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CRIME DE HOMICIDIO NEGLIGENTE
INCREMENTO DO RISCO
DEVER DE CUIDADO
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
Sumário
I - Deverá ser punível a título de conduta negligente a conduta de que resulta o aumento da probabilidade da produção do resultado típico em comparação com a conduta que estaria de acordo com o risco permitido. II - Viola o seu dever de cuidado o condutor de um veículo pesado que efetuou uma manobra de marcha atrás sem condições de visibilidade. III - No caso em apreço, não exclui tal violação, com base no princípio da confiança, o facto de a vítima não usar o colete refletor que era de utilização obrigatória no local.
Texto Integral
Processo nº 12/16.2MBMTS.P1 - 4.ª Secção
Relator: Francisco Mota Ribeiro
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto
1. RELATÓRIO
1.1 O arguido B…, após realização da audiência de julgamento, no Processo nº 12/16.2MBMTS, que correu termos no Juízo Local Criminal de Matosinhos, Juiz 1, Tribunal Judicial da Comarca do Porto, por sentença de 22/11/2018, foi condenado, pela autoria em 26/02/2016, na forma consumada, de um crime de homicídio por negligência, p. p. pelo art.º 137º, nº 1, do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão, substituída pela pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 7,00€ (sete euros), num total de 1.750,00€ (mil setecentos e cinquenta euros), e ainda na sanção acessória de proibição de conduzir veículos com motor, prevista no art.º 69º, nº 1, al. a), do Código Penal, pelo período de 10 (dez) meses. 1.2. Não se conformando com tal decisão, dela interpôs recurso o arguido, apresentando motivação que termina com as seguintes conclusões: “1 - O arguido, ora Recorrente, não se conforma com a sua condenação sendo seu modesto entendimento que não foi produzida prova dos factos de que vinha acusado. 2 – Entende o arguido que os pontos 16 e 21 da matéria de facto dada como provada foram indevidamente julgados, sendo, aliás, seu modesto entendimento que o Tribunal incorreu em manifesto erro, dado que não foi produzida qualquer prova nesse sentido. 3 - No que respeita ao ponto 16 da matéria de facto, a prova produzida – mormente a prova testemunhal - antes impunha que se desse como provado que não era habitual que os motoristas saíssem do interior do camião após a carga, para apertar os dispositivos de fixação dos contentores, após o carregamento dos mesmos. 4 – Do depoimento prestado pelas testemunhas C…, D…, E…, F…, G…, H… e I…, que o Tribunal valorou, não resulta que fosse pratica habitual os motoristas saírem do interior do camião após a carga, para apertar os dispositivos de fixação dos contentores, após o carregamento dos mesmos. 5 - De tais depoimentos, mormente do depoimento prestado pela testemunha J… – funcionária da Infraestruturas de Portugal, a exercer funções na portaria à data dos factos, resulta clarividente que tal prática pelos motoristas não era habitual. 6 - Impõe-se a alteração da matéria de facto dada como provado no ponto 16, dando-se antes como provado que não era habitual que os motoristas saíssem do interior do camião após a carga, para apertar os dispositivos de fixação dos contentores, após o carregamento dos mesmos, sendo que B… tinha, necessariamente, conhecimento dessa circunstância. 7 - Ainda que, por mera hipótese, a prova produzida não permitisse dar como provado que tal prática não era habitual pelos motoristas, dessa não prova não podia o Tribunal, em prejuízo do arguido, retirar a conclusão inversa. 8 - Dando-se como provado que tal prática não era habitual entre os motoristas, ou não se dando como provado que tal prática era habitual entre eles, prejudicada fica a matéria de facto que o Tribunal deu como provada no aludido ponto 21, ou seja, que o arguido sabia e tinha plena consciência da possibilidade de que, com a sua conduta, pudesse resultar o atropelamento da vítima ou de quem quer que seja. 9 - Se o arguido referiu - e o Tribunal credibilizou – que, ao iniciar a manobra, estava convencido que o camião da vítima já tinha arrancado, não se concebe que o Tribunal desse como provada a matéria do ponto 21, pois que, se o arguido estava convicto que o camião da vítima já tinha arrancado, obviamente não previa que a vítima pudesse encontrar-se junto da sua traseira. 10 - O Tribunal entra em contradição ao ter dado como provados os factos constantes do ponto 21, quando deu igualmente como provado o constante do ponto 8. 11 - O que, em tese, se considera poder ser previsível para o arguido e para o homem médio colocado na sua posição era que da manobra de marcha atrás pudesse resultar o embate no camião da vítima, o que é coisa bem diversa de embater na vítima. 12 - Ainda que se entenda que não haverá lugar à alteração da matéria de facto, sempre se entende que a mesma se revela insuficiente a sustentar a condenação do arguido. 13 - O Tribunal não andou bem ao não ter retirado as devidas consequências do denominado princípio da confiança, como critério delimitador do tipo de ilícito negligente, dado que no recurso a tal princípio não aquilatou devidamente a conduta da própria vítima – mormente o facto de esta não se encontrar no uso de colete refletor - ponto 17 dos factos dados como provados -, o qual era de utilização obrigatória naquele local - cfr. motivação da sentença. 14 – O Tribunal tinha de extrair a devida ilação do facto de ter caracterizado a conduta da vítima como perigosa e censurável. 15 - Na aplicação do denominado princípio da confiança, o Tribunal não podia deixar de atender ao facto da vítima se encontrar obrigada ao cumprimento do seu próprio dever de cuidado - usar colete refletor e não se colocar, agachado, entre as traseiras de dois camiões, num local de risco e num dia de chuva intensa e de muito reduzida visibilidade (cfr. ponto 10 da matéria de facto e motivação da sentença), sendo por isso legítimo que o arguido confiasse que a vítima cumpria com tais deveres, dado que este também era motorista profissional. 16 - Se a obrigatoriedade de uso de colete se impunha à vítima independentemente das condições climatéricas que se fizessem sentir, mais se lhe impunha tal obrigatoriedade no dia/hora em que ocorreram os factos. 17 - Ao Tribunal competia ainda lançar mão do princípio da autorresponsabilidade da vítima, considerando que a sua conduta, porque temerária, revelou-se absolutamente inadequada e inesperada e como tal foi esta conduta que realizou do risco e, consequentemente, não se poderá considerar que o arguido ultrapassou o risco permitido. 18 - O Tribunal, ao considerar que o arguido, ao efetuar a manobra de marcha atrás, violou a regra estradal prevista no art.º 47.º do C.E., não podia deixar de ponderar o facto desta norma estradal, embora abstratamente aplicável ao caso sub judice, encontra-se especialmente prevista para as situações de trânsito em condições normais – ou seja, para o trânsito na via pública e não para o trânsito em locais privados ou restritos ao público em geral. 19 - No juízo de aplicação do artigo 47.º do C.E., o Tribunal deveria ter ponderado o facto da manobra de marcha atrás ter sido realizada em espaço privado, objetivamente perigoso para todos quanto aí se encontrem apeados, mormente quando estes não façam uso – obrigatório - de vestuário de alta visibilidade. 20 - Ao lançar mão do referido artigo 47.º do C.E., o Tribunal deveria ainda ter considerado o disposto no artigo 46.º desse mesmo diploma e, com recurso às regras da experiência, concluir que o arguido efetuou a manobra de marcha atrás de forma lenta. Pois que, para além de não ter sido produzida qualquer prova no sentido do arguido ter realizado tal manobra de forma rápida, o Tribunal refere expressamente que não resultou provado que ”o camião conduzido pelo arguido tenha embatido na traseira do camião .. – EE - ..” - camião da vítima. 21 - Apelando às regras da experiência, o Tribunal deveria ter concluído que se o arguido tivesse efetuado a manobra de marcha atrás de forma rápida, ou com velocidade excessiva, certamente teriam resultado sinais de embate nas traseiras dos camiões. 22 - Ainda com recurso ao princípio da confiança, o Tribunal deveria ter ponderado que o local onde ocorreu o sinistro estava sujeito ao dever de vigilância por parte da Infraestruturas de Portugal, sendo legítimo que o arguido esperasse que tal entidade, em cumprimento de tal dever de vigilância, ordenasse o imediato afastamento da vítima do local, mormente pelo facto de este se encontrar apeado não fazendo uso de colete refletor. 23 - Atendendo a que atividade relacionada com a carga e descarga de contentores é objetivamente perigosa, a Infraestruturas de Portugal estava obrigada ao dever de vigilância, sob pena de incorrer em responsabilidade - artigo 493.º do Código Civil – sendo expectável para o arguido que tal entidade desse cumprimento a tal dever. 24 - O Tribunal não podia ainda deixar de concluir que a vítima, para além de ter violado as normas de segurança impostas no local, violou ainda o disposto no art.º 101 do C.E., pois que, se o legislador, neste dispositivo legal, proíbe que o peão pare na faixa de rodagem ou que a atravesse sem que previamente se certifique que o pode fazer sem perigo de acidente, por maioria de razão proíbe que o peão – in casu a vítima naquele teatro de operações -, se coloque agachado entre as traseiras de dois camiões. 25 - O princípio da auto responsabilidade, como temperador da teoria do risco, impunha que o Tribunal excluísse o arguido da imputação objetiva do facto, quer pelo inusitado e a vários níveis inexplicável comportamento da vítima, quer pela manifesta falta de cumprimento do dever de vigilância por parte da Infraestruturas de Portugal que determinaram uma clara interrupção do nexo causal. 26 - O Tribunal, ao referir que existindo uma violação das normas estradais se deve presumir a negligência, terá, no modesto entendimento do recorrente, confundido responsabilidade civil com responsabilidade penal, pois que, a sufragar-se tal entendimento, ocorrerá violação do princípio constitucional do in dubio pro reo. No âmbito da responsabilidade penal a negligência poderá, quanto muito, indiciar-se - indício que, pela prova produzida, se entende ter sido largamente afastado. 27 - Ao Tribunal cabia efetuar um juízo de prognose póstuma, colocando-se na posição do arguido na data e local em que os factos ocorreram, questionando se era expectável para o arguido que, dado o circunstancialismo, da manobra de marcha atrás pudesse resultar o embate na vítima. 28 - O Tribunal não responde se, no caso de a vítima se encontrar no uso do colete refletor o arguido a teria visto, não realizando a manobra, bem como não responde o Tribunal se, caso a Infraestruturas de Portugal tivesse cumprido com o seu dever de vigilância, impedindo a vítima de circular apeada sem o uso de colete refletor, o sinistro teria ocorrido. 29 - O Tribunal, porventura obnubilado pelo facto de ter ocorrido uma morte, ter-se-á sentido na obrigação de fazer “justiça” a todo o custo, não tendo, nessa busca, aquilatado devidamente, quer o comportamento da vítima, quer a omissão do dever de vigilância por parte da Infraestruturas de Portugal. 30 - O Tribunal erigiu o arguido como bode expiatório do sucedido infortúnio, condenando-o em multa e numa sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 10 meses, o que determina necessariamente a quebra do seu vínculo laboral, sem que o arguido possa socorrer-se de subsídio de desemprego e com custo, de todo imerecido, quer para si quer para o seu agregado familiar, dado que este que fica irremediavelmente impossibilitado de cumprir o empréstimo contraído para aquisição de casa de morada de família. 31 - Ao ter decidido como decidiu, violou a sentença recorrida, por erro de aplicação e interpretação, entre outros, o disposto nos artigos 10º, nº 1, 15.º, 137.º do Código Penal, artigo. 32º nº 2 da C.R.P. e 374.º nº 2 do C.P.P.” 1.3. O Ministério Público respondeu, concluindo pela improcedência do recurso, nos seguintes termos: “1. Nos termos do artigo 410.º, nº 1 do Código de Processo Penal o recurso interposto sobre a matéria de facto de uma sentença proferida em processo crime pode ter um de três fundamentos: a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e c) o erro notório na apreciação da prova. 2. Compulsados os termos do recurso interposto pelo arguido, rapidamente constatamos que o mesmo não alega um erro notório na apreciação da prova produzida em sede de audiência de julgamento, mas apenas factos que no seu entender, determinariam formação de convicção em sentido diverso do adotado pelo Tribunal; 3. Preceitua o artigo 127.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “livre apreciação da Prova”: “ Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.” 4. Assim, verifica-se que o legislador consagrou no Código de Processo Penal o princípio da livre apreciação da prova que se consubstancia, por um lado, em inexistirem critérios ou cânones legais pré-determinados no valor a atribuir á prova e, por outro lado, em não poder haver uma apreciação discricionária ou arbitrária da prova produzida. 5. Tal liberdade, está, assim, intimamente ligada quer ao dever de tal apreciação assentar em critérios objetivos de motivação quer, por outro lado, ao dever de perseguir a verdade material. 6. Do exposto resulta que o juiz deve apreciar a prova testemunhal e as declarações do arguido segundo os critérios de valoração racional e lógica, tendo em conta as regras normais de experiência, julgando segundo a sua consciência e convicção. 7. Ora, no caso em pareço, a verdade é que na fundamentação da sua decisão, em momento algum a Mm.ª Juiz comete erro notório na apreciação da matéria de facto produzida; erro notório este no sentido de ofensivo e contraditório às regras da experiência comum ou às regras do pensamento lógico dedutivo.” 1.4. O Sr. Procurador-Geral-Adjunto, neste Tribunal, emitiu parecer, no qual concluiu pela improcedência do recurso. 1.5. Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. 1.6. Tendo em conta os fundamentos do recurso interposto pelo arguido e os poderes de cognição deste tribunal, importa apreciar e decidir as seguintes questões: 1.6.1. Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; 1.6.2. Contradição entre a fundamentação e a decisão; 1.6.3. Erro notório na apreciação da prova; 1.6.4. Impugnação da decisão da matéria de facto; 1.6.5. Preenchimento dos elementos típicos objetivos e subjetivos do crime de homicídio negligente.
2.1. Factos a considerar
2.1.1. O Tribunal a quo considerou provada a seguinte factualidade: “1. No dia 26 de fevereiro de 2016, por volta das 15h00, B… e K… (nascido a .. – 01 - 1974, titular do Cartão de Cidadão n.º ………, e doravante designado por K…), encontravam-se a desempenhar as suas funções profissionais, como motoristas de pesados, na zona de cargas e descargas do Terminal de Contentores da Infra-estruturas de Portugal (mais conhecido por “Terminal Ferroviário L…”), sito na Avenida …, em Matosinhos, e pertencente ao domínio público ferroviário. 2. Na data referida, chovia intensamente, e trovejava. 3. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, B… conduzia o camião de mercadorias, da marca “Renault”, modelo “…”, de cor …, com a matrícula .. – NR - .., e semi-reboque de matrícula L-…….. 4. E K… conduzia o camião de mercadorias, da marca “DAF”, modelo “………”, de cor …, com a matrícula .. – EE - .., com semi-reboque de matrícula L - …….. 5. Na data e hora referidas, K… parou o camião .. – EE - .. na zona de cargas e descargas do Terminal, seguindo as indicações de C…, manobrador da máquina porta contentores, tendo recebido um contentor de mercadorias como carga. 6. Finalizado o processo de carga, K… desceu da cabine do camião .. - EE - .. e contornou a báscula, apertando, à passagem, os dispositivos de fixação do contentor. 7. Nesse mesmo instante e local, B… aguardava o momento para efetuar a descarga do contentor do camião que conduzia, de matrícula .. – NR - ... 8. Depois de se aperceber que a máquina que carrega os contentores tinha abastecido um camião que estava na sua retaguarda, B…, sem verificar se esse camião já havia saído do local de carga, mas convencido de que o respetivo motorista já tinha arrancado, e após receber a ordem do manobrador da CP, para se deslocar para o lado da descarga, do lado contrário da linha, começou a efetuar uma manobra de marcha atrás. 9. Ora, quando B… começou a recuar com o camião de matrícula .. – NR - .., o camião conduzido por K… ainda se encontrava parado no mesmo local onde efetuou a carga. 10. E K… encontrava-se nesse instante, fora do camião que conduzia, de matrícula .. – EE - .., a apertar, agachado, o dispositivo situado na retaguarda direita da respetiva báscula, de forma a poder circular em segurança. 11. B…, ao efetuar a manobra de marcha atrás referida, na qual recuou cerca de 4 a 5 metros, embateu, pelas 15h10, com a traseira do camião que conduzia (.. – NR - ..) em K…, esmagando K… entre este e o veículo .. – EE - ... 12. B…, não se apercebendo do embate, terminou a manobra, engatando a 1.ª velocidade e novamente a marcha atrás, só depois se apercebendo da existência de um vulto no solo, a cerca de 5 a 7 metros da sua cabine e muito perto da traseira do outro camião. 13. Por força do embate, com esmagamento, K… sofreu, designadamente, as seguintes lesões traumáticas: a) Cabeça: destruição e ausência do hemisfério cerebeloso direito e laceração do hemisfério cerebeloso esquerdo; fratura cominutiva da mandíbula; meninges com alteração da sua configuração normal, com múltiplas lacerações extensas e irregulares da dura-máter e hemorragia subaracnoideia occipital; fratura cominutiva dos ossos da cabeça, de bordos irregulares e infiltrados de sangue; b) Pescoço: fratura do osso hióide; c) Coluna Vertebral: fratura da primeira, segunda e terceira vértebras cervicais; d) Tórax: fratura do arco posterior da segunda e terceira costelas direitas; fratura da clavícula esquerda; fratura dos arcos anteriores da primeira à sexta costelas esquerdas, e dos arcos posteriores da primeira à décima costelas. 14. Tais lesões, provocadas por força do embate e esmagamento pelo camião conduzido por B…, foram causa direta e necessária da morte imediata de K…, tendo o óbito sido verificado às 15h45. 15. À data, não existia qualquer norma interna no Terminal Ferroviário L… que proibisse os motoristas de andar apeados dentro do terminal. 16. Sendo aliás, habitual que os motoristas saiam do interior do camião após a carga, para apertar os dispositivos de fixação dos contentores após o carregamento dos mesmos, sendo que B… tinha, necessariamente, conhecimento dessa circunstância. 17. K… não utilizava colete refletor, na data e hora do embate. 18. B…, como motorista profissional, devidamente habilitado para conduzir veículos pesados de mercadorias, tinha conhecimento de que não deve iniciar a marcha sem adotar as precauções necessárias para evitar qualquer acidente. Sabia ainda que devia adaptar a condução às condições meteorológicas que, à data, se faziam sentir, tomando precauções acrescidas por força da chuva intensa e menor visibilidade. 19. Sabia, ainda, que a manobra de marcha atrás é proibida onde quer que a visibilidade seja insuficiente ou quando a via, pela sua largura ou outras características, seja inapropriada à realização da manobra. 20. B… infringiu, por isso, os deveres de zelo, cuidado e diligência que impendem sobre todos os condutores de veículos automóveis, e em particular sobre os motoristas profissionais, bem como o disposto nos artigos 12.º e 47.º, n.º 1, alínea d) do Código da Estrada. 21. Tinha conhecimento e plena consciência desses deveres e normas de circulação rodoviária e sabia ser possível que a sua conduta causasse, como causou, o atropelamento e a morte a terceiras pessoas que naquela altura e local estivessem apeadas na zona de cargas e descargas dos contentores. 22. Todavia, B… atuou acreditando que tal não iria acontecer, estando, contudo, a sua condução desatenta e descuidada na origem do embate e esmagamento de K… e, consequentemente, na morte violenta daquele. 23. B… atuou de forma livre e consciente, da forma descrita, apesar de saber que a sua conduta era proibida e punida por lei. ………………………………………………………………… ………………………………………………………………… ………………………………………………………………… 2.2.4.Do preenchimento dos elementos típicos objetivos e subjetivos do crime de homicídio negligente
Diz o nº 1 do art.º 137º do Código Penal que “Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.”
No recurso interposto, não vem posta em causa a verificação da conduta causal da morte de outra pessoa, imputada ao recorrente, e assim também a verificação do dano ao bem jurídico vida tutelado pela norma incriminadora. O que o recorrente pretende sustentar, no âmbito da verificação positiva da negligência exigida pelo tipo-de-ilícito, é que o Tribunal a quo não retirou as devidas ilações do “denominado princípio da confiança”, nomeadamente a valoração da conduta da vítima como perigosa e censurável, por não usar colete refletor, o qual era de utilização obrigatória naquele local, e ainda o ter-se colocado agachado “entre as traseiras de dois camiões, num local de risco, num dia de chuva intensa e de muito reduzida visibilidade (…), sendo por isso legítimo que o arguido confiasse que a vítima cumpria com tais deveres, dado que este também era motorista profissional.” Acrescentando que ao Tribunal a quo “competia ainda lançar mão do princípio da autorresponsabilidade da vítima, considerando que a sua conduta, porque temerária, revelou-se absolutamente inadequada e inesperada e como tal foi esta conduta que realizou do risco e, consequentemente, não se poderá considerar que o arguido ultrapassou o risco permitido.”
Sendo curioso notar que, invocando um princípio que teve origem jurisprudencial, no direito alemão, no âmbito do tratamento de casos surgidos no tráfego rodoviário (“quem se comporta no tráfico de acordo com a norma de cuidado deve poder confiar que o mesmo sucederá com os outros; salvo se tiver razão concretamente fundada para pensar ou dever pensar de outro modo”[1]), mas que se estendeu depois a outros domínios, venha simultaneamente pretender afastar uma das normas do Código da Estrada invocada pelo Tribunal a quo, mais precisamente o art.º 47º, norma esta essencial no âmbito do tráfego rodoviário, cujo conteúdo ou ínsito sentido poderá ir também mais além do domínio estritamente jurídico-formal da sua aplicação, pois a conduta hipotética será sempre, em
qualquer domínio de atuação, uma conduta comissiva “socialmente perigosa”[2], por referência ao direito penal.
Analisando o nosso caso concreto, num primeiro plano de abordagem o que temos é uma determinada conduta, levada a cabo pelo recorrente, que ao efetuar a manobra de marcha atrás com o camião, nos termos dados como provados, teve como resultado a morte de uma pessoa. Dado como assente este facto, isto é, que foi a conduta do arguido ora recorrente que causou a morte, então a questão fundamental a resolver, tendo em conta o concreto objeto do recurso interposto, estará desde logo, e antes de mais, na determinação da violação ou não, por parte do arguido, do dever de cuidado que lhe era concretamente exigido ao levar a cabo a referida manobra. Ou seja, em saber, nos termos do art.º 15º do CP, para o qual remete o art.º 137º, nº 1, do mesmo diploma, se o arguido agiu com negligência, por não ter procedido com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigado e de que era capaz, quer tenha representando aquela morte como consequência possível da sua conduta, mas não se conformando com a sua realização, quer nem sequer haja representando a possibilidade dessa realização – atuando assim, consoante o caso, com negligência consciente ou inconsciente, nos termos do art.º 15º, al. a) e b), do CP. Sendo por isso a questão decisiva a resolver, nas palavras de Claus Roxin, a de saber se uma determinada “violação do dever de cuidado à qual se segue uma morte, fundamenta ou não um homicídio negligente”[3]. Perante tal problema o mesmo autor propõe uma solução baseada no princípio do incremento do risco, isto é, se da “conduta incorreta” concretamente adotada resultou um aumento da probabilidade de produção do resultado típico em comparação com a conduta que se enquadrasse no risco permitido (aquela que não implicasse uma violação do dever de cuidado de acordo os princípios do risco permitido), então essa conduta porque violadora do dever de cuidado integraria o tipo de ilícito e seria punível a título de crime negligente[4]. Ou, agora nas palavras do Professor Jorge de Figueiredo Dias, “a violação de um dever de cuidado só pode ser imputada a quem, com ela, criou um risco não permitido que se concretizou no resultado típico”[5]. Sendo certo que, segundo o mesmo autor, a violação das normas de cuidado, constituindo embora “um indício por excelência de uma contrariedade ao dever de cuidado tipicamente relevante, não pode em caso algum fundamentá-la definitivamente, provenha ela de uma norma jurídica, de uma norma escrita não jurídica ou da aplicação do critério da figura padrão”, cabida no caso (enquanto fontes de aferição do dever objetivo de cuidado: violação de uma norma jurídica de comportamento; violação de normas escritas, profissionais e do tráfego, correntes em certos domínios de atividade; violação de costumes profissionais comuns ao profissional prudente, ou “o recurso direto ao cuidado imposto pelo concreto comportamento socialmente adequado ao tráfico”), tudo dependendo, portanto, da especial configuração do caso concreto[6]. Daí a relevância do critério apontado por Claus Roxin: primeiro “examina-se qual a conduta que não se poderia imputar ao agente como violação do dever de acordo com os princípios do risco permitido; segundo, “faça-se a comparação entre ela e a forma de atuar do arguido”. Se se chegar comprovadamente à conclusão de que a conduta indevida (“incorreta”) do arguido fez aumentar a probabilidade do resultado em comparação com a que estaria de acordo com o risco permitido, então deverá considerar-se que tal conduta deverá ser punível a título de crime negligente.[7]
Analisemos agora o caso dos autos.
Não restam dúvidas de que a colocação em movimento de um veículo pesado, em marcha atrás, com reduzida visibilidade, não só porque uma tal movimentação vai implicar a ocupação de espaço onde poderão estar coisas ou pessoas que o condutor, no ato de condução, não tem possibilidade de ver, dada desde logo a inexistência de possibilidade de visão através de um óculo traseiro ou de um retrovisor interior que o permitisse numa boa margem de medida, como normalmente acontece com os veículos ligeiros, implica um prévio e acrescido cuidado na realização de tal manobra, mesmo que não fosse aplicável ao caso dos autos o art.º 47º do Código da Estrada, porquanto esse acrescido dever de cuidado resulta da natural perceção do perigo que para bens jurídicos valiosos pode resultar da realização da manobra de marcha atrás, sobretudo com um camião com as características do dos autos, perigo esse que é plausível no domínio de atividade exercida pelo recorrente, sendo por isso o dever de cuidado inerente ao comportamento profissional normalmente prudente ou socialmente adequado à segurança na condução de veículos pesados, onde quer que o mesmo se realize.
Acontece ainda que o local onde se deu o acidente integra as estruturas ferroviárias, nos termos em que as mesmas são definidas no Anexo I, al. c), a que se reporta o art.º 3º do DL nº 217/2015, de 07/10, fazendo por isso parte do domínio público ferroviário, o qual integra cais de passageiros e de mercadorias, bermas e pistas, incluindo as instalações destinadas a garantir a segurança de circulação rodoviária, nos termos do Anexo II, a que se refere o art.º 20º, nº 2, do DL nº 91/2015, de 29/05, que procedeu à incorporação, por fusão, na Rede Ferroviária Nacional (Refer, E.P.E.), da EP — Estradas de Portugal, S. A. (EP, S.A.), bem como à transformação daquela em sociedade anónima, passando a denominar-se Infra-estruturas de Portugal, S.A. (IP, S.A.), e ainda à extinção da EP, S. A., transferindo as suas atribuições e competências desta para a IP, S.A..
Ou seja, as referidas infraestruturas são vias de domínio público do Estado, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 2º, nº 1, do Código da Estrada, a implicar que o trânsito automóvel aí realizado esteja sujeito às normas daquele Código, e entre elas as dos art.º 12º, nº 1, e 47º, nº 2, al. d), como bem considerou o Tribunal a quo. A primeira norma a estabelecer que “os condutores não podem iniciar ou retomar a marcha sem assinalarem com a necessária antecedência a sua intenção e sem adotarem as precauções necessárias para evitar qualquer acidente” e a segunda que “a marcha atrás é proibida (…) onde quer que a visibilidade seja insuficiente ou que a via, pela sua largura ou outras características, seja inapropriada à realização da manobra”.
Ora, no caso dos autos é evidente a proibição da realização da manobra de marcha atrás, sobretudo nos termos em que a mesma foi realizada, isto é, sem quaisquer condições de visibilidade, porquanto chovia intensamente e trovejava, sendo que as características do veículo, por si só, impunham já em si especiais deveres de cuidado. Além de o próprio arguido nem sequer se ter apercebido, como lhe era exigível que se tivesse apercebido, que o camião que estava atrás do seu ainda ali se encontrava, não tendo saído do local onde tinha acabado de efetuar a carga, embora o arguido estivesse convencido de que o respetivo motorista já tinha arrancado, mas sem base factual objetiva que justificasse uma tal crença, a não ser a sua falta de atenção e de zelo. Tendo sido por isso, nos termos dados como provados, que ao efetuar a manobra de marcha atrás referida, na qual recuou cerca de 4 a 5 metros, veio a embater com a traseira do camião que conduzia (.. – NR - ..) em K…, esmagando K… entre este e o veículo .. – EE - ... Ou seja, é bom de ver que o incremento do risco para a vida do falecido teve origem na conduta ilícita ou, nas palavras de Roxin, “incorreta”, contrária ao dever que materialmente lhe era exigível, do arguido, dela tendo concretamente resultado um aumento da probabilidade de produção do resultado típico (morte), não tendo tal conduta qualquer equivalência ou enquadramento em outra a ela alternativa, incluindo a omissão de realização da própria manobra, que se pudesse, por simpatia ou contágio, dizer que aquela também se poderia enquadrar no risco permitido, e em termos de também se poder afirmar que a mesma não implicou uma violação do dever de cuidado. Podendo assim concluir-se que, num primeiro plano de análise, a conduta do recorrente violou o dever objetivo de cuidado que sobre si recaia, ademais em conexão com a norma jurídica do Código da Estrada que regulava a possibilidade de realização de tal manobra, violação essa que se concretizou no resultado típico (a morte da vítima), integrando por isso a mesma o tipo de ilícito de homicídio negligente, por que foi condenado o recorrente na decisão recorrida. E dizemos num primeiro plano de análise, porquanto veio o recorrente ainda sustentar que o Tribunal a quo não retirou as devidas ilações do “denominado princípio da confiança”, nomeadamente a valoração da conduta da vítima como perigosa e censurável, por não usar colete refletor, o qual era de utilização obrigatória naquele local, ademais o facto de a vítima se ter colocado agachada “entre as traseiras de dois camiões, num local de risco, num dia de chuva intensa e de muito reduzida visibilidade (…), sendo por isso legítimo que o arguido confiasse que a vítima cumpria com tais deveres, dado que este também era motorista profissional.”
Mas não tem qualquer fundamento uma tal pretensão. Desde logo porque, ao resultar de tal princípio que “quem se comporta no tráfico de acordo com a norma de cuidado deve poder confiar que o mesmo sucederá com os outros”, é bom de ver que o recorrente não só não agiu com o dever de cuidado que lhe era exigível, como ainda violou esse dever de uma forma evidente, senão mesmo clamorosa ou crassa. E mesmo que tivesse agido de acordo com a “norma de cuidado”, o que não aconteceu, como vimos, sempre tal princípio não funcionaria em seu favor, na medida em que tinha “razão, concretamente fundada, para pensar ou dever pensar de outro modo”, pois nos termos dados como provados o arguido sabia que não podia confiar que não houvesse pessoas a circular apeadas no local, designadamente, tendo em vista colocar ou apertar os pinos depois de os veículos terem sido carregados, como aconteceu no caso dos autos. Em verdade, à data dos factos não existia qualquer norma interna no Terminal Ferroviário L… que proibisse os motoristas de andar apeados dentro do terminal. Sendo aliás habitual que os motoristas saíssem do interior do camião após a carga, para apertar os dispositivos de fixação dos contentores após o carregamento dos mesmos, sendo que o arguido tinha, necessariamente, conhecimento dessa circunstância – pontos 15. e 16. dos factos provados.
Podendo ainda dizer-se que com a invocação pelo recorrente do princípio da confiança, sem fundamento nos caso dos autos, o que o mesmo acaba por pretender é precisamente o contrário daquilo que através daquele princípio se procura alcançar: “permitir a cada um, no caso concreto, cumprir os demais deveres que sobre si impendem com a máxima atenção.” Para que desse modo se garanta “uma maior efetividade na tutela dos bens jurídicos”[8]. Não tendo sido esse, seguramente, o caso do recorrente. Não se vislumbrando, por outro lado, dadas as circunstâncias do caso, nomeadamente as condições atmosféricas, a falta sequer de consciência (gravemente censurável) de que o camião tripulado pela vítima ainda se encontrava no local (“sem verificar se esse camião já havia saído do local de carga, mas convencido de que o respetivo motorista já tinha arrancado”), como é que o facto de a mesma vítima não trazer vestido o colete refletor pode transformar o risco não permitido, que o arguido assumiu ao efetuar a manobra fatal, nos termos em que a realizou, num risco permitido, para por essa via ver afastada a sua responsabilidade penal.
Razão por que irá, também nesta parte, ser negado provimento ao recurso.
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2.DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação do Porto em:
a) Julgar improcedente a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, negando-se quanto ao mais provimento ao recurso interposto pelo arguido B….
b) Condenar o recorrente no pagamento das custas a que deu causa, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC.
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Porto, 11 de abril de 2019
Francisco Mota Ribeiro
Elsa Paixão
__________ [1] Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 882. [2] Spendal, apud Claus Roxin, Problemas Fundamentais de Direito Penal, 2ª Edição, Veja, Lisboa, 1993, p. 239. [3] Idem, p. 257. [4] Idem, p. 257 e 258. [5] Como na nota 4, p. 876. [6] Idem, p. 875 e 876. [7] Idem, p. 257 e 258. [8] Sónia Fidalgo, Princípio da Confiança e Crimes Negligentes, Almedina, Coimbra, 2018, p. 336.