I - O arguido foi condenado, por acórdão do tribunal colectivo, pela prática de um crime de abuso sexual de criança agravado, de trato sucessivo, na forma consumada, p. e p. nos termos dos arts. 171.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, al. a) e 179.º, als. a) e b), do CP, na pena de 3 anos e 6 meses, pela prática de um crime de abuso sexual de criança agravado, de trato sucessivo, na forma consumada, p. e p. nos termos dos arts. 171.º, n.ºs 1 e 2, 177.º, n.º 1, al. a) e 179.º, als. a) e b), do CP, na pena de 6 anos, um crime de violação agravada, na forma tentada, p. e p. nos termos do disposto nos arts. 22.º, n.ºs 1, 2, als. b) e c), 23.º, n.º 1, 164.º, n.º 1, al. a), 171.º, n.º 1, al. a), 6 e 7, 179.º, al. a) e b), do CP, na pena de 3 anos de prisão, um crime de coacção, na forma agravada, p. e p. nos termos dos arts. 154.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, als. a) e b), do CP, na pena de 1 ano e, em cúmulo jurídico, na pena de 9 anos e 6 meses de prisão.
II - O STJ pode intervir ex officio na fixação da matéria de facto, podendo inclusive, alterá-la, se dispuser dos elementos imprescindíveis para a modificação, porque disponíveis, por exemplo, em sede de prova vinculada, ou na hipótese contrária, determinar o reenvio para remediar os vícios de confecção do texto, de forma a evitar decisões falhas ou insuficientes de fundamentação, ou incongruentes, em contradição e em desarmonia com o texto e contexto global, mal pareceria, mas mais do que isso, mal seria, que não pudesse intrometer-se no decisivo campo da matéria de direito, que, reconhecidamente, é o seu.
III - A não ser assim, colocar-se-ia a questão de saber como reconhecer ao STJ uma possibilidade de intervenção no campo temático da matéria de facto e não reconhecê-la, depois a jusante, exactamente no campo de intervenção própria. Assim, mesmo quando o recorrente não ponha operativamente em causa a incriminação definida pelas instâncias, não pode, nem deve, o STJ dispensar-se de reexaminar a correcção das subsunções, como tem sido decidido.
IV - A facticidade dada por provada alberga uma sucessão de condutas que se prolongam ao longo de cerca de 8 anos, iniciando-se a partir dos 7 anos da vítima, nascida em 11-12- 1998, concretamente tendo início a partir de 11-12-2005 e prolongando-se até 31-12-2013, com um hiato na parte final dos 8 anos de idade da vítima e durante os seus 9 anos de idade, em virtude da acção interventiva do tribunal, actuando no plano da jurisdição de menores. Assim, a actividade do arguido (pai da vítima) subsequente à intervenção do tribunal constitui uma resolução criminosa diversa da inicial, pelo que, o mesmo praticou dois crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1, do CP. V - Acresce que, na passagem para actos de sexo oral e depois anal a mudança é real e significativa, não se podendo defender que o procedimento é o mesmo mas adequado ou adaptado ao processo de crescimento e de desenvolvimento físico, corporal e sexual da menor, pelo que improcede a pretensão de redução a um único crime de abuso sexual de criança, agravado, de trato sucessivo, mantendo-se a condenação do recorrente pela prática dos dois crimes de abuso sexual por que foi condenado, incluindo as penas aplicadas, questionadas apenas no pressuposto da unificação criminosa pretendida.
VI - Uma vez que resulta da factualidade provada que o uso da força física por parte do arguido teve lugar de seguida, em acto seguido à tomada de consciência pelo arguido do facto consumado de não ter conseguido a penetração, após o arguido ver que não tinha logrado concretizar o que pretendia, por ter ficado furioso, é de afastar a violência integradora do crime de violação agravada, na forma tentada, pelo que, há que absolver o arguido da prática deste crime, operando convolação para um crime de acto sexual com adolescente agravado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22.º, 23.º, n.º 1 e 2, 73.º, n.º 1, als. a) e b), 173.º, n.ºs 1 e 2, 177.º, n.º 1, al. a), do CP. O limite máximo da pena cabível ao “novo” crime é inferior à concreta pena aplicada pelo crime de violação na forma tentada (3 anos de prisão), pelo que se não coloca questão de feridência do princípio de proibição da reformatio in pejus.
VII - A reformulação da medida da pena terá lugar não em função da redução a um único crime de abuso sexual de crianças, agravado, de trato sucessivo, mas por via da fixação da pena correspondente ao “novo” crime de acto sexual com adolescente agravado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22.º, 23.º, n.ºs 1 e 2, 73.º, n.º 1, als. a) e b), 173.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1, al. a), do CP. Face ao contexto do caso, encarado na sua globalidade, não se estando face a uma conduta isolada a um único crime, não será de optar, no que diz respeito ao crime de acto sexual com adolescente agravado, na forma tentada, pela aplicação de uma pena de multa. No caso estamos perante uma relação de concurso com outros 3 crimes em que estão fixadas, de forma definitiva, 3 penas de prisão, não fazendo sentido a imposição de pena de espécie diferente.
VIII - Atendendo ao elevado grau de ilicitude e também ao intenso dolo, na modalidade, de dolo directo, e o período temporal de actuação (entre Dezembro de 2012 e 31-12-2013), atentas as prementes e muito elevadas razões e necessidades de prevenção geral positiva ou de integração, atento o bem jurídico violado (autodeterminação sexual de adolescente), atentas por fim as necessidades de prevenção especial, onde avulta a personalidade do arguido na forma como actuou ao longo do período em causa, com absoluta indiferença e insensibilidade pelo valor em causa, não se esgotando na mera prevenção da reincidência, afigura-se como adequada, equilibrada e proporcional, a pena de 1 ano de prisão.
IX - No acórdão recorrido a moldura do concurso era de 6 anos a 13 anos e 6 meses de prisão, tendo sido fixada a pena conjunta de 9 anos e 6 meses de prisão. Atenta a implosão da pena de 3 anos de prisão aplicada pelo crime de violação agravada na forma tentada e sua substituição pela de 1 ano de prisão agora aplicada, há que reformular o cúmulo, sendo a moldura a ter em conta de 6 anos a 11 anos e 6 meses de prisão.
X - A pena conjunta visa corresponder ao sancionamento de um determinado trecho de vida do arguido condenado por pluralidade de infracções. Há que valorar o ilícito global perpetrado, ponderando em conjunto a gravidade dos factos e a sua relacionação com a personalidade do recorrente, em todas as suas facetas. No caso é evidente a íntima conexão e estreita ligação entre os 4 crimes por que o recorrente foi condenado, revelando a assunção de condutas homótropas, com afinidades e pontos de contacto nas situações analisadas. As circunstâncias do caso em apreciação apresentam um acentuado grau de ilicitude global, manifestado no número, na natureza e gravidade dos crimes praticados, nos bens jurídicos violados na área dos direitos de personalidade da menor abusada. Há que ter em conta o elevado alarme social que este tipo de actuações criminosas suscita na comunidade, com repercussões altamente negativas também em sede de prevenção geral. No que toca à prevenção especial, dúvidas não há de que o arguido carece fortemente de socialização, com necessidade de fidelização ao Direito, tendo em vista a prevenção da prática de futuros crimes.
XI - A facticidade dada por provada não permite formular um juízo específico sobre a personalidade do arguido que ultrapasse a avaliação que se manifesta pela própria natureza dos factos praticados, não se mostrando provada tendência radicada na personalidade, ou seja, que o ilícito global seja produto de tendência criminosa do agente, antes correspondendo a reiteração de condutas, pelo que, tudo ponderado, se afigura como adequada e proporcional a fixação da pena conjunta em 8 anos e 6 meses de prisão.
No âmbito do processo comum com intervenção do tribunal colectivo n.º 735/14.0JAPRT, da Comarca de --- - Inst. Local - Sec. Comp. Gen.- J1, foi submetido a julgamento o arguido AA, natural de --, nascido em ---, ---, ---, residente na R---, em prisão preventiva desde 22 de Maio de 2014, à ordem destes autos, no Estabelecimento Prisional Regional de --- (fls. 533).
Na acusação deduzida, o Ministério Público imputara-lhe a prática, em autoria material e, em concurso efectivo, de:
- Um crime de abuso sexual de criança agravado, de trato sucessivo, na forma consumada, previsto e punível nos termos dos artigos 171.º/1, 177.º/1, a) e 179.º/a) e b) do Código Penal;
- Um crime de abuso sexual de criança agravado, de trato sucessivo, na forma consumada, p. e p. nos termos dos artigos 171.º/1, 2, 177.º/1,a) e 179.º/a) e b) do Código Penal;
- Um crime de violação agravada, de trato sucessivo, na forma consumada, p. e p. nos termos dos artigos 164.º/1,a) e 177.º/1,a), 6, 7 e 179.º/a) e b) do Código Penal;
- Um crime de violação agravada, de trato sucessivo, na forma tentada, p. e p. nos termos do disposto nos artigos 22.º/1, 2,b) e c), 23.º/1, 164.º/1,a), 171.º/1,a), 6 e 7, 179.º/a) e b) do Código Penal;
- Um crime de coacção, na forma agravada, p. e p. nos termos do disposto nos artigos 154.º/1 e 155.º/1, a) e b), do Código Penal.
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Por acórdão do Tribunal Colectivo da Grande Instância Criminal da Comarca de --- (assim, a fls. 535), de 11 de Maio de 2015, constante de fls. 535 a 580, e depositado apenas em 19 de Maio de 2015, conforme consta da declaração de depósito de fls. 583, onde foi aposto o seguinte texto, incluído o sublinhado: “Pois só nesta data é que se encontrava assinado por todos os magistrados”, foi deliberado julgar a acusação parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, em consequência:
A) Absolver o arguido da prática de um crime de violação agravada, de trato sucessivo, na forma consumada, p. e p. nos termos do disposto nos artigos 164.º/1,a) e 177.º/1,a), 6, 7 e 179.º/a) e b) do Código Penal;
B) Condenar o arguido pela prática de:
I. Um crime de abuso sexual de criança agravado, de trato sucessivo, na forma consumada, previsto e punível nos termos dos artigos 171.º/1, 177.º/1,a) e 179.º/a) e b) do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses;
II. Um crime de abuso sexual de criança agravado, de trato sucessivo, na forma consumada, p. e p. nos termos dos artigos 171.º/1, 2, 177.º/1,a) e 179.º/a) e b) do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos;
III. Um crime de violação agravada, na forma tentada, p. e p. nos termos do disposto nos artigos 22.º/1, 2,b) e c), 23.º/1, 164.º/1,a), 171.º [177.º] /1,a), 6 e 7, 179.º/a) e b) do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão;
IV. Um crime de coacção, na forma agravada, p. e p. nos termos do disposto nos artigos 154.º/1 e 155.º/1,a) e b) do Código Penal, na pena de 1 (um) ano;
V. - Em cúmulo jurídico condenar o arguido na pena única de nove anos e seis meses anos de prisão;
VI. - Inibir o poder paternal do arguido AA em relação a sua filha BB e até à maioridade desta, de harmonia com o disposto no artigo 179.º do Código Penal;
VII. - Condenar o arguido no pagamento de uma indemnização arbitrada a favor da menor BB, ao abrigo do artigo 82.º-A, do Código de Processo Penal, no valor de 30 000,00 € (trinta mil euros).
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Inconformado, o arguido interpôs recurso dirigido ao Supremo Tribunal de Justiça, apresentando a motivação de fls. 584 a fls. 608, restringindo o reexame da matéria de direito, no que tange aos crimes de abuso sexual de criança, e rematando com as seguintes conclusões:
I. Entendeu o tribunal a quo que a factualidade dada como provada integra, em sede de abuso sexual de crianças, duas condutas diversas, por referência ao tipo de atos levados a cabo pelo arguido, sendo que uns se subsumem ao n.º 1 do artigo 171.º do CP e outros ao n.º 2 do mesmo ditame, não podendo ser todos enquadrados no âmbito de um mesmo crime.
II. É precisamente neste ponto que reside a dissensão do arguido, que sufraga o entendimento de que se verificou, em sede de abuso sexual de criança, um único crime, de trato sucessivo.
III. A matéria de facto dada como provada não consente a conclusão de que o arguido quebrou, a certo passo, a homogeneidade de atuação, renovando a resolução criminosa.
IV. Do arcaz probatório dado como assente nos presentes autos resulta que o arguido praticou atos sexuais de relevo com a sua filha menor de 14 anos de idade durante um certo hiato temporal, tendo adequado o tipo de atos ao próprio desenvolvimento físico, corporal e sexual da criança.
V. Todos os atos ilícitos praticados pelo arguido recondutíveis ao crime de abuso sexual de criança ocorreram no âmbito da mesma unidade resolutiva (que não se alterou), num mesmo contexto situacional (que também não sofreu alterações) e com atos essencialmente homogéneos entre si (os quais, à semelhança do crescendo em termos de gradação/gravidade ocorrido entre os 7/8 anos e os 10/11 anos de idade, se limitaram a acompanhar o crescimento e desenvolvimento da petiza, num crescendo de gravidade).
VI. A consideração de uma quebra da unidade resolutiva que o tribunal recorrido considerou existir desde os 7/8 anos até aos 10/11 anos de idade e sua posterior renovação a partir daí em diante, é fictícia, artificial, sem suporte factual.
VII. No caso em apreciação nos presentes autos há um “dolo inicial” suficientemente intenso para dar cobertura aos factos que, de um modo homogéneo e num mesmo contexto situacional entre as mesmas pessoas, ocorreram desde os 7/8 anos até aos 14 anos de idade da menor.
VIII. Não se antolha, à luz dos factos provados, qualquer renovação desse “dolo inicial”. Não houve qualquer interrupção dos atos criminosos, que aconteceram sempre com o mesmo espaçamento/sequenciamento temporal, nas mesmas circunstâncias (quando a menor ia a casa nos períodos de fárias escolares), no mesmo contexto fáctico, entre as mesmas pessoas e com homogeneidade de comportamentos (“adaptados” ao próprio processo de crescimento e de desenvolvimento físico e corporal da menor).
IX. O arguido não teve de renovar o processo volitivo a partir de certa idade, para passar a praticar atos sexuais de relevo com maior gravidade. Bastou-lhe manter o dolo inicial, o qual era já suficientemente intenso para cobrir toda a plêiade de atos criminalmente relevantes praticados na pessoa da sua filha.
X. Houve, pois, uma persistência criminosa, uma unidade delitiva aglutinadora das condutas prevaricadoras do arguido, agravada pelo número de atos praticados, pelo seu prolongamento no tempo e pelo agravamento do tipo de atos concretamente praticados.
XI. Em face das considerações expendidas e considerando que o crime de trato sucessivo é punido pelo facto mais grave, deveria o arguido ser punido (por um crime de abuso sexual de criança) nos termos do n.º 2 do artigo 171.º, 177.º, n.º 1, alínea a) e 179.º, alíneas a) e b), do CP.
XII. A procedência do argumentário antecedente terá implicações inarredáveis ao nível das penas parcelares aplicadas ao arguido no que concerne ao crime de abuso sexual de criança, na medida em que deverá ser punido, neste particular, apenas por um crime e não por dois.
XIII. Também a medida da pena única a aplicar ao arguido há de refletir essa realidade, no sentido do seu abaixamento relativamente à dosimetria aplicada em primeira instância.
XIV. O acórdão recorrido violou o disposto no artigo 30.º e nos n.º 1 e 2 do artigo 171.º do CP.
Termina pedindo seja concedido provimento ao recurso.
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Por despacho de 26-06-2015, a fls. 611, foi admitido o recurso.
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O Ministério Público na Comarca de ... apresentou a resposta de fls. 616 a 617 verso, do 3.º volume, concluindo:
1. Existe uma pluralidade de resoluções sempre que se verifique, entre as actividades efectuadas pelo agente, mudanças físicas da vítima como o seu crescimento, as quais, de harmonia com a experiência normal, levou o arguido a passar à gradação seguinte e assim se possa e deva aceitar que aquele as executou renovando o respectivo processo de motivação.
2. Face à matéria de facto dada como provada, a qual se encontra devidamente fundamentada e justificada a prova que lhe serviu de suporte, entendemos que o Tribunal «a quo» não podia deixar de condenar o recorrente, como condenou.
3. O Tribunal a quo não violou nenhuma disposição legal.
Termina pedindo que seja negado provimento ao recurso.
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Por despacho de 22 de Julho de 2015, constante de fls. 620/1, após decisão sobre manutenção da prisão preventiva, de forma injustificada, foi ordenada a remessa do processo ao Tribunal da Relação de Guimarães.
Em cumprimento de tal despacho, em 23 seguinte, o processo foi remetido ao Tribunal da Relação de Guimarães, dando entrada em 28-07-2015 (fls. 625).
A Exma. Procuradora-Geral Adjunta promoveu a remessa dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça para onde foi endereçado o recurso e admitido por despacho de 26-06-2015.
Na sequência, por o recurso incidir sobre pena de prisão superior a cinco anos e a apreciação das questões suscitadas pelo arguido reclamar apenas a interpretação e aplicação de normas jurídicas, conclui o Exmo. Desembargador caber a competência ao Supremo Tribunal de Justiça, por força do preceituado nos artigos 427.º e 432.º, n.º 1, alínea c), do CPP.
Julgando verificada a incompetência do Tribunal da Relação de Guimarães para apreciação e decisão do recurso por despacho de 30-07-2015, constante de fls. 629, determina-se, porém, «a remessa do processo ao tribunal de primeira instância para que subsequentemente seja encaminhado ao Supremo Tribunal de Justiça, por ser o competente para os ulteriores termos». (Sublinhado nosso).
O processo foi enviado à 1.ª instância onde chegou no dia 4-08-2015 (fls. 632), sendo no dia 6 ordenada a remessa a este Supremo Tribunal, o que foi cumprido a 10 (fls. 635), dando entrada em 13 seguinte.
Ao lapso do despacho da 1.ª instância a ordenar a remessa para o Tribunal da Relação de Guimarães juntou-se outro a ordenar a remessa do processo à 1.ª instância em vez de o mandar remeter directamente a este STJ, com os conhecidos inconvenientes.
O tribunal que se declara incompetente pode/deve determinar a remessa imediata do processo para o tribunal declarado competente.
É o que resulta da primeira parte do n.º 1 do artigo 33.º do CPP ao estabelecer que “Declarada a incompetência do tribunal, o processo é remetido para o tribunal competente…”.
Como referimos nos acórdãos de 22-5-2013, proferido no processo n.º 344/11.6PCBRG.G1.S1 e de 15-10-2014, proferido no processo n.º 79/14.0JAFAR.S1, embora versando questão com contornos diversos, o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 80/2001, de 21-02-2001, processo n.º 637/2000, Diário da República I-A Série, de 16-03-2001, defendeu a remessa imediata ao tribunal competente.
Tal acórdão declarou “inconstitucional, com força obrigatória geral, por violação do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, a norma que resulta das disposições conjugadas constantes dos artigos 33.º, n.º 1, 427.º, 428.º, n.º 2, e 432.º, alínea d), todos do Código de Processo Penal, quando interpretadas no sentido de que, em recurso interposto de acórdão final proferido pelo tribunal colectivo de 1.ª instância pelo arguido e para o Supremo Tribunal de Justiça, muito embora nele também se intente reapreciar a matéria de facto, aquele tribunal de recurso não pode determinar a remessa do processo ao Tribunal da Relação”.
Nesse acórdão deu-se seguimento ao juízo de inconstitucionalidade proferido em três acórdãos anteriores que conduziram a essa solução, contando-se a par dos acórdãos n.º s 334/2000 e 336/2000, o acórdão n.º 284/2000, proferido no processo n.º 305/2000, publicado no Diário da República, II Série, n.º 258, de 08-11-2000 e no BMJ n.º 497, pág. 92.
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O Exmo. Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça, a fls. 637 a 641, emitiu douto parecer no sentido de ser requalificado o crime de violação agravada, na forma tentada para crime de acto sexual com adolescente agravado na forma tentada, propendendo no sentido de serem fixadas as penas de 9 anos e 6 meses de prisão, ou, pelo menos, 9 anos de prisão.
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Cumprido o artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o recorrente silenciou.
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Não tendo sido requerida audiência de julgamento, o processo prossegue com julgamento em conferência, nos termos dos artigos 411.º, n.º 5 e 419.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal.
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Colhidos os vistos, realizou-se a conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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Como é jurisprudência assente e pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (neste sentido, o acórdão do Plenário da Secção Criminal, de 19 de Outubro de 1995, proferido no processo n.º 46580, Acórdão n.º 7/95, publicado no Diário da República, I Série - A, n.º 298, de 28 de Dezembro de 1995, e BMJ n.º 450, pág. 72, que fixou jurisprudência, então obrigatória, no sentido de que “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”) e verificação de nulidades, que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2 e 410.º, n.º 3, do CPP – é pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior.
As conclusões deverão conter apenas a enunciação concisa e clara dos fundamentos de facto e de direito das teses perfilhadas na motivação (assim, acórdão de 25 de Março de 1998, proferido no processo n.º 53/98-3.ª Secção, in BMJ n.º 475, pág. 502).
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Questões propostas a reapreciação e decisão
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões onde o recorrente resume as razões de divergência com o deliberado no acórdão recorrido.
As questões a apreciar são as seguintes:
Questão I – Determinação do número de crimes de abuso sexual de criança, agravado, de trato sucessivo - Unificação dos dois crimes de abuso sexual de criança, agravado, de trato sucessivo - Um único crime de trato sucessivo – Conclusões I a XI e XIV;
Questão II – Medida da pena – Conclusões XII e XIII.
Oficiosamente, proceder-se-á a alteração da qualificação jurídica, em termos não inteiramente coincidentes com a posição assumida pelo Exmo. Procurador-Geral Ajunto no douto parecer supra referido.
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Apreciando. Fundamentação de facto.
Foi dada como provada a seguinte matéria de facto, que é de ter-se por imodificável e definitivamente assente, já que da leitura do texto da decisão, por si só considerado, ou em conjugação com as regras de experiência comum, não emerge a ocorrência de qualquer vício decisório ou nulidade de conhecimento oficioso, mostrando-se a peça expurgada de insuficiências, erros de apreciação ou contradições que se revelem ostensivos, sendo o acervo fáctico adquirido suficiente para a decisão, coerente, sem contradição, harmonioso, e devidamente fundamentado.
Nota – Rectificação - No FP 29 consta que “na noite de 15 para 16 de Abril de 2013”, mas no contexto e sequência dos FP 27 e 28, a data correcta será a noite de 15 para 16 de Abril de 2014.
Factos Provados
1. O arguido é progenitor da menor BB, nascida em 11/12/1998, fruto da relação entre o arguido e CC, de quem o arguido é divorciado.
2. Desde os seus três anos de idade que a menor ... se encontra institucionalizada no “Lar – Escola ...”, sito na Rua. ....
3. Ora, a partir da data em que menor perfez 7 (sete) anos de idade (11/12/2005) e pelo menos até aos seus 8 (oito) anos de idade, que, aquando das visitas da sua filha BB, que dada a sua institucionalização apenas ocorriam durante os períodos das férias escolares (Páscoa, Verão e Natal), mais concretamente na residência onde o arguido habitava com DD (avó paterna da menor), sita na Rua ..., nesta comarca de ..., o arguido começou a demonstrar interesse pelo desenvolvimento do corpo da menor.
4. Mais concretamente, durante tal período e nas primeiras ocasiões, o arguido começou por tocar com as mãos no corpo da menor, apalpando-a na zona dos seios e na zona das nádegas, enquanto dizia à menor que a amava e que ela era a sua namorada.
5. E, nas datas seguintes, além dos toques acima referidos, o arguido começou também a beijar a menor na boca, o que o arguido, além dos períodos das férias escolares acima referidos, também fazia quando, no exercício do seu direito de visita, ia ter com a menor ao aludido Lar e aproveitava para sair das instalações apenas com a menor, com a desculpa de que ia ao “Café”.
6. Em todas essas datas, o arguido advertiu a menor de que não deveria contar o que ele lhe fazia a ninguém, visto que, caso contrário, “ficava sem papá” e, “como a progenitora não gostava da menor”, então a menor perderia praticamente o contacto com toda a família, ficando sozinha.
7. Quando a menor fez 9 anos de idade, em consequência de uma situação em que EE, que desempenhava funções no Lar acima identificado, suspeitou ter visto o arguido a dar um beijo na boca da menor, as visitas foram temporariamente suspensas, com vista a que fosse averiguada tal situação, tendo na altura sido participada tal suspeita ao processo de promoção e protecção n.º 163/2000, que à data corria os seus termos no Tribunal Judicial de Alijó.
8. Quando a menor BB tinha 10 e 11 anos de idade, o arguido, em face do natural desenvolvimento do corpo da menor, além de continuar a beijar a menor na boca, começou a apalpá-la com uma mão em várias zonas do corpo, pelo menos nos seios e na zona das nádegas, enquanto com a outra mão o arguido se ia masturbando, o que fazia até ejacular para local não concretamente apurado.
9. E pelo menos em algumas dessas ocasiões acima referidas, que ocorreram sempre quando a menor e o arguido se encontravam ambos na residência acima referida ou, quando a avó paterna se encontrava em casa, num barraco / armazém existente num terreno que pertence ao arguido e que se localiza no... (a cerca de 20 minutos a pé da casa da avó paterna), em ..., nesta comarca de ..., o arguido, por a menor se recusar a tirar a roupa, agarrou com as suas mãos o corpo da menor, sobretudo na zona dos braços, após o que, contra a vontade da menor, o arguido lhe tirou à força a camisola e as calças.
10. E, em seguida, o arguido tirou a sua roupa e com uma mão começou a tocar no seu pénis, masturbando-se, enquanto com a outra mão tocava no corpo da menor, sobretudo na zona dos seios e das nádegas, o que o arguido fazia até ejacular para local não concretamente determinado.
11. Nos dias seguintes à prática de tais factos, a menor ficou várias vezes com dores na zona dos braços (“músculos doridos”).
12. Durante tal período, após praticar os actos acima referidos, o arguido ofereceu várias vezes à menor revistas “Bravo” e peluches, proferindo as seguintes expressões para a menor: “como te portaste bem”, “como és uma linda menina” e “como és obediente”.
13. Para justificar perante a avó paterna da menor o facto de levar a menor consigo para o referido terreno, o arguido dizia à avó paterna que a menor o ia ajudar nos trabalhos de agricultura que tinha que realizar no aludido terreno (no armazém encontravam-se várias ferramentas próprias para trabalhos agrícolas), bem como que ia apenas ao terreno buscar objectos de que se tinha esquecido.
14. A partir dos 12 anos de idade da menor, em datas não concretamente determinadas mas sempre coincidentes com os períodos das férias escolares de Natal, Páscoa e verão, o arguido, todos os anos, ou no quarto da residência acima referida ou sobretudo no aludido barracão / armazém já acima identificado, forçou várias vezes a menor a fazer-lhe sexo oral, sendo que, por vezes, sobretudo nas férias do Verão, tal sucedia com uma regularidade de duas vezes por dia.
15. Mais concretamente, o arguido, recorrendo à sua superioridade física perante a menor, agarrava o corpo daquela até a mesma a colocar-se de joelhos, após o que, contra a vontade da menor, introduziu o seu pénis na boca daquela, friccionando e fazendo vários movimentos com o pénis dentro da boca da menor, até ejacular para local não concretamente apurado, mas sempre fora da boca da menor.
16. Nesse período temporal, por a menor já utilizar frequentemente o seu telemóvel, o arguido, após praticar os actos acima referidos, ofereceu notas de €10 (dez euros) ou €20 (vinte euros) à menor, tendo mesmo o arguido chegado a colocar tais notas no soutien que a menor usava.
17. A partir dos 12 anos de idade, por a menor ter começado a tomar ainda mais consciência de que os actos do arguido não eram adequados à conduta que seria esperada de um pai, a menor começou a protestar ainda mais contra aquilo que o arguido a obrigava a fazer, verbalizando o seu “nojo” pelos actos do arguido e referindo que iria denunciar a situação, pelo que o arguido começou a dirigir-lhe, em tom de voz ameaçador, as seguintes palavras: “se contares a alguém, eu mato-te, e a seguir mato-me com o veneno dos ratos”; “as pessoas a quem contares também vão sofrer” e “isto é um segredo para levares para o túmulo”, palavras que a menor levou a sério, sendo apenas por tal motivo que nunca denunciou a conduta do arguido a qualquer pessoa.
18. Também quando a menor tinha 12 ou 13 anos de idade, durante a noite, após o Benfica ganhar ao Rio Ave num jogo da Liga Portuguesa de Futebol, por cerca de 3 ou 4 golos, o arguido, em acto contínuo, agarrou o braço da menor e levou-a para o quarto do arguido (a avó paterna não se encontrava em casa) e forçou novamente a menor a praticar sexo oral, agarrando com a mão a parte traseira do pescoço da menor, após o que puxou a cabeça da menor para baixo e introduziu, contra a vontade da menor, o seu pénis na boca da menor, friccionando e fazendo vários movimentos com o pénis no interior da boca da menor, até ejacular para local não concretamente determinado.
19. Desde os 13 anos de idade da menor até ao final de Dezembro de 2013, data em que a menor já tinha 15 anos de idade, que, todos os anos e também no período das férias escolares (mais concretamente nas férias do Natal, Páscoa e Verão), nos mesmos dois locais acima referidos, o arguido, além de todos os actos acima referidos, começou também a tentar forçar a menor a fazer sexo anal, para o que a despia, contra a sua vontade e, após, contra a vontade da menor, virava-a e tentava introduzir o seu pénis erecto no ânus da menor.
20. Nessas ocasiões o arguido, por motivos não concretamente apurados e sempre alheios à vontade do arguido, não conseguiu introduzir sequer parcialmente o seu pénis no ânus da menor, queixando-se nessas ocasiões que tal sucedia em consequência da medicação que tomava, designadamente que a medicação para os diabetes lhe tirava a potência sexual.
21. Todavia, nesse período temporal, numa ocasião em data concretamente não apurada, tendo a menor 13 anos de idade, o arguido, após ter retirado a roupa da menor e, mediante a utilização de força física, chegou mesmo a introduzir parcialmente o seu pénis erecto no ânus da menor, sendo que, por motivos não concretamente apurados, o arguido não conseguiu introduzir totalmente o seu pénis no ânus da menor.
22. Nessas ocasiões em que ocorreu a aludida introdução parcial, a menor sentiu dores na zona do ânus, sendo que pelo menos uma vez tais dores prolongaram-se pelos dias seguintes.
23. Num dos últimos dias de Dezembro de 2013, logo após terem tomado o pequeno-almoço e quando só se encontravam os dois na cozinha da residência acima identificada, o arguido agarrou o corpo da menor e levou-a à força para o quarto, desapertou as suas calças, baixou-as e introduziu novamente o seu pénis na boca da menor, contra a sua vontade, friccionando o pénis na boca da menor, onde fez vários movimentos, até ejacular, para local não concretamente apurado.
24. No dia 31 de Dezembro de 2013, uma terça-feira, no quarto da residência do arguido, este voltou a tirar a roupa à menor, após o que tirou a sua roupa e voltou a tentar novamente introduzir o seu pénis no ânus da menor, voltando todavia a não conseguir lograr os seus intentos, por motivos alheios à sua vontade, sem sequer ter havido introdução parcial.
25. Por ter ficado furioso com o facto de, mais uma vez, não ter conseguido praticar sexo anal com a menor, o arguido deu uma estalada na face da menor, tendo dito a esta que era também sua a responsabilidade de o arguido não ter potência sexual, porque teria sido ela a trocar a medicação do arguido.
26. Quando a menor tinha 14 ou 15 anos de idade, na altura do Natal, o arguido, quando se encontrava na sala da habitação juntamente com a menor, começou a acusar a menor de ter um namorado e, por esta negar tal facto, o arguido desferiu estaladas na face, dizendo-lhe que tinha que dizer à verdade, porque não se acreditava que a menor não tivesse namorado.
27. No dia 15 de Abril de 2014, no período das férias escolares da Páscoa, quando se encontrava novamente na residência do arguido e da avó paterna, juntamente com os seus tios, que residem em Espanha e que se iriam embora no dia 16 de Abril de 2014, o arguido, quando se encontrava sozinho com a menor, disse a esta as seguintes palavras: “amanhã os teus tios vão embora, vão às 8 horas, por isso amanhã já sabes”.
28. Nesse mesmo dia 15 de Abril, a menor, desesperada, por temer que o arguido no dia seguinte fosse voltar a obrigá-la a ter relações sexuais, enviou uma mensagem de telemóvel à irmã FF, assistente social do Lar onde a menor se encontrava institucionalizada, a quem a menor solicitou ajuda, designadamente que esta a fosse buscar à residência e a levasse para o Lar, o que efectivamente sucedeu no dia seguinte.
29. Na noite de 15 para 16 de Abril de 2013, por ter medo que, na sequência da mensagem acima referida, alguém do Lar pudesse contactar telefonicamente o arguido a perguntar-lhe o que se passava com a menor e que, por tal facto, o arguido pudesse desconfiar do pedido de ajuda da menor, esta disse ao arguido que lhe doía muito a cabeça e retirou-se para o seu quarto, com a desculpa de que tinha de ir dormir.
30. Nessa noite, com medo de ser descoberta pelo arguido, a menor dormiu com muita dificuldade e teve efectivamente dores de cabeça.
31. A partir dos 12 anos de idade, o arguido apenas não forçou a menor a ter relações de cópula vaginal, por a menor lhe ter dito que, quando chegava ao Lar onde se encontrava institucionalizada, era sempre fisicamente examinada na zona da vagina, com vista a verificar se a mesma ainda se mantinha virgem, pelo que, caso o arguido tivesse com ela relações de cópula vaginal, as técnicas da instituição descobririam e saberiam o que o arguido tinha feito.
32. Em todos os actos sexuais acima descritos, o arguido nunca usou qualquer preservativo.
33. Em consequência de ter sido vítima de todos os factos acima referidos, a menor BB sofreu sentimentos de tristeza, perplexidade, isolamento e angústia durante vários anos.
34. O arguido agiu da forma descrita tendo sempre perfeita consciência da idade da menor e de que apenas conseguia praticar os factos acima referidos por a menor ser inexperiente, bem como pelo ascendente que exercia sobre a menor, visto ser seu progenitor e a menor se encontrar institucionalizada, sem o apoio de qualquer suporte familiar.
35. O arguido agiu da forma descrita, apalpando a menor em várias zonas do seu corpo, beijando-a na boca e masturbando-se à frente da menor, até ejacular, com o propósito de satisfazer os seus instintos libidinosos, o que conseguiu, não obstante bem saber que a prática de tais actos não era adequada à idade menor e que a incomodavam e perturbavam, como incomodaram e perturbaram, bem sabendo também que atingia a liberdade da menor, na vertente da sua auto- determinação sexual, o que o arguido também quis e conseguiu.
36. O arguido também agiu sempre com o intuito de satisfazer os seus instintos libidinosos, estando ciente de que com a sua conduta causava um mau estar físico e psicológico à menor, tal como que perturbava o livre desenvolvimento da sexualidade da menor, como efectivamente causou e perturbou.
37. O arguido bem sabia que estava especialmente obrigado a respeitar a menor, por ser uma criança e não ter capacidade para compreender o alcance e sentido de qualquer um dos actos acima referidos.
38. Por outro lado, o arguido, ao introduzir o seu pénis totalmente na boca da menor, ao introduzir o seu pénis parcialmente no ânus da menor e ao tentar introduzi-lo, sem sucesso, no ânus da menor, bem sabia que o fazia contra a vontade da menor, o que o arguido quis e conseguiu, bem sabendo que nesta última circunstância que apenas conseguiria praticar tais actos por utilizar a sua força física como o arguido quis e conseguiu utilizar contra a menor.
39. E, ao advertir a menor, em tom de voz ameaçador, que se matava, que matava a menor e quaisquer outras pessoas que soubessem do sucedido, caso a mesma contasse a alguém o que o arguido lhe fazia, o arguido agiu com o propósito de amedrontar a menor, o que conseguiu, desta forma conseguindo obrigar a menor a não contar a terceiros o que o arguido lhe fazia, o que o arguido queria e efectivamente conseguiu, ciente de que adoptava tal conduta perante uma criança e que, também por tal motivo, esta não tinha capacidade para contrariar essas advertências do arguido.
40. Em consequência das condutas do arguido, a menor viveu permanentemente amedrontada, angustiada e em constante ansiedade.
41. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei criminal.
42. O arguido não tem antecedentes criminais.
Condições socio-económicas do arguido
43. O arguido é pessoa de humilde condição económica e social, com hábitos de trabalho.
44. Encontra-se bem inserido do ponto de vista social e familiar, contando com o apoio de familiares, amigos e rede de vizinhança, sendo bem considerado.
45. O processo de socialização de AA foi marcado por uma inserção precoce na vida activa e por dificuldades de ordem económica, nomeadamente após o falecimento do seu progenitor.
46. O arguido detém reduzidas habilitações literárias no entanto apresenta hábitos regulares de trabalho, desenvolvendo à data da reclusão, trabalhos indiferenciados na área da agricultura.
47. Não obstante o cariz intra-familiar dos crimes de natureza sexual de que se encontra acusado, beneficia de apoio da sua progenitora, avó da ofendida, que o visita com regularidade no EP.
48. Beneficia de boa integração na comunidade.
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Nota prévia – Recorribilidade – Recurso directo – Poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça
Ao abrir a motivação de recurso, a fls. 586, cingindo a reapreciação aos crimes de abuso sexual de criança, pretendendo a unificação, diz o recorrente:
“Embora se não desconheça que, mercê do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º do CPP, só admissível recurso diretamente para o STJ de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito, o certo é que a decisão que o tribunal ad quem tomar relativamente ao crime de abuso de sexual de criança punido pelo tribunal de primeira instância com a pena de 6 anos de prisão há de ter repercussões inescapáveis no outro crime de abuso sexual de criança que o tribunal a quo puniu com uma pena de 3 anos e 6 meses.
Id est: embora só seja admissível recurso diretamente para o STJ da decisão do tribunal coletivo relativamente à pena de prisão de 6 anos aplicada a um dos crimes de abuso sexual de criança, verifica-se, in casu, uma ligação inextricável entre os dois crimes de abuso sexual de criança pelos quais o arguido foi condenado (aliás, o cerne do presente recurso reside precisamente aí) – ligação essa que faz com que o âmbito do presente recurso se estenda, naturalmente, também ao crime de abuso sexual de criança punido com pena inferior a 5 anos”.
Por esta introdução se vê que o recorrente entende que em caso de recurso directo o STJ não teria competência para conhecer da medida da pena e questões relativas a crime punido com pena inferior a cinco anos de prisão.
Estamos face a uma deliberação final proferida por um tribunal colectivo – mais concretamente, um acórdão condenatório, que fixou pena única de 9 anos e 6 meses de prisão ao ora recorrente – visando o recurso exclusivamente o reexame da matéria de direito, estando em causa discordância do arguido quanto ao número de crimes de abuso sexual de criança, que pretende reduzido à unidade e na decorrente medida da pena sendo este Supremo Tribunal competente para conhecer do recurso – artigos 427.º (este é caso de recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça) e 432.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, do Código de Processo Penal.
No caso em apreciação a pena conjunta aplicada ao recorrente é de 9 anos e 6 meses de prisão e no que toca aos dois questionados crimes de abuso sexual de criança as parcelares são uma de 6 anos e outra de 3 anos e 6 meses de prisão.
Nestes casos o Supremo Tribunal de Justiça tem competência para conhecer das questões relativas aos crimes punidos com penas inferiores a cinco anos de prisão, sendo tal posição correspondente ao que é assumido em termos largamente maioritários em ambas as Secções Criminais.
Neste sentido pode ver-se o acórdão de 21 de Janeiro de 2015, por nós relatado no processo n.º 12/09.9GDODM.S1, com admissibilidade de recurso directo para o STJ, onde referindo-se variadíssimos acórdãos assumindo a mesma posição, se concluiu no sentido de optar pela solução de ampla recorribilidade, cabendo ao STJ, reunidos os demais pressupostos [tratar-se de acórdão final de colectivo ou tribunal de júri e visar apenas o reexame da matéria de direito, vindo aplicada pena de prisão superior a 5 anos – pena única ou única e parcelar(es)], apreciar as questões relativas a crimes punidos com penas iguais ou inferiores a cinco anos de prisão.
No mesmo sentido podem ver-se os acórdãos de 09-07-2014, proferido no processo n.º 95/10.9GGODM.S1-5.ª, com voto de vencida, de 10-09-2014, proferido no processo n.º 440/13.5POLSB.L1.S1-5.ª, in CJSTJ 2014, tomo 3, pág. 169 (O STJ tem competência para conhecer da condenação de todas as penas parcelares se a subsequente pena única for superior a cinco anos de prisão), com declaração de voto no sentido de a competência pertencer à Relação, e da mesma data, o acórdão proferido no processo n.º 714/12.2JABRG.S1-5.ª, in CJSTJ 2014, tomo 3, pág. 180, com voto de vencido, que teria decidido pela competência da Relação. Mais recentemente, o acórdão de 30-09-2015, por nós relatado no processo n.º 2430/13.9JAPRT.P1.S1.
Entende-se, assim, ser o Supremo Tribunal de Justiça competente para conhecer das questões suscitadas a propósito dos dois crimes de abuso sexual de crianças, agravado, de trato sucessivo, incluindo as referentes ao crime a que coube pena inferior a cinco anos de prisão, acrescendo a requalificação jurídica do crime de violação, agravada, na forma tentada, em que o recorrente foi condenado na pena de 3 anos de prisão.
Questão Prévia - Alteração da qualificação jurídica
O recorrente cinge a sua discordância quanto ao número de crimes de abuso sexual de criança, agravado, de trato sucessivo, pretendendo a redução de dois crimes para um único crime de abuso sexual de criança, agravado, de trato sucessivo, deixando incólume a condenação pelo crime de violação agravada, na forma tentada, e de coacção, na forma agravada.
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto no douto parecer emitido coloca a questão de requalificação oficiosa do crime de violação agravada, na forma tentada, que em seu entendimento se não verifica, devendo a conduta em causa ser de qualificar como um crime de acto sexual com adolescente agravado, na forma tentada, p. p. pelos artigos 22.º, 23.º, 173.º, n.ºs 1 e 2, 177.º, n.º 1, alínea a) e 179.º do Código Penal. (O artigo 179.º foi revogado pelo artigo 9.º da Lei n.º 103/2015, de 24 de Agosto, publicada no Diário da República, 1.ª série, n.º 164, de 24-08 – trigésima nona alteração ao Código Penal).
Certo é que de entre as várias questões de que o Supremo Tribunal pode tomar conhecimento, encontra-se a da qualificação jurídica, a efectuar de modo oficioso, conforme jurisprudência pacífica.
Na verdade, o tribunal superior não está inibido de proceder a requalificação jurídica, quando o entender necessário.
A questão, aliás, pode ser analisada nesta perspectiva.
A intervenção oficiosa do Supremo Tribunal de Justiça em sede de fixação de matéria de facto é possível, é admitida, pontualmente, de acordo com jurisprudência consolidada.
Assim, o Acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ n.º 7/95, Acórdão n.º 7/95, de 19 de Outubro de 1995, publicado no Diário da República, Série I-A, n.º 298, de 28 de Dezembro de 1995, e BMJ n.º 450, pág. 72, que, no âmbito do sistema de revista alargada, decidiu ser oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito), para além do Acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 10/2005, de 20 de Outubro de 2005, Diário da República, Série I-A, de 7 de Dezembro de 2005, em cuja fundamentação se refere que a indagação dos vícios faz-se “no uso de um poder-dever, vinculadamente, de fundar uma decisão de direito numa escorreita matéria de facto”.
Ora, se reconhecidamente, o Supremo Tribunal pode intervir ex officio na fixação da matéria de facto, podendo inclusive, alterá-la, se dispuser dos elementos imprescindíveis para a modificação, porque disponíveis, por exemplo, em sede de prova vinculada, ou na hipótese contrária, determinar o reenvio para remediar os vícios de confecção do texto, de forma a evitar decisões falhas ou insuficientes de fundamentação, ou incongruentes, em contradição e em desarmonia com o texto e contexto global, mal pareceria, mas mais do que isso, mal seria, que não pudesse intrometer-se no decisivo campo da matéria de direito, que, reconhecidamente, é o seu.
É que, a não ser assim, colocar-se-ia a questão de saber como reconhecer ao Supremo Tribunal uma possibilidade de intervenção no campo temático da matéria de facto (possibilidade, aliás, afirmada para além dos dois citados acórdãos de fixação de jurisprudência, em variadíssimos acórdãos) e não reconhecê-la, depois a juzante, exactamente no campo de intervenção própria.
A entender-se de forma contrária, estaríamos decididamente confrontados com um perfeitamente escusado exercício de non sense.
Certo é que, nada impede este Supremo Tribunal de Justiça de indagar, por iniciativa própria, da correcção e justeza da subsunção jurídica feita no acórdão recorrido, como tem sido entendido em vários arestos, sem olvidar, desde logo, o Acórdão n.º 4/95, de 7 de Junho de 1995, proferido no processo n.º 47.407, da 3.ª Secção, publicado no Diário da República, I Série, de 6 de Julho de 1995, e no BMJ n.º 448, pág. 107, que então decidiu: “O Tribunal Superior pode, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efectuada pelo tribunal recorrido, mesmo para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus”.
Como tem sido decidido, mesmo quando o recorrente não ponha operativamente em causa a incriminação definida pelas instâncias, não pode, nem deve, o STJ dispensar-se de reexaminar a correcção das subsunções, como tem sido decidido, em vários acórdãos que assinalámos no acórdão de 24-09-2014, processo n.º 994/12.3PBAMD.L1.S1.
No caso em apreciação, antes do mais, há que ter em atenção que a facticidade dada por provada alberga uma sucessão de condutas que se prolongam ao longo de cerca de oito anos, iniciando-se a partir dos 7 anos da vítima BB, nascida em ...1998, concretamente tendo início a partir de 11 de Dezembro de 2005 e prolongando-se até 31 de Dezembro de 2013, se bem que com um hiato, como melhor se verá.
O acórdão recorrido, a fls. 555, ao versar o enquadramento jurídico-penal dos factos provados e concretamente o crime de abuso sexual de crianças começa por referir o artigo 171.º do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro.
À data dos factos praticados a partir de 11 de Dezembro de 2005 e até 14 de Setembro de 2007, narrados nos Factos Provados (FP) 3, 4, 5 e 6 (a Lei n.º 59/2007 entrou em vigor em 15 de Setembro de 2007), o crime de abuso sexual de crianças tinha o regime previsto no artigo 172.º do Código Penal na versão introduzida pela Lei n.º 48/95, de 15 de Março, com as alterações da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro e da Lei n.º 99/2001, de 25 de Agosto.
A situação temporal dos factos descritos nos Factos Provados (FP) 3 a 6, estando definida no que toca ao termo inicial (se bem que não concretamente apurada a data, certo é que o início das condutas do arguido se situa após o dia 11 de Dezembro de 2005), apresenta-se como dúbia e com dificuldades de definição do termo final, face à incerteza que do texto dimana.
Expliquemo-nos.
Foi dado por provado no FP 3 que “a partir da data em que [a] menor perfez 7 (sete) anos de idade (11/12/205) e pelo menos até aos seus 8 (oito) anos de idade (…)”.
Perguntar-se-á qual o sentido, alcance e significado da expressão “pelo menos até aos seus 8 (oito) anos de idade”.
A vítima BB perfez os oito anos em ...2006, tendo oito anos até ...de 2007, véspera de ... de 2007, em que perfez nove anos de idade.
No FP 7 quando a menor fez 9 anos de idade há uma situação em que EE que desempenhava funções no Lar referido no FP 2, “suspeitou ter visto o arguido a dar um beijo na boca da menor”, o que determinou a suspensão temporária das visitas com vista a que fosse averiguada tal situação.
Na motivação, a fls. 552, este episódio é aflorado e explica-se que a psicóloga EE declarou “numa ocasião, ela estava com o pai e estavam com uma proximidade que não achei normal, fiquei com a sensação que ele deu um beijo na boca à BB”.
Ora esta suspeita ou sensação de beijo na boca não é o mesmo que ter-se por provado que o arguido deu efectivamente o beijo na boca, sendo de desconsiderar tal narrativa para efeitos de enquadramento no crime em apreciação.
Voltando à expressão dúbia “pelo menos até aos seus 8 (oito) anos de idade”, sabido que BB perfez os oito anos no dia 11-12-2006, fica por saber se os oito anos abrangem todo o período que vai até à véspera de perfazer os nove anos, ou seja, até 10-12-2007.
Alguma dificuldade na aceitação desta acepção provém do limitativo até. (Até é advérbio de inclusão).
Vem dado por provado que a menor encontrava-se institucionalizada num Lar em ... desde os 3 anos de idade e que os encontros da filha com o pai tinham lugar quando a menor ia a casa do pai e avó paterna, em ..., o que acontecia durante os períodos de férias escolares, pela Páscoa, Verão e Natal.
O novo regime legal entrou em vigor em 15 de Setembro de 2007, pelo que a ocorrer algo depois dessa data só poderia ser por alturas das férias do Natal, mas a facticidade provada não nos habilita a considerar a prática de actos nessa altura e na dúvida é de exclui-la.
Se assim é, o regime aplicável é a versão anterior de 1995, 1998 e 2001, como decorre do artigo 2.º do Código Penal e artigo 29.º, n.º 4, da CRP.
Aqui chegados, dir-se-á que na essência as alterações pouco de substantivo trouxeram, pois que para além da mudança de numeração, passando o crime em causa do artigo 172.º para o artigo 171.º, a verdade é que a estrutura típica é a mesma e a dosimetria também, sendo que as alterações de 2007 no artigo 177.º ao caso não importam, pois que presente está a alínea a), que se manteve.
Na redacção de 1995, mantida em 1998 e 2001, o n.º 1 do artigo 172.º estabelecia:
1 - Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
Com a reforma de 2007 passou a estabelecer o artigo 171.º:
1 - Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo [consigo ou] com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos.
Sendo assim, perguntar-se-á qual o interesse do exposto, para mais se aditarmos o facto de o acórdão recorrido ter englobado os factos provados 3 a 7 (incluída, pois, a suspeita de beijo na boca) e 8 a 13, num único crime de abuso sexual de criança agravado, de trato sucessivo, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal (cfr. fls. 567).
Então justificou o acórdão recorrido a opção tomada nos seguintes termos:
“Estes actos [factos 3. a 7. e 8. a 13. da matéria provada], claramente, integram acto sexual de relevo e foram praticados contra menor de 14 anos, pelo que deverão ser integrados no n.º 1 do artigo 171.º do Código Penal, em trato sucessivo, pois tudo ocorreu no âmbito de uma mesma unidade resolutiva, prolongada num certo período de tempo, num mesmo contexto e com actos [sexuais de relevo] essencialmente homogéneos entre si”.
A razão de ser da introdução tem a ver com a circunstância de, em nosso entender, os FP 3 a 13 não deverem integrar um único crime de abuso sexual de criança, mas dois.
Os factos descritos nos pontos 3 a 6 ocorreram quando a vítima BB tinha 7 e 8 anos de idade.
Como vimos, a matéria de facto dada por assente no FP 7 não integra crime, pois que suspeitas não são factos, nem eventos, nem sucessos da vida real.
Mas o que então aconteceu, quando BB tinha 9 anos de idade, é que fundamenta a nosso ver a posição aqui assumida.
Face à suspeita do beijo na boca, as visitas foram temporariamente suspensas, com vista a que fosse averiguada a situação, tendo então sido participada tal suspeita ao processo de promoção e protecção n.º 163/2000, que à data corria os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de ....
Como é evidente, o arguido não terá necessariamente deixado de ter tomado conhecimento da evolução do incidente suscitado pela suspeita do beijo na boca no processo que visava a situação de sua filha, que sendo datado de 2000 (n.º 163/2000), só pode significar que problemas existiam no casal divorciado, quando a vítima tinha entre 1 e 2 anos de idade (tudo dependerá de saber se o processo com aquele n.º e naquela Comarca se iniciou antes ou depois de 11-12-2000, data em que a menor perfez, exactamente, dois anos de idade; desconhecendo-se as estatísticas da Comarca de ... na transição para o século XXI, arriscar-se-ia a primeira opção, o que vale por dizer que o processo de intervenção terá tido lugar em data indeterminada de 2000, anterior a Dezembro de 2000, pois sabido é que a partir de 11-12-2001, ou seja, agora com 3 anos de idade, já a menor se encontrava institucionalizada, como decorre do FP n.º 2 (desde os seus três anos), e nem será necessário arriscar muito adiantar que o recorrente terá sido ouvido em tribunal, então, antes da reforma actualmente em vigor, de proximidade física/geográfica dos sujeitos processuais.
Nesta intervenção do Tribunal de ..., enquanto tribunal de menores, está a justificação para o hiato que se verificou.
A menor BB não foi molestada pelo arguido, pelo menos na parte final dos seus 8 anos e durante os seus 9 anos, como decorre do FP 8.
Após esta quebra, o arguido retomou as condutas criminosas quando a vítima tinha 10 e 11 anos, como de forma clara, ficou assente com o narrado no FP 8. Ou seja, o reinício das condutas teve lugar a partir de 11-12-2008.
Na sequência da acção interventiva do Tribunal de ..., actuando no plano da jurisdição de “tribunal de menores”, o arguido, sentindo a espada de Damócles, teve de num primeiro momento, arrepiar caminho, dar tréguas aos ímpetos, suspender a actividade, face aos holofotes do tribunal de menores, mas ultrapassado o imposto temporário fôlego da abstinência, após a necessária “quarentena”, eis que, surge o remoçado ensejo, e diríamos, mais do que isso, um renovado desejo houve para o retomar da resolução criminosa, não se vendo como incluir esta actividade subsequente ao forçado interregno numa mesma resolução inicial.
Assim, teremos a prática de dois crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, alteração de qualificação que não terá consequências ao nível da dosimetria penal, atenta a proibição da reformatio in pejus, consagrada no artigo 409.º do CPP.
Do crime de violação agravada, na forma tentada
É de dar por verificado o crime de violação agravada, na forma tentada, por que foi condenado o ora recorrente, na pena de 3 anos de prisão, ou não?
Relembremos que o objecto do recurso delineado pelo arguido não contemplava, de todo, na sua agenda recursiva, este tema, circunscrito que estava à questão da afirmação da unidade ou pluralidade de infracções, no que respeitava ao circunscrito núcleo dos crimes de abuso sexual de criança, agravado, de trato sucessivo.
Fora do tema recursivo, fora do agendamento impugnatório, estava claramente, a questão que nos ocupa de seguida.
O Tribunal Colectivo de Vila Real subsumiu nesta figura os factos dados por provados nos pontos 24 e 25, cujo teor se relembra:
24. No dia 31 de Dezembro de 2013, uma terça-feira, no quarto da residência do arguido, este voltou a tirar a roupa à menor, após o que tirou a sua roupa e voltou a tentar novamente introduzir o seu pénis no ânus da menor, voltando todavia a não conseguir lograr os seus intentos, por motivos alheios à sua vontade, sem sequer ter havido introdução parcial.
25. Por ter ficado furioso com o facto de, mais uma vez, não ter conseguido praticar sexo anal com a menor, o arguido deu uma estalada na face da menor, tendo dito a esta que era também sua a responsabilidade de o arguido não ter potência sexual, porque teria sido ela a trocar a medicação do arguido.
Ponderando estes factos, o acórdão recorrido, a fls. 570/1, afirma:
“Analisando a factualidade dada como provada em 24. e 25. [Segue-se a reprodução do teor dos dois FP].
Como vimos, o tipo de ilícito da violação, em termos objectivos, consiste em o agente constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral, a sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, por meio de violência, ameaça grave ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir.
Ora, um dos meios típicos de coacção é a violência, em que manifestamente se integra a força física, utilizada pelo arguido, tal como acima descrito, tudo com vista a sujeitar, como pretendia, o ofendido à prática de coito anal - cf. F. Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág.s 452 a 454 e 471 e 472. (sobre o conceito de violência e sobre os demais elementos constitutivos do crime de violação cfr., por todos, Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, cit., Tomo 1, págs. 453- 454 e 466-473
Nesta situação em concreto, o arguido levou a cabo actos de execução típicos do crime de violação – coito anal – tendo chegado a tirar a roupa da vítima, tentando introduzir o seu pénis no ânus da menor usando da força física para o efeito, o que não logrou concretizar por razões alheias à sua vontade, aliás imputando à vitima – sua filha - esse facto – “por ter trocado a medicação que lhe tirava a potência sexual”, agredindo-a de seguida.
Assim, dúvidas não restam que preencheu, com esta actuação um crime de violação agravada, na forma tentada, previsto e punível nos termos do disposto nos artigos 22º, nº 1, 2,b) e c), 23.º, n.º 1, 164.º, n.º 1, a), 177º, n.º 1, a), 6 e 7, 179.º, nº 1, a) e b) do Código Penal”.
O Colectivo de Vila Real afastou o preenchimento do crime de violação agravada na forma consumada, que vinha imputado ao arguido, não o fazendo de forma clara, e sobretudo, autónoma e destacada, antes inserto na análise de conjunto que abarca os FP 14 a 23, concretamente os factos que virão a integrar o crime do n.º 2 do artigo 171.º do Código Penal.
Após versar os factos integrativos do crime do n.º 1 do artigo 171.º do Código Penal, ao introduzir o segundo plano da análise, diz o acórdão recorrido, a fls. 567:
“Já quando o arguido perpassa para o patamar seguinte, num crescendo de gravidade nos actos sexuais que levou acabo na pessoa de sua filha – concretamente, quando passou a praticar coito oral e posteriormente para coito anal e simulação do mesmo – aquela homogeneidade de actuação quebra-se, passando à gradação seguinte, de resto, plasmada na lei quando integra no n.º 2 do artigo 171º os actos sexuais de relevo que sejam os aí tipificados – cópula, coito anal, coito oral”.
Após reproduzir os FP 14 a 23, a fls. 569/570, afirma:
“Ora, esta factualidade, nos moldes já atrás expendidos, consubstancia a prática de actos sexuais de relevo, mais concretamente, de coito oral e coito anal [note-se - como agora é unanimemente entendido - que basta a introdução do pénis no ânus da vítima, ainda que parcial – como foi o caso – para ser considerado coito anal] pelo que se tem como verificada a prática de um crime de abuso sexual de menores, p. e p. pelo artigo 171°, nº 2, do Código Penal, não sendo tal conduta concreta susceptível de integrar a prática de um crime de violação, na forma consumada, mas no âmbito do abuso sexual de criança [pois não se mostra verificada a violência ou ameaça grave a que alude o artigo 164º do Código Penal, num determinado acto concreto, mas antes uma ambiência de intimidação e constrangimento derivado directamente da especial relação existente entre agressor e vítima].(…).
O sublinhado é nosso e é demonstrativo de que o Colectivo de ... arredou o crime de violação consumada por ausência de violência ou ameaça grave, mas integrando tal conduta no âmbito do abuso sexual de criança, olvidando que entretanto a vítima ultrapassara a barreira dos 14 anos.
Os factos constantes do FP 23, em concatenação, aliás, com parte do dado por assente no FP 19, ocorrem quando a menor contava já 15 anos de idade, pelo que não podem integrar o crime do artigo 171.º, n.º 2, do Código Penal, pois que muito claramente, o sujeito passivo neste tipo legal é «menor de 14 anos».
Tendo afastado a violência ou ameaça grave nos casos dos FP 21 e 23, na subsunção dos FP 24 e 25, o acórdão recorrido, como vimos, a fls. 571, considera presente o factor da “violência”.
No descritivo do FP 24 não se enxerga qualquer acto violento para além da própria tentativa, que tenha usado o arguido da força física para o efeito, como afirma o acórdão recorrido, mas sem suporte factual.
No enquadramento da situação, como referido, diz o acórdão, a fls. 571, que “Nesta situação em concreto, o arguido levou a cabo actos de execução típicos do crime de violação – coito anal – tendo chegado a tirar a roupa da vítima, tentando introduzir o seu pénis no ânus da menor usando da força física para o efeito, o que não logrou concretizar por razões alheias à sua vontade, aliás imputando à vitima – sua filha - esse facto – “por ter trocado a medicação que lhe tirava a potência sexual”, agredindo-a de seguida”. (Sublinhados nossos)
No FP 25 ficou assente que “Por ter ficado furioso com o facto de, mais uma vez, não ter conseguido praticar sexo anal com a menor, o arguido deu uma estalada na face da menor”.
Esta estalada não integra o processo executivo da tentativa de coito anal.
Frustrado o desiderato que determinou o estado de fúria, o arguido agride a filha, mas já após a eclosão daquela frustração genética do estado de fúria.
O uso desta força física não teve por escopo tentar introduzir o pénis no ânus da menor, como é referido pelo Colectivo, ao utilizar a expressão “usando da força física para o efeito”, a qual, repete-se, não é consentida pelo texto do FP 24.
A utilização da força física apenas foi dada por provada no FP 21, quando BB tinha 13 anos de idade, e em caso diverso, em que o arguido chegou mesmo a introduzir parcialmente o pénis erecto no ânus da menor.
A idade da menor, então com 13 anos, remete-nos para facto praticado em data indeterminada situada entre 11 de Dezembro de 2011 e 10 de Dezembro de 2012 e não em 31 de Dezembro de 2013, quando já contava 15 anos de idade.
O uso desta força física – estalada – ocorreu já depois, como refere o acórdão, a final, com a expressão “agredindo-a de seguida”.
A agressão teve lugar de seguida, em acto seguido à tomada de consciência pelo arguido do facto consumado de não ter conseguido a penetração, após o arguido ver que não tinha logrado concretizar o que pretendia, por ter ficado furioso e a fúria sobreveio ao falhanço da tentativa.
Como bem assinala o Exmo. Procurador-Geral Adjunto no parecer emitido, ao pronunciar-se sobre a qualificação jurídica dos pontos 24.º e 25.º da decisão de facto proferida, “ao contrário do assente no ponto 21.º, a violência utilizada não foi um meio para constranger a vítima à prática do acto sexual, mas uma forma de retaliação do arguido por não ter conseguido consumá-lo. Não se tendo, com efeito, dado por provado que também o episódio densificado nesta concreta conduta tenha sido precedido e/ou acompanhado da força física que fora utilizada na conduta descrita naquele ponto 21.º - [este atinente ao 2.º crime de abuso sexual de crianças agravado, cometido cerca de 2 anos antes], não cremos que seja lícito tê-la por implícita [essa força física] com base na descrição factual aí feita e, nesse caso, só por via da similitude de actuações do arguido num caso e no noutro”.
Por isso, conclui “essa concreta conduta, se autónoma e isoladamente considerada, não seria de qualificar como integradora de um crime de violação agravada, na forma tentada, mas antes como um crime de ato sexual com adolescente agravado, na forma tentada, da previsão dos arts. 22.º, 23.º, 173.º, n.ºs 1 e 2, 177.º, n.º 1/a) e 179.º, todos do Código Penal”.
Pelo exposto, sendo de afastar a violência integradora do crime de violação agravada, na forma tentada, por não presente na narrativa dos FP 24 e 25, a consequência será absolver o arguido da prática deste crime, operando convolação para um crime de acto sexual com adolescente agravado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, n.º 1 e 2, 73.º, n.º 1, alíneas a) e b), 173.º, n.ºs 1 e 2, 177.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal. (O artigo 179.º foi revogado pelo artigo 9.º da Lei n.º 103/2015, de 24 de Agosto, publicada no Diário da República, 1.ª série, n.º 164, de 24-08 – trigésima nona alteração ao Código Penal).
Ao crime de actos sexuais com adolescentes, previsto e punível pelo artigo 173.º, n.º 2, do Código Penal, é cabível pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias (O crime de violação é punível com prisão de 3 a 10 anos).
Por força da agravação do artigo 177.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, a moldura penal é de 40 dias a 4 anos de prisão ou multa de 13 dias a 360 dias.
A moldura premial da atenuação especial, decorrente da punição da tentativa, por força do artigo 73.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), do Código Penal, passa a ser a de prisão de um mês a 2 anos e 8 meses, ou multa de 10 a 240 dias.
Decorre do exposto que o limite máximo da pena cabível ao “novo”crime é inferior à concreta pena aplicada pelo crime de violação na forma tentada (3 anos de prisão), pelo que se não coloca questão de feridência do princípio de proibição da reformatio in pejus, consagrado no artigo 409.º do CPP.
Esta convolação determinará a absolvição do crime de violação, agravada, na forma tentada e a fixação da pena cabível ao crime de actos sexuais com adolescente, na forma tentada, com natural reflexo na pena única.
Vejamos agora as questões expressamente colocadas no presente recurso.
Questão I – Determinação do número de crimes de abuso sexual de criança, agravado, de trato sucessivo - Unificação dos dois crimes de abuso sexual de criança, agravado, de trato sucessivo - Um único crime de trato sucessivo
Nas conclusões I a XI e XIV, o recorrente expõe as razões por que pretende a unificação dos dois crimes de abuso sexual de criança por que foi condenado, defendendo que deveria considerar-se apenas a prática de um único crime de abuso sexual de criança (agravado), de trato sucessivo.
O acórdão de Vila Real optou pela consideração do crime de trato sucessivo, qualificação não questionada pelo recorrente, o que bem se compreende por mais benévola por contraposição à pluralidade de crimes, mas que está longe de ser consensual na jurisprudência, como se pode ver no acórdão de 30-09-2015, por nós proferido no processo n.º 2430/13.9JAPRT.P1.S1.
Na doutrina, contra, veja-se Paulo Albuquerque, Comentário do Código Penal, UCE, 2010, nota 32, pág. 162, onde se pode ler: “No caso da sucessão de vários crimes contra bens eminentemente pessoais, deve punir-se as condutas do agente em concurso efectivo. Esta é precisamente a consequência prática da supressão da benesse do crime continuado contra bens eminentemente pessoais. Foi este o resultado prático pretendido pelo legislador. Portanto, é inadmissível a punição dos crimes contra bens eminentemente pessoais como um único crime “de trato sucessivo”, ficcionando o julgador um dolo inicial que engloba todas as acções. Tal ficção constituiria uma fraude ao propósito do legislador”.
O acórdão recorrido procedeu ao enquadramento das condutas integradoras de abuso sexual de criança, agrupando-as em dois tipos, subsumindo umas no n.º 1 do artigo 171.º do Código Penal (abrangendo os factos 3 a 7 da matéria provada, quando a menor tinha 7/8 anos de idade e ainda os factos 8 a 13 da matéria de facto provada, quando a menor tinha 10/11 anos de idade) e outras no n.º 2 do mesmo preceito, quando o arguido passou a praticar sexo oral e posteriormente coito anal e simulação do mesmo.
Como se pode ler no acórdão recorrido, a fls. 567:
“Ora, aqui chegados, e revertendo ao caso decidendo, entendemos que a factualidade dada como provada integra - em sede de abuso sexual de crianças - duas condutas diversas, por referência ao tipo de actos levados a cabo pelo arguido, sendo que uns se subsumem ao n.º 1 do aludido normativo e outros ao n.º 2, não podendo ser todos enquadrados no âmbito de um mesmo crime, posto que a natureza dos actos levados a cabo pelo arguido quando a menor tinha 7-8 anos de idade [o arguido começou a tocar o corpo da menor, apalpando-a na zona dos seios e das nádegas, beijando-a na boca] – vide factos 3. a 7. da matéria provada. E, quando a menor tinha 10-11 anos de idade levou a cabo as mesmas condutas com uma mão, masturbando-se com a outra, desnudando parcialmente a criança [vide factos 8. a 13. da matéria provada].
Estes actos, claramente, integram acto sexual de relevo e foram praticados contra menor de 14 anos, pelo que deverão ser integrados no n.º 1 do artigo 171º do Código Penal, em trato sucessivo, pois tudo ocorreu no âmbito de uma mesma unidade resolutiva, prolongada num certo período de tempo, num mesmo contexto e com actos [sexuais de relevo] essencialmente homogéneos entre si.
Prosseguindo, diz a fls. 567:
“Já quando o arguido perpassa para o patamar seguinte, num crescendo de gravidade nos actos sexuais que levou acabo na pessoa de sua filha – concretamente, quando passou a praticar coito oral e posteriormente para coito anal e simulação do mesmo – aquela homogeneidade de actuação quebra-se, passando à gradação seguinte, de resto, plasmada na lei quando integra no n.º 2 do artigo 171º os actos sexuais de relevo que sejam os aí tipificados – cópula, coito anal, coito oral.
Assim, vejam-se os factos dados como provados de 14. a 23. dos factos provados:”.
Após reproduzir os factos 14 a 23, prossegue a fls. 569:
“Ora, esta factualidade, nos moldes já atrás expendidos, consubstancia a prática de actos sexuais de relevo, mais concretamente, de coito oral e coito anal [note-se - como agora é unanimemente entendido - que basta a introdução do pénis no ânus da vítima, ainda que parcial – como foi o caso – para ser considerado coito anal] pelo que se tem como verificada a prática de um crime de abuso sexual de menores, p. e p. pelo artigo 171°, nº 2, do Código Penal, não sendo tal conduta concreta susceptível de integrar a prática de um crime de violação, na forma consumada, mas no âmbito do abuso sexual de criança [pois não se mostra verificada a violência ou ameaça grave a que alude o artigo 164º do Código Penal, num determinado acto concreto, mas antes uma ambiência de intimidação e constrangimento derivado directamente da especial relação existente entre agressor e vítima].
Cada uma das condutas - cada acto sexual de relevo - não é autónoma em relação às outras [com excepção dum primeiro período, cuja homogeneidade de actos sexuais foi integrado num outro ciclo, como vimos, bem diverso do universo de actos ora em apreciação, e que integra a prática de um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo n.º 1 do artigo 171º do Código Penal] sujeita a um juízo único, a uma única unidade resolutiva, constituindo, assim, um único crime, de trato sucessivo”.
E conclui:
“Por todo o exposto, vai o arguido condenado pela prática de um crime de abuso sexual de menores, p. e p. pelo artigo 171°, nº 1, do Código Penal e de um crime de abuso sexual de menores, p. e p. pelo artigo 171°, n° 2, do mesmo diploma legal”.
O acórdão recorrido vincou estar perante dois ciclos autónomos, um primeiro período com um universo de actos bem diverso dos integrados no segundo ciclo, cada um deles preenchido por actos sexuais homogéneos sujeitos a juízo único, correspondendo os actos do segundo ciclo a um patamar seguinte, num crescendo de gravidade, com a prática de coito oral e anal, passando a integrar outro normativo.
Neste particular acompanhamos o acórdão recorrido, não olvidando o que se disse a propósito do hiato verificado entre os 8 e 10 anos, em que se operou uma renovação da resolução criminosa.
Mas é incontornável que na passagem para a fase de prática de sexo oral, a partir dos 12 anos de idade da menor – FP 14 – abre-se um novo ciclo, de actuação mais gravosa, com consequências mais penosas para a menor, e então houve uma renovada resolução, que passou depois a abranger coito anal – FP 19 e 21 – quebrando-se a homogeneidade de actuação.
Como de forma certeira refere o Ministério Público de Vila Real na resposta apresentada, a fls. 617 e verso:
“No caso, em nosso entender, o dolo inicial intenso que o recorrente faz alusão não abrangia actos de coito oral ou anal. Se atentarmos à matéria de facto assente podemos verificar que a resolução criminosa do arguido adequou, de facto, o tipo de actos ilícitos ao desenvolvimento da menor. Mas esta adequação implicou uma mudança de intenção por parte do agente, que passou a ser diferente da anterior. O crescimento da menor fá-lo passar à gradação seguinte, como bem se refere na decisão recorrida (cfr. fls. 567 e ss), gradação essa que passaria para actos de cópula. Essa era a intenção do arguido (veja-se facto provado sob o nº 31) que mudou para actos de coito oral e anal por receio de ser descoberto. Nesta fase ele deixa mesmo de praticar os actos sexuais de relevo que anteriormente havia praticado com a menor.
Temos por certo que existem duas resoluções criminosas distintas.
Entre os diversos actos medeiam sempre largos espaços de tempo, atendendo aos períodos de férias escolares, com o consequente crescimento da menor. A resolução que inicialmente os abrangia a todos esgota-se quando a menor atinge tal crescimento que leva ao arguido a querer praticar com esta actos de natureza sexual mais graves (coito oral e anal). Estes últimos actos supõem, sem dúvidas, um novo processo deliberativo.
Daqui resulta que se deve considerar existente uma pluralidade de resoluções sempre que se verifique, entre as actividades efectuadas pelo agente, mudanças físicas da vítima como o seu crescimento, as quais, de harmonia com a experiência normal se possa e deva aceitar que ele as executou renovando o respectivo processo de motivação”.
Na passagem para actos de sexo oral e depois anal a mudança é real e significativa, inclusive com outras consequências, como as vertidas no FP 22, não se podendo defender que é o procedimento é o mesmo mas adequado ou adaptado ao processo de crescimento e de desenvolvimento físico, corporal e sexual da menor, como refere nas conclusões IV e VIII e a posterior renovação não é fictícia, artificial como defende nas conclusão VI.
Improcede a pretensão formulada nas conclusões I a XI e XIV, de redução a um único crime de abuso sexual de criança, agravado, de trato sucessivo, mantendo-se a condenação do recorrente pela prática dos dois crimes de abuso sexual por que foi condenado, incluindo as penas aplicadas, questionadas apenas no pressuposto da unificação criminosa pretendida.
Questão II – Medida da pena
A questão da medida da pena foi colocada nas conclusões XII e XIII, como decorrência da viabilidade da pretensão da unificação dos dois crimes de abuso sexual de criança, agravado, de trato sucessivo, por que o recorrente foi condenado.
Na sequência do que acaba de ser dito, a reformulação da medida da pena terá lugar não em função da redução a um único crime de abuso sexual de criança, agravado, de trato sucessivo, mas por via da fixação da pena correspondente ao “novo” crime de acto sexual com adolescente, agravado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, n.º 1 e 2, 73.º, n.º 1, alíneas a) e b), 173.º, n.ºs 1 e 2, 177.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
Como vimos supra, ao crime de actos sexuais com adolescentes, na forma tentada, cabe a moldura penal de pena de prisão de um mês a 2 anos e 8 meses ou multa de 10 a 240 dias.
Esta previsão de pena de prisão em alternativa com pena de multa concita desde logo a questão da escolha da pena.
A escolha da pena
O critério da escolha da pena prevista em alternativa encontra-se estabelecido no artigo 70.º do Código Penal, o qual sob a epígrafe “Critério de escolha da pena”, dispõe que «Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».
As finalidades da punição são, de acordo com o artigo 40.º do Código Penal, a partir da revisão de 1995, a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
Conforme explicita Figueiredo Dias em Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 497, pág. 331, o critério geral de escolha (entre penas alternativas) e de substituição da pena é o seguinte: «o tribunal deve preferir à pena privativa de liberdade uma pena alternativa ou de substituição sempre que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa ou a de substituição se revelem adequadas e suficientes à realização das finalidades da punição. O que vale por dizer que são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam (e impõem) a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua efectiva aplicação», e acrescenta - § 498, pág. 332 - bem se compreender que assim seja: “sendo a função exercida pela culpa, em todo o processo de determinação da pena, a de limite inultrapassável do quantum daquela, ela nada tem a ver com a questão da escolha da espécie de pena”.
Quanto à função – inteiramente distinta – que as exigências de prevenção geral e de prevenção especial exercem neste contexto, esclarece este Autor que «Prevalência decidida não pode deixar de ser atribuída a considerações de prevenção especial de socialização, por serem sobretudo elas que justificam, em perspectiva político-criminal, todo o movimento de luta contra a pena de prisão», acrescentando que «o tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa (ou de uma pena de substituição) quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquela(s) pena(s); coisa que só raramente acontece se não se perder de vista o já tantas vezes referido carácter criminógeno da prisão, em especial da de curta duração» (ob. cit., § 500, págs. 332-333).
À luz do critério estatuído no artigo 70.º do Código Penal, sendo aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal deve dar preferência à segunda (multa como alternativa à pena de prisão, “a forma por excelência de previsão da pena pecuniária”, na expressão de Figueiredo Dias, loc. cit. §137, pág. 124), sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, ou seja, a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
Perante duas penas principais previstas em alternativa, a primeira operação consistirá na escolha, isto é, em determinar qual das duas espécies de penas eleger no caso concreto, após o que, num segundo momento, consumada a eleição da espécie, competirá proceder à determinação da medida concreta da espécie de pena já escolhida.
No caso presente – é a questão que se coloca – será ajustada, adequada e suficiente a aplicação de uma pena de multa?
Face ao contexto do caso sujeito, encarado na sua globalidade, não se estando face a uma conduta isolada, a um único crime, a resposta será negativa.
Há que ter em conta o critério da adequação e suficiência, atento por um lado, o bem jurídico protegido na espécie, uma das finalidades a que alude o artigo 40.º, mas e sobremaneira, atender às razões de prevenção geral, que se impõem no caso presente, não sendo excessivo a opção recair na pena privativa de liberdade, tendo em conta as necessidades de assegurar a paz comunitária, atendendo ao pleno do comportamento assumido pelo arguido no trecho de vida de cerca de oito anos, aqui analisado e valorado, que se não quedou apenas pela prática da infracção ora em equação, antes a ultrapassando com uma configuração quantitativa e qualitativamente mais abrangente, bem mais ampla e gravosa em termos de lesividade de bens eminentemente pessoais, sendo o culminar de um processo de agressão do arguido à autodeterminação sexual da filha institucionalizada.
A punição a fazer da concreta conduta ora em equação não será certamente nos mesmos moldes em que o seria se se figurasse caso de nada mais estar em julgamento, ou seja, não pode ser descontextualizada da vivência, do trecho de vida do arguido espelhado no conjunto dos factos provados, recaindo a observação – global – sobre os comportamentos em conjunto, entre si conexionados, que dão nota da presença de fortes razões de prevenção geral.
A opção pela pena de multa não daria satisfação aos fins das penas num conjunto de actuações mais grave em que estão presentes outros crimes, havendo que ter uma visão/consideração da perspectiva global da conduta do arguido.
Assim tem sido entendido na jurisprudência deste Supremo Tribunal, recaindo a opção na pena de prisão, v. g., nos acórdãos de 06-01-2005, processo n.º 4204/04-5.ª, in CJSTJ 2005, tomo 1, pág. 165; de 20-01-2005, processo n.º 4322/04-5.ª, in CJSTJ 2005, tomo 1, pág. 178; de 25-10-2006, processo n.º 3042/06-3.ª Secção; de 28-11-2007, proferido no processo n.º 3294/07-3.ª; de 10-01-2008, processo n.º 3227/07-5.ª, in CJSTJ 2008, tomo 1, pág. 187 (196); de 10-01-2008, processo n.º 4277/07-5.ª; de 10-11-2010, proferido no processo n.º 145/10.9JAPRT-3.ª e de 23-02-2011, processo n.º 250/10.1PDAMD.S1-3.ª.
No caso presente estamos perante uma relação de concurso com outros tês crimes em que estão fixadas, de forma definitiva, três penas de prisão, de 3 anos e 6 meses, de 6 anos e de 1 ano, não fazendo sentido a imposição de pena de espécie diferente.
No acórdão de 19-11-2008, processo n.º 3636/08-3.ª, é afastada a opção de multa em caso de concurso.
Como referiu o acórdão de 12-02-2009, proferido no processo n.º 110/09, da 5.ª Secção “Sempre que, na pena única conjunta, tenha de ser incluída uma pena de prisão, impõe-se, na medida do possível, não aplicar pena de multa a um ou mais dos demais crimes em concurso, por também aí se verificarem os inconvenientes geralmente atribuídos às chamadas «penas mistas» de prisão e multa”.
No acórdão de 08-10-2009, proferido processo n.º 228/08.5JAFAR.S1-5.ª, reafirma-se ser de evitar em caso de relação de concurso, a formação de uma espécie de pena compósita ou mista, espécie de penas arredada do âmbito das sanções criminais.
Voltando ao caso concreto.
Ressalta como evidente que a aplicação de uma pena de multa, no contexto da ora apreciada conduta ilícita global, não atingiria, não satisfaria, as finalidades de punição, as necessidades de prevenção geral e especial, já que não se está perante um ilícito único, isolado, de menor dimensão, de uma qualquer “bagatela penal”, sem consequências, sem desvalor de resultado, antes devendo ser contextualizado no âmbito concreto de uma ilicitude maior, na indução de um grau de lesividade de bens jurídicos mais acentuado, porque mais abrangente, de direitos de personalidade, de liberdade e autodeterminação sexual, impondo-se que a escolha recaia, sem margens para quaisquer dúvidas, sobre a pena detentiva.
Face ao exposto, havendo que ter em atenção que a opção a tomar não pode deixar de ter em conta os factos no seu conjunto, o ilícito global em apreciação, e que a pena de prisão aplicada por este crime no caso concreto perderá a sua autonomia e peso específico, integrando-se em cúmulo jurídico a efectuar em função de concurso efectivo de infracções ora submetidas a julgamento, considera-se ser de aplicar pena de prisão.
Feita a opção pela espécie de pena cabível ao crime de acto sexual com adolescente, agravado, na forma tentada, há que passar à determinação da respectiva medida concreta.
A medida da pena do crime de acto sexual com adolescente, agravado, na forma tentada
A moldura da pena sobre que recaiu a opção antecedente é de prisão de um mês a 2 anos e 8 meses.
Dentro destas molduras funcionam todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente, designadamente:
- O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
- A intensidade do dolo ou da negligência;
- Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
- As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
- A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
- A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
Sendo uma das finalidades das penas a tutela dos bens jurídicos – artigo 40.º do Código Penal, na versão da terceira alteração, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março – definindo a necessidade desta protecção os limites daquelas, há que, necessariamente, ter em atenção o bem jurídico tutelado no tipo legal ora em causa.
Na actual sistematização do Código Penal, o crime de actos sexuais com adolescentes, p. e p. pelo artigo 173.º, ora na redacção dada pela Lei n.º 59/2007, de 04-09, entrada em vigor em 15-09-2007 (artigo 13.º), enquadra-se na categoria “Dos crimes contra as pessoas” - Título I, do Livro II – (Parte especial), e mais especificamente, no Capítulo V, “Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual” – artigos 163.º a 179.º – mais concretamente ainda na Secção II (Crimes contra a autodeterminação sexual) – artigos 171.º a 176.º – e com a agravação constante da disposição comum do artigo 177.º, para além das igualmente comuns normas dos artigos 178.º (queixa) e 179.º (inibição do poder paternal e proibição do exercício de funções), este actualmente revogado.
Os referidos artigos 163.º a 179.º, introduzidos na reforma de 1995, “substituiram” os artigos 201.º a 218.º da versão originária do Código Penal de 1982, que tratavam “Dos crimes sexuais” - Secção II -, então inserta no Capítulo I, com a epígrafe “Dos crimes contra os fundamentos ético-sociais da vida social”, por novos artigos, que passaram a integrar o Capítulo V, «Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual» com os n.ºs 163.º a 179.º, repartidos por três secções, respectivamente, dos crimes contra a liberdade sexual (artigos 163.º a 171.º), dos crimes contra a autodeterminação sexual (artigos 172.º a 176.º) e das disposições comuns (artigos 177.º a 179.º), conferindo-lhes nova redacção (cfr. solução n.º 115, constante do artigo 3.º- A - Relativamente à parte geral - da Lei de autorização legislativa n.º 35/94, de 15-09, rectificada no Diário da República, I Série-A, de 13-12-1994, donde emergiu o Decreto-Lei n.º 48/95, de 15-03, que procedeu à terceira alteração do Código Penal, entrado em vigor em 1-10-1995).
O bem jurídico protegido nestes crimes é a liberdade e autodeterminação sexual, ligado a outro bem jurídico, a saber, o do livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual, devendo considerar-se a Secção II como um capítulo importante da função de protecção penal das crianças e dos jovens até certos limites de idade – assim, Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 442. Mais à frente, pág. 541, especifica que trata-se ainda “de proteger a autodeterminação sexual, mas sob uma forma muito particular: não face a condutas que representem a extorsão de contactos sexuais por forma coactiva ou análoga, mas face a condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade de vítima, podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade”.
O crime de actos sexuais com adolescentes está previsto no artigo 173.º do Código Penal, preceito que substituiu a incriminação do estupro, historicamente ligada preferencialmente à violação de mulher virgem.
Estabelece o artigo 173.º do Código Penal (Actos sexuais com adolescentes):
1 – Quem, sendo maior, praticar acto sexual de relevo com menor entre 14 e 16 anos, ou levar a que ele seja por este praticado com outrem, abusando da sua inexperiência, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.
2 – Se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito oral, coito anal ou introdução vaginal ou anal de partes de corpo ou objectos, é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
Neste crime é tutelado o livre desenvolvimento da vida sexual de menor entre 14 e 16 anos, face a processos proibidos de sedução conducentes à prática de tais actos: acto sexual de relevo, que pode consistir em cópula, coito oral, coito anal ou introdução vaginal ou anal de partes de corpo ou objectos. (Assim, Código Penal, Parte geral e especial, com Notas e Comentários, de M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, Almedina, 2014, pág. 726). Neste sentido, Figueiredo Dias em comentário ao artigo 174.º, no Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, págs. 563/4.
Como se pode ler no acórdão de 19-10-2000, processo n.º 2546/00-5.ª, SASTJ, n.º 44, pág. 87 “Aos 14 anos, a lei fornece uma protecção absoluta aos menores no que concerne ao seu desenvolvimento e crescimento sexuais. A lei protege-os, inclusivamente deles próprios, considerando irrelevante consentimento que prestem para a prática de actos sexuais”.
Como refere Denis Sala, Le délinquant sexuel, in “La Justice e le mal”, ed. Odile Jacob, 1997, pág. 53 e segs., referido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-07-2005: «Nos tempos actuais de fragmentação de valores e de referências, os crimes sexuais emergem como verdadeiro mal democrático numa sociedade onde a igualdade de condições conduz à redução da alteridade.
A proximidade emocional própria do universo comunicacional das efervescentes democracias contemporâneas anula a distanciação, transportando fenómenos sociais de exigência intensa na resposta a crimes sexuais; o legislador, interpretando os sinais de sociedade, teve de sublimar e reordenar as imposições sociais na grelha de intervenção do direito e das reacções do sistema penal que tutela os valores mais essenciais da comunidade.
Os crimes sexuais contêm, na imagem das democracias de comunicação, uma dimensão de negação alucinatória da ordem natural as coisas, uma desordem da natureza, um desequilíbrio cósmico que a cidade quer eliminar sem o referir».
No caso presente há que atender ao elevado grau de ilicitude e também ao intenso dolo, na modalidade de directo.
Há a ponderar o período temporal da actuação, a situar entre Dezembro de 2012 e 31 de Dezembro de 2013.
As razões e necessidades de prevenção geral positiva ou de integração - que satisfaz a necessidade comunitária de afirmação ou mesmo reforço da norma jurídica violada, dando corpo à vertente da protecção de bens jurídicos, finalidade primeira da punição - são prementes e muito elevadas, fazendo-se sentir neste tipo de infracção, tendo em conta o bem jurídico violado no crime em questão – a autodeterminação sexual do adolescente - e impostas pela frequência de condutas deste tipo e do conhecido alarme social e insegurança que estes crimes em geral causam na comunidade, maxime, nos últimos anos, em que estas questões passaram a assumir muito maior visibilidade, justificando resposta punitiva firme, sendo de ter em conta os prejuízos que são susceptíveis de acarretar na formação da personalidade e desenvolvimento afectivo e emocional das vítimas.
A função de prevenção geral que deve acentuar perante a comunidade o respeito e a confiança na validade das normas que protegem o bem mais essencial tem de ser eminentemente assegurada, sobrelevando, decisivamente, as restantes finalidades da punição.
Como expende Figueiredo Dias, em O sistema sancionatório do Direito Penal Português, inserto em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, I, pág. 815, “A prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida; numa palavra, como estabilização das expectativas comunitárias na validade e na vigência da norma infringida”.
Como se expressou o acórdão do STJ de 04-07-1996, in CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 225, com o recurso à prevenção geral procurou dar-se satisfação à necessidade comunitária da punição do caso concreto, tendo-se em consideração, de igual modo a premência da tutela dos respectivos bens jurídicos.
Segundo o acórdão de 01-04-1998, recurso n.º 1436/97, in CJSTJ 1998, tomo 2, pág. 175, versando então caso de concurso real de crimes de atentado ao pudor e abuso sexual de crianças, um e outro unificados em continuação criminosa, pronunciou-se nestes termos: “as expectativas da comunidade ficam goradas, a confiança na validade das normas jurídicas esvai-se, o elemento dissuasor não passa de uma miragem, quando a medida concreta da pena não possui o vigor adequado à protecção dos bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade, respeitando o limite da culpa. Se uma pena de medida superior á culpa é injusta, uma pena insuficiente para satisfazer os fins da prevenção constitui um desperdício”.
No que toca a prevenção especial avulta a personalidade do arguido na forma como actuou ao longo do período em causa, com absoluta indiferença e insensibilidade pelo valor em causa, não se esgotando na mera prevenção da reincidência.
Como refere Américo Taipa de Carvalho, a propósito de prevenção da reincidência, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pág. 325, trata-se de dissuasão necessária para reforçar no delinquente o sentimento da necessidade de se auto-ressocializar, ou seja, de não reincidir.
E no caso de infractores ocasionais, a ter de ser aplicada uma pena, é esta mensagem punitiva dissuasora o único sentido da prevenção especial.
Fazendo aplicação de todos estes dados e ponderando todos os factores presentes, afigura-se como adequada, equilibrada e proporcional, a pena de um ano de prisão.
A medida da pena única
O recorrente pede a redução da pena conjunta aplicada, na decorrência da pretendida
redução do número de crimes de abuso sexual de criança, agravado, de trato sucessivo, pretensão que não pode colher por esta via face à improcedência da pretensão.
Face à convolação operada, há que reformular o cúmulo jurídico efectuado.
Estabelece, quanto a regras de punição do concurso de crimes, o artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, que operou a terceira alteração ao Código Penal, em vigor desde 1 de Outubro de 1995 (e inalterado pelas subsequentes trinta e duas modificações legislativas, operadas, nomeadamente, e mais recentemente, pelas Leis n.º 59/2007, de 4 de Setembro, n.º 61/2008, de 31 de Outubro, n.º 32/2010, de 2 de Setembro, n.º 40/2010, de 3 de Setembro, n.º 4/2011, de 16 de Fevereiro, n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro, n.º 60/2013, de 23 de Agosto, Lei Orgânica n.º 2/2014, de 6 de Agosto, Leis n.º 59/2014, de 26 de Agosto, n.º 69/2014, de 29 de Agosto, n.º 82/2014, de 30 de Dezembro, Lei Orgânica n.º 1/2015, de 8 de Janeiro, Leis n.º 30/2015, de 22 de Abril, rectificada na Declaração de Rectificação n.º 22/2015, in Diário da República, 1.ª série, n.º 100, de 25 de Maio de 2015, n.º 81/2015, de 3 de Agosto, n.º 83/2015, de 5 de Agosto, n.º 103/2015, de 24 de Agosto e n.º 110/2015, de 26 de Agosto):
“Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.
E nos termos do n.º 2, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão e 900 dias, tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo, a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
Segundo o n.º 3 “Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores”.
No acórdão recorrido a moldura do concurso era de 6 anos a 13 anos e 6 meses de prisão, tendo sido fixada a pena conjunta de 9 anos e 6 meses de prisão.
Atenta a implosão da pena de 3 anos de prisão aplicada pelo crime de violação agravada na forma tentada e sua substituição pela pena de 1 ano de prisão agora aplicada, há que reformular o cúmulo, sendo que a moldura a ter em conta é agora de 6 anos a 11 anos e 6 meses de prisão.
No que concerne à determinação da pena única, deve ter-se em consideração a existência de um critério especial na determinação concreta da pena do concurso, segundo o qual serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, o que obriga a que do teor da sentença conste uma especial fundamentação da medida da pena do concurso.
Como se lê em Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 420, págs. 290/1, estabelecida a moldura penal do concurso, a pena conjunta do concurso será encontrada em função das exigências gerais de culpa e de prevenção, fornecendo a lei, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no art. 72.º-1 (actual 71.º-1), um critério especial: o do artigo 78.º (actual 77.º), n.º 1, 2.ª parte, segundo o qual na determinação concreta da pena do concurso serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, o que obriga logo a que do teor da sentença conste uma especial fundamentação da medida da pena do concurso.
E no § 421, págs. 291/2, acentua o mesmo Autor que na busca da pena do concurso, “Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta”.
Acrescenta ainda: “De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)”.
Como se extrai do acórdão deste Supremo Tribunal de 6 de Maio de 2004, in CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 191, a propósito dos critérios a atender na fundamentação da pena única, nesta operação o que releva e interessa considerar é, sobretudo, a globalidade dos factos em interligação com a personalidade do agente, de forma a aquilatar-se, fundamentalmente, se o conjunto dos factos traduz uma personalidade propensa ao crime, a dar indícios de projecto de uma carreira, ou é antes, a expressão de uma pluriocasionalidade que não encontra a sua razão de ser na personalidade do arguido, mas antes numa conjunção de factores ocasionais, sem repercussão no futuro – cfr. na esteira da posição do citado Autor, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 08-07-1998, in CJSTJ 1998, tomo 2, pág. 246; de 24-02-1999, processo n.º 23/99-3.ª; de 12-05-1999, processo n.º 406/99-3.ª; de 27-10-2004, processo n.º 1409/04-3.ª; de 20-01-2005, processo n.º 4322/04-5.ª, in CJSTJ 2005, tomo I, pág. 178; de 17-03-2005, no processo n.º 754/05-5.ª; de 16-11-2005, in CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 210; de 12-01-2006, no processo n.º 3202/05-5.ª; de 08-02-2006, no processo n.º 3794/05-3.ª; de 15-02-2006, no processo n.º 116/06-3.ª; de 22-02-2006, no processo n.º 112/06-3.ª; de 22-03-2006, no processo n.º 364/06-3.ª; de 04-10-2006, no processo n.º 2157/06-3.ª; de 21-11-2006, in CJSTJ 2006, tomo 3, pág. 228; de 24-01-2007, no processo n.º 3508/06-3.ª; de 25-01-2007, nos processos n.ºs 4338/06-5.ª e 4807/06-5.ª; de 28-02-2007, no processo n.º 3382/06-3.ª; de 01-03-2007, no processo n.º 11/07-5.ª; de 07-03-2007, no processo n.º 1928/07-3.ª; de 14-03-2007, no processo n.º 343/07-3.ª; de 28-03-2007, no processo n.º 333/07-3.ª; de 09-05-2007, nos processos n.ºs 1121/07-3.ª e 899/07-3.ª; de 24-05-2007, no processo n.º 1897/07-5.ª; de 29-05-2007, no processo n.º 1582/07-3.ª; de 12-09-2007, no processo n.º 2583/07-3.ª; de 03-10-2007, no processo n.º 2576/07-3.ª; de 24-10-2007, no processo nº 3238/07-3.ª; de 31-10-2007, no processo n.º 3280/07-3.ª; de 09-01-2008, processo n.º 3177/07-3.ª, in CJSTJ 2008, tomo 1, pág. 181 (Na valoração da personalidade deve atender-se a se os factos são a expressão de uma inclinação, tendência ou mesmo carreira criminosa, ou delitos ocasionais, sem relação entre si. A autoria em série é factor de agravação dentro da moldura penal conjunta, enquanto a pluriocasionalidade, que não radica na personalidade, não tem esse efeito agravante); de 09-04-2008, no processo n.º 686/08-3.ª (o acórdão ao efectuar o cúmulo jurídico das penas parcelares não elucida, porque não descreve, o raciocínio dos julgadores que orientou e decidiu a determinação da medida da pena do cúmulo); de 25-06-2008, no processo n.º 1774/08-3.ª; de 02-04-2009, processo n.º 581/09-3.ª, por nós relatado, in CJSTJ 2009, tomo 2, pág. 187; de 21-05-2009, processo n.º 2218/05.0GBABF.S1-3.ª; de 29-10-2009, no processo n.º 18/06.0PELRA.C1.S1-5.ª, in CJSTJ 2009, tomo 3, pág. 224 (227); de 04-03-2010, no processo n.º 1757/08.6JDLSB.S1-5.ª; de 10-11-2010, no processo n.º 23/08.1GAPTM-3.ª.
Na expressão dos acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça, de 20-02-2008, proferido no processo n.º 4733/07 e de 8-10-2008, no processo n.º 2858/08, desta 3.ª Secção, na formulação do cúmulo jurídico, o conjunto dos factos fornece a imagem global do facto, o grau de contrariedade à lei, a grandeza da sua ilicitude; já a personalidade revela-nos se o facto global exprime uma tendência, ou mesmo uma “carreira”, criminosa ou uma simples pluriocasionalidade.
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Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, como se o conjunto de crimes em concurso se ficcionasse como um todo único, unificado, globalizado, que deve ter em conta a existência ou não de ligações ou conexões e o tipo de ligação ou conexão que se verifique entre os factos em concurso - cfr., neste sentido, inter altera, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 17-03-2004, proferido no processo n.º 4431/03; de 20-01-2005, in CJSTJ 2005, tomo 1, pág. 178; de 08-06-2006, processo n.º 1613/06 – 5.ª; de 07-12-2006, processo n.º 3191/06 – 5.ª; de 20-12-2006, processo n.º 3379/06-3.ª; de 18-04-2007, processo n.º 1032/07 – 3.ª; de 03-10-2007, processo n.º 2576/07-3.ª, in CJSTJ 2007, tomo 3, pág. 198; de 09-01-2008, processo n.º 3177/07-3.ª, in CJSTJ 2008, tomo 1, pág. 181 (Na formação da pena conjunta é fundamental uma visão e valoração completa da pessoa do autor e das diversas penas parcelares de modo a que a pena global reflicta a personalidade do autor e os factos individuais); de 06-02-2008, processo n.º 129/08-3.ª e da mesma data no processo n.º 3991/07-3.ª, este in CJSTJ 2008, tomo I, pág. 221; de 06-03-2008, processo n.º 2428/07 – 5.ª; de 13-03-2008, processo n.º 1016/07 – 5.ª; de 02-04-2008, processos n.º s 302/08-3.ª e 427/08-3.ª; de 09-04-2008, processo n.º 1011/08 – 5.ª; de 07-05-2008, processo n.º 294/08 – 3.ª; de 21-05-2008, processo n.º 414/08 – 5.ª; de 04-06-2008, processo n.º 1305/08 – 3.ª; de 25-09-2008, processo n.º 2891/08 – 3.ª; de 29-10-2008, processo n.º 1309/08 – 3.ª; de 27-01-2009, processo n.º 4032/08 – 3.ª; de 29-04-2009, processo n.º 391/09 – 3.ª; de 14-05-2009, processo n.º 170/04.9PBVCT.S1 – 3.ª; de 27-05-2009, processo n.º 50/06.3GAVFR.C1.S1 – 3.ª; de 18-06-2009, processo n.º 577/06.7PCMTS.S1 – 3.ª; de 18-06-2009, processo n.º 8253/06.1TDLSB-3.ª; de 25-06-2009, processo n.º 274/07-3.ª, in CJSTJ 2009, tomo 2, pág. 251 (a decisão que efectiva o cúmulo jurídico das penas parcelares necessariamente que terá de demonstrar fundamentando que foram avaliados o conjunto dos factos e a interacção destes com a personalidade); de 21-10-2009, processo n.º 360/08.5GEPTM.S1-3.ª; de 04-11-2009, processo n.º 296/08.0SYLSB.S1-3.ª; de 18-11-2009, processo n.º 702/08.3GDGDM.P1.S1-3.ª; de 25-11-2009, processo n.º 490/07.0TAVVD-3.ª; de 10-12-2009, processo n.º 496/08.2GTABF.E1.S1-3.ª (citado no acórdão de 23-06-2010, processo n.º 862/04.2PBMAI.S1-5.ª), ali se referindo: “Na determinação da pena única do concurso, o conjunto dos factos indica a gravidade do ilícito global, sendo decisiva a avaliação e conexão e o tipo de conexão que se verifique entre os factos concorrentes.
Na avaliação da personalidade – unitária – do agente importa, sobretudo, verificar se o conjunto dos factos é recondutível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira» criminosa), ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta”; de 04-03-2010, no processo n.º 1757/08.6JDLSB.L1.S1-5.ª; de 10-03-2010, no processo n.º 492/07.7PBBJA.E1.S1-3.ª; de 18-03-2010, no processo n.º 160/06. 7GBBCL.G2.S1-5.ª; de 15-04-2010, no processo n.º 134/05.5PBVLG.S1-3.ª; de 28-04-2010, no processo n.º 260/07.6GEGMR.S1-3.ª; de 05-05-2010, no processo n.º 386/06.3SLSB.S1-3.ª; de 12-05-2010, no processo n.º 4/05.7TDACDV.S1-5.ª; de 27-05-2010, no processo n.º 708/05.4PCOER.L1.S1-5.ª; de 09-06-2010, processo n.º 493/07.5PRLSB.S1-3.ª; de 23-06-2010, no processo n.º 666/06.8TABGC-K.S1-3.ª; de 20-10-2010, processo n.º 400/08.8SZLB.L1.S1-3.ª; de 03-11-2010, no processo n.º 60/09.9JAAVR.C1.S1-3.ª; de 16-12-2010, processo n.º 893/05.5GASXL.L1.S1-3.ª; de 19-01-2011, processo n.º 6034/08.0TDPRT.P1.S1-3.ª; de 02-02-2011, processo n.º 217/08.0JELSB.S1-3.ª; de 31-01-2012, processo n.º 2381/07.6PAPTM.E1.S1-3.ª; de 12-09-2012, processos n.º 223/07.1GCVIS.C1.S1-3.ª e 2745/09.0TDLSB.L1.S1-3.ª; de 06-02-2013, processo n.º 639/10.6PBVIS.S1-3.ª; de 14-03-2013, processo n.º 224/09.5PAOLH.S1 e n.º 13/12.0SOLSB.S1, ambos desta Secção e do mesmo relator; de 10-07-2013, processo n.º 413/06.4JAFAR.E2.S1-3.ª; de 12-09-2013, processo n.º 1445/09.6JAPRT.P1.S1-3.ª; de 04-06-2014, processo n.º 186/13.4GBETR.P1.S1-3.ª; de 17-12-2014, processo n.º 512/13.3PGLRS.L1.S1-3.ª.
Como refere Cristina Líbano Monteiro, A Pena «Unitária» do Concurso de Crimes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 16, n.º 1, págs. 151 a 166, o Código rejeita uma visão atomística da pluralidade de crimes e obriga a olhar para o conjunto – para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente, estando em causa a avaliação de uma «unidade relacional de ilícito», portadora de um significado global próprio, a censurar de uma vez só a um mesmo agente.
A pena conjunta tenderá a ser uma pena voltada para ajustar a sanção - dentro da moldura formada a partir de concretas penas singulares – à unidade relacional de ilícito e de culpa, fundada na conexão auctoris causa própria do concurso de crimes.
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Como referimos, inter altera, nos acórdãos de 20 de Janeiro de 2010, de 24 de Fevereiro de 2010, de 9 de Junho de 2010, de 10 de Novembro de 2010, de 2 de Fevereiro de 2011, de 18 de Janeiro de 2012, de 5 de Julho de 2012, de 12 de Setembro de 2012 (dois), de 22 de Maio de 2013, de 1 de Outubro de 2014, de 17 de Dezembro de 2014 e de 29 de Abril de 2015, proferidos no processo n.º 392/02.7PFLRS.L1.S1, in CJSTJ 2010, tomo 1, pág. 191, processo n.º 655/02.1JAPRT.S1, processo n.º 493/07.5PRLSB.S1-3.ª, processo n.º 23/08.1GAPTM.S1, processo n.º 994/10.8TBLGS.S1-3.ª, processo n.º 34/05.9PAVNG.S1, CJSTJ 2012, tomo 1, pág. 209, processo n.º 246/11.6SAGRD.S1, processos n.º 223/07.1GCVIS.C1.S1 e n.º 2745/09.0TDLSB.L1.S1, processo n.º 344/11.6PCBRG.G1.S1, processo n.º 11/11.0GCVVC.S1, processo n.º 512/13.6PGLRS.L1.S1 e processo n.º 791/12 ALQ.L2.S1:
“Perante concurso de crimes e de penas, há que atender ao conjunto de todos os factos cometidos pelo arguido, de modo a surpreenderem-se, ou não, conexões entre os diversos comportamentos ajuizados, através duma visão ou imagem global do facto, encarado na sua dimensão e expressão global, tendo em conta o que ressalta do contexto factual narrado e atender ao fio condutor presente na repetição criminosa, procurando estabelecer uma relação desses factos com a personalidade do agente, tendo-se em conta a caracterização desta, com sua projecção nos crimes praticados; enfim, há que proceder a uma ponderação da personalidade do agente e correlação desta com os concretos factos ajuizados, a uma análise da função e da interdependência entre os dois elementos do binómio, não sendo despicienda a consideração da natureza dos crimes em causa, da verificação ou não de identidade dos bens jurídicos violados, até porque o modelo acolhido é o de prevenção, de protecção de bens jurídicos.
Todo este trabalho de análise global se justifica tendo em vista descortinar e aferir se o conjunto de factos praticados pelo(a) condenado(a) é a expressão de uma tendência criminosa, isto é, se significará já a expressão de algum pendor para uma “carreira”, ou se, diversamente, a feridente repetição comportamental dos valores estabelecidos emergirá antes e apenas de factores meramente ocasionais”.
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Por outro lado, na confecção da pena conjunta, há que ter presentes os princípios da proporcionalidade, da adequação e proibição do excesso.
Cremos que nesta abordagem, há que ter em conta os critérios gerais da medida da pena contidos no artigo 71.º do Código Penal – exigências gerais de culpa e prevenção – em conjugação, a partir de 1 de Outubro de 1995, com a proclamação de princípios ínsita no artigo 40.º, atenta a necessidade de tutela dos bens jurídicos ofendidos e das finalidades das penas, incluída a conjunta, aqui acrescendo o critério especial fornecido pelo artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal - o que significa que este específico dever de fundamentação de uma pena conjunta, não pode estar dissociado da questão da adequação da pena à culpa concreta global, tendo em consideração por outra via, pontos de vista preventivos, sendo que, in casu, a ordem de grandeza de lesão dos bens jurídicos tutelados e sua extensão não fica demonstrada pela simples enunciação, sem mais, do tipo legal violado, o que passa pela sindicância do efectivo respeito pelo princípio da proporcionalidade e da proibição do excesso, que deve presidir à fixação da pena conjunta, tornando-se fundamental a necessidade de ponderação entre a gravidade do facto global e a gravidade da pena conjunta.
Neste sentido, podem ver-se aplicações concretas nos acórdãos de 21-11-2006, processo n.º 3126/06-3.ª, in CJSTJ 2006, tomo 3, pág. 228 (a decisão que efectue o cúmulo jurídico não pode resumir-se à invocação de fórmulas genéricas; tem de demonstrar a relação de proporcionalidade entre a pena conjunta a aplicar e a avaliação dos factos e a personalidade do arguido); de 14-05-2009, no processo n.º 170/04.9PBVCT.S1-3.ª; de 10-09-2009, no processo n.º 26/05.8SOLSB-A.S1-5.ª, seguido de perto pelo acórdão de 09-06-2010, no processo n.º 493/07.5PRLSB.S1-3.ª, ali se referindo que “Importa também referir que a preocupação de proporcionalidade a que importa atender, resulta ainda do limite intransponível absoluto, dos 25 anos de prisão, estabelecido no n.º 2 do art. 77.º do CP. É aqui que deve continuar a aflorar uma abordagem diferente da pequena e média criminalidade, para efeitos de determinação da pena conjunta, e que se traduzirá, na prática, no acrescentamento à parcelar mais grave de uma fracção menor das outras”; de 18-03-2010, no processo n.º 160/06. 7GBBCL.G2.S1- 5.ª, onde se afirma, para além da necessidade de uma especial fundamentação, que “no sistema de pena conjunta, a fundamentação deve passar pela avaliação da conexão e do tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifica e pela avaliação da personalidade unitária do agente. Particularizando este segundo juízo - e apara além dos aspectos habitualmente sublinhados, como a detecção de uma eventual tendência criminosa do agente ou de uma mera pluriocasionalidade que não radica em qualidades desvaliosas da personalidade - o tribunal deve atender a considerações de exigibilidade relativa e à análise da concreta necessidade de pena resultante da inter-relação dos vários ilícitos típicos”; de 15-04-2010, no processo n.º 134/05.5PBVLG.S1-3.ª; de 21-04-2010, no processo n.º 223/09.7TCLSB.L1.S1-3.ª; e do mesmo relator, de 28-04-2010, no processo n.º 4/06.0GACCH.E1.S1-3.ª.
Com interesse para o caso, veja-se o acórdão de 28-04-2010, proferido no processo n.º 260/07.6GEGMR.S1-3.ª, relativamente a onze crimes de roubo simples a agências bancárias.
Como se refere no acórdão de 10-09-2009, processo n.º 26/05.8.SOLSB-A.S1, 5.ª Secção “a pena conjunta situar-se-á até onde a empurrar o efeito “expansivo” sobre a parcelar mais grave, das outras penas, e um efeito “repulsivo” que se faz sentir a partir do limite da soma aritmética de todas as penas. Ora, esse efeito “repulsivo” prende-se necessariamente com uma preocupação de proporcionalidade, que surge como variante com alguma autonomia, em relação aos critérios da “imagem global do ilícito” e da personalidade do arguido. Proporcionalidade entre o peso relativo de cada parcelar, em relação ao conjunto de todas elas.
Se a pena parcelar é uma entre muitas outras semelhantes, o peso relativo do crime que traduz é diminuto em relação ao ilícito global, e portanto, só uma fracção menor dessa pena parcelar deverá contar para a pena conjunta. (Asserção repetida no acórdão do mesmo relator, de 23-09-09, no processo n.º 210/05.4GEPNF.S2 -5.ª).
A preocupação de proporcionalidade a que importa atender resulta do limite intransponível absoluto dos 25 anos de prisão estabelecido no n.º 2 do artigo 77.º do Código Penal.
É aqui que deve continuar a aflorar uma abordagem diferente da pequena e média criminalidade, face à grande criminalidade, para efeitos de determinação da pena conjunta, e que se traduzirá, na prática, no acrescentamento à parcelar mais grave de uma fracção menor das outras.
Como referimos nos acórdãos de 23-11-2010, processo n.º 93/10.2TCPRT.S1, de 2-02-2011, processo n.º 994/10.8TBLGS.S1, de 24-03-2011, processo n.º 322/08.2TARGR.L1.S1, de 12-09-2012, processos n.º 223/07.1GCVIS.C1.S1 e n.º 2745/09.0TDLSB.L1.S1, de 10-07-2013, processo n.º 413/06.4JAFAR.E2.S1, de 12-09-2013, processo n.º 1445/09.6JAPRT.P1.S1-3.ª e de 1-10-2014, processo n.º 344/11.6PCBRG.G1.S2 “A determinação da pena do concurso exige um exame crítico de ponderação conjunta sobre a conexão e interligação entre todos os factos praticados e a personalidade do seu autor, de forma a alcançar-se a valoração do ilícito global e entender-se a personalidade neles manifestada, de modo a concluir-se pela motivação que lhe subjaz, se emergente de uma tendência para delinquir, ou se se trata de mera ocasionalidade ou pluriocasionalidade não fundamentada na personalidade, tudo em ordem a demonstrar a adequação, justeza, e sobretudo, a proporcionalidade, entre a avaliação conjunta daqueles dois factores e a pena conjunta a aplicar e tendo em conta os princípios da necessidade da pena e da proibição de excesso.
Importará indagar se a repetição operou num quadro de execução homogéneo ou diferenciado, quais os modos de actuação, de modo a concluir se estamos face a indícios desvaliosos de tendência criminosa, ou se estamos no domínio de uma mera ocasionalidade ou pluriocasionalidade, tendo em vista configurar uma pena que seja proporcional à dimensão do crime global, pois ao novo ilícito global, a que corresponde uma nova culpa, caberá uma nova, outra, pena.
Com a fixação da pena conjunta não se visa re-sancionar o agente pelos factos de per si considerados, isoladamente, mas antes procurar uma “sanção de síntese”, na perspectiva da avaliação da conduta total, na sua dimensão, gravidade e sentido global, da sua inserção no pleno da conformação das circunstâncias reais, concretas, vivenciadas e específicas de determinado ciclo de vida do(a) arguido(a) em que foram cometidos vários crimes ”.
Como se extrai dos acórdãos de 12-05-2010, processo n.º 4/05.7TACDV.S1-5.ª e de 16-12-2010, no processo n.º 893/05.5GASXL.L1.S1-3.ª, a pena única deve reflectir a razão de proporcionalidade entre as penas parcelares e a dimensão global do ilícito, na ponderação e valoração comparativas com outras situações objecto de apreciação, em que a dimensão global do ilícito se apresenta mais intensa.
Reportam ainda a ideia de proporcionalidade os acórdãos de 11-01-2012, processo n.º 131/09.1JBLSB.L1.-A.S1-3.ª; de 18-01-2012, processo n.º 34/05.9PAVNG.S1-3.ª; de 31-01-2012, processo n.º 2381/07.6PAPTM.E1.S1-3.ª; de 05-07-2012, processo n.º 246/11.6SAGRD.S1-3.ª e os supra referidos de 12-09-2012, processos n.º 223/07.1GCVIS.C1.S1-3.ª e n.º 2745/09.0TDLSB.L1.S1-3.ª; de 22-01-2013, processo n.º 651/04.4GAFLTG.S1-3.ª; de 27-02-2013, processo n.º 455/08.5GDPTM.S1-3.ª; de 22-05-2013, processo n.º 344/11.6PCBRG.G1.S1-3.ª; de 19-06-2013, processo n.º 515/06.7GBLLE.S1-3.ª; de 10-07-2013, processo n.º 413/06.4JAFAR.E2.S1-3.ª; de 12-09-2013, processo n.º 1445/09.6JAPRT.P1.S1-3.ª; de 26-09-2013, processo n.º 138/10.6GDPTM.S2-5.ª e de 3-10-2013, processo n.º 522/01.6TACBR.C3.S1-5.ª, onde pode ler-se: «O equilíbrio entre os efeitos “expansivo” e “repulsivo” prende-se necessariamente com uma preocupação de proporcionalidade, que surge como variante com alguma autonomia, em relação aos critérios da “imagem global do ilícito” e da “personalidade do arguido”»; de 24-09-2014, processo n.º 994/12.3PBAMD.L1.S1-3.ª; de 1-10-2014, processo n.º 344/11.6PCBRG.G1.S2-3.ª.
Como se refere no acórdão de 2 de Maio de 2012, processo n.º 218/03.4JASTB.S1-3.ª, a formação da pena conjunta é uma solução para o problema de proporção resultante da integração das penas singulares numa única punição e o «restabelecimento do equilíbrio» entre crime isolado e pena singular, pelo que deve procurar-se que nas sucessivas operações de realização de cúmulo jurídico superveniente exista um critério uniforme de avaliação de tal proporcionalidade”.
Como se pode ler no acórdão de 21 de Junho de 2012, processo n.º 38/08.0GASLV.S1, “numa situação de concurso entre uma pena de grande gravidade e diversas penas de média e curta duração, este conjunto de penas tem de ser objecto de uma especial compressão para evitar uma pena excessiva e garantir uma proporcionalidade entre penas que correspondem a crimes de gravidade muito díspar; doutro modo, corre-se o risco de facilmente se poder atingir a pena máxima, a qual deverá ser reservada para as situações de concurso de várias penas muito graves”.
Focando a proporcionalidade na perspectiva das finalidades da pena, pode ver-se o acórdão de 27 de Junho de 2012, processo n.º 70/07.0JBLSB-D.S1-3.ª, onde consta: “A medida da pena única, respondendo num segundo momento também a exigências de prevenção geral, não pode deixar de ser perspectivada nos efeitos que possa ter no comportamento futuro do agente: a razão de proporcionalidade entre finalidades deve estar presente para não eliminar, pela duração, as possibilidades de ressocialização (embora de difícil prognóstico pelos antecedentes)”. (Sublinhados nossos).
Sobre os princípios da proporcionalidade, da proibição de excesso e da legalidade na elaboração de pena única pode ver-se o acórdão de 10-09-2014, processo n.º 455/08-3.ª, por nós citado no acórdão de 24-09-2014, proferido no processo n.º 994/12.3PBAMD.L1.S1-3.ª.
Revertendo ao caso concreto.
A pena conjunta visa corresponder ao sancionamento de um determinado trecho de vida do arguido condenado por pluralidade de infracções.
Há que valorar o ilícito global perpetrado, ponderando em conjunto a gravidade dos factos e a sua relacionação com a personalidade do recorrente, em todas as suas facetas.
Na elaboração da pena conjunta impõe-se fazer uma nova reflexão sobre os factos em conjunto com a personalidade do arguido, em ordem a adequar a medida da pena à personalidade que nos factos se revelou.
Importa ter em conta a natureza e diversidade ou igualdade/similitude dos bens jurídicos tutelados, ou seja, a dimensão de lesividade da actuação global do arguido.
E como referiu o supra citado acórdão de 27 de Junho de 2012, a pena única não pode deixar de ser perspectivada nos efeitos que possa ter no comportamento futuro do agente em função da sua maior ou menor duração. No mesmo sentido os acórdãos de 22 de Janeiro de 2013, processo n.º 651/04.4GAFLG.S1-3.ª, de 4 de Julho de 2013, processo n.º 39/10.8JBLSB.L1.S1-3.ª sobre o ponto e, citando neste particular os acórdãos do mesmo relator, de 9 de Fevereiro de 2011, processo n.º 19/05.5GAVNG.S1-3.ª e de 23 de Fevereiro de 2011, processo n.º 429/03. 2PALGS.S1-3.ª.
No mesmo sentido, o acórdão de 2 de Fevereiro de 2011, processo n.º 217/08.0JELSB.S1, igualmente da 3.ª Secção, citando expressamente Figueiredo Dias no passo assinalado (§ 421 págs. 291/2).
No caso presente é evidente a íntima conexão e estreita ligação entre os quatro crimes por que o recorrente foi condenado, sendo um crime de abuso sexual de criança, agravado, de trato sucessivo, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, um outro crime de abuso sexual de criança, agravado, de trato sucessivo, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 2, do Código Penal, um crime de actos sexuais com adolescente, na forma tentada, e um crime de coação agravada, cometidos pelo recorrente, revelando a assunção de condutas homótropas, com afinidades e pontos de contacto nas situações analisadas.
O conjunto dos três primeiros ilícitos traduz-se em condutas violadoras da liberdade de autodeterminação sexual, do direito da menor a um desenvolvimento físico e psíquico harmonioso.
As circunstâncias do caso em apreciação apresentam um acentuado grau de ilicitude global, manifestado no número, na natureza e gravidade dos crimes praticados, nos bens jurídicos violados na área dos direitos de personalidade da menor abusada.
Há que ter em conta o elevado alarme social que este tipo de actuações criminosas suscita na comunidade, com repercussões altamente negativas também em sede de prevenção geral.
No que toca à prevenção especial, dúvidas não há de que o arguido carece fortemente de socialização, com necessidade de fidelização ao Direito, tendo-se em vista a prevenção da prática de futuros crimes.
A favor do recorrente, a ponderar a ausência de antecedentes criminais e as condições pessoais vertidas nos FP 43 a 48.
A pena unitária tem de responder à valoração, no seu conjunto e interconexão, dos factos e personalidade do arguido, afigurando-se-nos que no caso a pluralidade emerge de pluriocasionalidade.
No caso presente estamos perante um quadro de quatro crimes, quando a menor tinha 7/8, 10/11 e 12/13 anos de idade e um crime de actos sexuais com adolescente, quando tinha 14 e 15 anos de idade, todos com acentuada gravidade, não se indiciando propensão ou inclinação criminosas.
Na verdade, a facticidade dada por provada não permite formular um juízo específico sobre a personalidade do arguido que ultrapasse a avaliação que se manifesta pela própria natureza dos factos praticados, não se mostrando provada tendência radicada na personalidade, ou seja, que o ilícito global seja produto de tendência criminosa do agente, antes correspondendo no singular contexto ora apreciado, a reiteração de condutas, ocorridas num período compreendido entre 11 de Dezembro de 2005, data em que a menor perfez 7 anos de idade até 31 de Dezembro de 2013 quando a menor contava 15 anos, restando a expressão de ocasionalidades procuradas pelo arguido.
Neste contexto, valorando o ilícito global perpetrado, ponderando em conjunto a gravidade dos factos e a sua relacionação com a personalidade do arguido, tendo em conta a moldura do concurso que vai de 6 anos a 11 anos e 6 meses de prisão, atendendo ao conjunto dos factos, a conexão entre eles, com similitude do modo de execução de conduta, período temporal da actuação, é de concluir por um elevado grau de demérito da conduta do recorrente.
Ponderados todos os elementos disponíveis, considerando a dimensão e a gravidade global do comportamento delituoso do arguido, não se estando perante uma situação que espelhe uma “carreira criminosa”, a sequência da prática dos crimes, pondera-se como adequada e proporcional a fixação da pena conjunta em 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Decisão
Pelo exposto, acordam nesta 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em julgar, embora por fundamentos diversos dos invocados, parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido AA, e em consequência:
I – Revogar o acórdão recorrido na parte em que condenou o ora recorrente pela prática de um crime de violação, agravada, na forma tentada, p. e p. nos termos do disposto nos artigos 22.º, n.º 1 e n.º 2, alíneas b) e c), 23.º, n.º 1, 164.º, n.º 1, alínea a), 177.º, n.º 1, alínea a) e n.º s 6 e 7, do Código Penal;
II – Operar a convolação para um crime de actos sexuais com adolescente, agravado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, n.º 1 e 2, 73.º, n.º 1, alíneas a) e b), 173.º, n.ºs 1 e 2, 177.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal;
III – Condenar o arguido pela prática de tal crime, na pena de um ano de prisão;
IV – Manter as demais penas parcelares;
V – Efectuando o cúmulo jurídico das penas, fixar a pena única em 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Sem custas, nos termos dos artigos 374.º, n.º 4, 513.º, n.º s 1, 2 e 3 e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (na redacção que lhes foi dada pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro, rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 22/2008, de 24 de Abril, e com as alterações introduzidas pela Lei n.º 43/2008, de 27 de Agosto, pelo Decreto-Lei n.º 181/2008, de 28 de Agosto, pelo artigo 156.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro (Suplemento n.º 252), pelo artigo 163.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, pelo Decreto-Lei n.º 52/2011, de 13 de Abril e pela Lei n.º 7/2012, de 13 de Fevereiro, rectificada com a Rectificação n.º 16/2012, de 26 de Março, pela Lei n.º 66-B/2012, de 31de Dezembro, pelo Decreto-Lei n.º 126/2013, de 30 de Agosto, e pela Lei n.º 72/2014, de 2 de Setembro), o qual aprovou – artigo 18.º – o Regulamento das Custas Processuais, publicado no anexo III do mesmo diploma legal).
Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94.º, n.º 2, do CPP.
Lisboa, 28 de Outubro de 2015
Raul Borges (Relator)
João Miguel