I - A providência de “habeas corpus” não é o lugar adequado para sindicar quaisquer vicissitudes processuais assumidas no processo principal, mormente a questão da competência para emissão dos mandados de detenção para cumprimento de pena de prisão transitada em julgado, mas cumpre deixar claro que qualquer tomada de decisão sobre tal temática sempre será irrelevante para o destino dos presentes autos.
II - A questão da competência para a emissão de mandados de detenção destinados ao início da execução da pena de prisão aplicada por decisão transitada em julgado, se do tribunal da condenação, se do TEP, mais que uma questão de incompetência material configura uma questão de incompetência funcional.
III - A norma da al. a) do n.º 1 do art. 222.º do CPP não tem em vista a incompetência funcional, apenas havendo incompetência se a entidade que efectuou ou ordenou a prisão não tem o estatuto requerido para ordenar a prisão, ou seja, não tem o estatuto de juiz, sublinhamos, com competência em matéria criminal.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I. Relatório
1. O cidadão AA, a coberto do n.º 2 do art.º 31.º da CRP e do n.º 2 do art.º 222.º do CPP, formulou a presente petição de habeas corpus em favor do arguido condenado BB, invocando a ilegalidade da prisão em que este se encontra desde o dia 24 de Janeiro de 2019, dado ter sido detido por tribunal carecido de competência para emitir os respectivos mandados de detenção, nos termos que, na íntegra, se transcrevem:
“Eu, AA, portador do cartão do cidadão n.º ..., nascido a ...-1984, [...], venho junto de V. Exa requerer, ao abrigo dos artigos 31° n.ºs 1 e 2º da Constituição da República Portuguesa "pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão" e artigo 222° n.ºs 1 e 2 alíneas a), todos do Código Processo Penal, a petição de HABEAS CORPUS a favor do detido no Estabelecimento Prisional de ..., recluso n.º 68:
BB, detido pela Polícia de Segurança Pública de ... (PSP), no dia 24 de Janeiro de 2019, sexta-feira, pelas 8h35m da manhã com um MANDADO DE DETENÇÃO EMITIDO POR UM TRIBUNAL TERRITORIALMENTE INCOMPETENTE PARA TAL EMISSÃO, o que faço nos termos e com os seguintes fundamentos:
QUESTÕES E NOTAS PRÉVIAS:
a) O raciocínio jurídico vertido na presente petição é feito ao abrigo dos meus direitos civis e constitucionais, que me dão poderes e legitimidade para apresentar esta petição e, num dos deveres explanados no Código Civil, que é o dever de conhecer a lei e de aplicar a mesma no nosso dia-a-dia, tenho para mim que a petição de habeas corpus é a única resposta adequada e necessária a esta detenção do cidadão BB, pessoa de quem sou amigo.
O Supremo Tribunal de Justiça já teve oportunidade de referir, num Acórdão de Habeas Corpus muito recente datado de 2018, mormente no Processo 651/17.4PBBRG-B.S1, da 5ª Secção desse STJ que: "poderia suscitar dúvida, a questão da eventual incompetência do tribunal que emitiu os mandados de detenção do requerente, se deveria ser o TEP ou o tribunal de condenação. Esta questão não é incontroversa, sendo até objecto de vários conflitos de competências entre esses tribunais. Os presidentes das Secções criminais do STJ têm decidido que nestes casos em que a pena não é privativa da liberdade (pena de multa), embora executada na forma de conversão em prisão subsidiária, o tribunal materialmente competente para emitir os mandados de detenção é o da condenação. Ora só uma manifesta incompetência do tribunal que ordenou a detenção poderia ser motivo para deferimento de um habeas corpus.” (junta-se cópia do mesmo acórdão para que não restem quaisquer dúvidas).
O caso que aqui nos ocupa é precisamente este, o Tribunal da Condenação não é nem pode ser territorialmente competente para ordenar/emitir os mandados de detenção porque a pena de prisão aplicada é uma pena privativa da liberdade, como tal manda a Lei, nos termos do artigo 477° n.º 1 do Código Processo Penal que, depois de transitada em julgado uma condenação, se comunique ao TEP, em cinco dias, as respectivas certidões com a decisão que aplicar pena privativa de liberdade, para o TEP, nos termos do artigo 138° n.º 4 alínea t) do Código de Execução de Penas, "compete aos tribunais de execução de penas (…) emitir os mandados de detenção".
O tribunal competente para tal emissão é o TEP do Porto, como tal a detenção e consequente prisão do cidadão BB ao ter sido ordenada pelo Tribunal de Penafiel é uma prisão ilegal por ter sido ordenada por entidade incompetente em razão da matéria e do território, como se vai demonstrar.
FUNDAMENTAÇÃO
1 - O cidadão BB foi detido no dia 24 de Janeiro de 2019 à ordem do processo n.º 127/06.5IDBRG.
2 - A questão que se coloca resume-se a isto: quem tem competência, nos termos da Lei em vigor, quer do Código Processo Penal quer do Código de Execução de Penas, para emitir os mandados de detenção?
3 - O Tribunal de Penafiel entende que é ele mesmo, eu entendo que a Lei diz que é o Tribunal de Execução de Penas nos termos da alínea t) do n.º 4 do artigo 138º do Código de Execução de Penas, sendo que o Supremo Tribunal de Justiça também entende o mesmo que eu. Logo, a manter-se o entendimento que o STJ teve no processo 651/17.4PBHRG-B.S1 na sua decisão de 2018, o recluso BB, em respeito ao princípio da legalidade e da correta aplicação da lei e respectiva tramitação processual será libertado.
4 - Diz a Lei do Código Processo Penal no seu artigo 470° n.º 1 que a execução da pena corre nos próprios autos "sem prejuízo do disposto no artigo 138° do Código de Execução de Penas", e a verdade é que, quando se diz que "a execução corre nos próprios autos" está a referir-se, apenas e só, às seguintes condenações:
a) Penas de prisão de execução suspensa, sujeitas ou não a regras e deveres, tais como provas de pagamento de determinada quantia, frequência de determinadas terapêuticas e acompanhamentos e planos de reinserção social, nos termos dos artigos 50°, 51°, 52°, 53° e 54° do Código Penal
b) Penas de prisão convertidas/substituídas em pena de multa, muitas das vezes pagas em prestações, nos termos dos artigos 47° e 48° do Código Penal
c) Prestação de trabalho a favor da comunidade conforme artigo 58.º do Código Penal.
5 - Quando o Legislador do Código Penal inscreveu nos artigos 47.º n.º 3, 48.º n.º 1 e 59.º n.º 2 a expressão "o tribunal pode"/ "o tribunal revoga a pena", está a referir-se ao Tribunal de condenação (e já não ao TEP) por ser o Tribunal de 1ª Instância quem tem competência para decidir questões com a sentença aplicada, o seu (in)cumprimento e a sua forma de execução.
6 - Daí que, numa dissertação mais aprofundada, verificamos que o artigo 475.º do Código Processo Penal quando diz que "o Tribunal competente para a execução declara extinta a pena", este é um dos casos em que, este mesmo artigo do Código Processo Penal tem uma aplicabilidade mista, aplica-se tanto ao TEP como ao Tribunal de 1.ª Instância, isto é, quem tem que declarar extinta a pena é o tribunal que acompanhou a sua execução. Se a pena de prisão for cumprida em Estabelecimento Prisional cabe ao TEP, se for acompanhada pela 1ª Instância nas modalidades referidas no ponto n.º 4 de a) a c) deste requerimento, é a 1ª Instância a extinguir.
7 - Tem havido uma grande confusão nos TEP's e nos Tribunais de 1ª Instância sobre a competência de cada um deles para a prática de determinados actos processuais, sendo que, na minha modesta opinião, não há motivos para confusões, sendo a regra interpretativa a seguinte:
i) Se a pena de prisão for cumprida em estabelecimento prisional ou em Regime de Permanência na Habitação, compete sempre, ao TEP a extinção da pena;
ii) se for uma pena de prisão executada e acompanhada pela 1.ª Instância, cabe ao Tribunal de 1.ª Instância a sua extinção, até porque, só são comunicadas ao TEP nos termos dos artigos 477° do CPP as penas de prisão efectivas ou, umas outras que, por qualquer motivo, tenham sido revogadas (ex: pena suspensa, prisão subsidiária convertida em prisão, etc.).
iii) Se a pena decretada em 1ª Instância for, logo no seu inicio[1], de prisão efectiva» compete ao TEP a emissão dos mandados de detenção e de libertação, os primeiros nos termos do artigo 138° e os segundos nos termos do artigo 23° n.º 1 do CEP, que prescreve o seguinte: "o recluso é libertado por mandado do tribunal competente."
8 - Voltados ao caso em concreto que aqui nos ocupa, compete sempre ao TEP a emissão dos mandados de detenção conforme enuncia taxativamente o artigo 138° n.º 4 alínea t) do CEP e, posteriormente, os da sua libertação bem como ao despacho de extinção da pena por aplicação subsidiária dos artigos 154° do CEP e 475° do CPP. Por força desta conclusão, não nos parece muito aceitável que se prenda um cidadão com uns mandados de detenção que são ilegais porque são emitidos por um tribunal que não tem competência para o fazer. Afigura-se-nos que se torna IMPERATIVO a sua libertação. É uma questão de justiça e de legalidade.
9 - As penas de prisão efectiva não correm nos próprios autos, daí a excepção do legislador ao ter dito, como efectivamente o disse no artigo 470° do C.P.P. "sem prejuízo (...) do Código de Execução de Penas".
10 - Foi feita uma distinção absoluta das penas que correm nos próprios autos (as que se referiram) e as penas de prisão efectiva, seja no Estabelecimento Prisional ou no Regime de Permanência na Habitação conforme artigo 43° do Código Penal.
11 - Quer isto dizer que, no presente caso, sendo a pena aplicada em 1ª instância uma pena de prisão efectiva, nunca competia - nem compete - ao Tribunal de Penafiel a emissão de mandados de detenção, o que, como tal, os mesmos não são válidos para manter o cidadão BB preso.
12 - Neste sentido, face ao disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 222° do Código Processo Penal, a prisão do cidadão BB foi ordenada por entidade materialmente incompetente para o fazer, o que faz com que a prisão, nos termos em que foi feita, é uma prisão ilegal.
13 - A reposição da legalidade só se faz com o deferimento do Habeas Corpus, e consequentemente terá que ser o TEP a comunicar ao arguido essa mesma decisão, dando-lhe um determinado prazo (Exemplo de 5 ou 10 dias) para o mesmo se apresentar voluntariamente num Estabelecimento Prisional, tal como decorre do artigo 17° alínea d) do Código de Execução de Penas.
14 - É que, a Justiça foi de tal forma "brutal" (para não dizer grosseira) que nem tampouco enviaram ao arguido BB uma missiva a notificá-lo que a sua decisão já tinha transitado em julgado e que teria o prazo de "x" dias para se apresentar no Estabelecimento Prisional, para depois ainda ser detido com uma ordem emanada de um Tribunal que não tem competência para fazer esse mesmo mandado depois do Trânsito em Julgado.
Assim, face a todo o exposto, venho requerer que seja decretada a libertação do cidadão BB, recluso n.º 68 do Estabelecimento Prisional de ..., restituindo-se o cidadão à liberdade, uma vez que os Mandados de Detenção que o detiveram foram ordenados por entidade territorialmente incompetente para o fazer, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 222° do CPP, uma vez que a entidade competente era o Tribunal de Execução de Penas.
Parafraseando o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça citado na presente petição, “Ora só uma manifesta incompetência do tribunal que ordenou a detenção poderia ser motivo para deferimento de um habeas corpus."
Fazendo justiça à afirmação supra citada, o presente Habeas Corpus só tem um desfecho possível: o deferimento e a libertação do cidadão BB,
O que se requer”.
*
2. A Exma. Juíza do processo, de acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 223.º do CPP, prestou a seguinte informação:
“O arguido BB foi condenado, por acórdão de 28/06/2012, já transitado em julgado, no cumprimento de uma pena de 6 anos de prisão.
Na sequência do trânsito em julgado da decisão condenatória foram emitidos os mandados de detenção para cumprimento da pena, constantes de fls. 5343 e enviados ao OPC para cumprimento.
Por requerimento de fls. 5384 e seguintes, veio o mesmo arguido invocar a nulidade insanável dos mandados de detenção por terem sido emitidos com violação das regras de competência do tribunal, pugnando que tais mandados deviam ter sido emitidos pelo Tribunal de Execução de Penas, conforme decorre do art.º 138.º, n.º 4, al. t), do Código de Execução de Penas. Mais invocou a inconstitucionalidade da emissão dos mandados por violação do princípio da legalidade.
O Ministério Público pronunciou-se a fls. 5392 a 5394, pugnando pela competência do tribunal da condenação.
Por despacho de fls. 5395 a 5397 foi proferido despacho que julgou improcedente a nulidade invocada, por sufragar o entendimento de que este tribunal criminal é competente para emitir tais mandados e, por outro lado, considerou inexistente a alegada inconstitucionalidade.
Desta decisão veio o arguido interpor recurso, no âmbito do qual requereu que fosse atribuído ao recurso efeito suspensivo. Porém, no despacho que admitiu o recurso foi indeferido o efeito suspensivo e determinado que o recurso subisse com efeito devolutivo – despacho de fls. 5458 e 5459.
Deste despacho o arguido veio deduzir Reclamação para o Juiz Presidente do Tribunal da Relação do Porto, conforme consta de fls. 5461 a 5466, por entender que o recurso devia ter sido admitido com efeito suspensivo.
Foi admitida a Reclamação, no despacho de fls. 5467 e ordenada a subida, instruída dos elementos ali consignados. Subiu em separado e está pendente a aguardar decisão.
Entretanto, em 20/12/2018, a fls. 5480 a 5492, o arguido veio dar conhecimento do requerimento que dirigiu ao apenso de Reclamação que se encontra pendente no Tribunal da Relação do Porto e sobre o qual ainda não foi proferida decisão.
No dia 25 de Janeiro de 2019, o arguido BB foi detido para cumprimento de pena, conforme certidão de fls. 5501 a 5503.
Cumpre dar cumprimento ao disposto no art.º 223.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Em discussão está somente a questão de saber quem é a entidade competente para a emissão dos mandados de detenção, se a Instância Central Criminal onde o processo corre termos, se o tribunal de Execução de Penas.
Com efeito, certo é que o arguido terá que cumprir a pena a que foi condenado, independentemente da decisão a proferir nas instâncias superiores.
Em nosso entender, os mandados de detenção foram emitidos por entidade competente, isto é, pelo Tribunal da condenação.
O art.º 138.º, n.º 4, al. t) do Código de Execução de Penas deve ser interpretado criticamente com os demais artigos, designadamente, com o seu n.º 2, que prescreve o seguinte: “2 - Após o trânsito em julgado da sentença que determinou a aplicação de pena ou medida privativa da liberdade, compete ao tribunal de execução das penas acompanhar e fiscalizar a respectiva execução e decidir da sua modificação, substituição e extinção, sem prejuízo do disposto no artigo 371.º-A do Código de Processo Penal. (sublinhado nosso) ”.
Ora, aquilo a que a al. t) do n.º 4 se reporta prende-se com a legitimidade do TEP em emitir mandados de condução que podem ser, entre muitas outras situações, um mandado de captura e/ou detenção de um recluso em fuga ou em que tenha visto revogada a sua liberdade condicional. Não se reporta especificamente à emissão de mandados de condução para cumprimento de pena, antes de esta iniciar a sua execução. Na verdade, quem tem o domínio sobre a data do trânsito é o tribunal da condenação. Ademais, veja-se que é o Tribunal da Relação quem efectua a liquidação da pena, pelo que não faz sentido que o aludido art.º 138.º, n.º 4, al. t), do CEP seja interpretado desgarrado das restantes normas que o mesmo prevê.
Efectivamente, não faz sentido que seja o tribunal de execução de penas a emitir uns mandados quando não tem o domínio da decisão condenatória, nem dos seus prazos, nem dos requerimentos que possam surgir na sequência de tal decisão condenatória e, por via disso, do seu trânsito em julgado. Faz sentido, sim, à luz da conjugação daquelas normas, que o TEP acompanhe e fiscalize posteriormente o cumprimento da pena.
Assim, concluímos que a alínea do art.º 138.º invocada pelo arguido não será atributiva da competência total e exclusiva do TEP nesta matéria, mormente antes de se iniciar a execução da pena, mas será atributiva dessa competência para outras situações em que Sem prejuízo de outras disposições legais, compete aos tribunais de execução das penas, em razão da matéria: t) Emitir mandados de detenção, de captura e de libertação;
Tem sido este, aliás, o entendimento do TEP e, a título de exemplo, do TRC nos seus acórdãos de 11/10/2017, 18/10/2017, 29/11/2017 e 21/02/2018, identificados em anotação aos art.º 138.º do Código de Execução de Penas na página da internet www.pgdlisboa.pt.
Daqui decorre, de forma breve e sumária, a nossa conclusão de que os mandados aqui em causa foram emitidos pela entidade competente.
Sublinha-se, por outro lado, à margem daquelas considerações, que o arguido nem sequer tinha interesse em agir quando interpôs o recurso sobre a decisão que julgou competente a emissão dos mandados pelo tribunal de condenação, porque a decisão que o condenou naquela pena estava já transitada em julgado. É certo, também, que o arguido não tem que ter conhecimento de que os mandados foram emitidos. Aliás, se percorrermos a jurisprudência nesta matéria, verifica-se que o recorrente é sempre o Ministério Público.
Desta forma, concluímos que a entidade que emitiu os mandados de detenção que culminaram com a detenção do arguido BB Pereira, foram emitidos pela entidade competente, ou seja, o tribunal da condenação, não assistindo razão ao requerente no pedido de Habeas Corpus formulado que, em nosso entender, deverá ser indeferido”.
*
3. Convocada a Secção Criminal e notificado o M.º P.º e o Defensor teve lugar a audiência, nos termos dos art.ºs 223.º, n.º 2 e 435.º, do CPP.
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4. Cumpre, pois, conhecer e decidir a questão suscitada, de saber se a situação de prisão em que o requerente se encontra configura uma situação de prisão ilegal, nos termos da alín. a) do n.º 2 do art.º 222.º do CPP.
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II. Fundamentação
1. O circunstancialismo factual relevante para julgamento da presente providência é o que resulta do precedente relatório, mormente da informação prestada nos termos do n.º 1 do art.º 223.º do CPP e dos demais documentos certificados, de onde resulta, com relevância para a decisão, que após o trânsito do acórdão de 28.06.2012 que condenou o arguido BB na pena de 6 anos de prisão, o tribunal da condenação (Juízo Central Criminal de Penafiel – Juiz 2) emitiu mandados de detenção para cumprimento de tal pena, os quais tiveram cumprimento no dia 25.01.2019.
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2. A providência de habeas corpus tem tutela constitucional no art.º 31.º da Constituição da República Portuguesa, que dispõe:
1. Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.
2. A providência de habeas corpus pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos.
3. O juiz decidirá no prazo de oito dias o pedido de habeas corpus em audiência contraditória.
Na expressão de Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa, Anotada, I, pág. 508) essa medida “consiste essencialmente numa providência expedita contra a prisão ou detenção ilegal, sendo, por isso, uma garantia privilegiada do direito à liberdade, por motivos penais ou outros, garantido nos art.ºs 27.º e 28.º (…). Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa de direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade”.
No respeitante à prisão ilegal, o seu tratamento processual decorre do art.º 222.º do CPP, cujo elenco taxativo o n.º 2 faz derivar do facto de:
a) - Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;
b) – Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite;
c) – Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.
Como providência excepcional, o habeas corpus constitui um mecanismo expedito que visa pôr termo imediatamente às situações de prisão manifestamente ilegais, sendo a ilegalidade da prisão directamente verificável a partir dos factos documentados no respectivo processo.
O requerente fundamenta o pedido nessa alín. a), sustentando que o tribunal que emitiu os mandados de detenção para o arguido iniciar o cumprimento da pena de prisão em que foi condenado, ou seja, o tribunal da condenação, não tinha competência para tanto, antes a mesma pertence ao tribunal de execução (TEP) do Porto e, daí, ser ilegal a prisão.
A questão da competência para a emissão de mandados de detenção destinados ao início da execução da pena de prisão aplicada por decisão transitada em julgado, se do tribunal da condenação, se do TEP, não tem tido por parte da jurisprudência um entendimento unívoco, como se assinala na informação acima transcrita.
De resto, é uma questão em aberto no próprio processo principal, cuja decisão aí tomada, no sentido da competência do tribunal (da condenação), aguarda decisão do recurso interposto pelo condenado, ao qual coube recurso com efeito devolutivo.
A providência de habeas corpus não é o lugar adequado para sindicar quaisquer vicissitudes processuais assumidas no processo principal, mormente a questão da competência para emissão dos mandados de detenção para cumprimento de pena de prisão transitada em julgado, mas cumpre deixar claro que qualquer tomada de decisão sobre tal temática sempre será irrelevante para o destino dos presentes autos.
Com efeito, a propósito do fundamento da alín. a) do n.º 2 do art.º 222.º do CPP, ou seja, da prisão efectuada ou ordenada por entidade incompetente, tem sido entendido como sendo a determinada por outra autoridade que não um juiz (prisão a non judice) (v. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª ed., pág. 635 e Ac. STJ de 10.10.2002, Proc. 3420/02 – 5.ª, SASTJ, 64.º, 106) ou por entidade carecida em absoluto de jurisdição para intervir e decidir no caso concreto (Ac. deste STJ de 19.05.2010 (CJ/STJ, 2010, II, pág. 197).
A questão do tribunal competente para a emissão dos mandados de detenção mais que questão de incompetência material configura uma questão de incompetência funcional.
Como refere Maia Costa (Código de Processo Penal, Comentado, de H. Gaspar et al., 2.ª ed., pág. 855), a norma da alín. a) do n.º 1 do art.º 222.º do CPP não tem em vista a incompetência funcional, apenas havendo incompetência se a entidade que efectuou ou ordenou a prisão não tem o estatuto requerido para ordenar a prisão, ou seja, não tem o estatuto de juiz, sublinhamos, com competência em matéria criminal.
E é assim, porque, como com propriedade salientou o cit. Ac. STJ de 19.05.2010 “[a] intervenção de juiz diferente do competente segundo as regras da repartição funcional de competências não envolve nenhuma diminuição de garantias para o arguido e, por isso, não é fundamento de habeas corpus”.
No mesmo sentido se pronunciou também o Ac. STJ de 14.07.2015 (Proc. 2823/09.6PCCBR-A, em www.dgsi.pt) ao considerar que a ilegalidade da prisão que fundamenta o habeas corpus radica sempre numa situação de abuso de poder, “pressuposto que se não verifica nos casos de mau entendimento dos juízes sobre a distribuição das respectivas tarefas no âmbito de um mesmo processo (…) ”.
E à incompetência funcional equipara-se a incompetência territorial também invocada pelo requerente, para efeitos de não constituir tribunal incompetente que possa integrar o fundamento de habeas corpus invocado.
Nestes termos, soçobra o fundamento invocado para a providência requerida e, outro não havendo de onde derive a ilegalidade da prisão, há que que indeferir o pedido formulado de habeas corpus.
*
III. Decisão
Face ao exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a providência de habeas corpus requerida por AA a favor do preso BB, por falta de fundamento bastante.
Custas pelo requerente, com a taxa de justiça de 3 UC.
*
Supremo Tribunal de Justiça, 6 de Fevereiro de 2019
Francisco Caetano (Relator)
Carlos Almeida
Manuel Braz
[1] Na decisão de sentença