ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
MORTE
CADUCIDADE
TRANSMISSÃO DA POSIÇÃO DO ARRENDATÁRIO
Sumário


I - Estando em causa a apreciação dos efeitos operados pela morte do arrendatário na relação contratual, no sentido de averiguar se ocorreu a caducidade do contrato de arrendamento ou a transmissão da posição contratual do falecido, é aplicável o regime legal em vigor à data do óbito;
II – Tratando-se de contrato de arrendamento para habitação celebrado antes da entrada em vigor do NRAU, aplica-se o regime previsto no artigo 57.º da Lei n.º 6/2006, de 27-02, na redação emergente da Lei n.º 79/2014, de 19-12, em vigor à data do óbito do arrendatário, ocorrido a 11-03-2017.
III – A tutela da situação do filho do arrendatário prevista na alínea e) do n.º 1 do preceito exige, além da convivência com o arrendatário há mais de um ano, que o descendente padeça de deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60%.

Texto Integral



Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:


1. Relatório
BB e mulher, CC, intentaram a presente ação declarativa, com processo comum, contra DD, todos melhor identificados nos autos, formulando os pedidos seguintes: a) se reconheça o direito de propriedade dos autores sobre o imóvel correspondente ao rés-do-chão, n.º …, da Rua A…, em Loulé, com o artigo matricial …3 e a descrição predial …9, da freguesia de São Clemente, concelho de Loulé; b) se declare a caducidade do contrato de arrendamento habitacional celebrado entre os autores e EE, em 27-08-1975, com inicio de vigência em 09-09-1975, por morte do locatário, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 1051.º, alínea d), do NRAU; c) se condene o réu a restituir aos autores o referido imóvel, devoluto e desocupado de pessoas e bens, em bom estado de conservação e em perfeitas condições; d) se condene o réu ao pagamento da quantia de € 6100, a título de indemnização pela ocupação do imóvel e sua deterioração desde 11-03-2017 até à presente data; e) se condene o réu ao pagamento das quantias vincendas até efetiva restituição do mesmo livre e devoluto de pessoas e bens, no valor mensal de € 450; f) se condene o réu no pagamento de uma indemnização a título de eventuais danos causados pela utilização indevida e deterioração do referido imóvel, em quantia a determinar em sede de execução de sentença; g) se condene o réu no pagamento das custas e procuradoria condigna, bem como nos juros de mora sobre o valor peticionado desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
Alegam, em síntese, que são donos do prédio urbano em causa, o qual esteve arrendado desde 09-09-1975 até à data do óbito do inquilino EE, falecido em 11-03-2017, no estado de viúvo, encontrando-se o imóvel ocupado pelo réu, o qual recusa entregá-lo aos autores.
O réu contestou, defendendo-se por exceção – invocando a transmissão da posição de arrendatário por efeito de vivência no locado cerca de 9 ou 10 anos, em economia comum com o arrendatário seu pai, até à data da morte deste – e por impugnação, requerendo subsidiariamente o diferimento da desocupação do arrendado, como tudo melhor consta do articulado apresentado.
Notificados para o efeito, os autores apresentaram articulado, no qual se pronunciam no sentido da não verificação da exceção invocada na contestação.
Foi realizada audiência prévia, após o que se proferiu despacho saneador, se identificou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova.
Realizada a audiência final, foi proferida sentença, na qual se decidiu o seguinte:
Face ao exposto, julgar a ação parcialmente procedente e, por conseguinte, decido:
A. Declarar que os autores BB E CC são donos e legítimos proprietários do imóvel correspondente ao rés-do-chão, n.º …, da Rua A…, com o artigo matricial …3, e a descrição predial …9, da freguesia de São Clemente, Concelho de Loulé;
B. Declarar a caducidade do contrato de arrendamento habitacional, celebrado entre eles e EE, em 27/08/1975, com inicio de vigência em 09/09/1975, por morte do locatário, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 1051.º, alínea d), do N.R.A.U.;
C. Condenar o réu DD a restituir aos autores o referido imóvel, devoluto e desocupado de pessoas e bens, em bom estado de conservação e em perfeitas condições;
D. Condenar o réu ao pagamento de uma indemnização no montante mensal de € 85,00 (oitenta e cinco euros), correspondente ao valor devido pela ocupação do imóvel desde 11/3/2017 até à efetiva restituição do mesmo livre e devoluto de pessoas e bens;
E. Absolver o réu do demais peticionado;

*
Custas a cargo dos autores e réu na proporção do decaimento que se fixa em 1/5 para os autores e 4/5 para o réu, devendo atender-se ao benefício de apoio judiciário concedido a este último, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e nomeação e pagamento da compensação de defensor oficioso (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Registe e notifique.
Inconformado, o réu interpôs recurso da sentença, terminando as alegações com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«A) O pai do recorrente faleceu em 11/03/2017.
B) O mesmo, como primitivo arrendatário, tinha tomado de arrendamento o imóvel em 27/08/1975, contrato esse que se renovava sucessivamente por períodos de três meses.
C) O recorrente comunicou, tardiamente em virtude de andar nervoso e desorientado, aos AA. a morte do seu pai e que lhe sucederia no direito a esse arrendamento.
D) O recorrente, à data do óbito de seu pai, vivia com este em economia comum há cerca de nove anos.
E) Desde a morte de seu pai que o recorrente permaneceu a viver no arrendado, pagando a renda devida.
F) Nos termos da lei, nomeadamente do disposto no artigo 1055° alínea d) do C.C., esse contrato não caducou.
G) O contrato transmitiu-se ao recorrente por morte do seu pai.
H) O NRAU e o RAU e antes destes o artigo 1111° do C.C. e atual 1106° do C.C. estabeleceu a transmissão por morte do arrendamento urbano para a habitação, no caso de pai para filho que com ele vivesse em economia comum há mais de dois anos.
I) Aplicando-se as normas antigas do C.C. e atuais supracitadas como o RAU ou o NRAU, este contrato habitacional transmitiu-se por morte de seu pai ao recorrente, e por isso não caducou.
J) Ao decidir em contrário, salvo o devido respeito, a Meritíssima Juíza da Primeira Instância violou as normas do C.C. e do RAU e NRAU, aplicáveis in casu, por erro de aplicação e interpretação, nomeadamente o artigo 1106° do CC, bem como o disposto no NRAU Titulo II e Capitulo II, e o RAU, DL. 312-B/90 de 15 de outubro, DL. 257/95 de 30 de setembro.
K) O tribunal a quo deu como provado que o ora recorrente se encontra desempregado e inscrito no Instituto de Emprego e Formação Profissional desde 20 de novembro de 2017, vivendo com graves dificuldades financeiras e não dispondo de outro local onde possa habitar, nem de meios económicos para o providenciar.
L) Ainda que se verificasse a caducidade do contrato de arrendamento, a restituição do mesmo apenas poderia ser exigida seis meses após a caducidade do contrato de arrendamento, nos termos do disposto no artigo 1053º do CC.
M) Assim, em face da precária situação económica do Réu, verificam-se, in casu, razões sociais imperiosas que permitem o diferimento da desocupação do arrendado, pelo que, tendo o tribunal declarado a caducidade do contrato de arrendamento habitacional, sempre deveria ter concedido ao ora recorrente o prazo de seis meses para a restituição do imóvel.
N) Por fim, tendo o tribunal considerado como não provado que os autores tivessem reparando o imóvel em causa e que a grave deterioração do imóvel decorresse da sua utilização inapropriada por parte do recorrente que faz do quintal um local de acumulação de lixo e, consequente, chamariz de animais, nomeadamente baratas que se propagam por todo o prédio, não poderia o tribunal a quo determinar a restituição aos autores o referido imóvel, devoluto e desocupado de pessoas e bens, em bom estado de conservação e em perfeitas condições. (nosso sublinhado).
O) De facto, encontrando-se o arrendado em grave estado de deterioração, sem que se tenha logrado provar que tal deterioração ocorreu durante a utilização do imóvel pelo Recorrente e como consequência dela, sempre deveria o douto tribunal ter determinado a restituição do imóvel no estado em que este se encontrava à data do óbito do arrendatário originário.
P) Termos em que deve dar-se provimento ao presente recurso e, por via disso, deve proferir-se decisão que altere a sentença recorrida no sentido de se declarar que o direito ao arrendamento dos autos não caducou por morte do pai do recorrente e que se transmitiu a este em consequência dessa morte.
Q) Caso se mantenha a declaração de caducidade do contrato de arrendamento, deverá este venerando tribunal substituir a decisão do tribunal de primeira instância (que condenou o réu a restituir aos autores o referido imóvel, devoluto e desocupado de pessoas e bens, em bom estado de conservação e em perfeitas condições) por outra que determine a restituição do imóvel aos Autores, no prazo de seis meses, no estado de conservação em que este se encontrava à data do óbito do arrendatário.
Por tudo quanto ficou supra exposto e pelo que mui doutamente V.Ex.as suprirão, deverá ser dado provimento ao presente Recurso de Apelação e, em consequência, ser substituída a sentença recorrida, por outra que declare que o direito ao arrendamento não caducou e se transmitiu para o recorrente por força do óbito de seu pai com quem vivia em economia comum há mais de nove anos.
Caso se entenda manter a declaração de caducidade do contrato de arrendamento, deverá a decisão em primeira instância ser substituída por outra que determine a restituição do imóvel aos Autores, no prazo de seis meses, no estado de conservação em que este se encontrava à data do óbito do arrendatário, só assim se fazendo, como é apanágio de V. Ex.as., a inteira e costumada JUSTIÇA!»
Não foram apresentadas contra-alegações.
Face às conclusões das alegações do recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar as questões seguintes:
i) da caducidade do contrato de arrendamento e da transmissão por morte da posição de arrendatário;
ii) da obrigação de restituição do locado;
iii) do diferimento da desocupação do locado.
Corridos os vistos, cumpre decidir.


2. Fundamentos

2.1. Decisão de facto

2.1.1. Factos considerados provados em 1.ª instância:
1. Através de escritura pública de compra e venda outorgada no Cartório Notarial de Nuno António da Rosa Pereira da Silva, Notário do Primeiro Cartório Notarial de Loulé, datada de 16 de agosto de 1974, os autores adquiriram a Daniel G… e mulher Ana B… o talhão de terreno para construção urbana sito na Rua A…, parte de um prédio descrito na Conservatória de Registo Predial de Loulé sob o n.º …1, fls. …8, do Livro B-…7.
2. Pela Ap. 15 de 14 de outubro de 1975 o prédio urbano, destinado à habitação e suscetível de utilização independente, sito no rés-do-chão do n.º … da Rua A…, freguesia de São Clemente, Concelho de Loulé descrito na Conservatória de Registo Predial de Loulé sob o n.º …9/20111021, da dita freguesia e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo …3.º encontra-se registado a favor dos autores por compra a Daniel G… e mulher Ana B….
3. O referido prédio encontrava-se anteriormente descrito sob n.º …1, do Livro n.º …6.
4. Tendo sido desanexado do prédio descrito sob o n.º …1.
5. Desde a data da respetiva aquisição, os autores vêm dando o imóvel de arrendamento e arrecadando as respetivas rendas.
6. Através de documento escrito datado de 27 de agosto de 1975, intitulado “Título de Arrendamento” o autor BB cedeu o imóvel supra identificado a EE para sua habitação, pelo prazo de três meses, com início em 9 de setembro de 1975, supondo-se sucessivamente renovado pelo mesmo tempo e com as mesmas condições, mediante o pagamento de uma renda mensal.
7. O inquilino EE faleceu no dia 11 de março de 2017.
8. Nessa ocasião, o réu andava nervoso e desorientado, motivo pelo qual, não comunicou tal óbito aos autores.
9. Acontece que, nessa data, o imóvel era ocupado pelo réu há cerca de nove anos.
10. E, após a morte do arrendatário, o réu continuou a ocupá-lo, até aos dias de hoje (confissão).
11. Tendo pago a renda mensal de € 85,00 (oitenta e cinco euros) e sendo pagos os respetivos recibos em nome do arrendatário EE.
12. Montante que, pelo menos a partir de dezembro de 2017, passou a ser depositado em nome do autor, na Caixa Geral de Depósitos
13. Durante todo esse tempo, ali vivendo e dividindo as despesas relativas à alimentação, bens e serviços da habitação e do quotidiano.
14. Utilizando aquela como a sua morada fiscal e para efeitos de benefício de serviços de saúde, segurança social e judiciais.
15. Em 18 de agosto de 2017, em missiva dirigida aos Herdeiros de EE, os autores comunicaram: “(…) tendo sabido, entretanto, do óbito do Senhor EE (…) somos por este meio a comunicar que, por tal efeito, deu-se a extinção do arrendamento existente em virtude da caducidade operada por morte do locatário, nos termos do disposto no artigo 1051.º, alínea d) do Código Civil”, solicitando a restituição do imóvel arrendado, totalmente livre de pessoas e bens.
16. Em 4 de setembro de 2017, o réu dirigiu uma missiva aos autores com o seguinte teor:
Infelizmente o meu pai faleceu, com o qual residi há mais de 5 (cinco) anos até à data do falecimento, em economia comum, e não tenho qualquer outra possibilidade de alojamento além daquele que tenho no arrendado.
Nos termos da alínea c), n.º 1, do artigo 1106.º, do Código Civil, o arrendamento não caduca, pelo facto de eu ter direito à transmissão do arrendamento.
Pelo que, serve a presente para lhe comunicar a minha pretensão de exercer esse direito que me assiste, nos termos do n.º 2, do artigo 1093.º, do Código Civil e do Atestado da Junta de Freguesia de S. Clemente que junto em anexo.
Tenho continuado a depositar a renda como era feito pelo meu pai em vida deste e, a partir de agora, em meu nome pessoal
17. Do atestado emitido pela Junta de Freguesia de Loulé (São Clemente), datado de 4 de setembro de 2017 resulta: “DD (…) reside na R A…, N.º … e … – R/C, C. Postal 8100-… LOULÉ (…) viveu na morada indicada com o seu pai EE já falecido, durante mais de cinco anos
18. Em 7 de setembro de 2017, mediante o envio de carta registada com aviso de receção para o réu, os autores comunicam: “(…) não subsiste, nem foi invocada por Vossa Exa., qualquer causa legalmente prevista para a exceção da caducidade do contrato de arrendamento por morte do arrendatário (…) ”, reiterando a exigência de restituição do imóvel em causa.
19. Com a sua conduta o réu impossibilita os autores de dar ao imóvel a devida utilização, procedendo, quer à sua alienação, quer ao seu arrendamento e daí retirar proveito ou rentabilidade económica do referido imóvel.
20. No dia 26 de agosto de 2017, a empresa “C… – Técnica Ambiental, Lda.” realizou uma desinfestação no exterior do prédio em causa, a pedido da Câmara Municipal de Loulé, no âmbito da qual apurou existirem baratas, atribuindo à situação o grau de infestação “fraco”
21. O réu encontra-se desempregado e inscrito no Instituto de Emprego e Formação Profissional desde 20 de Novembro de 2017
22. Vivendo com graves dificuldades financeiras.
23. Não dispondo de outro local onde possa habitar, nem de meios económicos para o providenciar.

2.1.2. Factos considerados não provados em 1.ª instância:
a) Que os autores vêm reparando o imóvel em causa;
b) Que caso o imóvel em causa fosse arrendado às condições de mercado existentes, poderia render aos autores uma quantia nunca inferior a € 450,00 (quatrocentos e cinquenta euros), a título de rendas;
c) A grave deterioração do imóvel e sua utilização inapropriada por parte do réu que faz do quintal um local de acumulação de lixo e, consequente, chamariz de animais, nomeadamente baratas que se estão a propagar por todo o prédio, afetando outros inquilinos dos autores;
d) A vizinha do 1.º andar já se queixou aos autores;
e) Os autores solicitaram uma desinfestação do prédio à Camara Municipal de Loulé, a qual frisou que o problema só seria solucionado na sua totalidade com uma desinfestação ao nível interior;
f) Que o imóvel de onde deriva a sua propagação é o imóvel ocupado pelo réu.

2.2. Apreciação do objeto do recurso

2.2.1. Caducidade do contrato de arrendamento e transmissão por morte da posição de arrendatário
Vem posta em causa na apelação a decisão que considerou não verificada a exceção arguida pelo réu, por se ter entendido que não decorre da factualidade provada a transmissão da posição de arrendatário que invoca e, em consequência, que ocorreu a caducidade por morte do arrendatário do contrato de arrendamento em causa, assim não dispondo o recorrente de título que legitime a detenção do prédio urbano reivindicado nos presentes autos, a cuja restituição foi condenado.
Não questionando o recorrente o direito de propriedade dos autores sobre o locado, cumpre averiguar se o contrato de arrendamento para habitação a que alude o ponto 6 de 2.1.1., celebrado a 27-08-1975, caducou por morte do arrendatário ocorrida a 11-03-2017 ou se decorre da vivência com o arrendatário, há cerca de nove anos, no locado, à data da respetiva morte, a transmissão para o réu da posição contratual de arrendatário.
O artigo 1051.º do Código Civil estabelece várias causas de caducidade do contrato de locação, aplicáveis ao contrato de arrendamento, entre elas a morte do arrendatário, situação prevista na alínea d) do preceito. Todavia, essa caducidade não ocorre se o contrato de arrendamento se transmitir, pelo que cumpre aferir se, no caso presente, ocorreu a transmissão da posição de arrendatário.
A apreciação da questão suscitada impõe a prévia determinação do regime aplicável, dada a sucessão de leis no tempo.
Estando em causa a apreciação dos efeitos operados pela morte do arrendatário na relação contratual, no sentido de averiguar se ocorreu a extinção do contrato ou a transmissão da posição contratual do falecido, é aplicável o regime legal em vigor à data do óbito, conforme decorre do disposto no artigo 12.º, n.º 1, do Código Civil. Considerando que a transmissão da posição contratual invocada pelo réu se baseia na morte do arrendatário, o direito em causa, a existir, nasceu na esfera jurídica do réu no momento de tal falecimento, assim devendo ser aplicada a lei em vigor nessa data. [1][2]
Estabelece o artigo 59.º, n.º 1, da Lei n.º 6/2006, de 27-02 (NLAU), que o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), “se aplica aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias”; por outro lado, resulta do estatuído no artigo 65.º, n.º 1, da mesma Lei, que aquele regime entrou em vigor (“120 dias após a sua publicação”) a 28-06-2006.
Tendo o contrato em causa sido celebrado antes da entrada em vigor do NRAU e subsistindo nessa data a relação jurídica dele emergente, cumpre atender ao regime transitório fixado para os antigos contratos de arrendamento urbano.
No que respeita ao regime da transmissão por morte da posição contratual do arrendatário habitacional, consagra o NRAU duas diferentes soluções: a prevista no artigo 1106.º do Código Civil, aplicável aos arrendamentos celebrados após a sua entrada em vigor, e a constante do artigo 57.º da NLAU, aplicável aos arrendamentos celebrados anteriormente, quer tenham sido celebrados antes quer depois da entrada em vigor do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15-10, conforme resulta do disposto no artigo 26.º, n.º 1, aplicável por força do estatuído nos artigos 27.º e 28.º, n.º 1, da citada Lei. [3][4]
Esclarece o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04-06-2013, proferido na revista n.º 653/07.9TBTVR.E1.S1-1.ª Secção (relator: Gregório Silva Jesus) – cujo sumário se encontra publicado em www.stj.pt –, que a explicação para tal dicotomia residirá, para o regime introduzido pelo artigo 1106.º do Código Civil, no sistema da renovação automática dos contratos de arrendamento para habitação, ao passo que o regime transitório do artigo 57.º do NRAU visou aperfeiçoar as regras de transmissão do arrendamento, no âmbito do cariz vinculístico da grande maioria dos contratos a que era aplicável, diminuindo em algumas circunstâncias a possibilidade de transmissão do arrendamento.
No caso presente, tratando-se de um contrato de arrendamento para habitação celebrado a 27-08-1975, isto é, antes da entrada em vigor do NRAU, aplica-se o regime previsto no artigo 57.º da NLAU (na redação emergente da Lei n.º 79/2014, de 19-12, em vigor à data do óbito do arrendatário, ocorrido a 11-03-2017), norma que regula a transmissão por morte no arrendamento para habitação nos termos seguintes:
1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva:
a) Cônjuge com residência no locado;
b) Pessoa que com ele vivesse em união de facto há mais de dois anos, com residência no locado há mais de um ano;
c) Ascendente em 1.º grau que com ele convivesse há mais de um ano;
d) Filho ou enteado com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivesse há mais de 1 ano e seja menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequente o 11.º ou o 12.º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior;
e) Filho ou enteado, que com ele convivesse há mais de um ano, com deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60%.
2 - Nos casos do número anterior, a posição do arrendatário transmite-se, pela ordem das respetivas alíneas, às pessoas nele referidas, preferindo, em igualdade de condições, sucessivamente, o ascendente, filho ou enteado mais velho.
3 - O direito à transmissão previsto nos números anteriores não se verifica se, à data da morte do arrendatário, o titular desse direito tiver outra casa, própria ou arrendada, na área dos concelhos de Lisboa ou do Porto e seus limítrofes ou no respetivo concelho quanto ao resto do País.
4 - Sem prejuízo do disposto no número seguinte, quando ao arrendatário sobreviva mais de um ascendente, há transmissão por morte entre eles.
5 - Quando a posição do arrendatário se transmita para ascendente com idade inferior a 65 anos à data da morte do arrendatário, o contrato fica submetido ao NRAU, aplicando-se, na falta de acordo entre as partes, o disposto para os contratos com prazo certo, pelo período de 2 anos.
6 - Salvo no caso previsto na alínea e) do n.º 1, quando a posição do arrendatário se transmita para filho ou enteado nos termos da alínea d) do mesmo número, o contrato fica submetido ao NRAU na data em que aquele adquirir a maioridade ou, caso frequente o 11.º ou o 12.º ano de escolaridade ou cursos de ensino pós-secundário não superior ou de ensino superior, na data em que perfizer 26 anos, aplicando-se, na falta de acordo entre as partes, o disposto para os contratos com prazo certo, pelo período de 2 anos.
Invocando o recorrente a sua qualidade de filho do arrendatário e a vivência em comum com o mesmo há cerca de 9 anos, não se encontra em qualquer das situações previstas nas alíneas do n.º 1 deste preceito, sendo certo que a tutela da situação do filho prevista na alínea e) exige, além da convivência com o arrendatário por mais de um ano, que o descendente padeça de deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60%, o que não se verifica (nem foi alegado) no caso presente, e que a mera residência no locado só releva tratando-se de cônjuge, pessoa que vivesse em união de facto com o arrendatário há mais de dois anos, ascendente em 1.º grau que com ele convivesse há mais de um ano, filho menor ou filho estudante com idade não superior a 26 anos, conforme dispõem as alíneas a) a d) do preceito, cujos pressupostos não se mostram preenchidos no caso presente.
Não se encontrando o recorrente em qualquer das situações previstas nas alíneas do n.º 1 deste preceito, não lhe assiste o direito à transmissão da posição de arrendatário, pelo que cumpre concluir pela caducidade do contrato de arrendamento por morte do arrendatário, conforme considerou a decisão recorrida.
Aqui chegados, cumpre consignar que não consta da matéria de facto provada, nem da não provada, que o réu seja filho do arrendatário, facto por este alegado na contestação e que configura um elemento constitutivo da exceção arguida, pelo que se mostra essencial à apreciação do mérito da causa, sendo certo que não consta dos autos documento com força probatória plena que permita à Relação suprir tal omissão. Caso a prova do aludido facto se mostrasse determinante para a aplicação do regime jurídico em causa, poderia a Relação anular a decisão proferida, com vista à ampliação da matéria de facto, fazendo uso da faculdade prevista no artigo 662.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Civil. Porém, tendo-se concluído que a lei não tutela a situação do réu, dado não se encontrar preenchido um dos requisitos cumulativos previstos na alínea e) do n.º 1 do citado artigo 57.º da NLAU – deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60% –, mostra-se dispensável, por inútil, determinar tal ampliação da matéria de facto, uma vez que dela não resultaria a alteração da decisão de direito, motivo pelo qual se não fará uso da mencionada faculdade.

2.2.2. Obrigação de restituição do locado
Vem posta em causa na apelação a parte da decisão recorrida em que se condenou o réu a restituir aos autores o bem imóvel em bom estado de conservação e em perfeitas condições, defendendo o apelante que, caso se mantenha a decisão que declarou a caducidade do contrato de arrendamento por morte do arrendatário, o imóvel deverá ser restituído no estado de conservação em que se encontrava à data de tal falecimento.
Sustenta o apelante que, não se tendo provado que os autores tivessem reparando o imóvel e que a grave deterioração de que padece decorresse da sua utilização inapropriada por parte do recorrente, não pode determinar-se a respetiva restituição em bom estado de conservação e em perfeitas condições; acrescenta que, encontrando-se o locado em grave estado de deterioração e não se tendo provado que tal decorreu da utilização do imóvel pelo apelante, deveria ter-se determinado a restituição do imóvel no estado em que este se encontrava à data do óbito do arrendatário.
Extrai-se da fundamentação da decisão recorrida que não resultou provada qualquer deterioração do imóvel ou que a mesma (ainda que existisse) fosse imputável ao réu, motivo pelo qual se rejeitou a pretensão deduzida pelos autores, no sentido de ser o réu condenado a indemnizá-los pela deterioração causada ao imóvel; acresce que não decorre da fundamentação da sentença qualquer justificação para o segmento decisório em apreciação, isto é, para a condenação do réu a restituir aos autores o bem imóvel em bom estado de conservação e em perfeitas condições.
Está em causa a cessação, por óbito do arrendatário ocorrido a 11-03-2017, de um contrato de arrendamento para habitação iniciado a 09-09-1075, elementos dos quais decorre que o contrato vigorou durante mais de 40 anos. Provou-se que o réu, que vivia no locado com o arrendatário há cerca de nove anos, aí permaneceu após o falecimento daquele. Não se extraindo da factualidade provada qualquer elemento relativo ao estado do locado ou a eventuais reparações nele efetuadas, inexiste fundamento legal que justifique a exigência da entrega pelo réu do imóvel em bom estado de conservação e em perfeitas condições, após a vigência por mais de 40 anos de um contrato de arrendamento para habitação no qual não interveio.
Conclui-se, assim, que assiste razão ao apelante, só podendo ser-lhe exigida a entrega do imóvel no estado em que se encontrava à data do falecimento do arrendatário.
Como tal, cumpre alterar, em conformidade, a parte final da alínea C) do segmento decisório da sentença recorrida, passando tal alínea a ter a redação seguinte:
C. Condenar o réu DD a restituir aos autores o referido imóvel, devoluto e desocupado de pessoas e bens, no estado de conservação em que se encontrava à data do óbito do arrendatário.
Procede assim, nesta parte, a apelação.

2.2.3. Diferimento da desocupação do locado
A 1.ª instância rejeitou o pedido de diferimento da desocupação do locado deduzido pelo réu na contestação com fundamento na situação pessoal que invoca, por se ter entendido que a possibilidade do diferimento de tal desocupação apenas poderá ser apreciada no âmbito de uma eventual ação executiva.
Considerou a decisão recorrida o seguinte:
Aqui chegados cumpre tecer um breve esclarecimento sobre a possibilidade do deferimento da desocupação, nos moldes em que o réu deduz essa pretensão no artigo 26.º da sua contestação.
Na verdade, provou-se que o réu vive com graves dificuldades financeiras, encontra-se inscrito no Centro de Emprego (factos provados vertidos nos pontos 21.º a 23.º).
Ora, a possibilidade de deferimento da desocupação apenas poderá ser apreciada no seio de uma eventual ação executiva (artigos 859.º e ss., do Código de Processo Civil), desde já se sublinhando que, neste processo, não se apurou da existência de qualquer título que justifique a permanência do réu no locado, donde nunca seriam aplicáveis os artigos 862.º e ss., do referido diploma que pressupõem o deferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação, por razões sociais imperiosas.
Não pondo em causa este entendimento, o apelante sustenta, porém, nas alegações da apelação, que, declarando-se a caducidade do contrato de arrendamento, deve ser-lhe concedido o prazo de seis meses a que alude o artigo 1053.º do Código Civil, para a restituição do imóvel.
Sob a epígrafe Despejo do prédio, dispõe o citado preceito (na redação emergente da Lei n.º 6/2006, de 27-02) o seguinte: Em qualquer dos casos de caducidade previstos nas alíneas b) e seguintes do artigo 1051.º, a restituição do prédio, tratando-se de arrendamento, só pode ser exigida passados seis meses sobre a verificação do facto que determina a caducidade ou, sendo o arrendamento rural, no fim do ano agrícola em curso no termo do referido prazo.
A questão da concessão do prazo de seis meses para a restituição do prédio, após a verificação do evento que determinou a caducidade do contrato – no caso presente já decorrido à data da propositura da ação, considerando que o contrato caducou por morte do arrendatário ocorrida a 11-03-2017 e a ação foi intentada 25-10-2017 –, apenas foi suscitada na apelação, não tendo sido deduzida perante a 1.ª instância, sendo certo que configura questão diversa do pedido de diferimento da desocupação do locado formulado na contestação e sobre o qual se pronunciou a 1.ª instância.
Se a aludida questão não foi suscitada perante a 1.ª instância, que sobre a mesma não se pronunciou, e não se tratando de questão de conhecimento oficioso, não pode ser arguida no recurso de apelação, que visa reapreciar a decisão impugnada e não criar decisões sobre matéria nova.
Como tal, atenta a novidade da indicada questão, a qual não é de conhecimento oficioso, não será a mesma apreciada.

Em conclusão:
I - Estando em causa a apreciação dos efeitos operados pela morte do arrendatário na relação contratual, no sentido de averiguar se ocorreu a caducidade do contrato de arrendamento ou a transmissão da posição contratual do falecido, é aplicável o regime legal em vigor à data do óbito;
II – Tratando-se de contrato de arrendamento para habitação celebrado antes da entrada em vigor do NRAU, aplica-se o regime previsto no artigo 57.º da Lei n.º 6/2006, de 27-02, na redação emergente da Lei n.º 79/2014, de 19-12, em vigor à data do óbito do arrendatário, ocorrido a 11-03-2017.
III – A tutela da situação do filho do arrendatário prevista na alínea e) do n.º 1 do preceito exige, além da convivência com o arrendatário há mais de um ano, que o descendente padeça de deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60%.

3. Decisão
Nestes termos, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação, em consequência do que se decide:
a) alterar a parte final da alínea C) do segmento decisório da sentença recorrida, passando tal alínea a ter a redação seguinte: C. Condenar o réu DD a restituir aos autores o referido imóvel, devoluto e desocupado de pessoas e bens, no estado de conservação em que se encontrava à data do óbito do arrendatário;
b) revogar nesta parte e manter no mais a decisão recorrida.

Custas por apelante e apelados, na proporção do decaimento.
Notifique.

Évora, 16-05-2019
Ana Margarida Leite
Cristina Dá Mesquita
Silva Rato

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[1] Em anotação ao artigo 1051.º do Código Civil, explicam Laurinda Gemas/Albertina Pedroso/João Caldeira Jorge (Arrendamento Urbano – Novo Regime Anotado e Legislação Complementar, 3.ª edição, 2009, Lisboa, Quid Juris, p. 239) que “sendo as regras sobre caducidade do contrato normas de direito substantivo, por força do disposto nos art.ºs 59.º, n.º 1, da NLAU, e 12.º do CC, o regime da caducidade do contrato de arrendamento é o resultante da lei vigente à data em que ocorre o facto que a determina, e não o decorrente da lei em vigor à data da celebração do mesmo”.
[2] Neste sentido, podem indicar-se, a título exemplificativo, os acórdãos seguintes: o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07-05-2014, proferido na revista n.º 7507/06.4TBCSC.L1.S1 - 1.ª Secção (relator: Gregório Silva Jesus), o acórdão da Relação do Porto de 29-05-2008, proferido no processo n.º 0832054 (relator: Ataíde das Neves), os acórdãos desta Relação de Évora de 14-05-2015, proferido no processo n.º 4633/11.1TBPTM.E1 (relator: Bernardo Domingos), de 30-06-2016, proferido no processo n.º 832/13.0TBALR.E1 (relator: Manuel Bargado), e de 15-12-2016, proferido no processo n.º 340/15.4T8STB-A.E1 (relator: Silva Rato, ora 1.º adjunto), e o acórdão da Relação de Lisboa de 12-04-2018, proferido no processo n.º 30642/16.6T8LSB.L1-8 (relatora: Carla Mendes), publicados em www.dgsi.pt.
[3] Reportando-se aos contratos habitacionais celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano e aos contratos não habitacionais celebrados depois do DL n.º 257/95, de 30 de setembro, esclarece Luís Menezes Leitão (Arrendamento Urbano, 6.ª edição, 2013, Coimbra, Almedina, p. 188), que “determina o art. 26.º, n.º 1, que eles passam a estar sujeitos imediatamente ao NRAU, salvo quanto a alguns aspectos essenciais do regime, em relação aos quais se instituem regras específicas de direito transitório material (…)”, acrescentando que a “primeira regra específica respeita à transmissão por morte do arrendamento, a qual não é sujeita ao regime agora instituído nos arts. 1106º e 1113º, mas antes ao regime dos arts. 57º e 58º NRAU”.
[4] Em anotação ao mencionado artigo 1106.º do Código Civil, afirma Elsa Sequeira Santos (CÓDIGO CIVIL: Anotado, Coord. Ana Prata, volume I, 2017, Coimbra, Almedina, p. 1367) que “este regime não é aplicável aos contratos celebrados antes do NRAU, valendo para estes o regime transitório previsto no art. 57.º da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, que estabelece condições muito restritivas para a transmissão mortis causa do arrendamento habitacional”.