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EXTRADIÇÃO
PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE
NOTIFICAÇÃO DA ACUSAÇÃO
Sumário
I.O princípio da especialidade, visa afastar os “chamados pedidos fraudulentos”, em que se invoca um facto para fundamento da extradição e se acaba por julgar o extraditado por outro que se não invoca; e é um princípio de direito consuetudinário que com conteúdo mais ou menos uniforme, vem sendo integrado em Tratados, Convenções e Protocolos Internacionais, II. Face ao disposto no art. 14º, n.º2 da Convenção Europeia de Extradição, fonte inspiradora do artigo 16º da Lei 144/99, o Estado requerente pode tomar as medidas necessárias com vista à interrupção da prescrição nos termos da sua lei. III. A cooperação entre Portugal e os demais Estados rege-se, no domínio da Extradição, pelos tratados, convenções e acordos internacionais que vinculem o Estado português e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições da Lei 144/99, para além das do C.P.P. IV- A extradição de um indivíduo que tem como Estado requerente, Portugal e, Estado requerido, o Brasil, é regulada, em primeiro lugar, pelas convenções ou tratados existentes entre os dois Estados. V- A mera notificação da acusação não implica a obrigação de comparência do interessado em qualquer ato processual, nem envolve para ele qualquer restrição da sua liberdade pessoal, razão pela qual nada impede o Estado Português de através das suas autoridades judiciárias, na pendência da entrega do arguido para outro processo, notificar o arguido da acusação destes autos.
Texto Integral
Acordam, em Conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães. Secção criminal
I-Relatório.
No Processo Comum Colectivo n.º 131/03.5TACMN da Instância Central de Viana do Castelo, secção criminal juiz 3, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido, o arguido Jorge E., foi proferido despacho em 02.10.2015, constante a fls. 830 a 833 destes autos, no qual se decidiu: «Pelo exposto, declaro extinto, por prescrição, o procedimento criminal movido contra o arguido Jorge E..»
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O Ministério Público interpôs recurso do referido despacho, apresentando a motivação de fls. 840 a 847 que remata com as seguintes conclusões:
«1. No princípio da especialidade a que se refere o art. 16º da Lei 144/99 de 31 de Agosto, avulta uma expressão clara sobre o impedimento de o arguido poder ser perseguido, julgado, detido ou sujeito a qualquer outra restrição de liberdade por facto anterior à sua presença em território nacional, diferente do que originou o pedido de cooperação.
2. No caso dos autos, o arguido quando se encontrava na situação de extraditado para estar presente em diligências no âmbito do Inquérito 12831/03.5TDLSB, em 17.11.2008, foi notificado nessa altura da acusação penal deduzida no processo dos presentes autos, aproveitando-se essa sua presença ao abrigo da extradição operada.
3. Apesar disso, tal não deve configurar qualquer violação do aludido princípio da especialidade porque este visa impedir uma qualquer perseguição ao arguido, sendo certo que se deve entender que uma notificação de uma acusação em processo penal não constitui, per se, uma perseguição.
4. Uma perseguição penal implica a produção de efeitos jurídicos concretos na esfera de um arguido, efeitos gravosos e por isso acautelados naquele princípio da especialidade.
Uma notificação, só por si, não contém essa virtualidade que advém apenas e exclusivamente do teor do que é comunicado.
5. Ou seja, não viola nenhum direito ou contende com algum direito em desfavor do arguido e pelo contrário oferece a possibilidade de uso de um direito de defesa.
A prescrição, por outro lado, não deve entender-se como um direito fundamental do arguido, nessa perspectiva porque releva apenas do direito fundamental de um Estado proceder em tempo razoável em matéria penal.
6. Não ocorre por isso qualquer motivo de ilegalidade ou invalidade do acto de notificação da acusação, ao arguido dos autos, não ocorrendo igualmente qualquer prescrição do procedimento criminal.
O mº Juiz a quo, ao julgar de forma diversa violou aqueles dispositivos legais:
- artº 16º da Lei 144/99 de 31 de Agosto;
- artºs 119º e 121º do CPP.
- artºs 118º nº 1 al. b) e 205º nº 4, al. b) ambos do Código Penal
Termina pedindo que seja dado provimento ao recurso, com substituição da decisão recorrida por outra que atenda aos critérios indicados.
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O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação do Porto, por despacho datado de 29.10.2015 – fls. 848.
Nesta Relação o Exmo. Procurador-Geral adjunto emitiu Parecer no sentido de que deverá ser negado provimento ao recurso.
Foi cumprido o art. 417º, n.º2, do CPP, sem resposta.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II- Fundamentação.
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido - artigo 412.º, n.º 1, do CPP -, que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
1.-Questões a decidir.
Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, é a seguinte a questão a apreciar e decidir.
- Saber se a notificação da acusação destes autos ao arguido Jorge E. em
17.11.2008, violou o princípio ou regra da especialidade estabelecido na Lei 144/99 de 31 de Agosto ou nos instrumentos convencionais aplicáveis.
- Em caso negativo, averiguar se os factos constantes da acuação se encontram prescritos.
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2. Factualidade. §1. Factos relevantes para a decisão.
1.Após a notícia do crime o arguido foi constituído como tal em 29Out2003 (fl.22) e prestou TIR (fl.25).
2. O Ministério Público deduziu acusação imputando ao arguido a autoria de um crime de abuso de confiança qualificado p.p. arts.205º-1 e 4/b) CP, por factos praticados em 21Mai2003 (fl.322).
3. Tentada a notificação da acusação ao arguido, não foi possível concretizá-la por este se ter entretanto ausentado do território nacional (fl.258-259 e 326).
4. Os autos foram remetidos para julgamento e foi designada data para a realização da audiência, que não teve lugar porque não foi possível notificar o arguido da mesma (fl.393 e 411).
5. Houve então conhecimento de que o arguido tinha sido localizado no Brasil e que este país concedera a sua extradição para Portugal relativamente aos factos objecto do processo de inquérito 12831/03.5TDLSB que corria termos no DIAP de Lisboa (fl.489).
6. E soube-se também que o arguido fôra extraditado para Portugal sem renunciar à regra da especialidade (fl.505), razão por que se providenciou pelo pedido de ampliação da extradição de modo a que esta incluísse também os factos imputados ao arguido nos presentes autos (fl.501, 534, 556 e 574-576).
7. Acontece que no âmbito daquele inquérito que corria termos no DIAP fôra aplicada ao arguido a medida de coacção de prisão preventiva (fl.504) e, aproveitando-se essa circunstância, diligenciou-se pela notificação da acusação dos presentes autos ao arguido no EP onde este estava detido, o que ocorreu em 17Nov2008 (fl.522).
8. Os autos ficaram então a aguardar a decisão das autoridades judiciárias brasileiras sobre o pedido de ampliação da extradição, cujo resultado no sentido do respectivo deferimento foi comunicado aos presentes autos em 18Mar2015 (fl.713-714).
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§2 Despacho recorrido.
«(…)
Após a notícia do crime o arguido foi constituído como tal em 29Out2003 (fl.22) e prestou TIR (fl.25). A investigação prosseguiu e o Ministério Público deduziu acusação imputando ao arguido a autoria de um crime de abuso de confiança qualificado p.p. arts.205º-1 e 4/b) CP, por factos praticados em 21Mai2003 (fl.322). Tentada a notificação da acusação ao arguido, não foi possível concretizá-la por este se ter entretanto ausentado do território nacional (fl.258-259 e 326). Os autos foram remetidos para julgamento e foi designada data para a realização da audiência, que não teve lugar porque não foi possível notificar o arguido da mesma (fl.393 e 411). Houve então conhecimento de que o arguido tinha sido localizado no Brasil e que este país concedera a sua extradição para Portugal relativamente aos factos objecto do processo de inquérito 12831/03.5TDLSB que corria termos no DIAP de Lisboa (fl.489). E soube-se também que o arguido fôra extraditado para Portugal sem renunciar à regra da especialidade (fl.505), razão por que se providenciou pelo pedido de ampliação da extradição de modo a que esta incluísse também os factos imputados ao arguido nos presentes autos (fl.501, 534, 556 e 574-576). Acontece que no âmbito daquele inquérito que corria termos no DIAP fôra aplicada ao arguido a medida de coacção de prisão preventiva (fl.504) e, aproveitando-se essa circunstância, diligenciou-se pela notificação da acusação dos presentes autos ao arguido no EP onde este estava detido, o que ocorreu em 17Nov2008 (fl.522). Os autos ficaram então a aguardar a decisão das autoridades judiciárias brasileiras sobre o pedido de ampliação da extradição, cujo resultado no sentido do respectivo deferimento foi comunicado aos presentes autos em 18Mar2015 (fl.713-714). Quid iuris?
O art.16º Lei 144/99, de 31Ago, estabelece:
“1. A pessoa que, em consequência de um acto de cooperação, comparecer em Portugal para intervir em processo penal como suspeito, arguido ou condenado não pode ser perseguida, julgada, detida ou sujeita a qualquer outra restrição da liberdade por facto anterior à sua presença em território nacional, diferente do que origina o pedido de cooperação formulado por autoridade portuguesa. 2. A pessoa que, nos termos do número anterior, comparecer perante uma autoridade estrangeira não pode ser perseguida, detida, julgada ou sujeita a qualquer outra restrição da liberdade por facto ou condenação anteriores à sua saída do território português diferentes dos determinados no pedido de cooperação. 3. Antes de autorizada a transferência a que se refere o número anterior, o Estado que formula o pedido deve prestar as garantias necessárias ao cumprimento da regra da especialidade. 4. A imunidade a que se refere este artigo cessa quando: a)A pessoa em causa, tendo a possibilidade de abandonar o território português ou estrangeiro, o não faz dentro de 45 dias ou regressa voluntariamente a um desses territórios; b)O Estado que autoriza a transferência, ouvido previamente o suspeito, o arguido ou o condenado, consentir na derrogação da regra da especialidade. 5. O disposto nos nºs 1 e 2 não exclui a possibilidade de solicitar a extensão da cooperação a factos diferentes dos que fundamentaram o pedido, mediante novo pedido apresentado e instruído nos termos do presente diploma. 6. No caso referido no número anterior, é obrigatória a apresentação de auto donde constem as declarações da pessoa que beneficia da regra da especialidade. 7. No caso de o pedido ser apresentado a um Estado estrangeiro, o auto a que se refere o número anterior é lavrado perante o tribunal da Relação da área onde residir ou se encontrar a pessoa que beneficia da regra da especialidade”.
Consagra-se aqui a regra da especialidade, segundo a qual quem for extraditado para intervir em processo penal como suspeito, arguido ou condenado não pode ser perseguido, julgado ou detido (ou sujeito a qualquer outra restrição da liberdade) por facto anterior à extradição e diferente do que fundamentou o respectivo pedido, salvo se a tal renunciar.
No caso concreto, como vimos, o arguido não renunciou à regra da especialidade e, por isso, enquanto estava em território nacional apenas para intervir no processo que fundamentara a sua extradição (inquérito 12831/03.5TDLSB do DIAP de Lisboa) não podia ser notificado da acusação dos presentes autos por tal constituir claramente um acto típico do processo penal (de “perseguição”, como lhe chama a lei) relativo a factos anteriores à extradição e diferentes dos que estiveram na origem desta. Por essa razão, esse acto de notificação da acusação praticado à revelia da regra da especialidade é nulo.
É verdade que a regra da especialidade não exclui a possibilidade de o Estado requerente da extradição solicitar uma ampliação da extradição (“extensão da cooperação”) a facto diferente do que originou o pedido de extradição inicial, dirigindo então ao Estado estrangeiro um novo pedido de extensão da cooperação (nº5 do preceito) – foi justamente o que sucedeu no caso concreto, como vimos. Mas a ampliação da extradição não tem, naturalmente, “efeitos retroactivos”, por forma a convalidar os actos processuais praticados antes da decisão da ampliação e que não podiam ter lugar sem esta, sendo certo que, na espécie concreta, o deferimento do pedido de ampliação da extradição foi comunicado aos presentes autos só em 18Mar2015 (fl.713-714).
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A nulidade da notificação da acusação ao arguido tem efeitos importantes ao nível da prescrição do procedimento criminal.
O prazo de prescrição do procedimento criminal do crime pelo qual o arguido vem acusado é de 10 anos, nos termos do disposto nos arts.118º-1/b) e 205º-4/b) CP.
Os factos pelos quais o arguido vem acusado remontam a 21Mai2003, sendo desde essa data que se conta o prazo de prescrição (art.118º-1 CP).
Considerando estes elementos e, bem assim, a circunstância de a única causa de suspensão ou interrupção da prescrição prevista nos arts.120º e 121º CP ser a constituição de arguido (art.121º-1/a. CP), ocorrida em 29Out2003 como vimos (e, portanto há mais de 10 anos), o procedimento criminal movido contra o arguido extinguiu-se por prescrição.
Pelo exposto, declaro extinto, por prescrição, o procedimento criminal movido contra o arguido Jorge E..
(…)»
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3.- Apreciação. 3.1. - Saber se a notificação da acusação destes autos ao arguido Jorge E. em 17.11.2008, violou o princípio ou regra da especialidade estabelecido na Lei 144/99 de 31 de Agosto ou nos instrumentos convencionais aplicáveis.
Vejamos.
§1. A extradição e o princípio da especialidade. Generalidades.
É sabido que a extradição, como forma clássica mais antiga de colaboração judiciária internacional, em matéria penal, se traduz na entrega de um delinquente por parte de um Estado a outro, para efeito de julgamento ou cumprimento de pena.
Até à Idade Média, a entrega de indivíduos estava essencialmente ligada a práticas de cortesia entre soberanos, e, sobretudo, era considerada um ato político, para obtenção de dividendos políticos, geralmente associada a crimes também políticos. A partir do século XVII, e sobretudo no século XVIII, com a proliferação de tratados bilaterais, a extradição passou a assumir a configuração moderna.
Mas, essa proliferação de tratados cedo demonstrou a necessidade de unificação dos direitos internos sobre extradição e de uma fonte convencional comum.
Encetaram-se, então, iniciativas concretas visando um tratado universal de extradição, o mais abrangente possível, que veio a ser alcançado com a Convenção de Extradição do Conselho da Europa de 1957.
Foi também sob o incremento do Conselho da Europa que os países procuraram elaborar leis internas que contemplassem a cooperação em matéria penal, e sobretudo a extradição.
E nessa senda também Portugal contou com uma lei interna sobre extradição, logo em 1975, que depois ampliou e aperfeiçoou com o D.L. 43/91, de 22 de Janeiro, sucedendo-lhe, sem grandes alterações de fundo, a atual Lei 144/99 de 31 de Agosto.
A nossa lei de cooperação acolhe princípios que foram desenvolvidos pelo Conselho da Europa nas suas convenções sectoriais, e a sua aplicação assume especial relevância no domínio da extradição. Falamos do princípio da reciprocidade, da dupla incriminação, da subsidiariedade, do ne bis in idem, e sobretudo do da especialidade.
No que especificamente diz respeito ao princípio da especialidade, ele visa afastar os “chamados pedidos fraudulentos”, em que se invoca um facto para fundamento da extradição e se acaba por julgar o extraditado por outro que se não invoca.
Começou-se por se ver nele o interesse da proteção da soberania dos Estados. Pois, ir para além daquilo que o Estado requisitado autorizara e concedera, significava, por parte do Estado requerente, o desprezo pelas condições impostas pelo Estado requerido, e, nessa medida, por este mesmo. Daí que tal desrespeito pudesse ser tido como ofensa à própria soberania do Estado requerido.
O interesse na proteção da soberania do Estado requerido foi depois combinado, ou mesmo completamente substituído, pela proteção dos interesses do próprio extraditado. A ponto de o princípio da especialidade ser situado no âmbito dos direitos do homem. Nesta abordagem humanista do princípio, a especialidade será uma regra a observar em obediência ao costume internacional, verdadeiro direito consuetudinário internacional, valendo mesmo na falta de disposições convencionais que a ela aludam.
Houve já quem radicasse o princípio na al. a) do nº 3 do artº 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (cf. Anna Zaïri in “Le Principe de la Specialité de l’Extradition au Regard des Droits de l’Homme”, L.G.D.J., 1992, pág. 19 e segs., apud Cruz Bucho, Pereira, Mário Mendes Serrano in “Cooperação Internacional Penal I, Extradição, Transferência de Pessoas Condenadas”, C.E.J., pag.40).
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal Brasileiro é no sentido de que o princípio da especialidade não reveste natureza absoluta e na interpretação deste princípio a jurisprudência brasileira faz apelo ao art. 14 da Convenção Europeia sobre extradição como decorre do processo de Extradição n.º 571, extensão, Relator, Ministro Celso Mello, Tribunal Pleno, Julgado em 07.06.1995, DJ 04.08.1995 «o postulado da especialidade, precisamente em função das razões de ordem político-jurídica que justificam a sua formulação e previsão em textos normativos, assume inegável sentido tutelar, pois destina-se a proteger, na concreção do seu alcance, o súbdito estrangeiro contra a instauração de persecuções penais eventualmente arbitrárias. Convenção Europeia sobre Extradição (artigo 14) e Tratado de Extradição Brasil- Suíça (artigo V).»- vide Revista do Superior Tribunal de Justiça, jurisprudência da sexta turma, pág. 689.
Na Lei interna de cooperação internacional em matéria penal, Lei 144/99, este princípio é consagrado no art. 16º, que seguiu de perto o disposto no art. 14º da Convenção Europeia de Extradição, ratificada por Portugal.
§2. O princípio da especialidade
O princípio da especialidade é um princípio de direito consuetudinário que vem sendo, com conteúdo mais ou menos uniforme, integrado em Tratados, Convenções e Protocolos Internacionais, pelo que não é despiciendo verificar o modo da sua positivação, nestes Instrumentos Internacionais de cooperação, para efeitos, de lhe surpreender a plenitude do seu alcance.
Assim, convocamos, ao caso, o artigo 14º, da Convenção Europeia de Extradição, onde se dispõe:
«1.A pessoa que tenha sido entregue não será perseguida, julgada ou detida, com vista à execução de uma pena ou medida de segurança nem submetida a qualquer outra restrição à sua liberdade individual por qualquer facto anterior à entrega diferente daquele que motivou a extradição, salvo nos casos seguintes. a).Quando a parte que a entregou nisso consentir. Para este efeito deverá ser apresentado um pedido, acompanhado dos documentos previstos no artigo 12º e de auto de onde constem as declarações do extraditado. O consentimento será dado quando a infracção pela qual é pedido implique por si mesma a obrigação de extraditar, nos termos da presente Convenção. b) Quando, tendo tido a possibilidade de o fazer, a pessoa extraditada não tenha abandonado, nos 45 dias que se seguem à sua libertação definitiva, o território da Parte à qual foi entregue ou quando a ele tenha regressado depois de o ter deixado.
2. Contudo, a Parte requerente poderá tomar as medidas necessárias com vista, por um lado, à expulsão da pessoa do seu território, e, por outro lado, à interrupção da prescrição nos termos da sua lei, incluindo o recurso a um processo de ausentes.»(sublinhado nossos).
Como se afirma no relatório explicativo da Convenção, sobre as medidas conservatórias permitida no n.º2, do artigo 14º da Convenção, devemos permitir estas medidas «pois que um Estado teria podido tomá-las se o indivíduo acusado não tivesse sido extraditado».- vide Droit Pénal Européen, Jean Pradel Geert Corstens, Editions Dalloz 1999, pág. 153.
Sobre as obrigações do Estado requerente no domínio do princípio da especialidade, segundo a Convenção Europeia de 1957, a doutrina francesa tem vindo a pronunciar-se no sentido de que são legítimos ao Estado requerente todos os atos judiciários que não impliquem a presença ou um papel ativo do interessado. Pelo contrário, serão nulos todos os atos que impliquem a presença do interessado, quer ela seja ativa como um interrogatório ou mesmo uma intimação para comparência ou quer ela seja passiva, como na detenção ou prisão preventiva - vide autores e obra citada na mesma pág. 153.
Também a jurisprudência Italiana se move no mesmo sentido, como decorre do seguinte extrato da Sentenza de 23.09.2011, de la Corte Suprema di Cassazione, Sesta Sezione Penale, Relatore Ersilia Calvanese «L'effettiva portata precettiva della clausola contenuta nella Convenzione europea è stata oggetto di un'ampia elaborazione giurisprudenziale, oscillante tra gli opposti estremi della preclusione all'esercizio della giurisdizione e del mero ostacolo a disporre della persona dell'estradando, finché le Sezioni unite (Sez. un., 28 febbraio 2001 n. 8, in Cass. pen., 2002, p. 3793) non hanno configurato la clausola come introduttiva di una condizione di procedibilità: essa costituisce pertanto un elemento ostativo all'esercizio dell'azione penale nelle forme tipiche fissate dall'art. 405 c.p.p., anche se non impedisce il compimento degli atti di indagine preliminare necessari ad assicurare le fonti di prova, l'esercizio dei poteri interruttivi della prescrizione, purché compatibili con la fase antecedente all'esercizio dell'azione penale, nonché l'archiviazione della notizia di reato» (sublinhados nossos).
Sublinha-se, assim, que face ao disposto no referido artigo da Convenção Europeia, que foi a fonte inspiradora do artigo 16º da Lei 144/99, o Estado requerente pode tomar as medidas necessárias com vista à interrupção da prescrição nos termos da sua lei.
Por outro lado, ainda no quadro Europeu e no âmbito do MDE verifica-se que o princípio da especialidade é atenuado como decorre do artigo 27º da Decisão-quadro 2002/584 relativa ao Mandado de Detenção Europeu e do artigo 7º da Lei do MDE- nº 65/2003 de 23 de Agosto, que tem a seguinte redação: 1 - A pessoa entregue em cumprimento de um mandado de detenção europeu não pode ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infracção praticada em momento anterior à sua entrega e diferente daquela que motivou a emissão do mandado de detenção europeu. 2 - O disposto no número anterior não se aplica quando: (…) b) A infracção não for punível com pena ou medida de segurança privativas da liberdade; c) O procedimento penal não der lugar à aplicação de uma medida restritiva da liberdade individual; d) A pessoa entregue seja sujeita a pena ou medida não privativas da liberdade, nomeadamente uma sanção pecuniária ou uma medida alternativa, mesmo se esta pena ou medida forem susceptíveis de restringir a sua liberdade individual;
(…)
No que respeita à exceção prevista no art. 27º, n.º3 al. c) da decisão-quadro 2005/584, o Ac. do Tribunal de Justiça Europeu (Terceira Secção) de 1 de Dezembro de 2008 e no processo-crime contra Artur Leymann e Aleksei Pustovarov fixou a a seguinte jurisprudência:
«A excepção prevista no artigo 27.º, n.º3, alínea c), da Decisão-quadro 2002/584 relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados-Membros, segundo a qual a regra da especialidade, prevista no artigo 27.º, n.º2, não se aplica caso o procedimento penal não dê lugar à aplicação de uma medida restritiva da liberdade individual da pessoa, deve ser interpretada no sentido de que, no caso de uma «infracção diferente» daquela por que a pessoa foi entregue, o consentimento deve ser pedido, em conformidade com o disposto no artigo 27.º, n.º4, da decisão-quadro, e obtido se houver que dar execução a uma pena ou a uma medida privativas da liberdade. A pessoa entregue pode ser sujeita a procedimento penal e condenada por uma infracção dessa natureza antes de ser obtido o consentimento, desde que não lhe seja aplicada uma medida restritiva da liberdade no decurso do processo ou do julgamento relativos a essa infracção. A excepção prevista no artigo 27.°, n.º3, alínea c), não se opõe, porém, a que a pessoa entregue seja sujeita a uma medida restritiva da liberdade antes de obtido o consentimento, desde que essa medida seja legalmente justificada por outras acusações constantes do mandado de detenção europeu.»
Também a jurisprudência portuguesa já se pronunciou no sentido de que: «…nos termos e para os efeitos prevenidos no art. 27.º n.º3, alin. c) da referida Decisão Quadro e do art. 7.º n.º2, alin. c) da Lei n.º 65/2003, nada impedia o prosseguimento do procedimento criminal contra o arguido, ora recorrente, pelos factos constantes da douta acusação pública, uma vez que não foi requerida, nem aplicada ao arguido qualquer medida de coacção restritiva da sua liberdade individual, para além da sua sujeição a TIR que é uma medida imposta directamente pela lei em todos os casos em que se opere a constituição como arguido, ou seja, conatural ao estatuto de arguido (cf. art. 196 n.º1, 58, 60 e 61 do CPP)»- Ac. do TRL de 04.01.2007, Rel. Ribeiro Cardoso.
§3. O caso dos autos
No caso em causa nos autos a extradição concedida tem como Estado requerente, Portugal, e Estado requerido, o Brasil.
Posto isto, afigura-se-nos que o enquadramento legal de que se deve lançar mão é diferente do convocado pelo despacho em recurso e mesmo pelo recorrente, pois, no campo da extradição, há dois instrumentos sucessivos, um bilateral - entre Portugal e o Brasil – e, outro entre os Estados membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, que têm de ser convocados ao caso, por ambos regularem expressamente o princípio da especialidade.
Com efeito, em 23 de Novembro de 2005 foi celebrada, na cidade da Praia, entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, uma Convenção sobre Extradição em que foram subscritores, além do mais, Portugal e o Brasil.
Em Portugal, a convenção de extradição foi aprovada pela resolução da Assembleia da República n.º 49/2008 de 18.7.2008; ratificada pelo Decreto do Presidente da República 67/2008, sendo publicada no DR Iª Série, n.º 178, de 15/9/2008, para vigorar na nossa ordem jurídica a partir de 1 de março de 2010.
Na República Federativa do Brasil, a convenção foi aprovada pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo 45, de 30 de março de 2009, sendo promulgada pelo Decreto Presidencial 7.935, de 19 de Fevereiro de 2013, considerando que o acordo entrou em vigor para a República Federativa do Brasil no plano jurídico externo em 01 de Junho de 2009.
Porém, já antes da entrada em vigor da referida Convenção Multilateral, vigorava o antigo Tratado de Extradição firmado entre os governos da República Federativa do Brasil e da República Portuguesa, que foi assinado em Brasília em 7 de maio de 1991.
A cooperação entre Portugal e os demais Estados rege-se, neste domínio, pelos tratados, convenções e acordos internacionais que vinculem o Estado português e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições da Lei 144/99, para além das do C.P.P. (art. 3ºda referida lei).
Com efeito, decorre expressamente do disposto no artigo 3º, n.º1 da referida Lei (144/99 de 31.01) que: «As formas de cooperação a que se refere o artigo 1.º [a) Extradição; b) Transmissão de processos penais; c) Execução de sentenças penais; d) Transferência de pessoas condenadas a penas e medidas de segurança privativas da liberdade; e) Vigilância de pessoas condenadas ou libertadas condicionalmente; f) Auxílio judiciário mútuo em matéria penal.] regem-se pelas normas dos tratados, convenções e acordos internacionais que vinculem o Estado Português e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições deste diploma.»
Posto isto, concluímos que no que respeita à extradição de um indivíduo que tem como Estado Requerente, Portugal e, Estado requerido, o Brasil, regulam, em primeiro lugar, uma ou outra das convenções supra referidas.
Conforme decorre de fls. 619 e 719 dos autos o pedido de extradição originário, relativamente ao arguido, foi deferido pelo Supremo Tribunal Federal Brasileiro em 11 de Setembro de 2007, ao abrigo do Tratado de Extradição assinado em Brasília em 07 de maio de 1991, aprovado para ratificação pela resolução da assembleia da república n.º 5/94, tendo a entrega ao Estado Português ocorrido em 15 de Outubro desse ano, e foi concedida relativamente aos factos objeto do processo de inquérito 12831/03.5TDLSB que corria termos no DIAP de Lisboa, tendo o arguido sido extraditado para Portugal sem renunciar à regra da especialidade.
Porque a extradição foi deferida pelo Supremo Tribunal Federal Brasileiro em 11 de Setembro de 2007, ao abrigo do Tratado de Extradição assinado em Brasília em 07 de maio de 1991 rege no presente caso o referido Tratado de Extradição.
Nos termos do artigo 6º daquele Tratado a “regra da especialidade” foi assim enunciada:
«1- Uma pessoa extraditada ao abrigo do presente tratado não pode ser detida ou julgada, nem sujeita a qualquer outra restrição da sua liberdade pessoalno território da parte requerente, por qualquer facto distinto do que motivou a extradição e lhe seja anterior ou contemporâneo.»
Ora se é verdade que o princípio ou regra da especialidade, mormente, como previsto neste artigo do Tratado de Extradição restringe o poder do Estado requerente de deter ou julgar, ou sujeitar a pessoa extraditada a qualquer outra restrição da sua liberdade pessoal, também é verdade que a simples notificação da acusação ao arguido, em 17.11.2008, quando o arguido se encontrava no EP por lhe ter sido aplicada a medida de coacção de prisão preventiva no âmbito do processo de inquérito 12831/03.5TDLSB [repete-se processo para o qual fora concedia da Extradição], não sujeitou, para tal efeito, o arguido a qualquer restrição da sua liberdade pessoal.
A mera notificação da acusação não implica a obrigação de comparência do interessado em qualquer ato processual, nem envolve para ele qualquer restrição da sua liberdade pessoal, tanto assim que o Estado português poderia tê-la tornado efetiva, independentemente da extradição, nomeadamente através de uma carta rogatória.
Assim, verificamos que nada impedia o Estado Português de através das suas autoridades judiciárias, na pendência da entrega do arguido para outro processo, notificar o arguido da acusação destes autos, não tendo havido para o efeito qualquer restrição da sua liberdade.
Tal notificação não equivale a uma extensão não autorizada dos limites abrangidos pela decisão da autoridade brasileira que concedeu a extradição.
Concluindo não foi violada a regra ou princípio da especialidade.
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3.2. Cumpre agora indagar se os factos constantes da acusação se encontram prescritos.
A interrupção da prescrição operou, num primeiro momento, com a constituição de arguido e, num segundo momento, com a notificação da acusação, nos termos do artigo 121º, n.º1 als a) e b) do CP.
E, por força da notificação da acusação operou também a suspensão da prescrição, nos termos do artigo 120º, n.º1 al. b) do CP., sendo que no caso desta alínea a suspensão não pode ultrapassar três anos.
Os factos pelos quais o arguido vem acusado remontam a 21Mai2003, sendo desde essa data que se conta o prazo de prescrição (art.118º-1 CP).
A constituição de arguido ocorreu em 29.10.2003.
A notificação da acusação ocorreu em 17.11.2008.
Entre a constituição de arguido e a notificação da acusação não decorreram 10 anos, prazo normal de prescrição.
Considerando estes elementos e, considerando haver duas causas de interrupção (a constituição de arguido e a notificação da acusação, ocorrida em 17.11.2008, a prescrição só poderá ocorrer [10 anos+ 5 anos (n.º3 do art. 121º) + 3 anos (120º, n.º1 al. b) e n.º 2)] 18 anos após a prática dos factos; isto é, em 21 de maio de 2021.
Pelo exposto, entendemos que o despacho em apreciação tem de ser revogado a fim de ser substituído, por outro, que tendo em atenção o deferimento pelas autoridades judiciárias brasileiras do pedido de ampliação da extradição, cujo resultado foi comunicado aos presentes autos em 18Mar2015, designe data para julgamento do arguido.
Procede, assim, o recurso do Ministério Público.
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III- Decisão.
Pelo exposto, acordam os juízes desta secção criminal do Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento ao recurso interposto pelo recorrente MP, revogando o despacho recorrido a fim de ser substituído por outro que, tendo em atenção o deferimento pelas autoridades judiciárias brasileiras do pedido de ampliação da extradição, cujo resultado foi comunicado aos presentes autos em 18Mar2015, designe data para julgamento do arguido.
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Sem custas.
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Notifique.
Elaborado e revisto pela relatora – artigo 94º, n.º 2, do CP.P.
Guimarães, 22 de Fevereiro de 2016.