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HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
NEGLIGÊNCIA MÉDICA
LEGES ARTIS
Sumário
I - A violação do dever de cuidado objetivamente devido é elemento essencial e característico do tipo de ilícito negligente, com o que se pretende designar a violação de exigências de comportamento tipicamente específicas, cujo cumprimento o direito requer, para evitar o preenchimento de um tipo objetivo de ilícito. II - Entre os critérios concretizadores do cuidado objetivamente devido importa destacar os seguintes: - As normas corporativas, normas (não jurídicas) fixadas ou aceites por certos círculos profissionais e análogos destinadas a conformar as atividades respetivas dentro de padrões de qualidade e, nomeadamente, a evitar a concretização de perigos para bens jurídicos que de tais atividades pode resultar, como é o caso das legis artis da atividade médica. - Os costumes profissionais comuns ao profissional prudente, ao profissional padrão. O critério é a não correspondência do comportamento àquele que, em idêntica situação, teria um homem fiel aos valores protegidos, prudente e consciencioso. III - A violação do dever de cuidado tanto pode traduzir-se numa ação como numa omissão; neste último caso é necessário que sobre o agente recaia um dever de garante. IV - A negligência determina-se com recurso a uma dupla averiguação: por um lado, procurar saber que comportamento era objetivamente devido numa situação de perigo em ordem a evitar a violação não querida do direito e, por outro lado, se esse comportamento podia ser exigido do agente, atentas as suas características e capacidades individuais. V - Numa cirurgia com internamento, há legis artis impostas por “guide lines” comummente seguidas na prática médica e hospitalar. A vigilância pós-operatória por médico especialista é fundamental e, por regra, cabe ao anestesiologista o dever de vigiar o restabelecimento da capacidade geral de funcionamento do organismo do paciente, competindo-lhe, também, o controlo efetivo da saída do doente da unidade de cuidados pós-anestésicos. VI - Se depois de intervenção cirúrgica (adenoidectomia e meringotomia), no pós-operatório, entre as 9:45 e as 16:45 a doente criança teve sete vómitos com vestígios de sangue, a persistência dos vómitos não pode ser considerada uma ocorrência normal e exigia que a criança fosse observada por um médico e reavaliado o seu estado clínico. Se assim não aconteceu e a criança acabou por ser transferida para o serviço de pediatria, por ordem do arguido, sem qualquer informação e sem que a situação clínica fosse reavaliada, concluiu-se que o arguido não procedeu com o cuidado devido a que estava obrigado e era capaz. VII - Abandonando o arguido o Centro Hospitalar sem cuidar de garantir que existia um médico responsável pela vigilância da criança nem tratando de comunicar com os médicos que estavam de serviço transmitindo-lhes todas as informações clínicas relevantes sobre a criança, também, deste modo, violou o seu dever de cuidado. VIII - A decisão sobre a existência, ou não, de nexo causal entre uma conduta omissiva do arguido e o resultado morte compete ao tribunal e não aos peritos. IX - Não tendo o juiz conhecimentos técnico-científicos de medicina, as conclusões dos peritos médicos e os pareceres dos Colégios da Especialidade da Ordem dos Médicos são fundamentais para o juízo sobre a violação, ou não, das legis artis pelo médico e na avaliação da existência, ou não, dessa relação de causalidade, mas, na reconstituição histórica dos factos, o tribunal não pode ater-se, exclusivamente, a esses meios, antes se lhe impõe que proceda a uma avaliação complexiva e contextualizada da atuação do agente, levando em consideração a globalidade das circunstâncias e fatores, endógenos e exógenos, e meios disponibilizados para o juízo de prognose póstuma que tem de formular. X - Se o arguido com a sua experiência e saber não tratou de obter elementos necessários para diagnosticar a patologia na paciente a seu cargo e sob a sua vigilância e iniciar, o mais precocemente possível, o seu tratamento, terá de concluir-se que não foi um profissional previdente e por isso terá de ser penalmente responsabilizado pelas consequências da sua conduta negligente.
Texto Integral
Processo n.º 15849/13.6TDPRT.P1
Recurso penal
Relator: Neto de Moura
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto
I – Relatório
No âmbito do processo comum que, sob o n.º 15849/13.6 TDPRT, corre termos pelo Juízo Criminal da Instância Local de Penafiel, Comarca de Porto Este, B…, devidamente identificado nos autos, foi submetido a julgamento, acusado pelo Ministério Público da prática, em autoria material e em concurso real, de um crime de omissão de tratamentos médico-cirúrgicos e um crime de homicídio por negligência, previstos e puníveis, respectivamente, pelos artigos 150.º e 137.º, n.º 2, do Código Penal.
C… e D…, melhor identificados nos autos, requereram e foram admitidos a intervir nos autos como assistentes.
Realizada a audiência, com documentação da prova nela oralmente produzida, foi proferida sentença (fls. 710 e seg.s), datada de 03.05.2018 e depositada na mesma data, que absolveu o arguido da acusação de ambos os crimes que o Ministério Público lhe imputava.
Inconformados, quer o Ministério Público, quer os assistentes interpuseram recurso da sentença absolutória para este Tribunal da Relação, com os fundamentos explanados nas respectivas motivações, que condensaram nas seguintes conclusões (em transcrição integral):
Recurso do Ministério Público
«1 - O tribunal a quo absolveu o arguido B… da prática do crime de omissão de tratamentos médicos e cirúrgicos e de homicídio por negligência, p. (s) e p. (s) respectivamente, pelos artigos 150.º e 137.º, n.º 1 e 2, todos do C. Penal.
2 - Não se conformando com a decisão proferida quanto ao crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º, n.º 1 e 2 do C. Penal, vem o Ministério Público interpor recurso da decisão proferida que se fundamenta tão só na afirmação do nexo de causalidade da conduta omitida pelo arguido e a produção do resultado morte, devendo tal nexo de causalidade ser dado como provado.
4 - Com efeito, entendeu a Mm.ª Juiz a quo ter resultado não provado da prova produzida em audiência de julgamento que se o arguido tivesse procedido como devia e estava obrigado, fazendo uma avaliação clínica da E… antes da sua transferência e enquanto esteve no Recobro II teria prescrito uma medicação e/ou teria pedido uma gasometria, considerando assim não verificado o nexo de causalidade entre o comportamento omissivo e a produção do dano morte.
5 - Entende porém o Ministério Público que o acervo fáctico que resultou provado da audiência de julgamento é suficiente para afirmar o nexo de causalidade na medida em que o comportamento omissivo do arguido potenciou o risco de morte, o que veio efectivamente a suceder.
6 - Na verdade, tendo resultado provado que “o acompanhamento e a vigilância da E… no período pós-operatório imediato, Recobro I e Recobro II eram da responsabilidade do médico anestesista, in casu, o arguido;
7 - Que a persistência dos vómitos, decorridas duas/três horas de período pós-operatório (tendo em conta a cirurgia realizada), impunha que o estado clínico da E… tivesse sido reavaliado, o que cabia in casu ao arguido (anestesista responsável pela cirurgia), o que não aconteceu;
8 - Que, o arguido abandonou as instalações do Centro Hospitalar sem observar e reavaliar a situação clínica da E…; sem cuidar de garantir que existia um médico responsável pela vigilância da E…; sem cuidar de comunicar com os médicos que estavam de serviço transmitindo-lhes todas as informações clínicas relevantes;
9 - E que, o arguido não procedeu com o cuidado que era devido, a que estava obrigado e era capaz, tendo em conta o estado da paciente e a sintomatologia que esta após a cirurgia e no período que estava sob a sua responsabilidade apresentou;
10 - Entende o Ministério Público que é forçoso concluir que a conduta omitida pelo arguido B… podia, com toda a probabilidade evitar o evento.
Com efeito,
11 - A afirmação do nexo de causalidade deve ser feita, in casu, com recurso à denominada "conexão do risco", de acordo com a qual a acção esperada ou devida dever ser uma tal que teria diminuído o risco de produção do resultado, a menos que se comprove (posteriormente ao evento) que a acção omitida em nada teria servido para evitar o evento.
12 - O não cumprimento dos deveres de vigilância e acompanhamento por parte arguido B…, que depois da cirurgia não mais observou a E… abandonando-a á sua sorte, não permitiram que outros sintomas da Hiponatremia, para além dos vómitos e náuseas, pudessem ser detectados ou detectados de forma precoce.
13 - O arguido desvalorizou a persistência dos vómitos, mesmo decorridos mais de duas horas após a cirurgia, e deu indicação que a E… fosse transferida para a Pediatria sem reavaliar o seu estado clínico, sem tentar perceber se a persistência dos vómitos eram sintomas de que algo de errado se passava e sem cuidar de que outro médico o fazia, omitindo a assistência médica a que a E… tinha direito.
14 - A Hiponatremia é frequente em contexto pós-operatório, de instalação rápida nas crianças, em alguns casos assintomática, o que não podia ser nem era ignorado pelo arguido, anestesista há mais de vinte anos.
15 - O Ministério Público não tem dúvidas de que com o seu comportamento o arguido aumentou o perigo de vida e o risco de morte da E…, afirmando-se portanto o nexo de causalidade entre a conduta e o resultado».
Recurso dos assistentes
«A - A sentença de que ora se recorre violou os artigos 130, nº 2, 410.º, n.º 2, a) e c) do C.P.P. e art. 32.°, n.° 2, da CRP.
B - De referir, desde logo, que na literatura médica e como resulta de toda a prova produzida nos autos, a hiponatremia é o distúrbio hidroelectrolítico mais comum em pacientes hospitalares.
C - Tal como concluiu a perícia de anestesiologia, sabendo da alta probabilidade da instalação de hiponatremia numa criança de 4 anos, cabia ao Arguido avaliar a mesma, procedendo ao diagnóstico e ao tratamento mais precoce, o que teria certamente evitado a morte.
D - Na Sentença de que se recorre reduziu-se o tribunal ao facto de não resultar provado o excesso de soro perfundido,
E - Sendo certo que, como resulta da perícia em apreço, cabia ao Arguido a percepção ou atempado conhecimento em conjunto com sinais clínicos.
F - Com a sua conduta omissiva e grosseiramente negligente, atenta a sua retirada do hospital sem sequer informar os seus pares, o Arguido conformou-se com o desfecho verificado, não cuidando de avaliar a menor,
G - Mas, sobretudo, sabendo da vulgaridade do quadro de hiponatremia no contexto pós-operatório (especialmente em crianças de tenra idade) a sua conduta manifestamente criou ou aumentou um risco para a vida da menor.
H - Na verdade, atentos os sucessivos vómitos, tendo a menor já tomado a respectiva medicação, tal como referido pelo perito de anestesiologia, persistindo tal quadro impunha-se uma avaliação médica da menor.
I - Ao não avaliar, o Arguido criou e aumentou claramente o risco da morte da menor.
J - Apesar de referir a Sentença que não ignorou o que nos diz a teoria da conexão do risco, na verdade olvidou em absoluto tal teoria.
L - A gaseometria trata-se de um acto médico (como ficou expresso pelos vários depoimentos prestados), apenas estando presente junto da menor poderia o Arguido prescrever tal exame e assim evitar o desfecho verificado.
M - Estivera o Arguido presente e teria diminuído ou extinguido qualquer risco para a vida da menor.
N - Pelo que, contrariamente ao raciocínio plasmado na sentença, a ausência do Arguido veio claramente aumentar o risco da produção do resultado morte.
O - Houvera a Meritíssima Juiz a quo considerado efectivamente a teoria da conexão do risco nos crimes praticados por omissão e redundaria tal interpretação da doutrina e do tipo legal de crime em apreço na condenação do Arguido.
P - Pelo que deveria ser considerado como provado que a reavaliação clínica da menor diminuiria o risco da produção do evento.
Q - Assim, e em consequência, se condenando o Arguido pela prática do crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos artigos 137º, nº 1 e 2, 13º e 15º, todos do C.P.».
*
Admitidos os recursos (despacho a fls. 760) e notificado o arguido, veio este responder à motivação de ambos, rematando com o seguinte quadro conclusivo:
«1. Considerando o teor dos recursos interpostos, verifica-se que o âmbito do presente recurso circunscreve-se ao crime de homicídio por negligência.
2. Entre os factos provados, saliente-se que a E… foi transferida para o Serviço de Pediatria, estando acordada, colaborante e sem dores, sendo que, imprevisivelmente, cerca de meia hora depois iniciou convulsões generalizadas.
3. Sendo que não se provou que: i) "A observação e a reavaliação clinica da E… pelo arguido, no período do pós-operatório, e perante a sintomatologia que apresentou teria permitido a perceção e o atempado conhecimento do excesso de volume de soro profundido, teria permitido um diagnóstico e tratamento mais precoce e teria evitado o resultado morte"; ii) "O arguido representou como possível que ao agir como descrito daí poderia advir a morte da E…, atuando, porém, sem se conformar com essa realização.
4. Ou seja, como refere a sentença recorrida, não resultou provado que a observação e reavaliação clínica da E… pelo arguido, antes da sua transferência para pediatria, teria permitido um diagnóstico e um tratamento mais precoce que teria evitado o resultado morte; inclusivamente, como referiu em audiência a médica pediatra que assistiu a menina, Dra. F…, a hiponatremia nas crianças instala-se de forma muito rápida e normalmente é, até assintomática, não se sabendo se com a realização da gasometria em momento anterior se teria diagnosticado essa patologia, por os valores poderem estar normais.
5. Aliás, conclui-se de toda a prova dos autos (testemunhas e relatórios), sem margem para dúvidas, que: i) O resultado produzir-se-ia independentemente da alegada comissão do arguido; ii) Não existe nexo causal entre o dever alegadamente violado pelo arguido e o resultado que se veio a verificar.
6. Em face disto, não poderia haver outro enquadramento jurídico diferente do que consta da sentença recorrida.
7. Concretamente, porque não resultou provado que, ao não proceder à reavaliação clinica da vítima não diminuiu o risco da produção do evento (inexistência do nexo de causalidade entre o comportamento omissivo e violador de um dever objetivo de cuidado do arguido e a produção do dano morte), vai o arguido absolvido do crime de homicídio por negligencia, previsto e punido pelo artigo 137°, n°1 e 2 do Código Penal por que vinha acusado.
8. Não estão, pois, preenchidos os pressupostos necessários para condenar o arguido pelo crime de homicídio por negligência (muito menos grosseira) de que vem acusado.
9. Pelo que a douta sentença ao absolver o arguido cumpriu a Lei e o Direito e, assim, decidiu bem».
*
Subiram os autos ao tribunal de recurso e, já nesta instância, na intervenção a que alude o n.º 1 do art.º 416.º do Cód. Proc. Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, de que destacamos as seguintes passagens:
«Haverá responsabilidade penal do arguido, por negligência, se se provar, por um lado, que ele não atuou com a diligência que, segundo as circunstâncias concretas, era exigida para evitar o evento, violando deveres decorrentes da lei ou do uso e experiência comum, e, por outro, que só o facto de o arguido ter omitido esses deveres impediu a justa previsão do resultado, previsibilidade e dever de previsão, que, como refere Eduardo Correia, in Direito Criminal, I, pg. 426, “…não são todavia uma previsibilidade absoluta mas uma previsibilidade determinada de acordo com as regras da experiência dos homens, ou de certo tipo profissional de homem”.
Há, portanto, possibilidade de negligência se se considerar que o arguido, tendo tido, pelo menos, a possibilidade de representar o perigo da sua conduta (negligência inconsciente), violou os deveres de previsão do resultado típico, atuando sem as cautelas que a lei, a experiência comum ou a experiência da classe profissional em que está inserido lhe exigem e cuja observância evitaria aquele resultado.
Atentemos na cronologia dos factos ocorridos no dia 16/11/2013:
(…)
Parece-nos claro, face à descrita factualidade, que o arguido errou ao não observar presencialmente a E… e a evolução do seu quadro clínico, violando os deveres a que estava adstrito em função da profissão que exercia e das tarefas que, em concreto, lhe competiam, no que se refere à observação e vigilância do estado de saúde da E… no “pós-operatório” imediato.
(…)
Dito isto, salvo o devido respeito, não nos parece admissível afastar a responsabilidade penal do arguido – sem incorrer em manifesto erro de apreciação da prova – afirmando que, tendo embora errado por não ter observado presencialmente a E… e a evolução do seu estado clínico, não se pode, no entanto, dar como assente que, caso tivesse ocorrido essa observação presencial, o arguido teria determinado a realização dos exames que permitiriam um diagnóstico precoce e a realização dos tratamentos adequados a evitar o desfecho fatal. A verdade é que – como revela a matéria provada e resulta das regras da experiência – perante a persistência dos sintomas, a evolução do quadro clínico e a tenra idade da E…, um médico anestesista experiente (como era o arguido) e normalmente diligente, teria determinado a realização de exames tendentes a averiguar as causas da anormalidade da evolução do quadro clínico apresentado pela E… e a permitir, como é lógico e normal, o diagnóstico e o tratamento mais precoce da hiponatremia, susceptível de evitar a morte.
Não tendo procedido dessa forma – e não se tendo sequer disposto a observar presencialmente a E…, apesar da persistência dos sintomas para além do tempo considerado normal e da evolução do quadro clínico, atuando com ligeireza – o arguido, médico experiente, podendo e devendo representar o perigo da sua conduta, violou o dever de cuidado a que sabia estar obrigado, ao deixar de providenciar pela realização dos exames clínicos e atos médicos que a situação impunha e assim desprezando, necessariamente, o significativo (não desprezível) e acrescido grau de probabilidade de sobrevivência da E… que aquela intervenção teria proporcionado.
Procedendo como procedeu, o arguido, voluntária, livre e conscientemente, deixou de poder controlar a situação, ficando a integridade do bem jurídico em causa (a vida humana) dependente do acaso, o que, na nossa perspectiva, o torna passível de censura penal, a título de negligência.
É, pois, patente, na nossa ótica, face ao texto da sentença e às regras da experiência, que o tribunal a quo errou na apreciação da prova, e incorreu no vício previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 410º do C.P. Penal, impondo-se que sejam dados como provados os seguintes factos:
- A observação e a reavaliação clínica da E… pelo arguido, no período do pós-operatório, e perante a sintomatologia que apresentou, teria permitido a percepção e o atempado conhecimento do excesso de soro profundido, teria permitido um diagnóstico e tratamento mais precoce e teria evitado o resultado morte [ponto 6 dos factos não provados].
- O arguido podia e devia ter representado o perigo da sua conduta para a vida da E… e atuado por forma a evitar o resultado verificado, o que só não logrou por ter agido sem as cautelas que as legis artis e a experiência da classe profissional em que estava inserido lhe exigiam e a sua própria experiência profissional lhe permitia.
- Sabia que a sua conduta é proibida e punida por lei penal [ponto 8 dos factos não provados].
Assim e uma vez que o tribunal de recurso dispõe, para tal, de todos os elementos necessários, entendemos que, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 426º, n.º 1, do C.P. Penal, deve, neste âmbito, proceder à pertinente alteração da decisão sobre matéria de facto, determinando que passem a constar do elenco dos factos provados os factos que vimos de referir».
Conclui, então, o Ex.mo PGA no seu parecer que o recurso deve proceder e, em consequência, que seja
a) declarado verificado o vício a que alude a alínea c) do n.º 2 do artigo 410º do C.P. Penal – erro notório na apreciação da prova e, consequentemente,
b) alterada a decisão sobre a matéria de facto, como acima propugnado, e
c) revogada a sentença absolutória, seja o arguido B… condenado pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos artigos 137.º, n.º 1, e 15.º, al. b), do C.Penal.
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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, com resposta do arguido a rebater as conclusões do parecer do Ex.mo PGA quanto à existência, na sentença recorrida, do vício de erro notório na apreciação da prova e que, por isso, se impõe a alteração da decisão sobre matéria de facto.
*
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
II – Fundamentação
São as conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 412.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010, in www.dgsi.pt) e, portanto, delimitam o objecto do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso, sem prejuízo das questões que são de conhecimento oficioso (como são as nulidades da sentença e os vícios decisórios em matéria de facto).
O Ministério Público recorrente não impugna a decisão sobre matéria de facto, pois afirma que “o acervo fáctico dado como provado é suficiente para afirmar o nexo de causalidade entre o comportamento omissivo do arguido e o resultado morte”.
Parece, assim, que a sua discordância em relação à decisão recorrida se cinge à subsunção jurídico-penal dos factos considerados provados.
No entanto, os assistentes alegam que a sentença recorrida está afectada pelos vícios da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e pelo erro notório na apreciação da prova.
Erro notório na apreciação da prova é, como já sabemos, o vício decisório que, também o Ex.mo PGA, no seu parecer, aponta à sentença em crise.
Podemos, pois, enunciar como questões a apreciar e decidir:
- se há vícios decisórios que inquinem a sentença recorrida;
- se, mesmo em face da factualidade provada, é possível afirmar o nexo de causalidade (ou nexo de adequação causal) entre uma eventual conduta omissiva do arguido e a morte da E….
*
Delimitado o thema decidendum, atentemos na factualidade considerada provada e não provada.
Factos provados
1. O arguido B… é licenciado em Medicina desde … de 1984, exerce a especialidade de Anestesista desde 1993.
2. À data da ocorrência dos factos que se descreverão, o arguido exercia funções de Assistente Graduado Sénior de Anestesiologia no Centro Hospitalar G…, sita …, n.º …, …, área desta comarca e era também Coordenador da Unidade de Cirurgia do Ambulatório daquele Centro Hospitalar.
3. A menor E…, nascida a .. Maio de 2009, filha de D… e de C…, desde 2012 era acompanhada no Centro Hospitalar G…, na consulta externa de Otorrinolaringologia pela médica I….
4. Com diagnóstico de adenóides, a menor foi indicada para realização de cirurgia adicional em ambulatório, designadamente de adenoidectomia e miringotomia, tendo sido realizada uma consulta pré-anestésica em 13 de Setembro de 2013 efetuada pela médica J…, Assistente de Anestesiologia, que constatou que a criança não tinha antecedentes patológicos relevantes, com exceção das adenóides.
5. No dia 16 de Novembro de 2013, cerca das 08H40M, no Centro Hospitalar G…, a equipa médica composta por K…, Médica Assistente de Otorrinolaringologia, I…, Médica Assistente Graduada de Otorrinolaringologia, e B…, Assistente Graduado sénior de Anestesiologia aqui arguido, foi responsável pela intervenção cirúrgica realizada à menor E….
6. Compunham ainda a equipa três enfermeiros, enfermeiro instrumentista L…, enfermeiro circulante M… e enfermeira de anestesia N….
7. A cirurgia iniciou-se às 08H40M e terminou às 09H05M, decorreu sem intercorrências tendo sido da responsabilidade da médica, K….
8. Após a cirurgia a E… foi levada para a sala de Recobro I, onde se queixou de dores de garganta cerca de 10 minutos após a cirurgia tendo o arguido prescrito 1 mg de morfina.
9. A E… manteve-se no Recobro I até cerca das 09H45M, altura em que passou para a sala de Recobro II, por se encontrar hemodinamicamente e em termos de função respiratória estável, aí permanecendo acompanhada pela mãe, C….
10. De acordo com a "Folha de Enfermagem", entre as 9H45M e as 16H 15M, altura em que a E… foi transferida para o Serviço de Pediatria, foram registados pelo menos 7 (sete) vómitos por parte da E… sem que esta fosse observada por um médico e fosse reavaliado o seu estado clínico.
11. Entre as 9H45M e as 11H50M, a E… teve três vómitos com sangue semi-digerido e, contactado o arguido, este deu instruções para que lhe fosse administrado 1 mg de Ondasetron e 0,625 mg de Droperidol IV.
12. A E… adormeceu por período não determinado e cerca das 13H40M, acordou e teve mais dois vómitos alimentares com vestígios de sangue após ter ingerido uma pequena quantidade de gelatina e sumo.
13. Cerca das 14H, posto ao corrente do sucedido, o arguido determinou que lhe fosse administrado 2,5 mg de Dexametasona e que reiniciasse soroterapia.
14. Às 15H20M a E… teve um outro vómito desta feita com secreções e vestígios de sangue e às 16H05M, voltou a ter outro vómito aquoso e com vestígios de sangue, pelo que a enfermeira N… considerando que a mesma não poderia ter alta entrou em contacto, via telefone, com o arguido, que após contacto com o Assistente Hospitalar de Otorrinolaringologia, Dr. O…, determinou que a E… não teria alta e ficaria em vigilância no serviço de internamento de Pediatria.
15. A hora não determinada mas cerca das 16H30M, a E… foi transferida para o Serviço de Pediatria onde se encontravam as enfermeiras P… e Q…, estando acordada, colaborante e sem dores.
16. Cerca das 17H, a E… referiu dores e passado alguns minutos encontrava-se com olhar fixo e diminuição de resposta a estímulos verbais tendo iniciado convulsões generalizadas.
17. Contactado o serviço de urgência de pediatria do G… a médica pediatra, D… efetuou a primeira observação da E… por voltas das 18H, efectuando uma avaliação conjunta com o médico S….
18. Face à ausência de registos clínicos que permitissem perceber se tinha existido alguma intercorrência durante a cirúrgica bem como a medicação que a E… até ao momento tinha feito, os clínicos tentaram falar com o arguido, contactando-o telefonicamente, sem sucesso, acabando tal informação por lhes ser transmitida pela enfermeira N….
19. Face ao quadro clínico que E… apresentava designadamente, oscilação do estado de consciência e movimentos anómalos dos membros, a médica F…, determinou a realização de TAC e Gasimetria, tendo concluído através da análise dos resultados obtidos, designadamente pelos valores de sódio no sangue, que se tratava de uma Hiponatremia grave (caracterizada por uma baixa de sódio no sangue).
20. Face ao tal diagnóstico a E… iniciou o tratamento para a Hiponatremia, foi sedada, entubada e transferida via TIP (transporte interhospitalar pediátrico) para a unidade de cuidados intensivos pediátricos do Hospital T…, onde deu entrada cerca das 23H09M, com o seguinte diagnóstico "Coma. Edema Cerebral. Hiponatremia sintomática" e suspeita de "morte cerebral".
21. O óbito da E… veio a ser declarado no dia 19 de Novembro de 2013, às 02H13M.
22. Realizada autópsia médico-legal ao cadáver de E…, o perito médico-legal concluiu que a morte foi devida a "trombose dos seios venosos da dura mater" sendo esta causa de morte natural.
23. O acompanhamento e vigilância do doente no período pós-operatório imediato, no Recobro I e Recobro II, está essencialmente sob responsabilidade do médico anestesista.
24.E, pese embora, o surgimento de vómitos seja um evento normal, com cerca de duas/três horas de período pós-operatório (tendo em conta a cirurgia a que havia sido submetida e morfina que lhe foi prescrita), a persistência destes sintomas impunha que o estado clínico da E… tivesse sido reavaliado, o que cabia in casu ao arguido, anestesista responsável pela cirurgia, o que não aconteceu.
25. Ao invés, o arguido abandonou as instalações do Centro Hospitalar sem observar e reavaliar a situação clínica da E…, comunicando, via telefone, a decisão de não dar alta e transferi-la para a Pediatria aos enfermeiros.
26. O arguido não cuidou de garantir que existia um médico responsável pela vigilância da E…, nem cuidou de comunicar com os médicos que estavam de serviço transmitindo-lhes todas as informações clínicas relevantes da criança.
27. A E… foi acometida de uma Hiponatremia grave (caracterizada por uma baixa de sódio no sangue).
28. Esta foi causa do edema cerebral e dos sintomas neurológicos apresentados, ou seja, oscilação do estado de consciência e movimentos anómalos dos membros inferiores e superiores e foi causa adequada e necessária da sua morte.
29. As manifestações associadas à Hiponatremia, relacionam-se predominantemente com a disfunção do sistema nervoso central. A desidratação hiponatrémica severa, de instalação em poucas horas, provoca a nível celular, uma transferência de água do líquido extracelular para o espaço intracelular provocando edema das células cerebrais, com aumento do volume cerebral e o aparecimento da sintomatologia manifestada pela E…, sendo as crianças particularmente vulneráveis a esta encefalopatia hiponatrémica, apresentando sintomas com concentrações plasmáticas de sódio relativamente superiores em relação aos adultos, pois a relação cérebro/cavidade craniana é superior, ocasionando um conflito de espaço mais precocemente.
30. Esta situação aliada a eventuais momentos de hipoxia cerebral (diminuição de concentração de oxigénio), certamente verificada durante as convulsões, e nos procedimentos de entubação endo-traqueal, é compatível com os resultados verificados na autópsia e com a causa de morte"lesões sugestivas de trombose dos seios venosos".
31. Ao agir da forma descrita o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, não procedendo com o cuidado devido, a que estava obrigado e era capaz, tendo em conta o estado da paciente e a sintomatologia que esta após a cirurgia e no período que estava sob a sua responsabilidade apresentou.
32. O arguido não tem antecedentes criminais.
33. B… reside em habitação própria dotada de boas condições de habitabilidade, inserida em meio sem problemáticas sociais dignas de registo, com o seu agregado familiar, composto pelo cônjuge e dois filhos do casal, de 24 e 21 anos, num ambiente familiar securizante e gratificante.
34. Assegura cuidados à sua progenitora idosa, que integra o seu agregado familiar durante períodos de tempo, responsabilidade esta alternada e partilhada com o irmão.
35. Trabalha como médico – especialista em anestesia – em exclusivo no Centro Hospitalar G…, EP., prestando ainda serviço em horário extra, na urgência desse mesmo hospital. O cônjuge é doméstica, o filho mais velho encontra-se em estágio profissional na área da engenharia mecânica e o filho mais novo frequenta o terceiro ano do ensino superior.
36. Aufere rendimento médio mensal cerca de 4.000,00€.Não refere despesa habitacional e despende com eletricidade, água e gás cerca de 250€, referindo-se à sua situação económica como acima da média.
37. Apresenta um quotidiano preenchido em função das rotinas laborais. Nos tempos livres mantém-se maioritariamente em casa, privilegiando o convívio familiar nuclear e alargado. Afirma ainda, no tempo livre, investimento na sua formação clínica especializada, para evolução pessoal e profissional. Frequenta on-line, atualmente, um curso na área de gestão que também o ocupa.
38. No meio sociocomunitário projeta uma imagem favorável, sendo referenciado positivamente também no contexto profissional e associado a um estilo de vida pró-social. No que concerne ao relacionamento interpessoal é avaliado como respeitador, cordial e de fácil trato.
39. O cônjuge do arguido e comunidade do meio social e profissional, revelam que o arguido manteve desde sempre um estilo de vida pautado pela estabilidade. Profissionalmente é avaliado pelos seus superiores hierárquicos como um elemento muito responsável e inteiramente dedicado às funções que desempenha.
40. À data dos factos subjacentes aos presentes autos B… mantinha a situação sociofamiliar e laboral supra descrita.
41. Este é o primeiro contacto do arguido com o sistema de justiça penal, considerando que o seu envolvimento no presente processo, decorre diretamente das suas regulares vivências profissionais.
42. O arguido verbalizou constrangimento pela eventual mediatização da natureza dos factos subjacentes ao presente processo, por considerar que tal poderá prejudicar a imagem positiva que acredita projetar social e profissionalmente.
43. Face ao bem jurídico em causa, subjacente ao presente processo, aceita a sua tutela jurídica, apresentando elevado raciocínio crítico e de valorização suprema da vida humana, reportando-se neste contexto ao Juramento de Hipócrates efetuado por ocasião de sua formatura como médico.
44. Consequentemente, em abstrato e em relação a factos de idêntica natureza, reconhece a sua ilicitude, bem como a existência de vítimas e danos.
45.Manifesta atitude tradutora de colaboração para com o sistema de justiça penal numa eventual condenação.
Factos não provados
1. As enfermeiras N… e U… eram as únicas enfermeiras responsáveis pelo acompanhamento das crianças que naquele dia foram submetidas a intervenção cirúrgica, num total de 14 (catorze).
2. A E… foi transferida para pediatria por ver agravado o seu estado de saúde.
3. No que respeita aos factos vertidos em 13 dos factos provados o arguido foi contactado via telefone uma vez que havia já abandonado as instalações do CH G….
4. A soroterapia mencionada em 13 dos factos provados era: 1500 ml de soro Glicose a 5% e NACL a 3%.
5. A Hiponatremia grave que acometeu a E… teve origem numa perfusão inapropriada de soro tendo em conta a sua idade e o seu peso (cerca de 1000 ml de soro em poucas horas).
6. A observação e a reavaliação clínica da E… pelo arguido, no período do pós-operatório, e perante a sintomatologia que apresentou teria permitido a perceção e o atempado conhecimento do excesso de volume de soro profundido, teria permitido um diagnóstico e tratamento mais precoce e teria evitado o resultado morte.
7. O arguido representou como possível que ao agir como descrito daí poderia advir a morte da E…, atuando, porém, sem se conformar com essa realização.
8. Sabia que a sua conduta é proibida e punida por lei penal.
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Os vícios do n.º 2 do art. 410.º do Código de Processo Penal são de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei, ou, como é afirmação recorrente, são “anomalias decisórias” ao nível da elaboração da sentença, circunscritas à matéria de facto, apreensíveis pela simples leitura do respectivo texto, sem recurso a quaisquer elementos externos a ela, impeditivos de bem se decidir, tanto ao nível da matéria de facto, como de direito.
Tais vícios não se confundem com errada apreciação e valoração das provas. Embora em ambas as situações se esteja no domínio da sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências.
Aqueles (vícios decisórios) examinam-se, indagam-se, através da análise do texto da sentença; esta (a errada apreciação e valoração das provas), porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, verifica-se em momento anterior à elaboração do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas, do que resulta a formulação de um juízo que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do vício não se estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto (cfr. acórdão do STJ, de 15.09.2010, www.dgsi.pt/jstj; Cons. Fernando Fróis).
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova são vícios da sentença cuja verificação dá lugar ao reenvio do processo para novo julgamento nos termos do art.º 426.º, n.º 1, podendo, no entanto, ser supridos no tribunal de recurso nas seguintes situações:
- se requerida a renovação da prova e havendo razões para crer que ela permitirá evitar o reenvio (artigos 430.º, n.º 1, e 431.º, do Cód. Proc. Penal);
- se o processo fornecer os elementos de prova que possibilitem/imponham a modificação da decisão de facto (artigo 431.º, al. a), do CPP).
É a segunda hipótese desta alternativa que teremos de considerar.
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Verifica-se o vício da contradição insanável da fundamentação quando, através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou na própria motivação probatória da decisão sobre matéria de facto.
Como se esclarece no acórdão do STJ, de 19.11.2008 (Proc. n.º 3453/08-3.ª), “a contradição insanável da fundamentação, ou entre esta e a decisão, supõe que no texto da decisão, e sobre a mesma questão, constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluem mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspectiva de lógica interna da decisão…”.
A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão ocorrerá quando, também através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável i) entre os meios de prova invocados na fundamentação como base dos factos provados ou ii) entre a fundamentação e o dispositivo da decisão.
Dizendo de outro modo, haverá contradição insanável entre a fundamentação e a decisão quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica(va) decisão oposta, ou não justificava a decisão. Ou seja, “a fundamentação pode apontar para uma dada decisão e a decisão recorrida nada ter a ver com a fundamentação apresentada” (Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, 2.ª edição, 2000, pág. 339).
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Estaremos perante um erro notório na apreciação da prova quando um “juiz normal” (nas palavras de Castanheira Neves[1], um juiz com a cultura e experiência de vida e dos homens, que deve pressupor-se num juiz chamado a apreciar a actividade e os resultados de um processo probatório), perante o texto da decisão, por si só ou conjugado com as regras da experiência, facilmente se dá conta que ela (decisão) se baseia em juízos ilógicos, arbitrários ou até contraditórios, ou foram desrespeitadas as regras de valoração da prova ou da leges artis de julgar.
Há erro notório “... quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida” (acórdão do STJ, de 04.10.2001, CJ/Ac STJ, IX, T. III, 182)[2].
Numa formulação de síntese, pode dizer-se que o “erro notório na apreciação da prova” é uma deficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação do homem médio.
Quando se apela ao homem médio, pretende-se aludir ao cidadão medianamente informado, com capacidade de discernimento e dotado de bom senso e não a alguém com conhecimentos jurídicos.
Como se afirmou no acórdão do STJ de 02.02.2011, “o erro notório na apreciação da prova (…) verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum”.
A observação e verificação do homem médio constituem o modelo referencial tribunal (acórdão do STJ, de 06.10.2010; Cons. Henriques Gaspar).
Mas, como faz notar o Ex.mo PGA no seu parecer, há que entender esta referência ao homem medianamente informado e sensato em termos hábeis, ou melhor, não se deve ser exigente ao ponto de deixar que “situações de julgamento erróneo não inteiramente escancaradas à observação do homem comum” fiquem sem correcção. Erro notório, sim, mas “basta para assegurar essa notoriedade que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada – ainda que para além das percepções do homem comum – e sopesado à luz de regras da experiência. Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que a sua existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem”[3].
Na perspectiva dos assistentes, a contradição insanável entre a fundamentação e a decisão (absolutória) proferida revelar-se-ia no facto de se ter considerado que “a realização de uma gaseometria mais cedo podia diminuir o risco da produção do resultado morte”.
Se bem entendemos o raciocínio dos assistentes/recorrentes, face a essa circunstância, lógico e normal seria que se imputasse o resultado (morte da criança) à conduta omissiva do arguido, ao contrário do que foi a decisão do tribunal.
Quanto ao erro notório na apreciação da prova, não se lobriga na motivação do recurso dos assistentes a concretização desse vício, onde é que, no texto da decisão, se revelam, na perspectiva dos recorrentes, distorções de ordem lógica ou apreciações manifestamente ilógicas ou arbitrárias.
Já o Exmo. PGA é, a este propósito, bem claro no seu parecer: a notoriedade do erro de apreciação está em que, tendo-se concluído que o arguido errou ao não ter observado presencialmente a E… e reavaliado o seu estado clínico, ainda assim, não se deu como assente que, caso tivesse ocorrido essa observação presencial, o arguido teria determinado a realização dos exames que permitiriam um diagnóstico precoce e a realização dos tratamentos adequados a evitar o desfecho fatal para a criança.
Bem vistas as coisas, aquilo que os assistentes classificam como contradição insanável entre a fundamentação e a decisão é visto pelo Exmo. PGA como erro notório na apreciação da prova.
Vejamos.
É matéria de facto considerada assente e não suscita controvérsia que:
- a morte da E… foi devida a "trombose dos seios venosos da dura mater";
- a E… foi acometida de uma hiponatremia grave (caracterizada por uma baixa de sódio no sangue), que originou edema cerebral, causa adequada e necessária da sua morte;
- as manifestações associadas à hiponatremia relacionam-se predominantemente com a disfunção do sistema nervoso central. A desidratação hiponatrémica severa, de instalação em poucas horas, provoca, a nível celular, uma transferência de água do líquido extracelular para o espaço intracelular provocando edema das células cerebrais, com aumento do volume cerebral e o aparecimento da sintomatologia manifestada pela E…, sendo as crianças particularmente vulneráveis a esta encefalopatia hiponatrémica;
- o acompanhamento e vigilância do doente no período pós-operatório imediato, no Recobro I e Recobro II, é da responsabilidade do médico anestesista, no caso, o arguido;
- entre as 09:45 (hora a que a E… passou do Recobro I para o Recobro II) e as 16:15, foram registados, pelo menos, 7 (sete) vómitos por parte da E…, sem que esta fosse observada por um médico e reavaliado o seu estado clínico;
- entre as 09:45 e as 11:50, a E… teve três vómitos com sangue semi-digerido e, contactado o arguido, este deu instruções para que lhe fosse administrado 1 mg de ondasetron e 0,625 mg de Droperidol IV;
- cerca das 13:40, a E… teve mais dois vómitos alimentares com vestígios de sangue;
- cerca das 14:00 horas, posto ao corrente, via telefone, do sucedido, o arguido determinou que fosse administrado à E… 2,5 mg de dexametasona e que reiniciasse soroterapia;
- às 15:20, a E… teve um outro vómito, desta feita, com secreções e vestígios de sangue e, pelas 16H05M, novo vómito aquoso e com vestígios de sangue, pelo que a enfermeira N…, considerando que ela não poderia ter alta, entrou em contacto, via telefone, com o arguido, que após contacto com o assistente hospitalar de Otorrinolaringologia, Dr. O…, determinou que a E… não teria alta e ficaria em vigilância no serviço de internamento de Pediatria;
- cerca das 16:30, a E… foi transferida para o Serviço de Pediatria;
- cerca das 17:00, a E… estava com olhar fixo, revelava diminuição de resposta a estímulos verbais e iniciou convulsões generalizadas;
- contactado o serviço de urgência de pediatria do G…, a médica pediatra, Dra. F…, efetuou a primeira observação da E… por voltas das 18H, fazendo uma avaliação conjunta com o médico Dr. S…;
- face à ausência de registos clínicos que permitissem perceber se tinha existido alguma intercorrência durante a cirurgia, bem como da medicação que a E… até ao momento tinha feito, aqueles clínicos tentaram falar, por contacto telefónico, com o arguido, mas sem sucesso, acabando por obter essa informação da enfermeira N…;
- face ao quadro clínico que a E… apresentava, designadamente oscilação do estado de consciência e movimentos anómalos dos membros, a médica F…, determinou a realização de TAC e gasometria, tendo concluído, através da análise dos resultados obtidos, designadamente pelos valores de sódio no sangue, que se tratava de uma hiponatremia grave;
- face a tal diagnóstico, iniciou-se o tratamento para a hiponatremia, a E… foi sedada, entubada e transferida para a unidade de cuidados intensivos pediátricos do Hospital T…, onde deu entrada cerca das 23:09 do dia 18.11.2013, com o seguinte diagnóstico: "Coma. Edema Cerebral. Hiponatremia sintomática" e suspeita de "morte cerebral";
- o óbito da E… veio a ser declarado no dia 19 de Novembro de 2013, às 02:13.
Como julgamos ser de primeira evidência, eram duas as questões de facto fundamentais a que tribunal de primeira instância tinha que responder: - se, em face dos sintomas revelados pela E… no período pós-operatório (persistência dos vómitos com vestígios de sangue, apesar da medicação prescrita), que eram do conhecimento do arguido, se impunha a observação presencial da paciente pelo médico responsável (o arguido) e a reavaliação do seu estado clínico; - se essa vigilância e controlo por médico especialista da equipa que levou a cabo a intervenção cirúrgica, designadamente pelo anestesista, teria permitido diagnosticar e iniciar o tratamento precoce da hiponatremia e, com razoável probabilidade, evitar o resultado (morte da E…), ou seja, se é possível estabelecer um laço causal entre a conduta omissiva do arguido e o resultado morte.
À primeira questão, respondeu o tribunal de primeira instância afirmativamente.
Com efeito, o tribunal apurou, ainda, que:
- é normal que, nas primeiras duas/três horas do período pós-operatório, tendo em conta a natureza da cirurgia e o facto de ter sido administrada morfina à paciente, ocorram vómitos;
- no entanto, a persistência desses sintomas impunha que o estado clínico da E… tivesse sido reavaliado, tarefa que era da responsabilidade do arguido, anestesista responsável pela cirurgia, o que não aconteceu;
- o arguido abandonou as instalações do Centro Hospitalar sem observar e reavaliar a situação clínica da E…, limitando-se a comunicar aos enfermeiros, por telefone, a decisão de não dar alta e de transferi-la para o Serviço de Pediatria;
- além disso, o arguido não cuidou de garantir que existia um médico responsável pela vigilância da E…, nem cuidou de comunicar com os médicos que estavam de serviço transmitindo-lhes todas as informações clínicas relevantes da criança;
À segunda questão, o tribunal respondeu negativamente, pois considerou não provado que:
- a observação e a reavaliação clínica da E… pelo arguido, no período do pós-operatório, e perante a sintomatologia que apresentou teria permitido a perceção e o atempado conhecimento do excesso de volume de soro perfundido, teria permitido um diagnóstico e tratamento mais precoce e teria evitado o resultado morte.
Esta resposta foi assim justificada pelo tribunal a quo:
«Cumpre, então, verificar se resultou provado que a observação e reavaliação clínica da E… pelo arguido, antes da sua transferência para pediatria, teria permitido um diagnóstico e um tratamento mais precoce que teria evitado o resultado morte. E a resposta é que estes factos não resultaram provados.
Desde logo, dos relatórios periciais juntos aos autos, dos esclarecimentos prestados pelos peritos em audiência, e dos depoimentos dos vários médicos anestesistas ouvidos em toda a audiência de julgamento, resulta que a hiponetremia tem várias causas e diferentes sintomas. Sendo verdade que as náuseas e vómitos são um dos sintomas dessa patologia (como o são de muitas outras), a verdade é que sem estarem associados a outros sintomas de disfunção do sistema nervoso central (como sonolência, irritação, prostração, apatia) não estamos perante um quadro que faça suspeitar de uma hiponatremia. Isto foi referido pelos médicos anestesistas V…, W… (que elaborou o parecer junto ao processo no apenso da inspeção elaborada pelo IGS e que referiu que até a menina ter convulsões nada fazia suspeitar de algo mais grave) e X… (relator do parecer da especialidade junta aos autos que claramente mencionou que se o único sintoma for náuseas e vómitos não se suspeita de hiponatremia).
Ora, não resultou provado que a E… tivesse tido algum sintoma além de náuseas e vómitos antes do momento em que estava em pediatria e ficou com o olhar parado (sintoma este neurológico) e pouco depois entrou em convulsões (também sintoma neurológico). De facto, nem a mãe da E… mencionou qualquer outro sintoma além de náuseas e vómitos, nem a enfermeira N… os mencionou na ficha de enfermagem ou em audiência, constando dos registos, pelo contrário, que a menina, na altura que foi para a pediatria, estava acordada e colaborante o que foi confirmado pela enfermeira N… que disse que, com exceção dos vómitos, a menina estava normal.
Face a este quadro, concluímos que não resulta provado que se o arguido tivesse procedido como devia e estava obrigado, fazendo uma avaliação clinica da E… antes da sua transferência e enquanto esteve no recobro II, teria prescrito outra medicação (que todos os médicos anestesistas e peritos referiram ser a correta para os sintomas apresentados) e/ou teria pedido uma gaseometria.
Face aos sintomas apresentados pela E… não podemos considerar estes factos provados.
Do parecer do colégio de anestesiologia e respetivo aditamento (fls. 273 e seguintes e 360 e seguintes) consta que a existência de vómitos (mesmo com vestígios de sangue) no período pós-operatório é normal e que os fármacos prescritos foram os adequados. A decisão de protelar a alta foi adequada e a decisão de transferência para pediatria foi tomada em função da organização interna do Hospital e dos recursos humanos disponíveis, mas que não era suficiente face à adinamia e prostração. Porém, estes sintomas não se verificavam na E…, apenas os vómitos. Conclui referindo que a perceção ou atempado conhecimento de um eventual excesso do soro profundido, em conjunto com sinais clínicos, podia ter permitido um diagnóstico e tratamento mais precoce, que poderia evitar o resultado morte. Sucede, porém, que não resultou provado que houve excesso de soro profundido, pelo que, tal não poderia ser detetado.
A médica pediatra que assistiu a menina, D…, chegou a referir em audiência que a hiponatremia nas crianças instala-se de forma muito rápida e normalmente é, até assintomática, não se sabendo se com a realização da gaseometria em momento anterior se teria diagnosticado essa patologia, por os valores poderem estar normais.
O tribunal ao considerar estes factos não provados não ignorou o que nos diz a teoria da conexão do risco nos crimes praticados por omissão (que mais à frente se explanará). Porém, se podemos afirmar que a realização de uma gaseometria mais cedo podia diminuir o risco da produção do resultado morte (sem certezas), a verdade é que resultou que, face aos sintomas da E…, a observação e avaliação clinica da mesma pelo arguido não faria com que aquela análise fosse requisitada (conforme supra se referiu)».
E, mais adiante, em sede de fundamentação jurídica, discorreu-se assim:
«…no que ao comportamento omissivo do arguido diz respeito, importa deixar claro que o mesmo foi violador das legis artis, sendo claro que deveria ter procedido a uma reavaliação clinica da E… antes de determinar o seu internamento/transferência para pediatria. O facto de não ter ido ver a menina ou explicado presencialmente aos pais o que se estava a passar, tendo abandonado as instalações do hospital, além de violar as legis artis, é um comportamento ética e socialmente reprovável. Porém, não resultou provado o nexo de causalidade entre este comportamento omissivo e o resultado morte, uma vez que, face à sintomatologia apresentada pela E…, a avaliação pelo médico não o iria determinar a realização do exame que poderia (sem certezas) permitir um diagnósticomais precoce e um tratamento mais cedo que poderia (sem certezas) evitar o resultado morte.
Assim sendo, porque não resultou provado que o arguido tivesse violado um dever objetivo de cuidado quando prescreveu soro nas quantidades que o fez à vítima e porque não resultou provado que, ao não proceder à reavaliação clinica da vítima não diminuiu o risco da produção do evento (inexistência do nexo de causalidade entre o comportamento omissivo e violador de um dever objetivo de cuidado do arguido e a produção do dano morte), vai o arguido absolvido do crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137°, n01 e 2 do Código Penal por que vinha acusado».
Justifica-se aqui uma incursão em matéria de direito, mas antes impõe-se um apontamento sobre a prova pericial.
Como decorre do trecho da fundamentação transcrito, o tribunal alicerçou a sua decisão de dar como não provada a existência de nexo de adequação causal entre a conduta omissiva do arguido (reconhecidamente violadora de um dever objectivo de cuidado) e o resultado verificado (morte da criança), nas conclusões da prova pericial e no parecer do “Colégio de Anastesiologia”[4].
Importa frisar e deixar bem claro que a decisão sobre a existência, ou não, desse nexo causal compete ao tribunal e não aos peritos.
Não tendo o juiz conhecimentos técnico-científicos de medicina, nem experiência sobre o funcionamento de uma estrutura complexa como é um hospital, as conclusões dos peritos médicos e os pareceres dos Colégios da Especialidade da Ordem dos Médicos são fundamentais para o juízo sobre a violação, ou não, das leges artis pelo médico e na avaliação da existência, ou não, dessa relação de causalidade, mas, na reconstituição histórica dos factos, o tribunal não pode ater-se, exclusivamente, a esses meios, antes se lhe impõe que proceda a uma avaliação complexiva e contextualizada da actuação do agente, levando em consideração a globalidade das circunstâncias e factores (endógenos e exógenos) e meios disponibilizados para o juízo de prognose póstuma que tem de formular.
Como, a este propósito, alerta o Prof. Germano Marques da Silva (“Curso de Processo Penal”, Vol. II, Verbo, 5.ª edição revista e actualizada, pág. 264), «não obstante o recurso à perícia resultar precisamente da exigência de conhecimentos especializados que, como regra, o tribunal não possui, o tribunal não pode simplesmente descansar na perícia, pois a decisão final sobre a culpabilidade é da sua responsabilidade. O valor probatório especial da perícia não significa que estejamos perante um novo regime de prova legal, obrigando o juiz a submeter-se ao ipse dixit dos peritos; individualiza a regra do exercício racional da sua apreciação. Isto é, importa distinguir a vinculação do juiz ao resultado da perícia e ao princípio da livre convicção. O princípio da livre convicção impõe-se como dever de exercitar a função de valoração probatória segundo os cânones da racionalidade e por isso que quando esteja em causa uma prova pericial fundada sobre regras científicas, artísticas ou técnicas, a adesão ou discordância relativamente ao resultado da perícia não pode senão assentar no mesmo método”».
Ainda pertinente para o caso é a chamada de atenção da Prof.ª Paula Ribeiro Faria (“Formas Especiais do Crime”, UCE, 2017, pág. 81) para a necessidade de ter presente «alguma divergência entre os grupos profissionais e os juristas acerca do que constitui objecto da definição da violação das leges artis»[5] e, por outro lado, a «discrepância entre o momento da elaboração do relatório pericial (…) e o momento em que teve lugar a conduta do agente que não ocorreu sempre em circunstâncias ideais de espaço e de tempo, ou pelo menos, em circunstâncias que permitissem grande ponderação ou reflexão».
Clarificado este ponto, foquemo-nos nos elementos fundamentais da responsabilidade penal por negligência.
Como é sabido, a responsabilidade penal por negligência tem carácter excepcional, o que é dizer que o agente só responde a esse título quando a lei penal, expressamente, prevê um tipo negligente.
É o caso do artigo 137.º, n.º 1, do Código Penal em que se comina a pena de prisão até três anos ou pena de multa para «quem matar outra pessoa por negligência».
Do conceito legal de negligência fala-nos o art.º 15.º do Código Penal, nos termos do qual age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, representa como possível a realização de um facto correspondente a um tipo de crime, mas actua sem se conformar com essa realização (negligência consciente) ou não chega, sequer, a representar a possibilidade de realização do facto (negligência inconsciente).
A violação do dever de cuidado objectivamente devido é elemento essencial e característico dos crimes negligentes, mais precisamente, do tipo de ilícito negligente, com o que se pretende designar a «violação de exigências de comportamento tipicamente específicas, cujo cumprimento o direito requer, na situação concreta respectiva, para evitar o preenchimento de um certo tipo objectivo de ilícito»[6].
Apesar de se reconhecer uma certa indefinição da estrutura dogmática do tipo legal que corresponde ao facto negligente, é a violação do dever de cuidado[7] que caracteriza a negligência. É essa violação que define o tipo de ilícito negligente e lhe confere especificidade.
O tipo de ilícito não se basta com a causação de um resultado por determinada conduta do agente, é imprescindível que tenha ocorrido a violação, pelo mesmo agente, do dever objectivo de cuidado que sobre ele impendia e que conduziu à produção do resultado típico[8] [9].
Sabido é que, em regra, as normas que prevêem um crime negligente não delimitam precisamente o facto ilícito, não fornecem qualquer informação sobre a natureza e a medida do cuidado que se requer aos seus destinatários[10].
Entre os critérios concretizadores do cuidado objectivamente devido, para o caso, importa destacar os seguintes[11]:
- as normas corporativas, que são normas (não jurídicas) fixadas ou aceites por certos círculos profissionais e análogos destinadas a conformar as actividades respectivas dentro de padrões de qualidade e, nomeadamente, a evitar a concretização de perigos para bens jurídicos que de tais actividade pode resultar, como é o caso das leges artis da actividade médica;
- os costumes profissionais comuns ao profissional prudente, ao profissional-padrão. Aqui, o que serve de critério é a não correspondência d0 comportamento àquele que, em idêntica situação, teria um homem fiel aos valores protegidos, prudente e consciencioso.
Estreitamente associado ao dever objectivo de cuidado está o conceito de risco enquanto probabilidade de verificação de um resultado contrário ao direito (risco de acidente de viação, risco de uma intervenção cirúrgica, etc.).
O dever objectivo de cuidado afirma-se, nomeadamente, como dever de executar cuidadosamente a actividade de risco para evitar que esse risco se converta em lesão efectiva de bens jurídicos[12].
O «risco é (…) uma realidade que pode ser gerida, e que ao ser mal gerido, ao ser descuidada ou intencionalmente mal gerido, pode determinar a responsabilidade daquele que o tem a seu cargo: porque quis a sua concretização, porque tendo tomado consciência dele não adoptou as medidas necessárias para evitar a sua concretização, ou porque desconheceu, ou ignorou indevidamente, não tendo (…) as devidas cautelas na condução da sua conduta».
Para se responsabilizar o agente pela produção de um resultado, é necessário que se revele possível prever o curso causal das coisas, os efeitos prováveis de uma conduta.
Só estará preenchido o tipo de ilícito objectivo se o resultado produzido for objectivamente previsível.
Com a exigência de previsibilidade objectiva pretende-se saber se o processo causal, assim como o resultado produzido, são consequências objectivamente previsíveis da conduta do agente tendo em conta o seu papel concreto, isto é, tendo em conta os seus conhecimentos e experiência profissional.
Previsibilidade objectiva do perigo para determinado bem jurídico que só é possível afirmar quando a acção praticada aparecer a pessoa consciente e cuidadosa como susceptível de provocar um resultado desvalioso não querido.
Em suma, «a negligência deixa-se apurar com base num critério objectivo de previsibilidade e de cuidado que é definido tendo em conta as regras legais, técnicas e profissionais existentes para aquele sector de actuação, e o que o agente podia e devia fazer dadas as circunstâncias concretas, tal como estabelece a lei. Esse é o padrão médio que corresponde ao que era exigível do agente naquele contexto e face a uma determinada situação de risco»[13].
Ainda em sede do tipo de ilícito negligente, convém esclarecer que, embora o crime negligente comporte um momento omissivo - precisamente o não ter o cuidado, ou de prever um certo resultado ou, tendo-o previsto, de evitá-lo - não se confunde com a omissão, que qualifica um tipo criminal em relação à estrutura do comportamento.
A violação do dever de cuidado tanto pode traduzir-se numa acção como numa omissão, sendo certo que, nesta hipótese, é necessário que sobre o agente recaia um dever de garante, como exige o n.º 2 do artigo 10.º do Código Penal.
Por outro lado, o cuidado exigível há-de ser determinado pela capacidade de cumprimento que, no dizer do Professor Figueiredo Dias ("Pressupostos da Punição" in Jornadas de Direito Criminal, ed. C.E.J., pág. 70), constitui o elemento configurador da censurabilidade da negligência, - o elemento revelador de que no facto se exprimiu uma personalidade leviana ou descuidada perante o dever ser jurídico-penal. «Está aqui verdadeiramente em causa - acrescenta aquele Professor (loc. cit.) - um critério subjectivo e concreto ou individualizante, que deve partir do que seria razoavelmente de esperar de um homem com as qualidades e capacidades do agente. Se for de esperar dele que respondesse às exigências do cuidado objectivamente imposto e devido - mas só nessas condições - é que, em concreto, se deverá afirmar o conteúdo da culpa próprio da negligência e fundamentar, assim, a respectiva punição».
Em suma, a negligência determina-se com recurso a uma dupla averiguação: por um lado, há que procurar saber que comportamento era objectivamente devido numa situação de perigo em ordem a evitar a violação não querida do direito e, por outro, se esse comportamento podia ser exigido do agente, atentas as suas características e capacidades individuais.
Tendo em perspectiva estas referências dogmáticas sobre a conduta negligente, vejamos se pode falar-se aqui em erro médico penalmente relevante.
Uma das grandes áreas de actuação médico-cirúrgica é o “pós-operatório” e um erro cometido (seja por acção, seja por omissão) nesta fase não é menos grave do que o “erro operatório”, pois, também, pode ser fatal para o paciente.
Numa cirurgia com internamento, como aconteceu “in casu”, há leges artis, regras de conduta normais, recorrentes e impostas por “guide lines” comummente seguidas na prática médica e hospitalar.
A vigilância pós-operatória por médico especialista é fundamental e o que pode variar é o período de duração dessa observação.
Nesta fase, por regra, cabe ao anestesiologista o dever de vigiar o restabelecimento da capacidade geral de funcionamento do organismo do paciente, competindo-lhe, também, o controlo efectivo da saída do doente da unidade de cuidados pós-anestésicos (o chamado “recobro”).
A valoração que preside à afirmação da violação do dever de cuidado é um juízo eminentemente jurídico que cabe ao julgador efectuar após ponderação de todas as circunstâncias relevantes da actuação do agente.
Ora, dessas circunstâncias relevantes (já supra enunciadas), cabe destacar o facto de a E…, no pós-operatório, entre as 09:45 e as 16:15 do dia em que foi submetida a intervenção cirúrgica (adenoidectomia e miringotomia), ter tido sete vómitos com vestígios de sangue. E se os três primeiros (registados nas primeiras três horas do período pós-operatório) são considerados uma ocorrência normal, já a persistência dos vómitos não pode, como tal, ser considerada e exigia que a criança fosse observada por um médico (o arguido) e reavaliado o seu estado clínico. Porém, assim não aconteceu e a E… acabou por ser transferida para o Serviço de Pediatria (por ordem do arguido) sem qualquer informação e sem que a sua situação clínica fosse reavaliada (foi por telefone que deu aquela ordem de transferência).
Por isso o tribunal concluiu que o arguido não procedeu com o cuidado devido, a que estava obrigado e de que era capaz, tendo em conta o estado da paciente e a sintomatologia que esta apresentou após a cirurgia e no período em que estava sob a sua responsabilidade.
Apesar disso, na primeira instância entendeu-se que a observação e reavaliação clínica da E… pelo arguido, antes da sua transferência para pediatria, não teria permitido um diagnóstico e um tratamento mais precoce que teria evitado o resultado morte, basicamente por duas razões:
- as náuseas e os vómitos são um sintoma de hiponatremia, mas também de outras patologias;
- se aos vómitos não estiverem associados outros sintomas de disfunção do sistema nervoso central (como sonolência, irritação, prostração, apatia) não estamos perante um quadro que faça suspeitar de uma hiponatremia e, até ser transferida para pediatria, a criança não manifestou qualquer desses sintomas.
Por isso concluiu-se que, mesmo que tivesse observado e reavaliado a situação clínica da E…, o arguido, não só não teria alterado a medicação prescrita, como não teria determinado a realização de quaisquer exames, designadamente uma gasometria.
É caso para perguntar por que se considerou, então, que o arguido não actuou com o cuidado devido «tendo em conta o estado da paciente e a sintomatologia que esta apresentou após a cirurgia». A observação e a reavaliação do estado clínico da E…, afinal, serviriam para quê?
Salvo o devido respeito, é patente o vício de raciocínio.
O motivo para actuar conscienciosamente, para agir com cuidado e atenção ocorre quando a situação de perigo se torna reconhecível ao agente através de sinais de aviso que podem ter intensidade diferente consoante tornem mais ou menos previsível o momento e a duração do perigo.
Ora, perante a persistência dos vómitos, fácil seria para o arguido prever que o pós-operatório da E… não estava a decorrer normalmente, que algo de anormal, patológico estava a acontecer.
Poderia não haver, ainda, razões para suspeitar de uma hiponatremia, mas era evidente (ou, pelo menos, deveria ser evidente para o arguido) que a E… estava a ser acometida de uma patologia.
Numa situação destas, o que nos dizem a experiência e as boas práticas médicas é que se determine a realização de análises para identificar a patologia e, assim, poder prescrever o respectivo tratamento.
O arguido errou, claramente, ao omitir a realização de exames que seriam um importante meio auxiliar de diagnóstico da patologia que afectava a criança e veio a revelar-se fatal.
Mas nem só nessa conduta omissiva se revela a violação do dever de cuidado.
O arguido abandonou as instalações do Centro Hospitalar sem cuidar de garantir que existia um médico responsável pela vigilância da E…, tal como não tratou de comunicar com os médicos que estavam de serviço transmitindo-lhes todas as informações clínicas relevantes sobre a criança.
Sem informações sobre a cirurgia a que a E… tinha sido submetida, sobre a medicação prescrita e sobre o seu estado clínico, a médica pediatra de serviço bem tentou contactar, telefonicamente, o arguido, mas em vão.
Só pelas 18:00, a médica pediatra, Dra. F…, em conjunto com o médico Dr. S…, efectuou a primeira observação da E… e fez a avaliação do seu estado.
Isto apesar de, cerca das 17:00 (pouco tempo depois de ser transferida para o Serviço de Pediatria), a E… estar com olhar fixo, revelar diminuição de resposta a estímulos verbais e ter iniciado convulsões generalizadas, sintomas inequívocos de hiponatremia.
Os resultados da TAC e da gasometria realizadas permitiram concluir, designadamente pelos valores de sódio no sangue, que a criança padecia de uma hiponatremia grave, iniciando-se, então, o respectivo tratamento que, no entanto, não evitou o desfecho fatal.
Estes factos legitimam a inferência de que, se o arguido tivesse observado e reavaliado o estado clínico da E… e, como se impunha, quando determinou a sua transferência para o Serviço de Pediatria, tivesse mandado realizar análises a fim de habilitar o(s) médico(s) que aí estivesse(m) em funções a agir rapidamente, teria sido possível detectar, precocemente, a hiponatremia que se instalara e iniciar o tratamento que, com razoável probabilidade, teria evitado o óbito da criança. Mesmo tendo em consideração que, nas crianças, essa patologia se instala rapidamente. Aliás, na sentença recorrida, admite-se, expressamente, que «a realização de uma gasometria mais cedo podia diminuir o risco da produção do resultado morte (sem certezas)».
Por tudo isto, afronta a lógica, a razão e as máximas da experiência considerar que o comportamento omissivo do arguido, nas aludidas circunstâncias, «foi violador das leges artis», que impunham uma reavaliação clínica da E… antes de determinar a sua transferência para Pediatria, e depois concluir que o comportamento devido não teria permitido o diagnóstico e um tratamento mais precoces daquela patologia e a evitação do resultado morte da criança.
O que se revela fundada, criteriosa e razoável é a conclusão contrária.
Se um médico com o saber e a experiência do arguido não trata de obter os elementos necessários para diagnosticar uma patologia num paciente que está a seu cargo e sob a sua vigilância e iniciar, o mais precocemente possível, o seu tratamento, terá de concluir-se que não foi um profissional consciencioso, sensato e previdente e por isso terá de ser penalmente responsabilizado pelas consequências da sua conduta negligente.
Sempre que determinado comportamento se afasta daquele que era objectivamente devido numa situação de perigo para bens jurídico-penalmente relevantes, considera-se que esse comportamento preenche o tipo de ilícito do facto negligente.
Mas a conjugação de uma infracção aos deveres de cuidado com o resultado típico - no caso, a morte da E… - não conduz, necessariamente, a um crime negligente. Impõe-se, ainda, que se verifique o nexo de adequação entre a conduta violadora do cuidado necessário e o resultado.
Em que é que se traduz, nos crimes negligentes, esse nexo de imputação? Como é que se pode reconhecer se uma violação do dever de cuidado, à qual se segue uma morte, fundamenta ou não um homicídio negligente?
Como refere C. Roxin ("Problemas Fundamentais de Direito Penal ", pág. 238), reúne um largo consenso da doutrina a posição segundo a qual existe o necessário laço causal se a realização da acção requerida impediria o resultado com uma probabilidade quase segura.
Dizendo de outro modo e socorrendo-nos de H.H. Jescheck (" Tratado de Derecho Penal ", vol. II, pág. 804), haverá nexo causal desde que o resultado pudesse ser evitado mediante um comportamento cuidadoso, por um lado, e que a norma infringida servisse, precisamente, para evitar o resultado como o produzido no caso concreto.
Ora, como é bom de ver, as chamadas guidelines das organizações nacionais e internacionais de médicos, as leges artis pelas quais os médicos devem pautar a sua acção têm um valor particular enquanto regras da experiência adequadas ao afastamento de perigos próximos ou imediatos para bens jurídicos e, no caso, não foram respeitadas pelo arguido.
Num juízo de prognose póstuma, pode afirmar-se que, com a sua conduta omissiva, violadora do dever de garante que sobre ele impendia, o arguido potenciou um risco para o bem jurídico vida humana e assim produziu um resultado proibido, pois é razoavelmente seguro que, pelas razões já explanadas, se tivesse agido de acordo com as leges artis, tal resultado não se teria verificado.
Existe, pois, “conexão típica” entre a conduta omissiva do arguido e o resultado típico verificado (no caso, a morte de uma pessoa humana).
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Na linha das anteriores considerações, preenchido que está o tipo de ilícito do homicídio negligente pela conduta do arguido, impõe-se ponderar se lhe era exigível o comportamento devido, ou seja, se a este podia ser exigido que previsse e evitasse o resultado que se verificou no caso sub juditio, de acordo com as suas capacidades individuais, a sua inteligência, a sua formação e a sua experiência profissional.
É esta questão que configura aquilo que o Professor Figueiredo Dias[14] designa pela “questão do tipo de culpa negligente”.
Para que a culpa negligente se afirme – explica o distinto penalista – não é necessário (nem possível) apelar ao concreto poder do agente de actuar de outro modo na situação. Do que ali se trata é apenas da conclusão de que, de acordo com a experiência, os outros, agindo em condições e sob pressupostos fundamentalmente iguais àqueles que presidiram à conduta do agente, teriam previsto a possibilidade de realização do tipo de ilícito e tê-la-iam evitado. O que significa apenas, por outras palavras, que o conhecimento real das consequências de uma acção e a capacidade de as evitar correspondem à experiência média e que portanto, relativamente ao agente concreto que as não representou ou evitou, se comprova uma deficiência perante o tipo normal. Só que este tipo – e aqui deparamos com o famoso “critério subjectivo” – não é o tipo “médio”, mas o tipo de homem da espécie e com as qualidades e capacidades do agente.
Cremos já ter dito o quantum satis para, fundadamente, se concluir que o arguido podia, razoavelmente, prever que acontecesse o que, infelizmente, sucedeu.
Para o médico prudente, profissionalmente experiente, como era o arguido, dotado das capacidades que detém o “homem médio” pertencente à categoria intelectual e social e ao círculo de vida do arguido, o trágico resultado (a morte de uma criança), nas referidas condições, era perfeitamente previsível e evitável.
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Cremos ter demonstrado que a sentença recorrida está afectada pelo vício de erro notório na apreciação da prova, que é possível sanar no tribunal de recurso alterando a de cisão sobre matéria de facto nos seguintes termos:
Ao elenco de factos provados são aditados os seguintes:
31 - A) A observação e a reavaliação clínica da E… pelo arguido no período do pós-operatório, perante a sintomatologia que esta apresentava, teria permitido, com recurso a exames complementares de diagnóstico como os mencionados no ponto 19, diagnosticar a patologia (hiponatremia) de que foi acometida e iniciar, mais precocemente, o respectivo tratamento e, assim, evitar o resultado morte;
31 - B) O arguido, tendo em conta as suas qualidades e capacidades individuais, podia e devia ter representado o perigo da sua conduta omissiva para a vida da E… e actuado por forma a evitar o resultado verificado, o que só não logrou por ter agido sem as cautelas que as boas práticas próprias da classe profissional em que está inserido lhe exigiam e a sua própria experiência profissional (como assistente graduado sénior de anestesiologia) lhe permitia;
31 - C) Sabia que a sua conduta é proibida e penalmente punível.
Do elenco de factos não provados são eliminados os pontos 7 e 8, passando o ponto 6 a ter o seguinte conteúdo:
6 - A observação e a reavaliação clínica da E… pelo arguido, no período do pós-operatório, perante a sintomatologia que apresentou, teriam permitido a percepção e o atempado conhecimento do excesso de volume de soro perfundido.
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Face à alteração da decisão sobre matéria de facto, impõe-se concluir que se verificam todos os elementos integrantes do crime de homicídio negligente previsto e punível pelo artigo 137.º, n.º 1, do Código Penal, pelo que há que passar à determinação da pena.
Efectuado o enquadramento jurídico-penal dos factos provados, pode acontecer (e em muitos casos assim acontece) que a respectiva norma incriminadora preveja uma dualidade de punição, uma pena compósita alternativa: prisão ou multa, as duas penas principais que o nosso sistema penal conhece.
Ao crime cometido pelo arguido corresponde pena de prisão (até 3 anos) ou pena de multa (de 10 a 360 dias).
Ao julgador exige-se, então, que faça uma escolha, que eleja entre essas duas espécies de pena aquela que se mostra mais adequada no caso concreto e o art.º 70.º do Cód. Penal fornece-lhe o critério orientador: deve dar preferência à pena não detentiva sempre que esta realize de forma adequada as finalidades da punição que, conforme estabelece o art.º 40.º da mesma Codificação, são a protecção de bens jurídicos (fim de prevenção geral) e a reintegração do agente na sociedade [finalidade de prevenção especial de (res)socialização].
Exigências de prevenção geral positiva reclamam a opção pela pena detentiva.
É bem sabido que na estrutura da criminalidade em Portugal os crimes cometidos por negligência, por desrespeito de regras básicas, têm uma expressão significativa e por isso são muito sentidas exigências de prevenção geral.
A esse propósito, o Professor Figueiredo Dias (“Temas Básicos da Doutrina Penal”, Coimbra Editora, 2001, p. 351) referia a existência de “requisitório em favor de um tratamento jurídico-penal cada vez mais severo de certos factos negligentes; ao ponto de não faltar mesmo quem preconiza para eles molduras penais cujo máximo exceda o limite mínimo do correspondente facto doloso”.
Sobre a justificação político-criminal da punição da negligência no crime de homicídio, o mesmo autor refere que esse se tornou «fenómeno maciço, dadas as inúmeras fontes de perigo para a vida imanentes à “sociedade do risco” contemporânea», com destaque para a circulação rodoviária.
Ora, se é, sobretudo, no âmbito da criminalidade rodoviária que as exigências de prevenção geral são particularmente prementes, não podem menosprezar-se os perigos para bens jurídicos fundamentais que ocorrem noutras áreas, nomeadamente no âmbito da prestação de cuidados de saúde e, em especial, da actividade médica e hospitalar.
A finalidade primeira das penas é a protecção de bens jurídicos e aplicar uma pena pecuniária a alguém que cometeu um crime de homicídio, ainda que meramente negligente e por omissão, surge aos olhos da comunidade como uma desvalorização da vida humana.
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Como decorre do disposto no art.º 71.º, n.º 1, do Cód. Penal, é em função do binómio prevenção-culpa que se há-de encontrar a medida da pena, assim se satisfazendo a necessidade comunitária da punição do caso concreto e a exigência de que a vertente pessoal do crime limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção.
Tende a ser praticamente consensual na jurisprudência o acolhimento da doutrina[15] de que a pena visa finalidades, exclusivamente, preventivas (de prevenção geral e de prevenção especial), cabendo à culpa a função de impedir excessos, sendo pressuposto (não pode haver pena sem culpa) e limite inultrapassável da pena (em caso algum a medida desta pode ultrapassar a medida da culpa).
O momento inicial, irrenunciável e decisivo da fundamentação da pena repousa numa ideia de prevenção geral, uma vez que ela (pena) só ganha justificação a partir da necessidade de protecção de bens jurídico-penais.
A finalidade primeira da aplicação da pena é, como já referimos, a tutela de bens jurídicos[16].
Na prevenção geral positiva ou de integração, tem-se em vista uma concepção integrada de intimidação que actue dentro do campo marcado por padrões ético-sociais de comportamento que a ameaça da pena visa justamente reforçar.
É esta ideia de prevenção geral positiva, enquanto finalidade primordial visada pela pena, que dá conteúdo ao princípio da necessidade da pena consagrado no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição Portuguesa.
São as exigências de prevenção geral que hão-de definir a chamada “moldura da prevenção” (em que o quantum máximo da pena corresponderá à medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena se deve propor alcançar e o limite inferior é aquele que define o limiar mínimo de defesa do ordenamento jurídico, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa aquela sua função tutelar), dentro da qual cabe à prevenção especial (por regra, positiva ou de (res)socialização) determinar a medida concreta.
A determinação da medida da pena em função da satisfação das exigências de prevenção obriga à valoração de circunstâncias atinentes ao facto (modo de execução, grau de ilicitude, gravidade das suas consequências, grau de violação dos deveres impostos ao agente, conduta do agente anterior e posterior ao facto e as chamadas consequências extra-típicas) e alheias ao facto, mas relativas à personalidade do agente (manifestada no facto), nomeadamente as suas condições económicas e sociais, a sensibilidade à pena e susceptibilidade de ser por ela influenciado, etc.
As já mencionadas exigências de prevenção geral justificam que se fixe o limite inferior da tal “moldura de prevenção” em 12 meses de prisão (o primeiro terço da medida legal da pena) e que a medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena se deve propor alcançar se situe nos 2 anos (o dobro daquele limite).
A finalidade preventivo-especial da pena é evitar que o agente cometa, no futuro, novos crimes. Evitar a reincidência, portanto.
Sendo primordial a função de socialização, a tarefa que se impõe ao juiz é averiguar se o agente está carecido de socialização.
Quando o agente não revela carências de socialização, como nos diz o Professor Figueiredo Dias (Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, p. 244), “tudo será questão, em termos de prevenção especial, de conferir à pena uma função de suficiente advertência do agente, o que permitirá que a medida da pena desça até perto do limite mínimo de defesa do ordenamento jurídico, ou mesmo que com ele coincida. Se é certo que esta função de advertência joga o principal papel em tema de penas de substituição, ela pode relevar igualmente, e de forma decisiva, no âmbito de medida da pena”.
Dos factos apurados é possível concluir que o arguido não revela carências de socialização, pois está, perfeitamente, integrado na sociedade, é pessoa dedicada à família e à profissão que exerce, no meio sociocomunitário projecta uma imagem favorável, sendo referenciado positivamente também no contexto profissional e associado a um estilo de vida pró-social. No relacionamento interpessoal é avaliado como respeitador, cordial e de fácil trato. Este é o seu primeiro contacto com o sistema de justiça penal.
No entanto, uma boa inserção social requer, também, uma boa capacidade de auto - censura e de auto - crítica, uma predisposição para interiorizar o desvalor da conduta punível, essenciais para se poder afirmar que o perigo de repetição de condutas criminosas é inexistente ou diminuto.
Ora, nada, na factualidade apurada, revela que o arguido reúne essas características, que teve manifestações de genuíno arrependimento, sequer que o verbalizou, e a interiorização da censurabilidade da conduta punível é o primeiro passo para se redimir.
Um dos princípios a que obedece o Código Penal é o princípio da culpa, segundo o qual não pode haver pena sem culpa, nem pena superior à medida da culpa.
Relevantes para avaliar da medida da pena necessária para satisfazer as exigências de culpa verificada no caso concreto são os factores elencados no art.º 71.º, n.º 2, do Cód. Penal e que, basicamente, têm a ver, quer com os factos praticados, quer com a personalidade do agente que os cometeu.
Aproveitando, mais uma vez, o ensinamento do Professor Figueiredo Dias (Ob. Cit., 245), porque a culpa jurídico-penal é “censura dirigida ao agente em virtude da atitude desvaliosa documentada num certo facto e, assim, num concreto tipo-de-ilícito”, há que tomar em consideração todas as circunstâncias que caracterizam a gravidade da violação jurídica cometida (o dano, material ou moral, causado pela conduta e as suas consequência típicas, o grau de perigo criado nos casos de tentativa e de crimes de perigo, o modo de execução do facto, o grau de conhecimento e a intensidade da vontade nos crimes dolosos, a reparação do dano pelo agente, o comportamento da vítima, etc.) e a personalidade do agente [condições pessoais e situação económica, capacidade para se deixar influenciar pela pena (sensibilidade à pena), falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, e conduta anterior e posterior ao facto].
Com a tipificação do crime cometido pelo arguido tutela-se um bem eminentemente pessoal: a vida.
O grau de ilicitude da conduta do arguido é significativamente elevado, não só pela natureza do bem jurídico lesado, mas também porque foi uma criança de 4 anos a vítima da sua incúria.
No que tange à intensidade da negligência, se pode falar-se aqui em atitude particularmente censurável de leviandade ou descuido perante o comando jurídico-penal, em contraponto, não se configura “um comportamento particularmente perigoso e um resultado de verificação altamente provável”, capaz de revelar um grau especialmente elevado de indiferença e de desrespeito para com a vida da criança.
Cabe aqui assinalar que a negligência inconsciente não é, forçosamente, uma forma menos grave (do que a negligência consciente) de realização do facto, pois a imprevisão do resultado que a norma pretende evitar pode ser, em si mesma, muito mais desvaliosa.
Ponderando o circunstancialismo descrito, e considerando, ainda, que, tendo decorrido já cinco anos sobre a data dos factos sem que ao arguido sejam conhecidos outros comportamentos penalmente censuráveis, diluiu-se um pouco a necessidade da punição, a pena de 18 meses de prisão satisfaz as necessidades de prevenção geral (ou seja, a reposição e reforço das expectativas comunitárias na validade da norma violada basta-se com esse quantum de pena) e não excede a medida da culpa do arguido.
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Importa agora ponderar a aplicação de uma pena de substituição.
Sendo considerações de prevenção geral e de prevenção especial [de (res)socialização][17] que estão na base da aplicação das penas de substituição, o tribunal só deve recusar essa aplicação “quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente” ou, não sendo o caso, a pena de substituição só não deverá ser aplicada “se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias”[18].
Estando verificado o requisito formal da suspensão da execução da pena, há que indagar se ocorre o respectivo pressuposto material, isto é, se se pode concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, designadamente se bastarão para afastar a arguida da criminalidade, pois é esta a finalidade precípua do instituto da suspensão[19].
Se a pena privativa da liberdade surge sempre como a última “ratio” do nosso sistema punitivo[20], tal não significa que não haja casos em que só essa pena é adequada a satisfazer os fins das penas.
É óbvio que, ao aumentar o limite da pena de prisão (dos 3 anos para os 5 anos) dentro do qual é possível a suspensão da execução, o legislador pretendeu alargar o âmbito de aplicação da pena de substituição, mas não tornar menos exigente o pressuposto substantivo da sua aplicação.
Visando as penas, antes de mais, a protecção de bens jurídicos e a reposição e o reforço da confiança da comunidade na validade das normas jurídicas que o crime pôs em crise, as exigências de prevenção geral serão tanto mais prementes quanto maior for a gravidade da violação jurídica cometida.
Dito de outro modo, a função de prevenção geral, que deve acentuar perante a comunidade o respeito e a confiança na validade das normas que protegem o bem mais essencial, tem de ser eminentemente assegurada, sobrepondo-se, decisivamente, às restantes finalidades da punição[21].
Para a suspensão da execução da pena não basta um juízo de prognose positivo relativamente ao comportamento futuro do condenado, ou seja, um juízo favorável à sua reintegração na sociedade; é exigência incontornável que a suspensão da execução não comprometa uma das finalidades precípuas da pena, qual seja, a protecção de bens jurídicos.
Poderá dizer-se que, nos casos de homicídio, a consciência comunitária vê na suspensão da execução da pena um sinal de impunidade e uma forma de desvalorização do bem jurídico tutelado e por isso será sempre de denegar a suspensão?
Se é verdade que, nesses casos, porque as necessidades de prevenção geral são particularmente prementes, via de regra, as penas de prisão devem ser efectivas, não há, neste conspecto, qualquer rigidez jurisprudencial e, não raro, deparamo-nos com decisões de suspensão da execução da pena de prisão por crimes de homicídio tentado[22]. Nos crimes de homicídio negligente, pode considerar-se uniforme a jurisprudência no sentido de que só quando a negligência é grosseira será de desaplicar esta pena de substituição[23].
Ponto é que ocorram razões ponderosas que, superando as exigências preventivas, poderão justificar a suspensão da execução da pena.
Antes de mais, importa referir que o juízo de prognose que cabe ao tribunal efectuar tem de reportar-se ao momento da decisão, pois na formulação desse prognóstico tem de considerar-se, não só a personalidade do arguido, mas também as suas condições de vida e a sua conduta anterior e posterior ao facto.
Ora, não se detectam no arguido características da sua personalidade particularmente desvaliosas (antes apresenta raciocínio crítico e de valorização suprema da vida humana) e esse é um aspecto importante a considerar quando da formulação do juízo de prognose sobre a sua capacidade para (não voltar a) delinquir.
A conduta pretérita do agente releva para este efeito se permitir concluir “que o facto surge como um episódio ocasional ou isolado no contexto de uma vida de resto fiel ao direito; mas é óbvio que esta conclusão não pode retirar-se, sem mais, da circunstância de o agente não ter sido anteriormente condenado” (Figueiredo Dias, “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, 1993, 252-253). Ou, como afirma A. Lourenço Martins, “Medida da Pena – Finalidades – Escolha – Abordagem Crítica de Doutrina e de Jurisprudência”, Coimbra Editora, 2011, 512), “na conduta anterior relevará frequentemente o valor atenuante do bom comportamento do arguido se, em especial pela idade do agente, fizer aparecer o delito como um evento isolado, ocasional, não condizente com a sua personalidade”. E, logo adiante, escreve o mesmo autor: “Repete-se na jurisprudência que a ausência de antecedentes criminais não é indicativo seguro de que exista bom comportamento (é sabido como só uma escassa parcela de crimes são participados e outra ainda bem menor leva a condenação)”.
Também o comportamento posterior do agente tem, naturalmente, grande relevo na formulação do juízo sobre o seu comportamento futuro.
A ressocialização do arguido parte da sua vontade de querer nortear-se pelo respeito dos valores ético-jurídicos comunitários e de respeitar os bens jurídicos penalmente tutelados, postura que tem de manifestar-se em atitudes comportamentais que, objectivamente, elucidem que está realmente interessado no caminho da reinserção social.
O arrependimento manifestado (que tem de ser bem mais que, apenas, a sua verbalização), o juízo crítico revelado e a interiorização que o agente tenha feito da gravidade e do mal do crime[24] assumem aqui importância decisiva para avaliar se a simples ameaça da pena constitui suficiente admonição contra o crime.
Tudo indica que esta situação foi um evento isolado que não releva da personalidade (bem formada) do arguido.
É caso para dizer que “no melhor pano cai a nódoa”.
É, pois, justificada a formulação, sem reservas, de um juízo de prognose positivo, não havendo razões para impor ao arguido pena de prisão efectiva.
III – Dispositivo
Em face do exposto, acordam os juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento aos recursos do Ministério Público e dos assistentes e, em consequência, A) alterar a decisão recorrida em matéria de facto, nos sobreditos termos;
B) condenar o arguido B… pela autoria material de um crime de homicídio por negligência previsto e punível pelo artigo 137.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 18 (dezoito) meses de prisão, cuja execução se suspende por igual período.
Sem tributação.
Porto, 30.01.2019
Neto de Moura
Maria Luísa Arantes
________________ [1] “Sumários de Processo Penal”, 1968, 50-51. [2] Para uma exaustiva delimitação (negativa e positiva) do erro notório na apreciação da prova, Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição actualizada, UCE, 1102-1103. [3] Comentário do Conselheiro Pereira Madeira ao artigo 410.º in “Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 2014, pág. 1359. [4] Mas, também os assistentes se baseiam nesses meios de prova para sustentar conclusão oposta. [5] Apontando como exemplo o caso do médico anestesista que, perante a crise cardíaca do doente, não tem tempo de fiscalizar o conteúdo de uma ampola e administra o medicamento errado, do que resulta a morte do doente, em que a tendência será para negar a violação das leges artis, quando, em sua opinião, é evidente essa violação. [6] Figueiredo Dias, “Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, Coimbra Editora, 2004, pág. 359. [7] Ou, numa formulação equivalente, a criação, pelo agente, de um perigo não permitido. [8] Se bem que os crimes negligentes possam ser crimes formais ou de mera actividade. [9] M. Paula Ribeiro Faria, ob. cit., 62, face às divergências doutrinárias sobre a importância do resultado no ilícito negligente, inclina-se para «o reconhecimento de que o ilícito negligente é composto de um desvalor da conduta e de um desvalor do resultado que deve ser a concretização do risco criado ou potenciado pelo autor com a sua conduta». [10] Nas palavras do Professor Figueiredo Dias, in “Temas Básicos da Doutrina Penal”, 2001, pág.358, “as mais das vezes, a punição da negligência surge sem que o legislador descreva o facto a que corresponde, antes remetendo para a descrição respectiva punível a título de dolo (“se a conduta for praticada por negligência…”, v.g., art.º 272.º e ss.) ou renunciando, em todo o caso, a acrescentar à violação do cuidado objectivo – e eventualmente à menção do resultado – elementos típicos adicionais”. [11] Cfr. Figueiredo Dias, ob.cit., 641 e segs. [12] M. Paula Ribeiro Faria, ob. cit., 58 e segs., que, neste ponto, seguimos de perto. [13] M. Paula Ribeiro Faria, idem, pág. 91. [14] “Temas Básicos…”, 376. [15] Cujo expoente máximo é, sabidamente, o Professor Figueiredo Dias (cfr. a sua obra “Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, 2004, 75 e segs., que, neste ponto, seguimos de perto). [16] Com uma perspectiva diversa, defendendo que «encontrar a “justa retribuição”, a pena “merecida” para o delinquente constitui a finalidade primeira da sanção, embora logo seguida das necessidades preventivas, especial e geral», A. Lourenço Martins, “Medida da Pena – Finalidades – Escolha – Abordagem Crítica de Doutrina e de Jurisprudência”, Coimbra Editora, 501. [17] Por conseguinte, não são considerações de culpa que devem ser tidas em conta, mas juízos de prognose sobre o desempenho da personalidade do agente perante as condições da sua vida, o seu comportamento e as circunstâncias do facto, que permitam fazer supor que as expectativas de confiança na prevenção da reincidência são fundadas. [18] Professor Figueiredo Dias, “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, 333. [19] Como afirma o Professor Figueiredo Dias, Op. Cit., 343, é na “prevenção da reincidência” que se traduz o “conteúdo mínimo” da ideia de socialização. [20] É o que decorre do seguinte trecho do preâmbulo do Dec. Lei n.º 48/95, de 15 de Março (que, recorde-se, operou a primeira grande reforma do Código Penal de 1982): “A pena de prisão – reacção criminal por excelência – apenas deve lograr aplicação quando todas as restantes medidas se revelarem inadequadas, face às necessidades de reprovação e prevenção”. [21] Não falta até quem defenda que, face às particulares exigências de prevenção geral que os crimes de homicídio (tentado ou consumado) convocam, a determinação da pena se deva orientar, sobretudo, por considerações de prevenção geral negativa ou de intimidação. [22] Cfr., entre outros, os acórdãos do STJ de 05/05/2005 e de 08/03/2006, disponíveis em www.dgsi.pt [23] Embora circunstâncias particulares do caso concreto possam fundamentar um juízo de prognose positivo sobre o comportamento futuro do agente. [24] Que deve exteriorizar-se através de acções que visem a reparação do mal causado (reparar as consequências do crime, até onde for possível.