CONTUMÁCIA
ARGUIDO RESIDENTE NO ESTRANGEIRO
CADUCIDADE
ARTº 336º
Nº 1
DO CPP E AUJ 5/2014
DE 26/3
Sumário


I - O instituto da contumácia acarreta ao arguido determinadas inibições de âmbito pessoal e patrimonial e visa que o mesmo se coloque à disposição do Tribunal por forma a pôr termo à sua evasão do processo e, concomitantemente, a suspensão dos ulteriores termos do processo, sem prejuízo da prática de actos urgentes.

II - A situação processual gerada pela contumácia só caduca quando o arguido se apresentar em juízo ou for detido, de harmonia com o disposto no nº 1 do art. 336º, do CPP, como se afirma na fundamentação do AUJ 5/2014, de 26/3 (DR, I, de 21/5/2014), ou seja, quando dessa forma esteja assegurada a efectiva possibilidade da ulterior tramitação do processo.

III - A questão central não é a da possibilidade de notificação do arguido através dos instrumentos de cooperação judiciária em matéria penal, mas a de saber se tal diligência equivale à apresentação do arguido conducente à caducidade da declaração de contumácia, em conformidade com o disposto no n.º 1 do art. 336º do CPP, pelo que, não existindo argumentos consistentes não ponderados naquele AUJ para arredar a jurisprudência nele fixada, não é sustentável a ideia de que, estando o arguido – declarado contumaz – ausente no estrangeiro e sendo aí conhecida a sua morada, pode haver caducidade da contumácia sem apresentação/detenção do arguido, nem, por outro lado, sem, simultânea ou imediatamente, haver também prestação de TIR.

IV - Só a partir desta prestação, com a indicação de uma morada em Portugal, fica salvaguardada a ulterior tramitação do processo, passando o arguido a ser notificado, para todos os actos, por aviso postal simples, em que o distribuidor do serviço postal lavre uma declaração indicando a data e confirmando o local exacto do depósito, que envia para o tribunal (art. 113º, nº. 3 do CPP), o que constitui uma forma de procedimento essencial para se garantir não só a cognoscibilidade por parte do destinatário do acto notificado, mas também a segurança na contagem dos prazos, assim se garantindo ao arguido todas as possibilidades de defesa, em obediência ao nº 2 do art. 32º da Constituição, para não se poder falar de qualquer surpresa na condenação e na imediata possibilidade de execução da pena.

Texto Integral


Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I- Relatório

No âmbito do processo comum singular nº 153/09.2.GEGMR-C, a correr termos pelo Juízo Local Criminal de Guimarães, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, por decisão proferida em 26/04/2018, foi indeferida a promoção do Ministério Público a requerer a designação de nova data para julgamento e a notificação da acusação ao arguido M. A., declarado contumaz e residente no Brasil, por a mesma não ter a virtualidade de fazer cessar os efeitos da declaração de contumácia.

Inconformado com a referida decisão, o Ministério Público interpôs recurso, cujo objecto delimitou com as seguintes conclusões (sic):

«1.O arguido encontra-se declarado contumaz.
2. O Gabinete da Interpol Brasil informou que o arguido tem endereço registado no Estado do ..., remetendo a informação do endereço completo para sede de futuro pedido de cooperação judiciário.
3. Nessa sequência, promoveu-se que se designasse nova data para o julgamento e que o arguido fosse notificado do despacho de acusação e do despacho que designa a nova data de audiência, mediante contacto pessoal por parte de autoridade pública - art.° 113°/1, al. a), do Código de Processo Penal -, a realizar no âmbito de pedido de auxílio judiciário dirigido às Autoridades Brasileiras.
4. O despacho recorrido indeferiu o promovido, com base nos considerandos do AUJ 5/2014.
5. Sucede que o AUJ 5/2014 apenas se debruçou sobre a ineficácia das notificações realizadas por via postal de arguido residente no estrangeiro e, consequentemente, na irrelevância da recolha de TIR para efeitos de cessação da contumácia.
6. O AUJ 5/2014 nunca defendeu, directa ou indirectamente, que a notificação de arguido contumaz residente no estrangeiro não faz cessar os efeitos da declaração de contumácia.
7. O AUJ 5/2014 também não fez uma só menção relativamente à notificação de arguido contumaz residente no estrangeiro, nos termos previstos no art.° 113°/1, al. a), do Código de Processo Penal.
8. O promovido, portanto, não viola, directa ou indirectamente, o dispositivo ou os fundamentos do AUJ 5/2014, na medida em que poderá/deverá ser realizada a única modalidade de notificação tornada possível, precisamente, pelo AUJ: mediante contacto pessoal, por parte de autoridade oficial do país onde o arguido se encontra.
9. Por outro lado, a interpretação do despacho recorrido implica a absoluta impossibilidade jurídica (não prática) de notificação de arguidos e a consequente paralisação dos respectivos processos, só porque os arguidos se encontram contumazes e residem no estrangeiro.
10. Permitir que a contumácia sirva de empecilho para a eficácia da notificação dos despachos em causa nos autos constituí uma total inversão/deturpação da lógica do instituto, que visa conseguir, precisamente, essa notificação.
11.Quando o art.° 336°/1 do Código de Processo Penal e o AUJ 5/2014 referem que a contumácia cessa com a apresentação” do arguido, esta norma, tal como o AUJ 5/2014 também o refere, quer-se reportar ao contacto pessoal do arguido com o Tribunal, uma vez que é a falta desse contacto pessoal, traduzido na falta de notificação do despacho que designou data para julgamento, que dá origem à contumácia - art.° 335°/1 do Código de Processo Penal.
12. Ora, existe um claro contacto pessoal entre o tribunal e o arguido quando uma autoridade oficial estrangeira contacta pessoalmente com o arguido e notifica-o da acusação e do despacho que designa data para audiência, uma vez que aquela autoridade funciona como uma mera longa manus do tribunal português, no contexto de um pedido de cooperação internacional.
13. Pelo exposto, a realização da notificação promovida, nos moldes previstos no art.° 113°/1, aI. a), do Código de Processo Penal, através de pedido de cooperação judiciário internacional, é admissível, corresponde à “apresentação” do arguido e deve levar à caducidade da contumácia, em caso de sucesso.

Termos em que deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por decisão que defira o promovido, assim se fazendo Justiça.».

O recurso foi regularmente admitido.

Neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o art. 416º do CPP, emitiu douto parecer, divergindo da posição assumida no recurso, cuja improcedência defendeu com pertinentes considerações.
Foi cumprido o art. 417º, nº 2, do CPP.

Efectuado exame preliminar e, colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, nos termos do art. 419º, nº 3, al. c), do CPP.

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II- Fundamentação

Na medida em que o âmbito dos recursos se delimita pelas respectivas conclusões (arts. 403º e 412º, n.º 1, do CPP), suscita-se neste recurso a questão de saber se, estando o arguido – declarado contumaz – ausente no estrangeiro e sendo aí conhecida a sua morada, a sua notificação pessoal, através de pedido de cooperação judiciária internacional, faz cessar os efeitos da declaração de contumácia.

Importa apreciar e decidir a enunciada questão para o que são pertinentes o teor da decisão recorrida e as demais ocorrências extraídas dos autos.

A) O teor da decisão recorrida:

«- De acordo com o AUJ 5/2014, sucintamente se pode concluir pela existência de apenas duas formas de fazer cessar a declaração de contumácia, a saber, a detenção do arguido e/ou a sua apresentação em juízo. Assim sendo, cremos que o eventual sucesso na notificação do arguido do despacho que designa dia para a realização da audiência não faz cessar a declaração de contumácia, pelo que, o promovido não tem qualquer eficácia e resultado.
Pelo exposto, indefere-se o promovido.».

B) As ocorrências extraídas dos autos principais:

- Por despacho proferido em 12/01/2011, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido imputando-lhe a pática de um crime de roubo e de um crime de ofensa à integridade física simples, previstos e punidos, respectivamente, pelos arts. 210º, nº.1 e 143º, nº. 1 do C. Penal.
- Apesar de o arguido não ter sido notificado da acusação, o processo prosseguiu nos termos do n.º 5 do art. 283º do CPP, tendo os autos sido remetidos à distribuição.
- Em 20/09/2011, foi proferido despacho de recebimento da acusação, fixada a medida de coacção (TIR) com que o arguido deveria aguardar os ulteriores termos processuais e designados dias para a audiência de julgamento.
- O arguido não foi notificado desse despacho nem prestou TIR.
- Foi ordenada a notificação edital do arguido, nos termos do art. 335º, nºs 1 e 2 do CPP, para se apresentar em juízo no prazo de 30 dias, sob pena de ser declarado contumaz.
- Por decisão proferida em 20/01/2012, o arguido foi declarado contumaz e emitidos mandados de detenção contra o mesmo para prestação de TIR.
- No decurso dos anos de 2012, 2013, 2014, 2015 e 2016 foram realizadas várias diligências tendentes à localização do arguido tendo-se todas elas revelado infrutíferas.
- Em 27/10/2017, na sequência de promoção do Ministério Público, foi ordenada a expedição de carta rogatória às Autoridades Brasileiras para localização e notificação do arguido da acusação, a qual não foi cumprida por tal pedido não se enquadrar no objecto da convenção de Auxílio Judiciário em Matéria Penal entre os Estados Membros da comunidade dos Países de Língua Portuguesa.
- Em 31/01/2018, foi solicitado ao gabinete Nacional Interpol informação sobre a localização do paradeiro do arguido.
10ª - Por ofício datado de 12/4/2018 o gabinete da Interpol informou que o arguido possui endereço no Estado do ....
11ª - Em 16/04/2018, o Ministério Público exarou a promoção, sobre que recaiu a decisão agora impugnada, de que fosse designada nova data para a audiência de julgamento e notificado pessoalmente o arguido da acusação e do despacho que a recebeu, ao abrigo do disposto nos arts. 1º/2, al. a), e do art.º 11º/2 e /3 da Convenção de Auxílio Judiciário em Matéria Penal entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.
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III - O Direito

Os pressupostos da cessação de contumácia.

Como resulta das incidências supra elencadas o arguido M. A. de nacionalidade Brasileira foi declarado contumaz em virtude de não ter sido possível apurar o seu paradeiro para notificá-lo do despacho que designou dias para a audiência de julgamento e por não ter prestado termo de identidade e residência.

O instituto da contumácia foi introduzido no nosso direito pelo Código de Processo Penal de 1987, que na sua redacção original não previa o julgamento na ausência do arguido, salvo no caso de este expressamente requerer ou consentir no mesmo – art. 334º, n.º 2 do C. Processo Penal – em substituição do processo de ausentes, comummente denominado de julgamento à revelia.

A trave mestra do instituto assenta na ideia de que, sem a presença do arguido, a audiência, quando obrigatória, não se realizará.

Tendo o legislador optado por fugir aos inconvenientes do tradicional processo de ausentes, não deixou de prever um conjunto articulado de medidas com vista a desincentivar a ausência daqueles que são perseguidos penalmente.

Entre essas medidas encontram-se algumas de compressão da capacidade patrimonial e negocial do contumaz e outras que se destinam a dificultar a sua vida social – art. 337º, n.ºs 1 a 4 do Código de Processo Penal.

É dentro desta perspectiva que o art. 335º, n.º 3, do Código de Processo Penal determina que a declaração de contumácia implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido.

Enquanto o arguido não for presente ao tribunal (voluntária ou involuntariamente), o mesmo não tem forma de contornar as medidas previstas na lei para desincentivar a sua ausência.

Assim, o referido instituto visa que o arguido se coloque à disposição do Tribunal de modo a pôr termo à sua evasão do processo e, concomitantemente, a suspensão dos ulteriores termos do processo, sem prejuízo da prática de actos urgentes (1), acarretando, ainda, àquele determinadas inibições de âmbito pessoal e patrimonial.

Dito por outras palavras, a declaração de contumácia é direccionada a obter a apresentação do arguido no processo onde é declarada.

E essa situação processual apenas caduca quando o arguido se apresentar em juízo ou for detido, de harmonia com o disposto no n.º 1 do art. 336º, do C. Processo Penal, ou seja, quando dessa forma esteja assegurada a efectiva possibilidade da ulterior tramitação do processo (2).

Retira-se, ainda, do art. 337º, n.º 1, que a declaração de contumácia implica para o arguido a passagem imediata de mandado de detenção e logo que se apresente ou for detido, o arguido é sujeito a termo de identidade e residência.

A ratio desta paralisia processual encontra-se na impossibilidade fáctica de prosseguimento do processo sem o arguido, no sentido de na sua «ausência».

Pode, pois, concluir-se que o actual regime da contumácia assenta na ideia da inconveniência do julgamento na ausência do arguido, ficando o processo onde não foi possível a sua notificação suspenso, obviamente sem prejuízo de poder diligenciar-se pela sua localização.

O tribunal deve manter uma atitude proactiva na localização do paradeiro do arguido contumaz, enquanto ele não se apresentar voluntariamente em juízo, dentro dos limites estabelecidos na lei.

É dentro desta linha de pensamento delineada pelo legislador e vertida na redacção das normas que regulam o instituto em causa que nos devemos mover para encontrar as melhores soluções sem desvirtuar os fins visados com o sistema implementado.

Seguindo esta linha de raciocínio e encontrando-se o processo em tal estado de “letargia”, que dizer da pretensão do Ministério Público contida na acima referenciada promoção?

A Sra. Juíza, estribando-se na jurisprudência fixada pelo AUJ 5/2014, de 26 de Março de 2014, publicado no D.R., I Série, de 21 de Maio, entendeu que a notificação do arguido não fazia cessar os efeitos da declaração de contumácia.

Ora, através do mencionado Acórdão foi fixada jurisprudência com o seguinte teor: «Ainda que seja conhecida a morada de arguido contumaz residente em país estrangeiro, não deve ser expedida carta rogatória dirigida às justiças desse país para ele prestar termo de identidade e residência, porque essa prestação não faz caducar a contumácia».

O mesmo Acórdão Uniformizador contém a seguinte fundamentação:

«(…) a prestação do TIR assume-se, no enquadramento legal actualmente vigente, como o elemento fulcral de ligação do arguido ao processo, permitindo a sua tramitação até final, e simultaneamente facultando ao arguido o exercício efetivo dos seus direitos de defesa.

Contudo, como já se assinalou, não é a prestação de TIR que precede e provoca a caducidade da contumácia; pelo contrário, é a caducidade da contumácia que determina e provoca a prestação de TIR. (…) Ou seja: é o contacto pessoal do arguido com o tribunal (por meio de apresentação ou da detenção) que permite considerar caducada a contumácia, que é caracterizada precisamente pela impossibilidade de efectuar esse contacto. É o contacto pessoal que viabiliza, por meio da prestação do TIR, a manutenção de uma ligação do arguido ao processo até ao seu termo. O TIR é o instrumento dessa ligação subsequente à caducidade da contumácia, não a causa dessa caducidade. (…) Só a apresentação pessoal do arguido ou a sua detenção asseguram a sua efectiva disponibilidade para os posteriores termos do processo. A mera prestação de TIR por contumaz residente no estrangeiro, ainda que fosse considerada admissível, não garantiria essa disponibilidade.».
A questão concretamente suscitada no âmbito deste acórdão uniformizador de jurisprudência foi a de apurar se era ou não possível submeter o arguido a TIR, por meio de carta rogatória enviada às justiças do país onde o mesmo residia e se tal prestação de TIR era idónea a fazer caducar a contumácia.

A resposta obtida foi negativa, partindo-se de determinadas premissas, quais sejam: que é o contacto pessoal do arguido com o tribunal (por meio de apresentação ou da detenção) que permite considerar caducada a contumácia; que apenas se viabiliza, por meio da prestação do TIR, a manutenção de uma ligação do arguido ao processo até ao seu termo e assegura a sua efectiva disponibilidade para os posteriores termos do mesmo.
O acento tónico incide precisamente no contacto pessoal do arguido com o tribunal e na sua efectiva disponibilidade para os posteriores termos do processo.

Dito de outro modo, a apresentação a que se refere o n.º 1 do art. 336º do C. Processo Penal, pressupõe uma actuação do arguido de se colocar à disposição do processo, para que se mostre assegurada a possibilidade da sua ulterior tramitação, que não se alcança com a prestação do termo de identidade e residência.

Esta posição é sustentada no acórdão uniformizador com o argumento de que simples prestação de TIR por arguido contumaz e a residir no estrangeiro, ainda que fosse admissível, não garantiria a sua disponibilidade para os ulteriores trâmites do processo, designadamente para a possibilidade de realização do julgamento na sua ausência, desde que regularmente notificado (artigo 333º, n.º 1, do C. Processo Penal), na morada do TIR, através de via postal simples, com prova de depósito, (n.ºs 3 e 4 do artigo 113º do C. Processo Penal). Pela simples razão de este procedimento de notificação não ser extensível aos serviços postais de outros países, não valendo assim como notificação as comunicações para o estrangeiro por via postal simples. Não podendo, por outro lado, substituir-se a carta com prova de depósito pela carta registada, já que esta não apresenta a mesma fiabilidade de ser recepcionada pelo destinatário, por não haver uma declaração do distribuidor postal a atestar o seu depósito na morada indicada no TIR, na qual o arguido se responsabilizou pela recolha da correspondência que aí recebesse.

Assim, se é verdadeira a afirmação feita pelo recorrente de que o AUJ não versou directamente sobre a possibilidade de notificação do arguido ausente, já não o é quando afirma ou pretende extrair a ilação que do referido acórdão não resulta que, em caso de sucesso na notificação do arguido do despacho que designa dia para a audiência de julgamento, tal notificação não faz cessar os efeitos da contumácia.

Efectivamente, pese embora a questão colocada e versada no acórdão uniformizador se tenha circunscrito à análise da possibilidade de expedição de carta rogatória quando for conhecida a morada de arguido declarado contumaz em país estrangeiro para efeitos de prestação de TIR e se essa prestação era ou não susceptível de fazer caducar a contumácia, da sua fundamentação extrai-se, com meridiana clareza, a dilucidação das duas únicas situações previstas na lei susceptíveis de fazer cessar a situação de contumácia [a apresentação ou detenção do arguido], pondo termo à controvérsia jurisprudencial que se foi desenhando nos nossos tribunais.

Como se retira dessa fundamentação, havendo declaração de contumácia, os passos sequenciais a percorrer serão: primeiro, o arguido “apresenta-se” (ou “é apresentado”, se vier detido); só depois desse contacto com o tribunal, é declarada a caducidade da contumácia (art. 336º, n.º 1 do CPP); e, finalmente, só então presta TIR e são observados os demais procedimentos (constituição de arguido) – art. 336º, n.º 2 do C. Processo Penal.

Em suma, não pode haver caducidade da contumácia sem apresentação/detenção do arguido, nem, por outro lado, sem, simultânea ou imediatamente, haver também prestação de TIR.

Na verdade, se é a apresentação (voluntária ou forçada) do arguido que é determinante para efeitos da declaração de cessação da contumácia, a prestação do TIR é nuclear para garantir a boa tramitação do processo até final, incluindo a execução da pena, em caso de condenação – art. 196º, al. e) do C. Processo Penal. Só a partir da prestação de TIR, com a indicação de uma morada em Portugal, fica salvaguardada a ulterior tramitação do processo, passando o arguido a ser notificado, para todos os actos, por aviso postal simples.

Esta forma de notificação tem, naturalmente, de se revestir de todas as cautelas necessárias à salvaguarda dos direitos do arguido. Para além do mais, o distribuidor do serviço postal tem de lavrar uma declaração indicando a data e confirmando o local exacto do depósito, que envia para o tribunal – art. 113º, nº. 3 do C. Processo Penal. É um procedimento essencial para se garantir não só a cognoscibilidade por parte do destinatário do acto notificado, mas também a segurança na contagem dos prazos, ou seja, só esta forma de procedimento garante ao arguido todas as possibilidades de defesa, em obediência ao nº 2 do art. 32º da Constituição, para não se poder falar de qualquer surpresa na condenação e na imediata possibilidade de execução da pena (3).

Convém relembrar que a questão suscitada no recurso não é a da possibilidade de notificação do arguido através dos instrumentos de cooperação judiciária em matéria penal, mas a de saber se tal diligência equivale à apresentação do arguido conducente à caducidade da declaração de contumácia, em conformidade com o disposto no n.º 1 do art. 336º do Código de Processo Penal. Realmente, como se extrai das incidências que se deixaram transcritas, o recorrente já anteriormente havia promovido a expedição de carta rogatória para localização do paradeiro do arguido e sua posterior notificação da acusação, pretensão que lhe foi deferida. O que significa que a questão central do recurso não reside na bondade ou não da notificação do arguido, mas sim dos efeitos pretendidos com tal notificação.

Desde logo, note-se que, se é inegável que cada vez mais os instrumentos de cooperação judiciária em matéria penal e nomeadamente a Convenção de Auxílio Judiciário em Matéria Penal entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa procuram, na luta contra a criminalidade, estabelecer formas rápidas e eficazes de comunicação de informações, de actos processuais e de outros actos públicos, quando se afigurarem necessários à realização das finalidades do processo, tais modalidades de comunicação, todavia, têm de obedecer ao direito interno dos respectivos estados contraentes.

Ora, em face do que vem dito, somos forçados a concluir que extravasa os limites da lei e não tem alicerce nos fundamentos do acórdão uniformizador a tese, por que se pugna no recurso, da idoneidade do pretendido meio de notificação para desencadear a caducidade da contumácia, por o mesmo, supostamente, corresponder à apresentação do arguido em juízo.

Com efeito, essa pretensão distancia-se do caminho trilhado pelo Supremo Tribunal, tanto na fundamentação como no segmento uniformizador do referido Acórdão de fixação de jurisprudência: não se podendo admitir a expedição de carta rogatória para aquela finalidade, como se rematou naquele segmento, também se não pode admitir que a notificação pessoal através dum pedido de auxílio judiciário internacional corresponda à apresentação do arguido nos termos em que a lei o determina, tanto mais que essa “notificação” nenhuma garantia ofereceria à ulterior tramitação processual ou, sequer, a que o arguido se deslocaria ao território nacional para prestar TIR.

Como insofismavelmente se afirma na fundamentação do mesmo Acórdão só o contacto pessoal do arguido com o tribunal permite encarar a caducidade da contumácia, advinda, precisamente, da impossibilidade de efectuar esse contacto.

É, pois, indefensável a ideia de que poderia corresponder à “apresentação” do arguido, acarretando a caducidade da contumácia, a sua notificação da acusação e do despacho que designa dia para audiência por uma autoridade oficial estrangeira, ficcionando ser essa autoridade uma “longa manus” do tribunal português e, aliás, equiparando tal notificação ao legalmente exigido contacto pessoal entre o tribunal e o arguido, feito – sublinhe-se – por meio de apresentação ou detenção deste.

Assim, ressalvado o devido respeito, entendemos que a solução proposta no recurso é incompatível com a jurisprudência fixada no citado AUJ, nomeadamente por visar obter a caducidade da declaração de contumácia sem a garantia da apresentação do arguido nos exactos termos aí colocados.

É o que, claramente, também observou o Exmo. Sr. Procurador Geral-Adjunto ao defender que a solução proposta no recurso não é de modo algum compatível com a jurisprudência fixada no acórdão uniformizador e referenciando também o acórdão proferido por este Tribunal em 18/6/2018 (no âmbito do p. 605/05.3PBGMR.G1 e relatado pela Exma. Adjunta deste acórdão), em que, suscitando-se questão idêntica à deste recurso, se concluiu que a argumentação do acórdão uniformizador abrangia directamente o caso desses autos.

É certo que a decisão que resolver o conflito jurisprudencial não constitui orientação obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão, de acordo com o disposto no art. 445º, nº 3, do CPP.

O Conselheiro Abrantes Geraldes ponderou (4): «É claro que, ao invés do que ocorria com os Assentos que o art. 2º do CC de 1966 integrava nas fontes normativas, os Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência (AcUJ) não gozam de força vinculativa a não ser no âmbito do processo em que são proferidos (art. 4º, nº 1, da LOSJ). Ainda assim, o sistema tem convivido de forma salutar com a força persuasiva de tais arestos que é projectada pela conjugação de diversos factores: a solenidade do julgamento (…), a qualidade dos seus protagonistas e a valia da fundamentação, o que é demonstrado pelo generalizado respeito que as instâncias vêm demonstrando pelas soluções uniformizadoras que acabam por impor-se às polémicas jurisprudenciais que as precedem ou que procuram prevenir.

Daí que só se deva materializar uma divergência que seja substancial e a sua explanação sempre imporá, não uma genérica fundamentação, mas o cumprimento de «um dever especial de fundamentação destinado a explicitar e explicar as razões de divergência em relação à jurisprudência fixada» (5). Com efeito, «os tribunais só podem divergir da jurisprudência uniformizada do STJ quando tenham argumentos nela não debatidos, ou seja, a divergência tem de se fundamentar em argumentos novos que não aqueles constantes da tese que ficou vencida no acórdão para fixação de jurisprudência, sob pena de a uniformização não ter qualquer efeito e os tribunais continuarem com base nos mesmos argumentos a produzirem decisões desencontradas» (6).

Ou seja, um tribunal só pode afastar-se de jurisprudência fixada quando houver «razões para crer que uma jurisprudência fixada está ultrapassada», o que sucederá, por exemplo, quando «o tribunal judicial em causa tiver desenvolvido um argumento novo e de grande valor, não ponderado no acórdão uniformizador (no seu texto ou em eventuais votos de vencido), susceptível de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução anteriormente perfilhada», ou «se tornar patente que a evolução doutrinal e jurisprudencial alterou significativamente o peso relativo dos argumentos então utilizados, por forma a que, na actualidade, a sua ponderação conduziria a resultado diverso», ou ainda «a alteração da composição do Supremo Tribunal de Justiça torne claro que a maioria dos juízes das Secções Criminais deixaram de partilhar fundadamente da posição fixada». O que não sucede quando o tribunal judicial se limita a não acatar «a jurisprudência uniformizada, sem adiantar qualquer argumento novo, sem percepção da alteração das concepções ou da composição do Supremo Tribunal de Justiça, baseado somente na sua convicção de que aquela não é a melhor solução ou a solução legal» (7).

Consequentemente, entendemos que, actualmente, não existem argumentos novos, que não tenham já sido ponderados no Acórdão, nomeadamente na posição que ficou vencida, que pudessem permitir afastar a jurisprudência fixada (8).

Concluímos, pois, que improcede o recurso e deve manter-se, por não merecer qualquer censura, a decisão recorrida de não ordenar a notificação do arguido nos termos sugeridas pelo Ministério Público.

IV - Decisão:

Pelo exposto, julgando improcedente o recurso, decide-se manter a decisão recorrida.

Sem tributação por dela estar isento o recorrente.
Guimarães, 3/12/2018

Ausenda Gonçalves
Fátima Furtado


1. Embora a lei os não defina, tem-se entendido como actos urgentes os que respondem à apreciação de questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa, como a verificação de qualquer das causas de extinção da responsabilidade criminal ou a descriminalização dos factos imputados ao arguido.
2. A caducidade é, por definição, a extinção automática de uma situação jurídica em consequência de um facto jurídico, sem necessidade de qualquer manifestação de vontade jurisdicional ou privada. Na lição do Professor Castro Mendes «[a caducidade] em sentido amplo é a cessação dum direito, ou duma situação jurídica, não retroactivamente, pela verificação de um facto jurídico ‘stricto sensu’» — Teoria Geral de Direito Civil, 1979, III, p. 606.
3. Não pode olvidar-se que a declaração de contumácia só pode ser declarada uma vez no âmbito do mesmo processo.
4. V. texto que serviu de base à sua intervenção “Uniformização de Jurisprudência” no Colóquio realizado no Supremo Tribunal de Justiça, no dia 25-6-2015 (acessível na página do Tribunal na internet.).
5. Sumário do Ac. do STJ de 27/02/2003 (P. 625/03-5.ª), em http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/criminal/criminal2003.pdf).
6. Ac. desta Relação de 07/02/2011, publicado em www.dgsi.pt/jtrg, com o nº de proc. 48/08.7JABRG.G1.
7. idem, seguindo o sumário do já citado Ac. do S.T.J. de 27/02/2003.
8. Sobre o assunto, podem ver-se ainda os Acs. da R.E. de 31/05/2011, com o nº de proc. 35/10.5PESTB.E1, e de 25/10/2011, com o nº de proc. 369/10.9GDSTB.E1, ambos publicados em www.dgsi.pt/jtre.