USO E HABITAÇÃO
CADUCIDADE
Sumário

- Nos termos e para os efeitos do disposto no art.º1488.º do Código Civil, o direito de uso e habitação não pode ser onerado por qualquer modo, sendo inalienável e impenhorável.
- E, nesta sequência, importa ter presente o estipulado no art.º 824º, nº 2, do Código Civil, no qual é afirmado que, na venda em execução, “os bens são transmitidos livres (…) dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia”.
- Por isso, é nosso entendimento que o direito de uso e habitação da executada, tendo sido registado em momento posterior à garantia hipotecária da exequente, caducou, inexoravelmente, com a venda em execução do referido imóvel, por força do disposto no citado nº 2 do art.º 824.º do Código Civil, não devendo assim o direito de propriedade da exequente ser afectado e/ou limitado por qualquer forma.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

P. 3028/14.0TBSTB-D.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

Caixa Económica Montepio Geral instaurou a presente execução contra (…) e outros, solicitando que, para pagamento do crédito que tem sobre os executados, se proceda, oportunamente, à penhora e posterior venda do imóvel sobre o qual tem hipoteca registada a seu favor desde 1999.
Posteriormente, tal imóvel foi comprado em 2004 pela executada (…) que, em 2012, veio a doar o referido imóvel aos seus dois filhos, ficando registado a seu favor (também nessa data) o direito de uso e habitação do imóvel em questão.
Após se ter procedido à venda do imóvel na presente execução veio o seu adquirente – “in casu”, a exequente – requerer que fosse declarada a caducidade do direito de uso e habitação constituído e registado a favor da executada, (…), o que fez ao abrigo do disposto no art. 824º, nº 2, do Código Civil.
Notificada para, querendo, se pronunciar veio a executada (…) pugnar pelo indeferimento da pretensão da exequente.
De seguida, veio a ser proferida decisão pelo M.mo Juiz “a quo”, na qual foi determinado, por força do citado art. 824º, nº 2, o cancelamento do registo do direito de uso e habitação existente a favor da executada (…).

Inconformada com tal decisão dela apelou a referida executada, tendo apresentado para o efeito as suas alegações de recurso e terminando as mesmas com as seguintes conclusões:
I – Existindo hipoteca sobre um imóvel, só a penhora e venda do direito de propriedade, permite que a venda ocorrida em processo executivo leve a que a transmissão do bem ocorra livre dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais;
II – A penhora do direito da nua propriedade sobre um imóvel, e consequente venda de tal direito não tem a virtualidade de operar a transmissão do bem livre dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais violando assim o disposto no art.º 824.º, n.º 2, do CC pois caso assim não fosse estar-se-ia a ferir o princípio nemo plus iuris ad alium transfere potest quam ipse habet.
Pela exequente foram apresentadas contra-alegações de recurso, nas quais pugna pela manutenção da decisão recorrida.
Atenta a não complexidade da questão a dirimir foram dispensados os vistos aos Ex.mos Juízes Adjuntos.
Cumpre apreciar e decidir:

Como se sabe, é pelas conclusões com que a recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639º, nº 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na decisão for desfavorável à recorrente (art. 635º, nº 3, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº 4 do mesmo art. 635º) [3] [4].
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação da recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pela executada (…), ora apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação da questão de saber se, por virtude da realização da venda do imóvel identificado nos autos na presente execução, não caducou o direito de uso e habitação constituído e registado a seu favor, uma vez que apenas se procedeu à venda da nua propriedade do referido imóvel.

Apreciando, de imediato, a questão suscitada pela recorrente importa dizer a tal respeito que a lei define o direito de uso como a “faculdade de se servir de certa coisa alheia e haver os respectivos frutos, na medida das necessidades, quer do titular, quer da sua família” (cfr. art. 1484.º, n.º1, do Cód. Civil).
Este direito recebe a designação de direito de habitação quando tenha por objecto a “casa de morada” (cfr. nº 2 do citado art. 1484.º).
Como afirmam Pires de Lima e Antunes Varela o usufruto é, quanto ao gozo da coisa e a despeito da sua raiz pessoal, “o espelho fiel da propriedade”; o seu titular, desde que respeite o destino económico da coisa, pode comportar-se exactamente como um proprietário. O direito de uso, mais adstrito à pessoa do titular, absorve apenas algumas das faculdades de gozo (as ligadas à utilização imediata da coisa ou ao consumo directo dos frutos) compreendidos na propriedade plena – cfr. Cód. Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed., pág. 546.
Como afirma Carvalho Fernandes, os direitos de uso e habitação são direitos reais limitados, em que os poderes de uso ou de fruição são reconhecidos ao titular segundo um critério finalista e não em termos absolutos. A sua medida é a das necessidades do seu titular e respectiva família. São, pois, limitados pelo fim – cfr. Lições de Direitos Reais, 2ª ed., pág. 394.
É esta a nota característica que decorre do nº 1 do art.º 1484.º: a ideia de que o direito de uso se mede pelas necessidades, quer do titular, quer da sua família.
Como já atrás se referiu, o nº 2 do art.º 1484º refere-se a um tipo especial de uso, que tem por típico o objecto (casa de morada) e a modalidade de gozo que faculta ao titular (a habitação). Enquanto o usuário do prédio pode habitá-lo, instalar nele um estabelecimento, etc. O titular do direito de habitação apenas pode usar o prédio para morar nele e na estrita medida das suas necessidades pessoais ou familiares – cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 547.
A tal respeito, afirmava Mota Pinto que, se o direito de uso incidir sobre uma casa – direito de habitação neste caso – esta não pode ser arrendada dado que o direito não engloba os frutos civis dela, traduzindo-se, antes e tão só, num mero direito de habitar a cãs – cfr. Direitos Reais, pág.417.
Relevante é ainda o âmbito da “família” definido no art.º 1487º do Cód. Civil:
- Como decorre do referido preceito legal, os direitos de uso e habitação não atribuem um direito de gozo pleno sobre a coisa, atentas as limitações estabelecidas ao uso e fruição, sendo o seu uso funcionalizado e limitado pelas necessidades do seu titular e da sua família.
A circunstância de este preceito se referir à família não significa que o direito de uso ou habitação também a ela pertence. O direito é só do usuário ou morador usuário; extinguindo-se para este, extinto ficará para a sua família.
Assim, não entram no cômputo das necessidades familiares as pessoas cujo sustento esteja, de facto, a cargo do usuário, mas que não convivam com ele – cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 550.
Por outro lado, nos termos do art.º 1488.º o usuário e o morador usuário não podem trespassar ou locar o seu direito, nem onerá-lo por qualquer modo.
E, face ao estipulado no art.º 1490.º são aplicadas aos direito de uso e habitação as disposições que regulam o usufruto, quando conformes à natureza daqueles direitos.
Esta natureza, como ensinava Mota Pinto, é no fundo, a afectação destes direitos à função de satisfazer necessidades pessoais – cfr. ob. cit., pág. 420.
Assim, tal como o usufrutuário (art.º 1466.º), também o usuário tem a faculdade de usar a coisa pelos vários modos que ela pode ser útil, respeitando o seu destino económico. O que lhe está vedado, pela natureza especial do seu direito, é o gozo indirecto da coisa, que fundamentalmente se traduz no poder de dispor dela.
Por fim, importa referir, como defendem Pires de Lima e Antunes Varela que, não podendo os direitos de uso e habitação ser exercidos senão para satisfação das necessidades pessoais e da sua família, deve entender-se que, cessando estas necessidades, aqueles direitos poderão ser declarados extintos a requerimento de qualquer interessado – cfr. ob. cit., págs. 552 e 553.
Deste modo, forçoso é concluir que o direito de uso e habitação é um direito mais limitado que o usufruto e com características próprias, estando limitado quanto à fruição à satisfação de necessidades pessoais e familiares (artigo 1484.º, n.º 1, do Código Civil), é intransmissível e inalienável, não podendo ser onerado (artigo 1488.º), sendo, por isso, um direito pessoalíssimo – cfr., nesse sentido, Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, pág. 395.
E, por ser um direito inalienável, o direito de uso e habitação tem, como consequência, ser também um direito impenhorável – cfr., nesse sentido, o Ac. da R.L. de 2/11/1989, BMJ 391, pág.681, o Ac. da R.L. de 22/6/!989 e ainda o Ac. desta Relação de 7/12/2017 (no qual o aqui relator interveio como 1º Adjunto), estes dois últimos disponíveis in www.dgsi.pt.
No mesmo sentido, afirma Menezes Leitão que os direitos de uso e habitação não atribuem um direito de gozo pleno sobre a coisa, atentas as limitações estabelecidas ao uso e fruição, sendo o seu uso funcionalizado e limitado pelas necessidades do seu titular e da sua família – cfr. Direitos Reais, pág. 371.
Seguindo tal entendimento, pode ver-se, entre outros, o Ac. da R.P. de 27/2/2007, disponível in www.dgsi.pt, onde se afirmou o seguinte:
- O direito de uso (art.º 1484.º, n.º 1, do CC) é um direito real limitado em que os poderes de uso ou de fruição são reconhecidos apenas ao seu titular segundo um critério finalista e não em termos absolutos: a sua medida é a das necessidades do seu titular e respectiva família – sublinhado nosso.
Voltando agora ao caso em apreço, constata-se que a executada Ana Paula, ora apelante, tem registado a seu favor, desde 2012, o direito de uso e habitação do imóvel devidamente identificado nos autos, sendo certo que, por outro lado, desde data anterior – ou seja, desde 1999 – a exequente tem uma hipoteca registada a seu favor sobre o imóvel em questão.
Ora, como vimos supra, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 1488.º do Cód. Civil, o direito de uso e habitação não pode ser onerado por qualquer modo, sendo inalienável e impenhorável.
E, nesta sequência, importa ter presente o estipulado no artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil, no qual é afirmado que, na venda em execução, os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia (…)”.
Por isso, é nosso entendimento que o direito de uso e habitação da executada (…), tendo sido registado em momento posterior à garantia hipotecária da exequente, caducou, inexoravelmente, com a venda em execução do referido imóvel, por força do disposto no citado nº 2 do artigo 824.º do Código Civil, não devendo assim o direito de propriedade da exequente ser afectado e/ou limitado por qualquer forma.
Acresce que, até a propósito do contrato de arrendamento, que se reveste de natureza obrigacional e não real, a jurisprudência tem vindo a defender a sua caducidade, em casos análogos ou semelhantes a este, até pela própria similitude com o direito de uso e habitação.
Neste sentido, pode ver-se, o Ac. do STJ de 27/5/2010, disponível in www.dgsi.pt, no qual, a dado passo, é afirmado o seguinte:
- “ (…) O artº 824º, nº 2, do C.Civil é peremptório no sentido de que os bens são transmitidos livres dos direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros, independentemente do registo.
- No caso em apreço, por um lado, o arrendamento é posterior ao registo da hipoteca sobre o imóvel e, por outro, a hipoteca é indiscutivelmente um direito real da garantia (Mota Pinto, Direitos Reais, 135), não sendo necessária, sequer, a sua equiparação à «penhora antecipada», para os efeitos da aplicação do referido preceito legal.
- Não se trata aqui do uso da analogia para colmatar lacuna legal (interpretação analógica) mas da semelhança notória do arrendamento com um direito real de gozo tal como o direito de uso e habitação, além da sua tendencial longa duração, como já atrás deixámos expresso e, por isso, a merecer igual tratamento no que concerne à tutela dos direitos do credor com garantia real (hipoteca) com registo anterior à celebração do arrendamento.
Por isso, quando se fala em analogia, não se quer visar necessariamente a integração das lacunas legais (integração de omissão por interpretação analógica) no regime de arrendamento, mas também a extensão da norma a situações análogas, tendo sempre a teleologia da norma, a ratio legis, que no caso do artigo 824.º, n.º 2 é, sem dúvida, a tutela dos direitos dos credores titulares das garantias reais, registadas com anterioridade relativamente ao estabelecimento da invocada relação locatícia”.
No mesmo sentido, veja-se ainda o recente acórdão desta Relação de 13/9/2018, também disponível in www.dgsi.pt, onde se afirmou que, “vendido o imóvel hipotecado, o qual tinha sido dado de arrendamento a terceiro após o registo da referida hipoteca, caduca o direito do locatário, nos termos do n.º 2 do artigoº 824.º do Código Civil”.
Nestes termos, dúvidas não restam de que, “in casu”, o direito de uso e habitação da executada, aqui apelante, não pode subsistir após a venda judicial do imóvel à exequente, sobre o qual – não será demais aqui repetir – recaía já uma garantia hipotecária com registo anterior aquele direito de uso e habitação.
Deste modo, estamos inteiramente com o Julgador “a quo” quando, a tal propósito, veio aquele afirmar o seguinte na decisão recorrida:
- (…) Como é sabido, e contrariamente ao que sucede com o direito de usufruto, o direito de uso e habitação é intransmissível e, como tal, é impenhorável (arts. 736º, a) do CPC, e 1488º do CC). Logo, o que sucedeu foi que a exequente adquiriu o imóvel, mas não o direito de uso e habitação, na medida em que o mesmo é intransmissível.
O direito de uso e habitação é um direito real limitado, em que os poderes de uso ou de fruição são reconhecidos na medida das necessidades, quer do titular, quer da sua família, extinguindo-se pelos mesmos modos que o usufruto (arts. 1484º e 1485º do CC).
Por força do disposto no n.º 2 do art. 824º do CC, “os direitos de gozo só caducam se não tiverem um registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, ou seja, anterior à mais antiga destas garantias” – P. de Lima e A. Varela, Cód. Civil Anotado, vol. II, 4ª edição, pág. 97.
No caso dos autos, sendo o registo da hipoteca constituída a favor da exequente anterior ao registo do direito de uso e habitação, deve concluir-se que o direito de uso e habitação em causa caducou por força da realização da venda executiva, ao abrigo do disposto no n.º 2 do art.º 824.º do CC.
Pelo exposto, atentas as razões e fundamentos supra referidos, forçoso é concluir que a decisão recorrida não merece, de todo, qualquer censura ou reparo, sendo, por isso, de manter integralmente. Em consequência, irrelevam, “in totum”, as conclusões de recurso formuladas pela executada, ora apelante, sendo de julgar improcedente o recurso.
***
Por fim, atento o estipulado no nº 7 do art. 663º do C.P.C., passamos a elaborar o seguinte sumário:
(…)
***

Decisão:

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o presente recurso de apelação interposto pela executada (…) e, por via disso, confirma-se inteiramente a decisão recorrida.
Custas pela executada, aqui apelante.
Évora, 16 de Maio de 2019
Rui Machado e Moura
Eduarda Branquinho
Mário Canelas Brás
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[1] Cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, p. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, nº 17, p. 3), de 12/12/1995 (in BMJ nº 452, p. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ nº 486, p. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), CASTRO MENDES (in “Direito Processual Civil”, 3º, p. 65) e RODRIGUES BASTOS (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, 1972, pp. 286 e 299).