito, por dois tribunais superiores e em sentido oposto, sendo necessário, na explicitação do acórdão de 3 de Julho de 2008, processo n.º 1955/08-5.ª, que ambos se debrucem especificamente sobre a questão jurídica que esteve na base da decisão diferente.

      Podem ver-se ainda os acórdãos de 12-03-2009, processo n.º 576/09-5.ª (interessa pois que a situação fáctica tenha os mesmos contornos, no que releva para desencadear a aplicação das mesmas normas) e n.º 477/09-5.ª (o recurso para fixação de jurisprudência tem de assentar em julgados explícitos ou expressos sobre situações de facto idênticas); de 25-03-2009, processo n.º 477/09-5.ª; de 15-04-2009, processo n.º 3263/08-3.ª; de 10-09-2009, processo n.º 458/08.0GAVGS.C1-A.S1-5.ª (interessa que a situação fáctica se apresente com contornos equivalentes, para o que releva no desencadeamento da aplicação das mesmas normas) e de 10-09-2009, processo n.º 183/07.9GTGRD.C1.S1-3.ª, onde se refere: «Situação de facto idêntica para efeitos de recurso de fixação de jurisprudência é apenas a que consta dos acórdãos legitimados à fixação, no caso a matéria de facto fixada respectivamente em cada acórdão da Relação. (…).

       Se a matéria de facto provada nos acórdãos da Relação é diferente, implicando consequência jurídica também diferente, é óbvio que não pode dizer-se que houve soluções divergentes que conduziram a soluções opostas relativamente a mesma questão jurídica. (…) Somente após a fixação da matéria de facto provada se pode definir e decidir o direito, pois que é sobre a matéria de facto, definitivamente estabelecida, que incide depois o direito constante da lei aplicável.

       É a matéria de facto que gera a questão de direito e convoca à aplicação da lei e não o contrário.

       E somente depois de fixada a questão de facto é que surge a questão de direito.

       Por isso se compreende que somente perante situações jurídicas decididas de forma oposta perante matéria de facto idêntica é que pode configurar-se recurso de fixação de jurisprudência, verificados os demais pressupostos».

      No mesmo sentido ainda os acórdãos de 28-10-2009, processo n.º 326/05.7IDVCT-B-3.ª e processo n.º 536/09.8YFLSB-A.S1-3.ª, de 05-05-2010, processo n.º 61/10.4YFLSB-3.ª.

      Ainda de acordo com o acórdão de 13-01-2010, processo n.º 611/09.9YFLSB.S1-3.ª, a oposição tem de ser expressa, e não meramente tácita, e incidir sobre a decisão, e não apenas sobre os seus fundamentos, e pressupõe igualmente uma identidade essencial da situação de facto de ambos os acórdãos em confronto.

     

      Revertendo ao caso concreto.

      O recorrente funda o presente recurso na oposição entre o acórdão recorrido do Tribunal da Relação do Porto, de 11-12-2013 e um acórdão do mesmo Tribunal da Relação do Porto, datado de 5-01-2005, indicado como fundamento, proferidos ambos no domínio da mesma legislação reguladora da medida de segurança de cassação de carta de condução.

      A questão a abordar é a de saber se se verifica efectivamente a invocada oposição entre os dois citados acórdãos.

      A questão central em debate num e noutro dos processos gira em torno da questão de saber se é de aplicar ou não a medida em causa. 

      Vejamos o que estava em causa em cada um dos acórdãos em confronto e o modo como foi abordada a questão colocada.

     Começando pela situação de facto.

     No processo comum singular n.º 89/09.7GBMBR, do Tribunal Judicial da Comarca de Moimenta da Beira, onde foi proferido o acórdão recorrido, o arguido foi condenado pela prática de:

Um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. p. pelos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal; 

Um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. p. pelos artigos 291.º, n.º 1, alínea b) e 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal; 

Três crimes de ofensas à integridade física qualificada, p. p. pelo artigo 145.º, n.º 1 e 2, alínea a), com referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), ambos do Código Penal;  

Um crime de desobediência, p. p. pelos artigos 348.º, n.º 1, alínea a) e 69.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal e artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3, do Código da Estrada. 

     Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 20 meses de prisão, suspensa por igual período, condicionada ao tratamento do consumo de álcool.

     Foi, ainda, determinada a cassação do título de condução do arguido e a proibição de concessão ao arguido de novo título de condução de veículos a motor durante o período de um ano e meio.

     O arguido reagiu, impugnando a decisão sobre a matéria de facto e no que toca ao ponto em foco manifestando a sua discordância nas conclusões 30.ª a 34.ª, pedindo a substituição da medida de cassação da carta pela pena acessória de proibição de conduzir.

     O acórdão recorrido, face à pretensão do recorrente, afirmou, a fls. 99:

     “Como é evidente, a suspensão da execução da pena principal não implica a suspensão da execução desta medida de segurança ou a sua substituição pela pena acessória de proibição de conduzir, como descabidamente e sem qualquer fundamento válido se pretende no recurso.

     Trata-se de uma medida baseada na perigosidade e inaptidão para a condução, cuja natureza é distinta da pena principal, não sendo os fundamentos que determinam a suspensão da execução desta, contraditórios com o decretar desta medida”.

  

     No processo comum singular n.º 201/03.0 do 2.º Juízo da Comarca de Peso da Régua, donde emergiu o acórdão fundamento, proferido no recurso n.º 4555/04 da 1.ª Secção, o arguido foi condenado pela prática de:

Um crime de violação proibições e ou interdições, p. p. no artigo 353.º do Código Penal;

Um crime de condução sem habilitação, p. p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 do DL n.º 2/98, de 3 de Janeiro.

     Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 1 ano prisão, suspensa na sua execução por dois anos, condicionada a acções de formação rodoviária.

     Foi determinada a cassação da carta de condução pelo período de 18 meses.

     Reagiu o arguido, dizendo não estarem reunidos os pressupostos para a aplicação da medida de cassação da carta de condução.

     O acórdão fundamento, para além de reduzir a pena única de prisão para 9 meses, em regime de suspensão, entendeu não haver lugar à aplicação da medida de segurança.

     Com efeito, no que respeita à cassação da carta de condução, o acórdão começa por fazer a comparação do regime legal com a proibição de conduzir prevista no artigo 69.º do Código Penal para aferir da natureza e finalidade da medida de cassação de carta em apreço e deduzir não estarem reunidos os requisitos necessários para a sua aplicação.

     Para tanto, a fls. 113 deste, cita o reformulado “Tratado de Derecho Penal”, de Jeshec-Weigend (Parte geral, Comares Editorial, Granada, 2002, 5.ª edição, sendo os sublinhados dos autores “ambas as sanções tem como consequência que o condutor não pode tomar parte como condutor no tráfico rodoviário mas, quanto ao mais, diferenciam-se claramente na sua natureza jurídica e requisitos: a proibição de conduzir, como pena acessória que é, pressupõe a condenação por comissão culposa de um delito assim como a imposição de uma pena principal por ela; o seu objectivo é desenvolver um influxo pedagógico sobre quem é um condutor capacitado para tomar parte na circulação viária, por meio da suspensão de conduzir durante um curto espaço de tempo ao que aparece ligada uma advertência perante infracções adicionais em matéria de trânsito. Perante ela, a cassação da carta de condução dirige-se à exclusão durante um largo período de tempo de pessoas que já demonstraram a sua deficiente aptidão para a condução de veículos, e cuja finalidade é contrariar o perigo para a colectividade que isso pressupõe; daí que um motivo para a imposição desta medida possa ser também a comissão de um facto antijurídico em situação de incapacidade de culpabilidade – pág. 843.

      Dando exemplos sobre situações que podem levar à simples proibição de conduzir, os autores mencionam o caso da utilização de um veículo para o transporte do produto do crime e concluem que em muitos dos casos citados, o agente não diminuiu a segurança do tráfico e neste ponto não necessita de nenhuma advertência acerca do seu dever.

      E acrescentam ainda os mesmos autores: a adopção da medida de segurança da cassação pressupõe que o condenado cometeu um facto antijurídico e que demonstrou pelo mesmo a sua inidoneidade para conduzir veículos - pág. 891.

      Também adiantam o fundamento da presunção contida no art.º 101.º, n.º 2 do CP: a sua falta de capacidade presume-se se o agente cometeu um dos crimes de perigo em matéria de tráfego especificamente previstos ou fugido do local do acidente depois de ter originado importantes danos pessoais ou materiais: o legislador pressupõe que através da comissão destes delitos de tráfego se põem geralmente em evidência deficiências de carácter que fundamentam a cassação da carta – pág. 892.

      E prossegue, afirmando, a fls. 113 verso deste:

     “E apreciando a concreta situação do arguido, facilmente chegamos à mesma conclusão do parecer do Exmo PGA, no sentido de não se verificarem os pressupostos do artigo 101.º do C.P.

     O arguido não demonstrou com a sua conduta nenhuma incapacidade ou falta de aptidão para a condução de veículos. Cometeu factos antijurídicos por ocasião desta condução – mas, embora seja causa necessária, não é causa suficiente para aplicação da medida de segurança em apreço.

      A sua condução ocorreu fora dos condicionalismos legais e judiciais a que estava sujeita; mas não se pode dizer que com ela foi afectada a segurança rodoviária ou criado perigo efectivo para a integridade de pessoas e bens materiais.

     Parecem ter sido relevantes na decisão recorrida, a este propósito, antecedentes rodoviários do arguido e desobediência da decisão judicial. Todavia, tais aspectos têm a sua relevância noutra sede como reincidência, medida da pena ou mesmo tipo autónomo contra a administração da justiça.

     Não há assim lugar à aplicação da medida de segurança, havendo que dar razão ao recorrente.”

     O negrito imediatamente antecedente é de nossa responsabilidade e serve para realçar que na transcrição feita pelo recorrente na passagem da folha 9 para a 10, este parágrafo foi suprimido.

     Vejamos.

     Em ambos os casos, na primeira instância, houve condenação na medida de cassação de carta de condução.

     No caso do processo donde emergiu o acórdão recorrido, interposto recurso pelo arguido, a decisão foi mantida.

     No caso do processo donde emergiu o acórdão fundamento, interposto recurso pelo arguido, a medida foi revogada pela Relação.   

     Em ambos os casos o arguido pretendia a desaplicação da medida.

     Na expressão da pretensão recursiva há uma nuance que distancia o recurso no caso do ora recorrente em relação ao outro, pois que pedia substituição da medida de segurança pela proibição de conduzir.

     Esta diversa forma de colocar perante o tribunal de recurso exactamente o mesmo problema demanda a aplicação do mesmo quadro normativo, entendido na sua globalidade e não de modo sectorial, pelo que é de afirmar a identidade da questão de direito.

    Em causa a aplicação ou não da medida de segurança de cassação de carta de condução.   

    O regime aplicável é o mesmo e a norma em causa é a do artigo 101.º do Código Penal.

    Integrado no Livro I - Parte Geral - do Código Penal, Título III - Das consequências jurídicas do facto, Capítulo VII - Medidas de segurança, na Secção IV - Medidas de segurança não privativas da liberdade, estabelece o artigo 101.º do Código Penal, sob a epígrafe “Cassação do título e interdição da concessão do título de condução  de veículo com motor”:

1 – Em caso de condenação por crime praticado na condução de veículo com motor ou com ela relacionado, ou com grosseira violação dos deveres que a um condutor incumbem, ou de absolvição só por falta de imputabilidade, o tribunal decreta a cassação do título de condução quando, em face do facto praticado e da personalidade do agente:

a) Houver fundado receio de que possa vir a praticar outros factos da mesma espécie; ou

b) Dever ser considerado inapto para a condução de veículo com motor.

2 – É susceptível de revelar a inaptidão referida na alínea b) do número anterior a prática, de entre outros, de factos que integrem os crimes de:

a) Omissão de auxílio, nos termos do artigo 200.º, se for previsível que dele pudessem resultar graves danos para a vida, o corpo ou a saúde de alguma pessoa;

b) Condução perigosa de veículo rodoviário, nos termos do artigo 291.º;

c) Condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, nos termos do artigo 292.º; ou

d) Facto ilícito típico cometido em estado de embriaguez, nos termos do artigo 295.º, se o facto praticado for um dos referidos nas alíneas anteriores.

    Seguem-se os n.º s 3, 4, 5, 6 e 7, que ao caso não importam.

    Vistos os dois acórdãos em confronto, conclui-se que as soluções antagónicas relativas à mesma questão de direito se justificam por terem em vista situações de facto diferentes.

    No caso do processo da Comarca de Moimenta da Beira, a Relação do Porto julgou improcedente o recurso do arguido, que para além do mais, pedia a substituição da medida aplicada.

    No caso do processo do 2.º Juízo de Peso da Régua, o Tribunal da Relação do Porto concedeu provimento ao recurso.

    A verdade é que é patente que em ambos os acórdãos foi abordada a mesma questão, mas face a situações de facto com contornos muito diversos.

    A específica natureza dos crimes constantes do catálogo presentes apenas no caso do processo donde emergiu o acórdão recorrido, por si só exigia outro tipo de indagação e ponderação que não se colocavam face aos tipos legais presentes no caso do acórdão fundamento.  

    No acórdão fundamento estavam presentes ilícitos não constantes no catálogo indicado no n.º 2 do artigo 101.º do Código Penal, o que releva para efeitos de verificação dos pressupostos de aplicação da medida de segurança em causa.

    Os dois crimes então julgados estavam fora daquele catálogo, não se mostrando no caso concreto reunidos os pressupostos de aplicação daquela medida de segurança.

    A divergência do resultado decisório não se ficou a dever apenas a diferente interpretação do artigo 101.º do Código Penal, pois que o substrato factual sobre que incidia o juízo subsuntivo era efectivamente diferente.

    De igual modo claro é que as soluções preconizadas no que ao específico ponto concreto importa são antagónicas, mas incidiram perante realidades factuais diversas.

    Conclui-se, pois, no sentido de não se verificar oposição de julgados.

      Decisão

      Pelo exposto, acordam neste Supremo Tribunal de Justiça na improcedência do recurso em não julgar verificada a oposição de julgados entre o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 11 de Dezembro de 2013, proferido no recurso n.º 89/09.7GBMBR.P1- 2.ª Secção e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 5 de Janeiro de 2005, proferido no recurso n.º 4555/04- 1.ª Secção, e em rejeitar o recurso.

      Custas pelo requerente, nos termos dos artigos 513.º e 514.º do CPP, aplicáveis ex vi do artigo 448.º do mesmo Código, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC, nos termos do artigo 8.º, n.º 5 e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.

      Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

                                                  Lisboa, 10 de Dezembro de 2014

             



Raul Borges (relator)
João Miguel
Pereira Madeira