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PRIMADO DO DIREITO EUROPEU
APREENSÃO
CONFISCO
INSTRUMENTO DO CRIME
PRODUTO DO CRIME
TERCEIRO
BOA FÉ
CONTRATO DE MÚTUO
HIPOTECA
AQUISIÇÃO DE IMÓVEL
HABITAÇÃO
Sumário
I - Na mente do legislador penal, quando permitiu o confisco de bens de terceiro em processo penal, esteve a situação daqueles que colaboram com os suspeitos ou arguidos para quem transferem os seus bens para evitar a sua perda, com conhecimento por estes da causa da transferência. II - O art. 818.º CC prevê a execução de bens de terceiro, desde logo quando estes estejam vinculados à garantia do crédito. O terceiro que adquire um bem vinculado à garantia de um crédito (onerado com hipoteca) corre o risco de o ver executado em ação proposta contra o devedor (arguido em processo penal). A aquisição do bem por terceiro pode ocorrer por força de decisão judicial de perda de bens e/ou instrumentos do crime (neste caso, o terceiro é o Estado). III - O Estado, pela mão da justiça penal, deve cumprir a obrigação de informar os terceiros da existência do processo no qual os seus bens são ou foram objeto de apreensão/perda. Não o tendo feito, não é o terceiro, em ação executiva por si instaurada contra o devedor/condenado penal, que tem que alegar e demonstrar ter tido conhecimento do processo criminal e ter procurado ali defender a sua posição. É o Estado que administra a justiça que tem de alegar e demonstrar ter informado o terceiro da existência do processo e da possibilidade de este defender os seus interesses. Não o fazendo, arrisca-se a ver aplicadas as normas substantivas que à situação cabem, após prova da boa-fé por parte do terceiro.
Texto Integral
Processo n.º 5964/09.6T2OVR-C.P1
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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
Por apenso à ação executiva instaurada pelo “Banco B…, S.A.”, pessoa coletiva n.º ………, com sede na Rua …, n.º .., em Lisboa, substituído pela sociedade “C…”, sociedade de responsabilidade limitada, com sede em …, Rue … – …. Luxembourg, Grão Ducado do Luxemburgo, contra D…, com o NIF ………, e E…, com o NIF ………, na qualidade de mutuários, veio o Estado Francês apresentar oposição à execução e à penhora visando ver julgada extinta a execução, ordenando-se o cancelamento oficioso das inscrições registrais da hipoteca e da penhora que incidem sobre o imóvel identificado nos autos apensos.
Para tanto alegou ser proprietário do imóvel penhorado por o mesmo haver sido apreendido e declarado perdido a favor do Estado francês pela justiça francesa em processo criminal que julgou os executados, achando-se tal propriedade registada a seu favor e tendo as pertinentes decisões sido já reconhecidos pelo ordenamento jurídico português.
Contestou o embargado, opondo-se à procedência desta pretensão por força da anterioridade do registo da hipoteca a seu favor relativamente às decisões de apreensão e perda do imóvel, mencionando também a inoponibilidade da sentença estrangeira por não haver sido parte nos autos criminais.
Os autos vieram a ser decididos por decisão proferida em fase de despacho saneador, após comunicação às partes do objeto decidendo e exercício pelas mesmas da faculdade de se pronunciarem quanto a este.
Tal sentença culminou com o seguinte dispositivo:
(…) julgo os Embargos do Executado e a Oposição à Penhora improcedentes, devendo, em consequência, prosseguir a execução para venda da fração autónoma designada pela letra “N”, correspondente ao rés-do-chão e andar, para habitação, com logradouro e dependência para garagem, do prédio urbano sito no n.º … da Rua …, freguesia de … e concelho de Ovar, inscrito na respetiva matriz sob o artigo n.º 4921 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Ovar com o n.º 2778, daquela freguesia. No entanto, o remanescente do produto da venda (se o houver), depois de pago o credor exequente e as custas da execução (que saem precípuas – cf. art. 541.º do nCPC), deve ser restituído ao Estado francês.
Os factos aí dados como provados são os seguintes:
a) No âmbito do processo de instrução criminal francês nº 106/00060 à ordem do Tribunal de Grande Instance de Rochefort-sur-Mer (no qual os executados foram constituídos arguidos pela prática de crimes de tráfico de estupefacientes), foi decretada medida de apreensão, ao abrigo do art. 706.º-103 do Código de Processo Penal Francês, da fração autónoma designada pela letra “N”, correspondente ao rés-do-chão e andar, para habitação, com logradouro e dependência para garagem, do prédio urbano sito no n.º … da Rua …, freguesia de … e concelho de Ovar, inscrito na respetiva matriz sob o artigo n.º 4921 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Ovar com o n.º 2778, daquela freguesia; b) Sobre aquela fração autónoma encontra-se registada hipoteca voluntária a favor do exequente “Banco B…, S.A.”, mediante a Ap. … de 2006/12/27; c) Sobre aquela fração autónoma encontra-se registada a medida de apreensão decretada no âmbito do processo de instrução criminal francês nº 106/00060 do Tribunal de Grande Instance de Rochefort-sur-Mer, mediante a Ap. 20 de 2008/02/22 (MEDIDA CONSERVATÓRIA: hipoteca para garantia e conservação do crédito do Estado avaliado na quantia de 260.000€); d) Sobre aquela fração autónoma encontra-se também registada penhora a favor do exequente “Banco B…, S.A.”, mediante a Ap. … de 2011/04/19, referente aos presentes autos de execução; e) Em 19/10/2011, foi proferido o Acórdão da 4ª Secção do Tribunal da Relação do Porto, onde se declarou revisto e confirmado o acórdão nº 08/000699, de 30 de Outubro de 2008, proferido pelo Tribunal de Recurso de Poitiers (Tribunal de 2ª Instância), França, no âmbito do processo nº 06004138 (nº de instrução 106/00060 do Tribunal de Grande Instance de Rochefort-sur-Mer) que confirma a sentença proferida em 22 de Abril de 2008 pelo Tribunal Correccional de Rochefort-sur-Mer, ordenando a apreensão e perda do imóvel (ora em questão) sito no nº… da Rua …, …, concelho de Ovar, Portugal. Determinou ainda tal Acórdão que após o trânsito em julgado do mesmo se comunicasse à Procuradoria-Geral da República para os efeitos prevenidos no artigo 123 nº 2 da LCJIMP, e que oportunamente fossem os autos remetidos ao Tribunal de Ovar que é o territorialmente competente para a execução (art. 103 nº 1 e nº 3 da mesma lei) - cfr fls. 7 e seguintes do processo 4436/11.3T2OVR; f) Este Acórdão da 4ª Secção do Tribunal da Relação do Porto transitou em julgado em 16/11/2011; g) Tais autos foram distribuídos em 28/11/2011, com o nº de processo 4436/11.3T2OVR, que correu termos na Comarca de Aveiro – Ovar – Inst. Local – Secção Criminal – J 1, nos quais, em 05/12/2011, o respectivo Magistrado do Ministério Público profere despacho do seguinte teor: Uma vez que foi confirmada pelo Tribunal da Relação do Porto o acórdão proferido pelo Tribunal de Recurso de Poitiers que declarou perdido a favor do Estado francês o imóvel identificado na certidão de fls ., promovo se envie certidão da decisão proferida por aquele Tribunal bem como do Venerando Acórdão da Relação do Porto que a confirmou a fim de ser convertido em definitivo o registo de fls. … a favor do Estado francês (Cfr. fls. 169 dos autos n.º 4436/11.3T2OVR); h) Sobre aquela fração autónoma encontra-se ainda registada, em termos definitivos, a aquisição a favor do Estado francês, mediante a Ap. …. de 2012/01/18, em virtude de ter sido declarada perda do bem a favor do Estado francês, constando como sujeitos passivos os executados E…, NIF ………, e D…, NIF ………..
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Desta sentença recorre o embargante, visando a sua revogação.
Para tanto, argumentou segundo o seguinte raciocínio conclusivo:
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Contra-alegou o exequente, formulando como conclusões as que se transcrevem:
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Objeto do recurso:
Se as exigências de eficácia de justiça penal se sobrepõem ao direito a um fair trial dos terceiros de boa-fé.
Se o direito de propriedade do Estado francês sobre o bem penhorado determina a extinção da garantia real titulada pelo exequente e registada anteriormente e se as normas de direito europeu impõem a evicção das normas internas relativas à prioridade registal.
FUNDAMENTAÇÃO De facto
Os factos relevantes para a decisão são os já fixados em primeira instância e que aqui se dão por reproduzidos, aos quais acresce a referência ao mútuo estabelecido entre exequente e executados:
- Por documento datado de 28.12.2006, junto aos autos com o requerimento executivo, o Banco exequente declarou conceder aos executados um empréstimo de €100.000, para aquisição de habitação própria e permanente, obrigando-se estes a devolver tal quantia, com pagamento de juros, em 468 prestações mensais, constantes e sucessivas de capital e juros.
- A hipoteca que o Banco registou a seu favor a 27.12.2006 destina-se a garantir o cumprimento deste empréstimo até ao montante máximo de €137.000, 00.
De Direito
Vejamos de perto as circunstâncias invocadas no recurso e relativas ao direito penal, processual penal e europeu.
O art. 8.º, n.ºs 3 e 4, da Constituição da Republica Portuguesa acolhe o princípio do primado do direito da união europeia[1].
As normas de direito interno devem conformar-se não apenas com as normas e princípios constitucionais, mas também com as normas de direito europeu (entre outras, decorrentes de compromissos internacionais do Estado português), sob pena de inconstitucionalidade[2].
O recorrente invoca as normas europeias relativas à apreensão e ao confisco de instrumentos e produtos do crime.
A primeira (a apreensão) baseia-se numa ordem judicial cautelar e provisória (precautionary measure) e a segunda numa ordem judicial condenatória definitiva[3].
As regras europeias relativas à apreensão (freezing) e perdimento (confiscation) de bens, atualmente ordenadas sobretudo face à luta contra o terrorismo (mas também contra o tráfico de produtos estupefacientes, criminalidade económico-financeira, etc…), visam tornar eficiente essa luta mediante a promoção rápida e desprovida de burocracias formais do reconhecimento cross-border das decisões proferidas pelas instâncias de cada um dos Estados-Membros.
As regras fundamentais vigentes resultam da diretiva 2014/42/EU do Parlamento e do Conselho, de 3.4[4] (esta é a atualmente vigente, mas não a que vigorava quando o bem dos autos foi objeto de apreensão e de confisco), sobre o congelamento e a perda dos instrumento e produtos do crime na União Europeia[5] e resultou da ideia de que o reconhecimento mútuo das decisões judiciais tomadas noutro país tinha de ser dirigido por regras mínimas que assegurassem soluções uniformes.
Esta diretiva e toda a legislação que a antecedeu prevêem mecanismos que a lei portuguesa já consagrava nos arts. 109.º CPC (perda de instrumentos e produtos), 111.º CP (perda de vantagens do crime, incluindo daqueles que se encontravam na posse de terceiro, mesmo sem condenação) e no mecanismo da perda alargada do art. 7.º da Lei 5/2002, de 11.1[6].
O quadro legal europeu e nacional relativo à apreensão cautelar e à perda definitiva dos bens que são instrumento e/ou produto do crime não dispensa, porém, o respeito integral pelas normas da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais (sobretudo art. 47.º[7]) e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (aqui com referência ao art. 13.º e ao direito a um processo equitativo).
Com efeito, os direitos fundamentais desempenham no direito penal europeu um papel de importância preponderante[8].
Em caso de apreensão e/ou perda definitiva dos bens que constituem objeto/produto de crimes, a proteção dos interesses dos terceiros de boa-fé (third parties in good faith) é um destes casos em que a salvaguarda dos direitos fundamentais se vislumbra como intransponível.
Com efeito, o legislador europeu não deixou de impôr a obrigação de os Estados-Membros adotarem meios que tenham em vista informar terceiros quanto às ordens (designadamente penais) que visem a apreensão de bens sobre os quais detenham interesse, incluindo informação sobre as razões dessa atuação e dos remédios legais existentes[9].
A Decisão-Quadro 2003/577, aplicável ao reconhecimento e executoriedade da decisão de congelamento tomada por uma autoridade judiciária de outro Estado-Membro no processo penal, já incluía um art. 11.º com o seguinte conteúdo: 1.Os Estados-Membros devem introduzir as medidas necessárias para assegurar que qualquer parte interessada, incluindo terceiros de boa-fé, disponha da possibilidade de interpor recurso sem efeitos suspensivos contra uma decisão de congelamento executada nos termos do artigo 5.º, a fim de preservar os seus interesses legítimos; o procedimento deve ser instaurado perante um órgão jurisdicional do Estado de emissão ou do Estado de execução, de acordo com o respectivo direito nacional. 2. Os fundamentos subjacentes à emissão de uma decisão de congelamento só podem ser impugnados no âmbito de um recurso interposto num órgão jurisdicional do Estado de emissão. 3. Se o procedimento for instaurado no Estado de execução, a autoridade judiciária do Estado de emissão deve ser informada do facto e dos fundamentos do recurso, de modo a poder apresentar os argumentos que considere necessários. Deve ser informada dos resultados do procedimento. 4. O Estado de emissão e o Estado de execução tomam as medidas necessárias para facilitar o exercício do direito de interpor recurso nos termos do n.º 1, facultando, em especial, informações adequadas às partes interessadas. 5. O Estado de emissão assegura que qualquer prazo para a interposição de recurso nos termos do n.º 1 seja aplicado de forma a garantir às partes interessadas a possibilidade de recurso efectivo.
No que tange à perda definitiva de bens, produtos ou instrumentos, a Decisão-Quadro 2005/212, contém o art. 4.º com o seguinte teor: Cada Estado-Membro tomará as medidas necessárias para assegurar que as partes interessadas afectadas pelas medidas previstas nos artigos 2.º e 3.º disponham de vias de recurso eficazes para defenderem os seus direitos.
Por sua vez, o art. 6.º da diretiva de 2014 dispõe: 1. Os Estados-Membros tomam as medidas necessárias para permitir a perda dos produtos ou dos bens cujo valor corresponda a produtos que, direta ou indiretamente, foram transferidos para terceiros por um suspeito ou arguido, ou que foram adquiridos por terceiros a um suspeito ou arguido, pelo menos nos casos em que o terceiro sabia ou devia saber que a transferência ou a aquisição teve por objetivo evitar a perda, com base em circunstâncias e factos concretos, nomeadamente o facto de a transferência ou aquisição ter sido feita a título gracioso ou em troca de um montante substancialmente inferior ao do valor de mercado. 2. O n.º 1 deve ser interpretado de forma a não prejudicar os direitos de terceiros de boa-fé.
O mesmo resulta do art. 8.º: 1. Os Estados-Membros tomam as medidas necessárias para assegurar que as pessoas afetadas pelas medidas previstas na presente diretiva tenham acesso a vias de recurso efetivas e a um julgamento equitativo, para defender os seus direitos.
(…) 4. Os Estados-Membros devem prever a possibilidade efetiva de a pessoa cujos bens sejam afetados impugnar em tribunal a decisão de congelamento, em conformidade com os processos previstos no direito nacional. Esses processos podem prever que, caso a decisão inicial de congelamento tenha sido tomada por uma autoridade competente que não seja uma autoridade judiciária, essa decisão tenha de ser submetida primeiro a uma autoridade judiciária para validação ou revisão, antes de poder ser impugnada em tribunal.
(…) 6. Os Estados-Membros tomam as medidas necessárias para assegurar que todas as decisões de perda são fundamentadas e que a decisão é comunicada à pessoa em causa. Os Estados-Membros devem prever a possibilidade efetiva de a pessoa destinatária de uma decisão de perda impugnar em tribunal essa decisão. 7. Sem prejuízo da Diretiva 2012/13/UE e da Diretiva 2013/48/UE, as pessoas cujos bens sejam afetados pela decisão de perda têm o direito de ter acesso a um advogado durante todo o processo de decisão de perda em relação à determinação dos produtos e instrumentos, a fim de poder defender os seus direitos. As pessoas em causa são informadas deste direito.
(…) 9. Os terceiros têm direito a invocar o seu título de propriedade ou outros direitos reais, inclusive nos casos referidos no artigo 6.º.
Por seu turno, o REGULAMENTO DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO relativo ao reconhecimento mútuo das decisões de apreensão e de perda, 2018/1805, de 14.11, não deixa de prever os direitos de terceiros que considera “pessoa afetada”[10], prevendo o seu art. 4.º, n.º 7 (quanto à apreensão): Caso tenha conhecimento da existência de pessoas afetadas, a autoridade de emissão informa do facto a autoridade de execução. A autoridade de emissão fornece também, mediante pedido, à autoridade de execução todas as informações pertinentes para qualquer pretensão que essas pessoas afetadas possam ter relativamente aos bens, incluindo informações que permitam identificá-las. E o art. 14.º, n.º 6 (quanto à perda): A autoridade de emissão informa a autoridade de execução caso tenha conhecimento de qualquer pessoa afetada. A autoridade de emissão fornece também, mediante pedido, à autoridade de execução quaisquer informações pertinentes para qualquer pretensão que tal pessoa afetada possa ter relativamente aos bens, incluindo quaisquer informações que identifiquem a referida pessoa.
Nos termos deste Regulamento, constitui mesmo motivo de não reconhecimento e não execução das decisões de perda, entre outros, o caso previsto no art. 19.º, n.1 al. g): Nos termos da certidão de perda, a pessoa contra a qual a decisão de perda foi emitida não tiver comparecido pessoalmente no julgamento que conduziu a uma decisão de perda associada a uma condenação definitiva, salvo se a certidão de perda atestar que, de acordo com outros requisitos processuais definidos no direito do Estado de emissão, a pessoa em causa: i) foi notificada pessoalmente em tempo útil e foi desse modo informada da data e do local previstos para o julgamento que conduziu à decisão de perda, ou recebeu efetivamente por outros meios uma informação oficial da data e do local previstos para o julgamento de tal forma que ficou inequivocamente estabelecido que essa pessoa tinha conhecimento do julgamento previsto, e foi atempadamente informada de que essa decisão de perda poderia ser proferida se essa pessoa não comparecesse no julgamento;
E, mais concretamente, o art. 33.º: 1. As pessoas afetadas têm direito a vias de recurso eficazes no Estado de execução contra a decisão relativa ao reconhecimento e execução de decisões de apreensão nos termos do artigo 7.º e decisões de perda nos termos do artigo 18.º. O direito de recurso é interposto junto de um tribunal do Estado de execução, nos termos do seu direito. No que se refere às decisões de perda, o recurso pode ter efeitos suspensivos se tal estiver previsto no direito do Estado de execução. 2. Os motivos de fundo subjacentes à emissão de uma decisão de apreensão ou de uma decisão de perda não podem ser impugnados perante um tribunal do Estado de execução. 3. A autoridade competente do Estado de emissão deve ser informada de qualquer recurso interposto nos termos do n.º 1. 4. O presente artigo não prejudica a aplicação das salvaguardas e das vias de recurso no Estado de emissão em conformidade com o artigo 8.º da Diretiva 2014/42/UE.
Quer isto dizer que o direito europeu não prescinde de um processo que defina garantias processuais mínimas do visado ou de terceiros, falando-se a este respeito da necessidade de as ordens internas dos Estados-Membros criarem um “estatuto processual dos sujeitos afectados pelo congelamento e pelo confisco que não sejam arguidos”[11].
Entre nós, este tipo de garantia consta disperso no ordenamento jurídico.
O art. 178.º, n.º 7 CPP, prevê que quando os objetos apreendidos suscetíveis de serem declarados perdidos não pertencerem ao arguido, a autoridade judiciária ordena a presença do interessado e ouve-o, dando-lhe oportunidade de se defender.
Esta preocupação verifica-se noutros regimes avulsos[12] e o próprio art. 13.º da Lei 45/2011, de 24.6 (Lei que procede à criação do Gabinete de Recuperação de Ativos, em cumprimento da Decisão 2007/845/JAI, do Conselho), estabelece que previamente à venda dos bens apreendidos, recuperados, declarados perdidos a favor do Estado no âmbito de processos nacionais ou de atos de cooperação judiciária internacional, é notificado o proprietário ou legítimo possuidor para exercer a faculdade prevista no n.º 4 do art. 12.º[13].
Quanto ao regime decorrente do n.º 7 do art. 178.º CPP[14], previsto para apreensão de bens, Conde Ferreira defende dever o mesmo ser “alargado a todas as hipóteses de confisco de coisas ou benefícios titulados por terceiros, alheios à questão criminal. Antes de declarar a sua perda, seja qual for o momento processual em causa, o juiz deve conceder-lhes a possibilidade de defenderem os seus direitos, sob pena de não estarem reunidas as condições mínimas indispensáveis ao um fair trial”, prosseguindo aquele jurista na defesa de que “o estatuto do terceiro pressupõe também que seja elaborado e lhe seja transmitido o objeto do processo de confisco que o afeta (…). Sem esse ato, informativo e delimitativo, faltará um elemento essencial à caraterização de um processo penal de estrutura acusatória (…)” e “nos casos em que o processo prosseguir para a audiência de discussão e julgamento deverá ser assegurada a possibilidade de participação integral do terceiro. À semelhança do arguido ou do demandado civil, também ele tem de poder defender-se aí dos factos que lhe são imputados” (…)[15], pelo que “deverá gozar – com as necessárias adaptações – das mesmas garantias processais do arguido”[16].
Também no direito francês, ordenamento donde emana a decisão de perda do bem que hoje pertence ao recorrente, o confisco incide sobre bens que sejam propriedade do agente ou estejam na sua disponibilidade, mas sempre sem prejuízo dos direitos de terceiros de boa-fé:
Dispõe o art. 131-21 do code penal: La peine complémentaire de confiscation est encourue dans les cas prévus par la loi ou le règlement. Elle est également encourue de plein droit pour les crimes et pour les délits punis d'une peine d'emprisonnement d'une durée supérieure à un an, à l'exception des délits de presse.
(…) Lorsque la loi qui réprime le crime ou le délit le prévoit, la confiscation peut aussi porter sur tout ou partie des biens appartenant au condamné ou, sous réserve des droits du propriétaire de bonne foi, dont il a la libre disposition, quelle qu'en soit la nature, meubles ou immeubles, divis ou indivis [Tradução nossa: A penalidade adicional de confisco é aplicável nos casos previstos por lei ou regulamento. Ela é igualmente aplicável a crimes e infrações puníveis com prisão por mais de um ano, com exceção de crimes de imprensa. (...) Quando a lei que pune o crime ou a infracção o preverem, a perda pode também dizer respeito à totalidade ou parte da propriedade pertencente à pessoa condenada ou, sem prejuízo dos direitos do proprietário de boa-fé, de que ele tem a livre disposição, seja qual for natureza, móvel ou imóvel, divisível ou indivisível.][17].
Nesta senda, o Tribunal de Justiça da União Europeia tem vindo exatamente enfatizando a necessidade de proteger os interesses de terceiros afetados por decisões de congelamento ou de perda de bens.
Veja-se o ac. C-559/14 (Meroni c. Recoletos Ltd e outros).
Precedendo este aresto, o Supremo Tribunal da Letónia questionou o TJUE sobre se o reconhecimento e a execução de uma decisão judicial de um Estado-Membro, tomada sem audição prévia da terceira parte cujos direitos foram diretamente afetados por tal decisão, são contrários à política pública do Estado executor e manifestamente contrárias ao direito dos terceiros a um julgamento equitativo.
Em causa estava o REGULAMENTO (CE) n.º 44/2001 DO CONSELHO de 22 de Dezembro de 2000 relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial[18] e o TJUE decidiu: O artigo 34.°, ponto 1, do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, lido à luz do artigo 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, deve ser interpretado no sentido de que, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, o reconhecimento e a execução de uma decisão de um órgão jurisdicional de um Estado-Membro, proferida sem que um terceiro cujos direitos podem ser afectados por essa decisão tenha sido ouvido, não podem ser considerados como sendo manifestamente contrários à ordem pública do Estado-Membro requerido e ao direito a um processo equitativo na acepção dessas disposições, na medida em que lhe seja possível invocar os seus direitos perante esse órgão jurisdicional.
Quer isto dizer que as normas de direito europeu e de direito interno português relativas às consequências do crime, mormente as que respeitam à apreensão e perda de produtos e instrumentos daquele, não afastam, antes pressupõem, o cumprimento das regras e princípios relativos à audição e defesa dos terceiros de boa-fé cujos interesses sejam afetados por aquelas decisões.
Os processos internos, quer no Estado emitente, quer no Estado executor, não podem obnubilar tal dimensão essencial do procedimento judicial, civil ou criminal: o direito ao fair trail e à audição prévia à emissão de decisão judicial (ou outra emanada de órgão que exercite poderes públicos).
Esta dimensão que é peça essencial do puzzle europeu dos direitos fundamentais e, por via disso, também da estrutura constitucional formal interna, não foi nunca afastada – nem podia – pelas regras e procedimentos, decorrentes do direito da União ou dos direitos internos, relativos ao congelamento e perda de instrumentos e produtos do crime.
Nem as políticas de combate à criminal que partem da máxima de que o crime não compensa, nem a implementação de regras de simplificação e desburocratização do reconhecimento e executoriedade das decisões judiciais proferidas noutros espaços dentro da União Europeia, permitem se ultrapassem dimensões essenciais dos catálogos de direitos fundamentais como as que ora ficaram expressas.
Tanto bastaria para afastar a tese do recorrente quanto a quaisquer violações de normas europeias ou internas, sejam elas penais, processuais penais ou processuais civis, relativas ao confisco penal ou ao reconhecimento de sentenças estrangeiras, designadamente os artigos 110.º e 111.º do Código Penal; 178.º n.º 1 e n.º 7, 185.º, 234.º a 240.º e 374.º n.º 3 c) do Código do Processo Penal; 2.º, 3.º, 28.º, 95.º a 101.º, 103.º, 110.º n.º 4 e 160.º n.º 4 e n.º 5 da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto; 8.º, 13.º n.º 1, 15.º e 19.º da Lei n.º 25/2009, de 5 de Junho; 5.º, 6.º, 7.º, 10.º e 11.º da Decisão-Quadro n.º 2003/577/JAI do Conselho, de 22 de Julho de 2003; Directiva 2014/42/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de Abril de 2014; 3.º, 13.º, 17.º, 18.º e 21.º da Lei n.º 88/2009, de 31 de Agosto; Decisão-Quadro 2006/783/JAI, do Conselho, de 6 de Outubro (na redação da Decisão-Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de Fevereiro); 7.º a 12.º e 12.ºB da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro; 35.º, 36.º, 36.º-A, 38.º e 39.º n.º 4 do DL nº 15/93, de 22 de Janeiro e 8.º da Constituição.
Como referimos, co-natural a todo o processo judicial – e no processo criminal, exigível, desde logo, por um sistema de natureza acusatória (art. 32.º Const.) – é a possibilidade de defesa face a uma decisão suscetível de afetar os interesses de particulares.
Na situação dos autos, não consta dos documentos juntos que o Banco exequente tenha sido ouvido – como devia – no âmbito do processo criminal francês ou nos quadros do procedimento interno para revisão das decisões ali emitidas. O que resulta é exactamente o oposto.
E a sua posição de terceiro é inequívoca. Terceiro é todo aquele que detém interesse juridicamente relevante e atendível relativamente ao bem confiscado ou perdido em processo penal.
Ora, todas as normas relativas à apreensão e perda realçam a necessidade da audição dos terceiros, devendo ser a autoridade judiciária a desencadeá-la, o que aqui não sucedeu.
Com efeito, detendo o Banco mutuante direito real de garantia sobre o imóvel apreendido, imediatamente após a decisão cautelar de apreensão, impunha-se que o mesmo fosse chamado aos autos criminais franceses a fim de aí poder apresentar a sua posição quanto a estar ou não de boa-fé, isto é, quanto a saber ou não da relação existente entre este bem e a eventual atividade criminosa levada a efeito pelos mutuários.
Tratando-se de imóvel sujeito a registo, com o posterior registo da apreensão facilmente a autoridade judiciária que procedia à apreensão teve conhecimento da existência da posição jurídica-subjetiva do Banco ora recorrido.
Apesar disso, não foi o mesmo instado a pronunciar-se quanto à medida cautelar aplicada, o que constitui manifesta violação da sua posição jurídico-subjetiva claramente tutelada pelo direito europeu e pelos direitos internos, francês e nacional.
Todavia, na senda da doutrina que ficou exposta no acórdão do TJUE a que fizemos referência e do Regulamento europeu citado por último, essa situação não afeta o reconhecimento e executoriedade da sentença francesa, na medida em que lhe [ao exequente] seja possível invocar os seus direitos perante órgão jurisdicional do país onde será executada a ordem de perda do bem, isto é, em Portugal.
Decorrendo perante os tribunais portugueses procedimento judicial promovido pelo terceiro/Banco mutuante, tendo aí sido feito intervir o Estado francês, parece correto afirmar ser essa a sede para se verem apreciados os direitos desse terceiro.
Como afirma o recorrente, a qualidade de terceiro não se presume.
Porém, não é o terceiro que tem demonstrar ter tentado assegurar os seus direitos no processo criminal.
As normas que referimos impõem seja o Estado, pela mão da justiça penal, que cumpra a obrigação de informar os terceiros da existência do processo no qual os seus bens são ou foram objeto de apreensão/perda. E fazê-lo de forma cabal de modo que possa afirmar-se estarem garantidos todos os direitos de defesa.
Assim, não é o terceiro que tem que alegar e demonstrar ter tido conhecimento do processo criminal e ter procurado ali defender a sua posição. É o Estado que administra a justiça que tem de alegar e demonstrar ter informado o terceiro da existência do processo e da possibilidade de este defender os seus interesses. Não o fazendo, arrisca-se a ver aplicadas as normas substantivas que à situação cabem.
Já a boa-fé, ainda que se admita dever ser o terceiro a invocá-la, a exigência e o rigor de descrição do que seja a sua ignorância desculpável quanto à relação entre o bem e atividade ilícita do (s) arguido (s) nos autos criminais, serão maiores ou menores consoante a natureza do relacionamento que intercede entre o terceiro e o arguido e, bem assim, o tipo de intercorrência negocial que se espelha no bem confiscado.
Na situação dos autos, essa boa-fé está suficientemente alegada na contestação aos embargos quando o Banco afirma que o imóvel dos autos foi adquirido com o dinheiro mutuado e não com proventos de qualquer atividade criminosa a que se dedicassem os executados (arts. 7.º a 14.º).
Diz o Banco embargado que a sua relação com os executados decorre unicamente do mútuo concedido e que a hipoteca que acionou na execução resulta exatamente dessa posição de mutuário.
A prova destes factos será suficiente para considerar verificada a boa-fé. Esta, sendo matéria de exceção, só é afastada pelo embargante caso se verifique que a impugna, o que tem de suceder em audiência prévia que tenha por objeto também essa finalidade – art. 3.º, n.º 4 CPC.
Tratando-se de mútuo concedido regularmente por Banco tendo em vista a aquisição de habitação, estando aquele mútuo garantido por hipoteca, a prova daquelas circunstâncias determina a verificação da boa-fé, entendida esta como ignorância pelo mutuário da atividade ilícita dos mutuantes e réditos daí provenientes e sua relação com a posição de titular da garantia hipotecária. Na verdade, o mútuo foi concedido e a garantia de que goza o mutuário resulta do incumprimento desse mútuo e não de qualquer proveito criminoso dos mutuários.
Na mente do legislador, quando permitiu o confisco de bens de terceiro, esteve a situação daqueles que colaboram com os suspeitos ou arguidos para quem transferem os seus bens para evitar a sua perda, com conhecimento por estes da causa da transferência. É isso que se deixou consignado no considerando 24 da diretiva de 2014: A aquisição por terceiros abrange as situações em que, por exemplo, os bens tenham sido direta ou indiretamente adquiridos por um terceiro ao suspeito ou arguido, nomeadamente através de um intermediário, inclusive quando a infração tenha sido cometida em seu nome ou em seu benefício e quando o arguido não possuir bens suscetíveis de perda. Deverá ser possível decidir a perda pelo menos nos casos em que o terceiro saiba ou deva saber que a transferência ou aquisição teve por objetivo evitar a perda, com base em circunstâncias e factos concretos, inclusive no facto de a transferência ter sido efetuada a título gracioso ou em troca de um montante substancialmente inferior ao do valor de mercado. As regras relativas à perda de bens de terceiros dever-se-ão aplicar tanto a pessoas singulares como a pessoas coletivas. Em qualquer dos casos, os direitos de terceiros de boa-fé não deverão ser lesados.
É bom de ver que o caso do Banco mutuário e titular de garantia real não é, verdadeiramente, a situação típica do terceiro de boa-fé tida em vista com a possibilidade de confisco dirigida a terceiros.
Todavia, a boa-fé não se presume pelo que a prova dos factos invocados como sendo base desta não é dispensável.
Aqui chegados, e face à necessidade de instrução dos autos nos preditos termos, queda-se de utilidade o conhecimento de outras normas, mormente do Código Civil, de Processo Civil e de Registo Predial, como enunciado no recurso. Esse conhecimento terá sentido e lógica após aquela discussão.
Em todo o caso, vejamos o seguinte.
A aquisição pelo Estado francês do imóvel que os executados compraram com recurso a crédito hipotecário pode ser entendida como uma aquisição derivada ou uma aquisição originária?
Propende para a primeira hipótese quem considera que a vontade translativa do arguido é substituída por um ato impositivo da autoridade, tudo se passando como se o bem tivesse sido transmitido a este por aquele[19]. Vale por isso a regra nemo plus iuris in alium transfere potest quam ipse habet, segundo a qual a aquisição derivada depende da existência, conteúdo, amplitude e natureza do direito real pré-existente no anterior titular ou causante[20]
Em parecer do Conselho Consultivo do Instituto dos Registos e Notariado[21], deixou-se consignado que “a natureza originária estará mais no poder de autoridade que determina a perda do que no ato de aquisição a favor do Estado, posto que é na titularidade a favor do arguido ou condenado que esta se baseia e porque, também aqui, não deixam de ocorrer os elementos que, normalmente, caracterizam a aquisição derivada, vale dizer, a aquisição a favor do Estado tem lugar ao mesmo tempo em que se verifica a perda do direito do arguido ou do condenado e esta perda, ao invés de simples antecedente cronológico da aquisição operada a favor do Estado, será antes causa desta aquisição”.
De modo que, tratar-se-á de uma “perda relativa”, sendo que “o direito adquirido pelo Estado há-de coincidir então com o direito do agente, sem atingir desta forma os direitos a favor de terceiros que onerem a coisa ou o direito transmitido”.
E, de facto, se se tratasse de uma aquisição originária, que sentido faria que a legislação relativa ao confisco mantivesse salvaguardados os direitos de terceiros de boa-fé?
O art. 818.º CC prevê a execução de bens de terceiro, desde logo quando estes estejam vinculados à garantia do crédito. Não está em causa a segunda parte do normativo (quando procede impugnação pauliana proposta contra terceiro).
O terceiro que adquire um bem vinculado à garantia de um crédito corre o risco de o ver executado em ação proposta contra o devedor.
A aquisição do bem por terceiro pode ocorrer por força de decisão judicial de perda de bens e/ou instrumentos do crime.
Nesse caso, a aquisição, ainda que fosse originária (caso se considerasse não ter havido um ato translativo da propriedade por parte do arguido), o princípio registral do trato sucessivo sempre manteria salvaguardada a posição do terceiro.
Com efeito, este princípio “gravita em torno do princípio da prioridade (art. 6.º do CRP) e da presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define (art. 7.º do CRP), pelo que a sua aplicação não é, por regra, permeável à génese do facto jurídico a inscrever, à proveniência (judicial ou extrajudicial) do título, à qualidade dos sujeitos ou à natureza dos interesses (públicos ou privados) envolvidos” (…). Donde, quando a perda a favor do Estado incida sobre bens do titular inscrito que figure como terceiro no processo penal, vale dizer, que não assuma a posição de agente, arguido ou condenado, é condição necessária à inscrição definitiva da aquisição a favor do Estado que se demonstre ou que houve intervenção do dito terceiro (titular inscrito) no processo penal em causa ou que lhe foi conferida uma possibilidade efectiva de nele intervir”[22].
Na situação dos autos, o recorrente logrou obter a inscrição da sua titularidade, ainda que estivesse pendente garantia real a favor do terceiro, mesmo sem intervenção deste no processo penal. Não pode, por isso e consequentemente, colocar-se em causa o princípio geral subjacente ao registo – publicidade das situações reais por ele abrangidas – e a regra da eficácia da sua anterioridade (art. 6.º CRP) ou mesmo do efeito central deste (art. 5.º, n.º 4 CRP)[23].
Já a referência na sentença ao art. 824.º, n.ºs 2 e 3 CC nos parece inadequada.
Este normativo refere-se à caducidade de ónus que decorre da venda executiva e, na verdade, o direito de propriedade do embargante não é um ónus, mas a dominialidade integral. A circunstância de para si reverterem fundos, após a venda executiva, não resulta daquele normativo, mas sim do facto de, liquidada a responsabilidade dos executados e pagos os demais encargos, se tal ocorrer, o produto excedente da venda do bem, reverter a favor do respectivo proprietário.
Pelo exposto, afigurando-se-nos necessário apurar, nesta sede, da boa-fé do exequente nos preditos termos, impõe-se revogar a sentença recorrida e conceder ao embargante oportunidade de se pronunciar quanto à matéria constante da contestação e, após, elaborar despacho saneador, caso se verifique impugnada a factualidade constante da contestação, a fim de efetuar julgamento quanto a tal questão.
Dispositivo
Pelo exposto, decide este tribunal revogar a sentença recorrida e, em consequência, ordenar o prosseguimento dos autos nos preditos termos.
Custas pela parte vencida a final.
Porto. 11.4.2019
Fernanda Almeida
António Eleutério
Isabel São Pedro Soeiro
___________________ [1] Cfr. igualmente o art. 7.º, n.º 6 da Constituição: Portugal pode, em condições de reciprocidade, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático e pelo princípio da subsidiariedade e tendo em vista a realização da coesão económica, social e territorial, de um espaço de liberdade, segurança e justiça e a definição e execução de uma política externa, de segurança e de defesa comuns, convencionar o exercício, em comum, em cooperação ou pelas instituições da União, dos poderes necessários à construção e aprofundamento da união europeia. E art. 8.º, n.º 4: As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático. [2] Diga-se, contudo, quanto à interpretação do direito nacional em conformidade com o direito da União que se pretende, não uma interpretação conforme à Constituição, mas a aplicabilidade direta do direito da União Europeia, que se aplica com prevalência, e não como referente hierárquico de validade ou invalidade de normas inferiores – neste sentido, Gomes Canotilho, Suzana Tavares da Silva, Metódica Multinível: “Spill-over effects e Interpretação conforme o direito da União Europeia, RLJ, 138, março-abril 2009, 2010, p. 183. [3] O confisco não tem necessariamente a natureza de pena, como pode ver-se pelo voto de vencido de Paulo Pinto de Albuquerque ao acórdão Varvara c. Itália do TEDH, de 29.10.2013, acórdão este que afirmou o contrário, em oposição a tudo quanto a este respeito anteriormente julgou e veio, depois, a ficar consignado na directiva de 2014 (art. 4.º, n.º 2), sobre o tema, veja-se Hugo Luz dos Santos, O acórdão do TEDH Varvara c. Itália e o confisco alargado na União Europeia: um passo atrás no “crime doesn’t pay”?, in, Scientia Iuridica, n.º 334, tomo LXII, jan/abril 2014, p. 85-110. [4] Esta diretiva foi antecedida de um vasto acervo de instrumentos europeus dedicados ao tema: Decisão-Quadro do Conselho 2011/500/JAI, de 26, 6 (relativa ao branqueamento de capitais, identificação, deteção, congelamento e apreensão de instrumentos e produtos do crime) Decisão-Quadro do Conselho 2003/577/JAI, de 22.7 (execução na Uniao Europeia das decisões de congelamento ou de provas) Decisão-Quadro do Conselho 2005/212/JAI, de 24.2 (perda de produtos, instrumentos e bens relacionados com o crime) Decisão-Quadro 2006/783/JAI, de 6.10 (aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às decisões de perda) Decisão 2007/845/JAI do Conselho, de 6.12 (cooperação entre os gabinetes de recuperação de bens dos Estados-Membros no domínio da deteção e identificação de produtos e outros bens relacionados com o crime) Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu e ao Conselho, de 20.11.2008 [COM (2008) 766 final: Prodiuto da Criminalidade Organizada Garantir que “o crime não compensa” Programa de Estocolmo (Uma Europa aberta e segura que sirva e proteja os cidadãos [Jornal Oficial C 115 de 4.5.2010]) Conclusões do Conselho «justiça e assuntos internos», de junho de 2010. [5] Esta directiva acabou por reunir as duas matérias dispersas nas Decisões-Quadro mencionados pelo recorrente, a 2003/577/JAI, relativa ao congelamento, e a 2005/212/JAI, quanto à perda definitiva. [6] Além de outros diplomas avulsos que contemplam normas específicas relativas à perda de bens – sobre estes veja-se, João Conde Correia, Reflexos da Diretiva 2014/42/EU, in Revista do Centro de Estudos Judiciários, 2014, II, p. 88, nota 14. [7] Toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem direito a uma ação perante um tribunal nos termos previstos no presente artigo. Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma equitativa, publicamente e num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei. Toda a pessoa tem a possibilidade de se fazer aconselhar, defender e representar em juízo. É concedida assistência judiciária a quem não disponha de recursos suficientes, na medida em que essa assistência seja necessária para garantir a efetividade do acesso à justiça. [8] Desde a criação da União Europeia, em 1992, o artigo F das disposições comuns do Tratado da União Europeia - tal como hoje, o artigo 6.º, n.º3, do Tratado da União Europeia – prevê o respeito, pela União, dos direitos fundamentais, «tal como os garante a TFUE, embora a relação entre direitos fundamentais e direito penal [seja] uma relação necessária e não surpreendente, mas paradoxal. Anabela Miranda Rodrigues, Direito Penal Europeu Pós-Lisboa – Um Direito Penal Funcionalista?, in Os novos desafios da cooperação judiciária e policial na União Europeia e da implementação da Procuradoria Europeia, Universidade do Minho, 2017, p. 28 e 29. [9] É isso que assinala a Comissão Europeia, na Press Release relativa à regulação do reconhecimento mútuo das ordens de apreensão e perda, de 21.12.2016: Safeguards are included in the proposed Regulation to ensure that the mutual recognition of freezing or confiscation orders is in line with fundamental rights protected by the EU Charter of Fundamental Rights (the Charter) and the European Convention on Human Rights (ECHR). For instance, the Regulation includes grounds for refusal when the rules on the right to be present at the trial (‘in absentia') or when the rights of third parties "in good faith" ('bona fide') are not respected. There is an obligation to inform interested parties of the execution of a freezing order, including of the reasons why it is carried out and the legal remedies available. There is also an obligation for Member States to provide for legal remedies in the executing State. All applicable criminal law procedural safeguards should be ensured by the Member States. Furthermore, for those orders falling within the scope of Directive 2014/42/EU on the freezing and confiscation of instrumentalities and proceeds of crime, Article 8 of the Directive also includes a list of safeguards that need to be ensured by the issuing Member States, andArticles 47 and 48 of the Charter apply. Applicable criminal law standards also include the relevant legislation at EU level on procedural rights in criminal proceedings: Directive on the right to interpretation and translation, the Directive on the right to information, Directive on the right of access to a lawyer,Directive on the presumption of innocence and the right to be present at the trial, Directive on the procedural safeguards for children and Directive on legal aid.Tradução nossa: São incluídas salvaguardas no regulamento proposto para assegurar que o reconhecimento mútuo das decisões de congelamento ou de confisco respeita os direitos fundamentais protegidos pela Carta dos Direitos Fundamentais da UE (Carta) e pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH). Por exemplo, o regulamento inclui motivos de recusa quando as regras relativas ao direito de estar presente no julgamento ("in absentia") ou quando os direitos de terceiros "de boa fé" ("boa-fé") não são respeitadas. Existe a obrigação de informar as partes interessadas sobre a execução de uma ordem de congelamento, incluindo as razões pelas quais ela é executada e as soluções legais disponíveis. Existe também a obrigação de os Estados-Membros preverem soluções legais no Estado de execução. Todas as salvaguardas processuais do direito penal aplicáveis devem ser asseguradas pelos Estados-Membros. Além disso, para as ordens abrangidas no âmbito de aplicação da Diretiva 2014/42 / UE relativa ao congelamento e confisco de instrumentos e produtos do crime, o artigo 8.º da Diretiva inclui também uma lista de salvaguardas que devem ser asseguradas pelos Estados-Membros de emissão, e os artigos 47 e 48 da Carta se aplicam. As normas de direito penal aplicáveis incluem também a legislação relevante a nível da UE sobre os direitos processuais em processos penais: Diretiva relativa ao direito à interpretação e tradução, Diretiva relativa ao direito à informação, Diretiva relativa ao direito de acesso a um advogado, Diretiva relativa à presunção da inocência e do direito de estar presente no julgamento, da directiva relativa às garantias processuais para as crianças e da directiva relativa ao apoio judiciário. [10] Art. 2.º/10: «Pessoa afetada», a pessoa singular ou coletiva contra a qual é emitida uma decisão de apreensão ou uma decisão de perda, ou a pessoa singular ou coletiva que é proprietária dos bens abrangidos pela referida decisão, assim como quaisquer terceiros cujos direitos relacionados com esses bens sejam diretamente prejudicados pela referida decisão, em conformidade com a legislação do Estado de execução. [11] Conde Correia, cit., p. 110. [12] Na lei do tráfico e consumo de estupefacientes (L 15/93, de 22.1), o art. 36.º-A, sobre a defesa de direitos de terceiros de boa fé, prevê que o terceiro suscite a questão por requerimento que será autuado por apenso aos autos criminais, sendo os interessados remetidos para os meios cíveis, caso a questão se revele complexa ou cause perturbação ao normal andamento do processo. O art. 60.º da Lei do Combate ao Branqueamento de Capitais e do Financiamento do Terrorismo, Lei 25/2008, de 5.6, que dispunha sobre a defesa dos direitos de terceiros de boa-fé, foi revogado pela Lei 83/2017, que continha idêntica solução processual. [13] Que dispõe que O proprietário ou legítimo possuidor de um bem que não constitua meio de prova relevante pode requerer à autoridade judiciária competente a sua entrega contra o depósito do valor da avaliação à ordem do IGFEJ, I. P. [14] Os titulares de instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objetos apreendidos podem requerer ao juiz a modificação ou a revogação da medida. [15] Embora a possibilidade de recurso da decisão que determinar o confisco tenha sido salvaguardada (art. 401.º, n.º1 d) CPP [16] Da Proibição do Confisco à Perda Alargada, 2012, p. 130 e 131. [17] O procedimento francês prevê exactamente a notificação às terceiras partes que têm direitos sobre os bens a fim de se poderem defender, como pode ver-se no Relatório Final da Comissão Europeia sobre COMPARATIVE LAW STUDY OF THE IMPLEMENTATION OF MUTUAL RECOGNITION OF ORDERS TO FREEZE AND CONFISCATE CRIMINAL ASSETS IN THE EUROPEAN UNION JUST/2011/JPEN/PR/0153/A4 FINAL FINDINGS REPORT, p. 392 e ss., disponível em http://knjiznica.sabor.hr/pdf/E_publikacije/Comparative_law_study_of_the_implementation_of_mutual_recognition.pdf [18] Art. 34.º, n.º1: Uma decisão não será reconhecida: 1. Se o reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública do Estado-Membro requerido; [19] Assim, Lebre de Freitas, A Ação Executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, 6.ª Ed., p. 400. [20] Paulo Videira Henriques, Terceiros para efeitos do art. 5.º do Código do Registo Predial, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. Comemorativo, 2003, p. 396. [21] Parecer n.º 15/CC/2018, de 17.4 [22] Parecer cit, p. 7 e 8. [23] Caso se entenda que a noção de terceiros para efeitos de registo abrange o titular do direito real de garantia. Cfr. AUJ do STJ 3/99, de 18.5 [terceiros, para efeitos do disposto no art. 5.º do Código de Registo Predial, são os adquirentes, de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa] e Luís Couto Gonçalves, Terceiros para efeitos de registo e segurança jurídica, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel Henrique Mesquita, Vol. I, p. 927 e ss.