I. Tendo sido resolvida, em sentido favorável à autora, a questão da cobertura do sinistro (falecimento do marido da autora) pelo contrato de seguro de vida dos autos, a condenação da ré seguradora deve ser tanto ao cumprimento das obrigações contratuais (dever de prestar) como a indemnizar a autora pelos danos sofridos com a mora da ré (dever de indemnizar).
II. Para efeito de determinar o regime indemnizatório aplicável torna-se necessário apurar a natureza e conteúdo da obrigação ou obrigações desrespeitadas pela ré seguradora, o que implica caracterizar o contrato de seguro dos autos, por entre a multiplicidade de variantes de seguros de vida possíveis.
III. De acordo com os critérios propostos pela doutrina especializada, trata-se: (i) De um contrato a favor de terceiro, sendo terceiro aquele que ocupa a posição de beneficiário, ou seja, a entidade bancária, tendo o contrato como finalidade garantir o cumprimento da obrigação que o tomador do seguro assumiu perante o banco, em virtude do contrato de mútuo; (ii) De um seguro em que tanto a vida da autora como a vida do seu marido foram seguras, pelo que ambos são sujeitos do risco primário: o risco da (respectiva) morte que, no entanto, não é o risco seguro; (iii) Simultaneamente, quer a autora quer o seu marido são segurados, ou seja, são aquelas pessoas a quem se reconhece a necessidade de previdência ou de protecção em relação às consequências negativas do sinistro: a morte de uma ou de outra das pessoas seguras; (iv) Sendo que, quanto à vida do marido da autora, ele é a pessoa cuja vida é segura, mas, na eventualidade de ocorrer a sua morte, a segurada é a autora; e inversamente, quanto à vida da autora, ela é a pessoa cuja vida é segura, mas, na eventualidade de ocorrer a sua morte, o segurado é (seria) o marido.
IV. Verificando-se a morte de uma das pessoas cuja vida foi segura (no caso, a morte do marido da autora), o seguro foi accionado para que, cumprindo a ré seguradora a obrigação de liquidar o valor em dívida perante o credor bancário, tal dívida se extinguisse (ou, se o capital não fosse suficiente para o efeito, se reduzisse).
V. As consequências negativas que para a autora resultaram da morte do marido e que estão cobertas pelo seguro de vida dos autos consistem, precisamente, na necessidade de a autora ter de continuar a pagar periodicamente ao banco as prestações do contrato de mútuo, de que teria ficado dispensada se a dívida do mútuo tivesse sido extinta através da sua liquidação atempada pela ré seguradora (ou, pelo menos, se tivesse sido reduzida até ao limite do capital contratado). São também consequências negativas do sinistro, aquelas que resultam de uma eventual situação de impossibilidade de a autora suportar, por si só, o pagamento de tais prestações, ou seja, de vir a incorrer em mora diante da entidade bancária com todos os custos acrescidos que isso pode originar para a autora.
VI. Em consequência dos pontos anteriores, conclui-se que, não tendo a ré seguradora cumprido atempadamente a obrigação essencial a que estava adstrita, deixou a autora sem tutela quanto à possibilidade de verificação das enunciadas consequências negativas (afinal, o risco seguro pelo contrato), pelo que se encontra a mesma ré obrigada a reparar todos os danos causados à autora, ao abrigo dos princípios gerais da obrigação de indemnizar dos arts. 562º e segs. do CC, desde que, naturalmente, tanto os danos alegados como o nexo causal entre a mora da ré e tais danos se encontrem provados.
VII. Compulsado o processo, verifica-se que, ainda que alegados, não foram provados nem contraditados factos de que resulte que, em resultado da mora da ré no cumprimento das obrigações do contrato de seguro, incorreu a autora em mora perante o banco quanto ao pagamento das prestações devidas pelo contrato de mútuo e quanto às consequências danosas acrescidas, tais como o pagamento à entidade bancária de “juros de mora, comissões de processamento e de incumprimento” e outras quantias.
VIII. Em conformidade com o indicado no ponto anterior, e nos termos do art. 682º, nº 3, do CPC, a decisão relativa à matéria de facto deverá assim ser ampliada de modo a constituir base suficiente para a decisão de direito.
1. AA intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB – Companhia de Seguros, S.A., pedindo:
Que a R. seja condenada a:
a) Reconhecer que a própria e o seu falecido marido celebraram com a demandada um contrato de seguro de vida titulado pela apólice nº .../2010;
b) Reconhecer que o contrato de seguro atrás identificado é plenamente válido e eficaz;
c) Reconhecer que o contrato de seguro celebrado entre si, o seu falecido marido e a Ré implica, no caso de se verificar, como verificou, uma situação de morte do tomador de seguro e primeiro segurado, que a Ré pague o montante de dívida relativa ao crédito à habitação ao beneficiário CC até ao valor de € 55.000;
d) Pagar-lhe a quantia por si despendida desde a data do sinistro até ao trânsito em julgado da sentença que aqui seja proferida, em cumprimento do contrato de mútuo celebrado com a CC para crédito à habitação, valor esse acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a data de cada um dos pagamentos que a Ré deveria ter realizado em sua substituição até efectivo e integral pagamento;
e) Substituir-se a si no pagamento à CC da quantia em dívida relativa ao crédito à habitação desde o trânsito em julgado da sentença que aqui seja proferida até ao termo do mútuo contraído entre si e o seu falecido marido e aquela instituição bancária, até um valor máximo de € 55.000.
Que sejam declaradas nulas e sem qualquer efeito:
a) A cláusula 4ª nº 1 alínea c), iii) das condições gerais integrantes da apólice nº .../2010, quando entendida no sentido de que exclui a cobertura da morte quando ocorra em virtude de evolução de hepatite alcoólica aguda;
b) A menção comprovativa de que as informações foram prestadas e as condições gerais e especiais entregues ao tomador, inserta na proposta de seguro.
Em síntese, alega que, mediante contrato de seguro, a A. e o falecido marido, com efeitos desde ... de ... de 2010, transferiram para a R. a responsabilidade pelo pagamento de um valor até € 55.000 em caso de morte, invalidez total permanente ou incapacidade temporária profissional da A. e do falecido marido, para garantia do pagamento do capital mutuado pela CC no âmbito de crédito à habitação,
O marido da A. faleceu a … de 2010, facto que comunicou à R. cerca de três a quatro dias após o falecimento, tendo a R., em … de … seguinte, recusado a cobertura do sinistro, alegando que o sinistro se encontrava excluído da cobertura da apólice
A R. contestou, invocando a ilegitimidade da A. por impender sobre si a obrigação de pagar o capital seguro à CC, cabendo ao segurado sobrevivo receber o remanescente, o que a leva a concluir que a demandante não pode reclamar aquela primeira parte.
Contrapôs que o agente lhe remeteu toda a documentação necessária, concretamente a proposta e o questionário de saúde, preenchido e assinado pelas pessoas seguras, tendo sido com base neles que o contrato foi celebrado; no final da proposta de seguro, imediatamente antes da assinatura, ficou a constar que as omissões, inexactidões e falsidades respeitantes a dados de fornecimento obrigatório e facultativo são da responsabilidade do cliente e que o tomador do seguro declara que recebeu um exemplar das condições gerais e especiais e que delas tomou conhecimento antes da subscrição do contrato; no final do questionário de saúde, consta a declaração do tomador de que as respostas nele contidas são verdadeiras, exactas e completas, de que não foi ocultada qualquer informação que possa influir sobre a decisão que a seguradora venha a tomar sobre o seguro proposto. Defende que o falecido padecia de patologia do fígado em data anterior a 1 de Fevereiro de 2010 sendo perfeito conhecedor da mesma; caso tivesse respondido com verdade ao questionário de saúde, a R. teria solicitado exames complementares o que levaria à não aceitação do contrato.
Acrescenta que informou a A. e a CC de que tinha havido falsas declarações aquando da elaboração da proposta e de que, por isso, considerava ser o contrato anulável.
A A. replicou reiterando que as condições gerais não lhe foram dadas a conhecer nem ao marido; argumenta que não lhe foi solicitado qualquer relatório para o período anterior a Março de 2010, nunca lhe foi comunicado que o motivo da recusa de cobertura fosse a prestação de falsas informações; quanto à ilegitimidade refere que é contraente sobreviva do contrato celebrado com a R. Termina pedindo que a acção seja julgada totalmente procedente.
Para a hipótese de assim não se entender, suscitou o incidente de intervenção principal provocada da CC para suprir a sua eventual ilegitimidade.
A fls. 241 foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a excepção de ilegitimidade e prejudicada a apreciação do incidente de intervenção principal provocada da CC.
No início da audiência final (fls. 400), a A., alegando que, entretanto, entrou em mora diante da CC quanto ao pagamento das prestações do crédito à habitação, devido a dificuldades financeiras que sofreu após o falecimento do marido, requereu a alteração do pedido formulado na alínea d) da p.i., “no sentido de [que] a Ré ser condenada a pagar à Autora todas as quantias por esta devidas a título de capital, juros, juros de mora, comissões de processamento e de incumprimento, imposto de selo e comissão devida por aplicação de indemnização de seguros de vida”, ou quaisquer outras quantias pagas pela A. desde a morte do marido até efectivo e integral pagamento, acrescidas de juros de mora desde a data do seu pagamento pela A. à CC, a liquidar em sede de execução de sentença em virtude de os pagamentos continuarem a ser feitos até à data.
A R. exerceu o contraditório (fls. 411), alegando que se trata de um aperfeiçoamento do pedido da alínea d) da petição inicial, não sendo admissível; impugna os factos relativos à constituição em mora da A. e às dificuldades financeiras suportadas após o falecimento do marido; caso a alteração do pedido seja aceite, invoca que o contrato de seguro não se confunde com o contrato de mútuo, cabendo à A. suportar os encargos relativos ao período que decorreu entre a participação do sinistro e a decisão a proferir nestes autos; no caso de o sinistro vir a ser considerado coberto pelas garantias do contrato de seguro, impende sobre a R. obrigação de liquidar o capital seguro à CC até ao montante em dívida, cabendo ao segurado sobrevivo o direito de receber o remanescente até ao limite de € 55.000; entende que, nesse caso, terá a R. de pagar o valor correspondente à dívida à data do óbito, devendo a CC devolver as quantias que entretanto forem liquidadas até ao trânsito em julgado. Acrescenta que “até lá, porém, a A. está vinculada a cumprir o contrato de mútuo para com a CC, sendo que, se entrou em incumprimento, sibi imputat”.
Por decisão de fls. 420, a ampliação do pedido foi admitida.
A fls. 508 foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo a R. do pedido.
Inconformada, a A. interpôs recurso para o Tribunal da Relação de ..., pedindo a alteração da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.
Por acórdão de fls. 714 foi alterada a matéria de facto e, a final, foi proferida a seguinte decisão (com a rectificação feita pelo acórdão de fls. 807):
“Nos termos que se deixam expostos, acorda-se nesta secção cível do Tribunal da Relação de ... em julgar procedente a apelação, [1] revogando-se a sentença recorrida e, em consequência reconhecer-se a validade e eficácia do contrato de seguro celebrado entre a A. e o seu então marido e Ré, [2] condenando-se esta a pagar o capital seguro à beneficiária do seguro, CC, ou seja o valor em dívida relativo ao mútuo contraído pela A. e pelo seu então marido destinado à aquisição de habitação própria, à data do óbito deste (.../2010), pagando à A. o remanescente do capital coberto pela apólice, descontando-se o valor entretanto amortizado pela A. e tendo como limite o montante do capital seguro.[3] Condena-se ainda a Ré a pagar à A. o valor das prestações que esta pagou à CC e continua a pagar, para amortização do empréstimo para aquisição de habitação própria e ainda a título de juros, juros de mora, comissões de processamento e de incumprimento desde a data em que comunicou à Ré o óbito do seu marido (.../2010) e até ao trânsito da presente decisão.[4] O apuramento das quantias acima mencionadas será efetuado em liquidação de sentença.[5] Sobre os montantes a pagar à A. são devidos os respetivos juros de mora calculados desde a data em que cada uma das quantias em causa foi ou será liquidada e até integral pagamento, à taxa dos juros civis. Em qualquer caso, a contagem dos juros só poderá iniciar-se após .../2010.[6] A Ré vai ainda condenada a pagar à CC o valor das prestações relativas à amortização do empréstimo que se vencerem desde o trânsito da presente decisão e até à entrega, pela Ré, à CC do capital seguro nos termos determinados nesta decisão.”
2. Vem a R. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:
“1) O Regime Jurídico do Contrato de Seguro (Decreto-Lei n.° 72/2008, de 16 de Abril) encontra-se dividido em 3 partes: "Parte Geral", "Seguro de danos" e "Seguro de Pessoas".
2) Conforme se extrai do preâmbulo do citado diploma "em sede de regras gerais de seguro de danos, além da delimitação do objecto (coisas, bens imateriais, créditos e outros direitos patrimoniais) e da regulação de aspectos sobre vícios da coisa e de seguro sobre pluralidade de coisas, dá-se particular ênfase ao princípio indemnizatório. (...)".
3) O princípio indemnizatório surge assim, no Regime Jurídico do Contrato de Seguro, no seio da regulação do seguro de danos.
4) No caso sub judice, estamos no âmbito de um contrato do ramo "vida", em concreto, um contrato de seguro de vida em que o beneficiário irrevogável do seguro, a favor de quem este se venceu, é a instituição de crédito mutuante, i.e., in casu, a CC.
5) O montante a receber da seguradora não visa pois compensar qualquer dano causado a qualquer dos segurados, designadamente a A., é um valor que, por força do contrato celebrado, tem como beneficiário, um terceiro, a instituição bancária, até ao limite do capital seguro e, o remanescente, apenas se o houver e sempre até ao limite do capital seguro, ao segurado sobrevivo.
6) Não estando provado nos presentes autos, nem tendo tais factos sequer sido sujeitos a prova e contraditório nos presentes autos, a existência de que existiu incumprimento da A., que tal incumprimento seja imputável à Ré, nem que daí tenham resultado danos para a A., que repete-se não foram quesitados nem provados, não pode a Ré ser condenada no pagamento de tais montantes.
7) Igualmente não pode a Ré, ressalvado o devido respeito pelo douto Acórdão do Tribunal a quo, ser condenada em indemnização de danos futuros, como sejam a pagar à CC, substituindo-se à A., o valor das prestações relativas à amortização do empréstimo que se vencerem desde o trânsito da decisão até "ao termo do mútuo contraído entre a A. e seu marido e aquela instituição bancária", ou seja, até que o dito empréstimo se encontre totalmente liquidado.
8) Necessariamente, o limite da responsabilidade da seguradora ora Recorrente limitar-se-á ao valor do capital garantido que é de € 55.000,00.
9) A Decisão plasmada no douto Acórdão recorrido, terá necessariamente que ter correspondência com o elenco factual dado como provado.
10) Sendo certo que tal matéria não tem depois acompanhamento na parte decisória do Aresto, não se alcança como se conclui, no douto Acórdão recorrido que a A. pediu que "...a Ré seja condenada a pagar à CC, substituindo-se à A, o valor das prestações relativas à amortização do empréstimo que se vencerem desde o trânsito da presente decisão até ao termo do mútuo contraído entre a A. e seu marido e aquela instituição bancária, ou seja, até que o dito empréstimo se encontre totalmente liquidado".
11) Quer na petição inicial, quer no posterior aditamento efectuado pela Autora, jamais a mesma peticionou tais pagamentos.
12) Não faz qualquer sentido que a Ré se substitua à Autora no pagamento do empréstimo à CC, independentemente, do valor que se mostre em dívida.
13) A obrigação da Ré para com a Autora é uma obrigação puramente contratual e a eventual responsabilidade que advenha do cumprimento ou não desse contrato teria que corresponder a matéria factual devidamente elencada nos factos dados como provados.
14) Não existe um único facto que, por um lado, demonstre sequer o incumprimento contratual da Autora perante a CC e, por outro, que a Autora tenha sofrido "danos"- sejam eles quais forem - resultantes de um alegado, mas não provado, incumprimento do contrato de mútuo.
15) Por isso, a Ré não poderá ser condenada a mais do que a entrega à CC do "...capital seguro... até ao montante em dívida e liquidar o remanescente ao segurado sobrevivo" alínea V dos Factos Assentes.
16) As quantias a serem pagas pela Recorrente à entidade bancária, até que os montantes sejam liquidados em sede de liquidação de sentença, sempre terão de ser deduzidas ao capital seguro coberto pela apólice, sob pena de duplicação de pagamentos por parte da Recorrente e enriquecimento sem causa da A..
17) Na verdade, estando na livre disposição da Autora efectuar liquidação, não pode a Ré ficar dependente desta e, simultaneamente, ser condenada a pagar à CC as prestações relativas ao empréstimo contabilizadas desde o trânsito em julgado da decisão.
18) É que, o capital a entregar à CC (capital seguro) sê-lo-á após dedução dos valores entretanto amortizados pela Autora...aqueles que a mesma deverá liquidar em incidente próprio.
19) Assim, entende-se que a condenação da Recorrente, deverá em qualquer caso, ter sempre como limite o valor de € 55.000,00, valor correspondente ao capital seguro à data do óbito do falecido marido da Autora.
20) A Recorrente não poderá ser condenada no pagamento de juros moratórios, a não ser a partir da data da dedução do incidente de liquidação.
21) Por isso, deverá ser revogado o douto Acórdão recorrido e substituído por outro que limite, sempre, a responsabilidade da Recorrente ao pagamento do valor limite de € 55.000,00 correspondente ao capital seguro pela Apólice junta aos Autos.
22) Ao assim não decidir, violou o douto Acórdão recorrido, quanto dispõem, entre outros, os arfs 483°, 562°, 804°, todos do Cód. Civil, art°s 175° e seguintes do Regime Jurídico do Contrato de Seguro.”
A Recorrida contra-alegou, invocando que, tendo a Recorrente impugnado apenas os segmentos decisórios 3 (em parte), 5 e 6, transitou em julgado a condenação nos segmentos1, 2, 3 (outra parte) e 4.; e pugnando pela manutenção da decisão do acórdão recorrido, alegando, em síntese, estar em causa uma situação de responsabilidade contratual da R. por mora no cumprimento do contrato de seguro dos autos.
3. Vem provado o seguinte (mantêm-se a identificação e a redacção das instâncias):
1. Por contrato designado “BB Crédito Habitação”, celebrado em 1 de Fevereiro de 2010, titulado pela apólice nº .../2010, a Autora e seu marido DD, transferiram para a Ré a responsabilidade pelo pagamento de um valor até € 55.000, em caso de morte, invalidez total permanente ou incapacidade temporária profissional da Autora ou do seu marido [alínea A) dos factos assentes].
2. No contrato referido em 1) o marido da Autora obrigou-se a pagar à Ré o prémio anual de € 225,08 [alínea B) dos factos assentes].
3. As partes estipularam que o contrato referido em 1) produziria efeitos a partir das zero horas do dia seguinte ao da sua celebração [alínea C) dos factos assentes].
4. A Autora e o seu marido decidiram celebrar o contrato referido em 1) para garantia do pagamento do capital mutuado pela instituição bancária CC no âmbito do crédito à habitação [alínea D) dos factos assentes].
5. O contrato referido em 1) indica como “Beneficiário Irrevogável”, quer em caso de morte, quer em caso de invalidez, a CC até ao montante em dívida, no máximo de € 55.000 [alínea U) dos factos assentes].
6. No contrato referido em 1) a Ré obrigou-se a liquidar o capital seguro à citada instituição bancária, até ao montante em dívida, e liquidar o remanescente ao segurado sobrevivo [alínea V) dos factos assentes].
7. O contrato referido em 1) foi celebrado por intermédio do agente “EE, Ld.ª” que remeteu para a Ré a “Proposta de Seguro” e o questionário de saúde, juntos a fls. 133 a 139 dos autos assinados pela Autora e pelo seu marido [alínea X) dos factos assentes].
8. No final da “Proposta de Seguro” e imediatamente antes da assinatura das “pessoas a Segurar” e do “Tomador de Seguro” consta que “(…) as omissões, inexatidões, falsidades, no que respeita a dados de fornecimento quer obrigatório, quer facultativo são da responsabilidade do cliente” [resposta ao artigo 3º da base instrutória].
9. E que “(…) o tomador do seguro declara que recebeu um exemplar das Condições Gerais e Especiais e que delas tomou conhecimento antes da subscrição do contrato” [resposta ao artigo 4º da base instrutória]
10. No final do “questionário de saúde” anexo à “Proposta de Seguro” e imediatamente antes da assinatura das “Pessoas a Segurar” e do “Tomador de Seguro” consta que “O tomador e a(s) pessoa(s) segura(s) declaram que as respostas contidas nestes questionários são verdadeiras, exatas e completas, que não foi ocultada qualquer informação que possa influir sobre a decisão que a Companhia venha a tomar sobre o seguro proposto (…)” [resposta ao artigo 5º da base instrutória]
11. No “questionário de saúde” referido em 7) e 10), à pergunta relativa ao marido da Autora sobre se “Sofre ou sofreu: do aparelho respiratório (asma, enfisema, tuberculose, etc.), cardiocirculatório (malformações congénitas, cardiopatia isquémica, valvulopatia, arritmia, insuficiência cardíaca, doenças do miocárdio ou pericárdio, hipertensão arterial, artereoesclerose, flebosclerose, etc.) e digestivo (úlcera gástrica ou duodenal, colite ulcerosa, gastroenterite, hemorragias gastrointestinais, pólipos, hemorroidal, doenças do esófago ou inflamatórias crónicas do intestino, infeções do fígado, vias biliares, pâncreas, etc.) foi respondido “não” [resposta ao artigo 6º da base instrutória].
12. À pergunta relativa ao marido da Autora sobre se sofre ou sofreu de ”doença óssea, articular ou da coluna vertebral, neurológica ou psiquiátrica (epilepsia, paralisia, depressão, acidente vascular cerebral, etc.), ginecológica e/ou do aparelho genito-urinário, dos olhos (glaucoma, doenças da retina, miopia de grau igual ou superior a 3 dioptrias), da tiroide, distúrbio hormonal, tumor (maligno ou benigno), obesidade, dislipidémia, diabetes, gota e outras doenças ou distúrbio não referidos”, foi respondido “não” [resposta ao artigo 7º da base instrutória].
13. À pergunta relativa ao marido da Autora se “alguma vez realizou exames clínicos (análises clínicas, consultas a especialistas ou pesquisas particulares) que tenham revelado situações de anormalidade, teve resultado positivo por HIV/Sida ou Hepatite B e C ou recebeu tratamento por doenças tropicais, infeciosas, parasitárias ou sexualmente transmissíveis”, foi respondido “não” [resposta ao artigo 8º da base instrutória].
14. À pergunta relativa ao marido da Autora sobre se se sente “doente ou prevê alguma situação da sua saúde que necessite de tratamento médico, internamento ou intervenção cirúrgica”, foi respondido “não” [resposta ao artigo 9º da base instrutória].
15. No campo 11 desse questionário onde é pedido para a “Pessoa segura” especificar as “atuais quantidades diárias consumidas e tipo (unidade de medida para as bebidas = copos), 1ª Pessoa – cerveja, vinho ou bebida de alto teor alcoólico”, relativa ao marido da Autora, foi respondido “0” para qualquer das bebidas alcoólicas [resposta ao artigo 10º da base instrutória].
16. E à pergunta relativa ao marido da Autora sobre se toma medicamentos, foi respondido “não” [resposta ao artigo 11º da base instrutória].
17. A parte do questionário onde é pedido para especificar as respostas “sim” dando detalhes, foi respondido apenas indicando o médico assistente “Dr. FF – consulta de rotina” [resposta ao artigo 12º da base instrutória].
18. Os documentos identificados em 7) a 17) foram preenchidos pelo punho da funcionária do agente identificado em 7) e a informação relativa à ingestão de bebidas alcoólicas pela respetiva gerente, de acordo com a informação prestada pela A., sendo que este último preenchimento foi posterior à assinatura do documento pelo marido da Autora. [alterado pela Relação]
19. Para o efeito referido em 18) as pessoas aí referidas solicitaram à Autora informações sobre o seu estado de saúde e o do marido, bem como sobre a ingestão de bebidas alcoólicas [resposta ao artigo 43º da base instrutória].
20. O contrato identificado em 1) foi apresentado à Autora apenas para ser assinado sem discussão prévia das suas cláusulas ou possibilidade de introdução de modificações [resposta ao artigo 46º da base instrutória].
21. A Ré aceitou a proposta baseando-se no conteúdo da “proposta de seguro” e do “questionário de saúde” referidos em 7) a 17) [resposta ao artigo 2º da base instrutória].
22. Foi com base em tais respostas que a Ré avaliou o risco e fixou o valor dos prémios [resposta ao artigo 13º da base instrutória].
23. Em face das respostas referidas em 8) a 17) e atendendo à idade do marido da Autora, ao seu peso de 65 kg e ao capital a segurar, a Ré concluiu que nenhum exame de diagnóstico seria de efetuar [resposta ao artigo 14º da base instrutória].
24. A Ré confiou nas respostas referidas em 8) a 17) [resposta ao artigo 15º da base instrutória].
25. O marido da Autora, DD, faleceu em … de … de 2010, pelas 20 horas e 00 minutos, no Centro Hospitalar …, EPE, aos 39 anos [alínea E) dos factos assentes e documento junto a fls. 50 e 51 dos autos].
26. DD faleceu de síndrome hépato-renal devida a cirrose hepática alcoólica [alínea Z) dos factos assentes].
27. A Autora, cerca de três ou quatro dias após o falecimento do marido, deslocou-se à agência da Ré, “EE, Ld.ª”, sita na Rua …, nº …, Centro …, …, no concelho de …, e comunicou à Ré a data, hora, local e as eventuais causas do óbito do marido da Autora [alínea F) dos factos assentes].
28. Foi solicitada à Autora uma certidão de óbito, que aquela de imediato foi buscar e entregou, no mesmo dia, a uma das trabalhadoras da agência referida em 27) [alínea G) dos factos assentes].
29. Em 24 de Agosto de 2010, a Ré informou a Autora de que necessitaria de um relatório preenchido pelo médico assistente do falecido em impresso da própria Ré e, bem assim, necessitaria de uma cópia integral da ficha clínica do Centro Hospitalar … [alínea H) dos factos assentes].
30. A Autora enviou, em 6 de Setembro de 2010, uma missiva para a Ré, anexando o relatório preenchido pela médica GG, em 3 de Setembro de 2010, junto a fls. 58 e 59 dos presentes autos [alínea I) dos factos assentes].
31. Em 4 de Outubro de 2010, a Ré informou que aguardaria ainda a cópia integral da ficha clínica do hospital de …, bem como o relatório médico, a ser preenchido pelo médico que assistia regularmente o falecido [alínea J) dos factos assentes].
32. Em resposta a essa missiva, a Autora enviou, em 27 de Outubro de 2010, uma nova carta para a Ré, anexando à mesma relatório do médico de família, Dr. HH, datado de 7 de Outubro de 2010 e, bem assim, a ficha clínica do Hospital de ... datada de 25 de Outubro, juntos a fls. 64 a 66 dos presentes autos [alínea L) dos factos assentes].
33. Por missiva datada de 22 de Novembro de 2010, a Ré exigiu à Autora que lhe fossem enviados o relatório médico, a ser preenchido pelo médico que assistia regularmente o falecido, bem assim, a ficha clínica do falecido, existente junto do referido médico [alínea M) dos factos assentes].
34. Em 3 de Dezembro de 2010, a Autora enviou à Ré uma missiva com um atestado médico, emitido pelo Dr. HH em 2 de Dezembro de 2010, bem como a ficha clínica do Hospital de ..., datada de 25 de Outubro de 2010, juntos a fls. 71 a 73 dos autos [alínea N) dos factos assentes].
35. Em resposta a essa missiva, por carta datada de 13 de Dezembro de 2010, a Ré declarou não aceitar “o sinistro em assunto, uma vez que o mesmo se encontra excluído das coberturas da apólice em referência”, invocando a cláusula 4ª nº 1 alínea c) ponto iii) das condições gerais do contrato [alínea O) dos factos assentes].
36. A cláusula 4ª, nº 1, alínea c), ponto iii) das condições gerais do contrato referido em 1) estabelece que “Não se considera coberto por este contrato o risco de morte ou invalidez da pessoa segura, resultante de doença preexistente, conhecida e não declarada na proposta e de doença ou lesão provocada por (…) factos que sejam consequência de: (…) consumo de álcool que determine uma taxa de alcoolemia igual ou superior a 0,5 gramas por litro de sangue, de drogas ou estupefacientes não prescritos medicamente [alínea P) dos factos assentes].
37. Na missiva datada de 13 de Dezembro de 2010, a Ré informou que o contrato se encontraria “anulado a partir da data do sinistro”, pelo que terminaria os seus efeitos desde essa data [alínea Q) dos factos assentes].
38. A Autora manifestou o seu desacordo com tal decisão por missiva de 11 de Março de 2011 [alínea R) dos factos assentes].
39. A esta missiva respondeu a Ré, por carta datada de 22 de Março de 2011, reiterando a exclusão da cobertura do sinistro, desta vez invocando a cláusula 4ª, nº 1, alínea c), ponto i) das condições gerais do contrato referido em 1) [alínea S) dos factos assentes].
40. A cláusula 4ª, nº 1, alínea c), ponto i) das condições gerais do contrato referido em 1) refere que “Não se considera coberto por este contrato o risco de morte ou invalidez da pessoa segura, resultante de doença preexistente, conhecida e não declarada na proposta e de doença ou lesão provocada por (…) factos que sejam consequência de: (…) ofensas corporais a que o Segurado tenha dado causa ou que notoriamente tivesse podido evitar [alínea T) dos factos assentes].
41. [eliminado pela Relação]
42. [eliminado pela Relação]
43. A cirrose é caracterizada pela substituição do tecido hepático normal por nódulos e tecido fibroso [resposta ao artigo 24º da base instrutória].
44. O marido da Autora, DD, sabia que ingeria bebidas alcoólicas não apenas às refeições mas em outras ocasiões e diariamente [resposta ao artigo 25º da base instrutória].
45. O marido da Autora padecia de alcoolismo [resposta ao artigo 26º da base instrutória].
46. A ingestão de álcool agrava paulatinamente a doença hepática [resposta ao artigo 27º da base instrutória].
47. Para avaliação do risco e decisão de aceitação ou não de determinada proposta de seguro do ramo vida, a Ré socorre-se de tabelas com classificação das doenças, suas características, assim como critérios de subscrição clínica [resposta ao artigo 28º da base instrutória].
48. [eliminado pela Relação]
49. A deteção da doença hepática em Fevereiro de 2010, se possível com a realização desses exames complementares, teria levado a Ré a recusar o contrato. [alterado pela Relação]
50. A Autora foi alertada pela colaboradora do agente “EE, Ld.ª” para a necessidade de responder com verdade ao “questionário de saúde” e as consequências se tal não sucedesse [resposta ao artigo 35º da base instrutória].
51. A Autora e o marido tomaram conhecimento do teor de todas as perguntas que compõem o questionário de saúde [resposta ao artigo 36º da base instrutória].
52. A Autora respondeu conscientemente a essas perguntas. [alterado pela Relação]
53. No momento da emissão da apólice as condições gerais do contrato identificado em 1) foram entregues à Autora [resposta ao artigo 38º da base instrutória].
54. A Autora não remeteu à Ré relatório preenchido pelo médico de família identificado em 17) em virtude de este ter deixado de exercer funções no Centro de Saúde da área da sua residência [resposta ao artigo 41º da base instrutória].
Foram dados como não provados:
Pela sentença: os factos constantes dos artigos 1º, 17º, 18º, 19º, 20º, 21º, 22º, 33º, 39º, 40º, 44º, 45º da base instrutória.
Aos quais o acórdão da Relação adicionou o seguintes factos dados como não provados:
- O marido da Autora já padecia de patologia do fígado em data anterior a 1 de Fevereiro de 2010 [resposta ao artigo 16º da base instrutória].
- A cirrose hepática que veio a causar a morte do marido da Autora foi o resultado final de anos de agressões ao fígado [resposta ao artigo 23º da base instrutória].
- Caso o marido da Autora tivesse indicado o consumo diário de bebidas alcoólicas superior a um copo diário, a Ré teria solicitado exames complementares ou informações clínicas junto do médico assistente para apurar se padecia de problemas de fígado [resposta aos artigos 29º, 31º, 32º da base instrutória].
4. Tendo em conta o disposto no nº 4 do art. 635º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões.
Assim, o presente recurso tem como objecto a questão da alteração da condenação da R. Recorrente, de forma a:
o Limitar o montante a pagar ao valor do capital do seguro garantido que é de € 55.000,00, não podendo a Recorrente ser condenada a mais do que a entregar à CC o “...capital seguro...até ao montante em dívida e liquidar o remanescente ao segurado sobrevivo” (facto provado 6));
o Não podendo a R. ser “condenada a pagar à CC, substituindo-se à A, o valor das prestações relativas à amortização do empréstimo que se vencerem desde o trânsito da presente decisão até ao termo do mútuo contraído entre a A. e seu marido e aquela instituição bancária, ou seja, até que o dito empréstimo se encontre totalmente liquidado”;
o Mas, se o for, as quantias a serem pagas pela R. Recorrente à entidade bancária, até que os montantes devidos sejam liquidados em sede de liquidação de sentença, sempre terão de ser deduzidas ao capital seguro coberto pela apólice;
o Não pode a Recorrente ser condenada no pagamento de juros moratórios, a não ser a partir da data da dedução do incidente de liquidação.
4.1. Antes de prosseguir importa delimitar com precisão o objecto do recurso, uma vez que, em sede de contra-alegações, veio a Recorrida invocar que a Recorrente impugnou apenas os segmentos decisórios 3 (em parte), 5 e 6 do acórdão recorrido, pelo que transitou em julgado a condenação nos segmentos decisórios 1, 2, 3 (parte restante) e 4.
Aqui se transcreve, de novo, a decisão do acórdão recorrido, com numeração (que não consta da decisão, mas que facilita a identificação das questões em causa) dos referidos segmentos decisórios:
“Nos termos que se deixam expostos, acorda-se nesta secção cível do Tribunal da Relação de ... em julgar procedente a apelação,
[1] revogando-se a sentença recorrida e, em consequência reconhecer-se a validade e eficácia do contrato de seguro celebrado entre a A. e o seu então marido e Ré,
[2] condenando-se esta a pagar o capital seguro à beneficiária do seguro, CC, ou seja o valor em dívida relativo ao mútuo contraído pela A. e pelo seu então marido destinado à aquisição de habitação própria, à data do óbito deste (.../2010), pagando à A. o remanescente do capital coberto pela apólice, descontando-se o valor entretanto amortizado pela A. e tendo como limite o montante do capital seguro.
[3] Condena-se ainda a Ré a pagar à A. o valor das prestações que esta pagou à CC e continua a pagar, para amortização do empréstimo para aquisição de habitação própria e ainda a título de juros, juros de mora, comissões de processamento e de incumprimento desde a data em que comunicou à Ré o óbito do seu marido (.../2010) e até ao trânsito da presente decisão.
[4] O apuramento das quantias acima mencionadas será efetuado em liquidação de sentença.
[5] Sobre os montantes a pagar à A. são devidos os respetivos juros de mora calculados desde a data em que cada uma das quantias em causa foi ou será liquidada e até integral pagamento, à taxa dos juros civis. Em qualquer caso, a contagem dos juros só poderá iniciar-se após .../2010.
[6] A Ré vai ainda condenada a pagar à CC o valor das prestações relativas à amortização do empréstimo que se vencerem desde o trânsito da presente decisão e até à entrega, pela Ré, à CC do capital seguro nos termos determinados nesta decisão.”
Vejamos.
É indubitável que a Recorrente se conformou com os segmentos 1 e 2 da decisão de condenação e que impugnou os segmentos 5 e 6 daquela decisão. Quanto ao segmento 4 relativo ao apuramento em liquidação de sentença, não reveste natureza de decisão condenatória, pelo que o tribunal poderá mantê-lo ou não.
Já quanto ao segmento 3, alega a Recorrida que a impugnação se limitou à parte relativa aos valores que a A. pagou, e continua a pagar, à CC em virtude de ter incorrido em incumprimento do contrato de mútuo.
Não se acompanha esta posição. Na verdade, tendo a Recorrente concluído que, “Por isso, a Ré não poderá ser condenada a mais do que a entrega à CC do “...capital seguro... até ao montante em dívida e liquidar o remanescente ao segurado sobrevivo” (conclusão 15), não se conformou com o segmento condenatório 3 na sua totalidade, o qual, por isso, não transitou em julgado.
4.2. Deste modo, considera-se que há que reapreciar a decisão de condenação da R. quanto aos seguintes segmentos:
- [3] Condenação da R. “a pagar à A. o valor das prestações que esta pagou à CC e continua a pagar, para amortização do empréstimo para aquisição de habitação própria e ainda a título de juros, juros de mora, comissões de processamento e de incumprimento desde a data em que comunicou à Ré o óbito do seu marido (…/2010) e até ao trânsito da presente decisão”.
- [5] “Sobre os montantes a pagar à A. são devidos os respetivos juros de mora calculados desde a data em que cada uma das quantias em causa foi ou será liquidada e até integral pagamento, à taxa dos juros civis. Em qualquer caso, a contagem dos juros só poderá iniciar-se após .../2010”;
- [6] Condenação da R. “a pagar à CC o valor das prestações relativas à amortização do empréstimo que se vencerem desde o trânsito da presente decisão e até à entrega, pela Ré, à CC do capital seguro nos termos determinados nesta decisão”.
5. As divergências entre as partes resultam da diferente perspectiva que, ao longo de todo o processo, uma e outra assumiram quanto ao objecto da presente lide. Para a R. Seguradora, aqui Recorrente, trata-se tão só de uma acção de condenação no cumprimento das obrigações que, para ela, resultam do contrato de seguro de vida dos autos. Diversamente, para a A., aqui Recorrida, trata-se de uma acção de condenação no cumprimento dessas obrigações (o dever de prestar), mas também de uma acção indemnizatória pelos danos suportados pela A. em resultado da mora da R. em cumprir (o dever de indemnizar).
Segundo a Recorrente, uma vez resolvida, em sentido favorável à A., a questão da cobertura do sinistro (falecimento do marido da A.) e tendo ficado provado que “O contrato referido em 1) indica como “Beneficiário Irrevogável”, quer em caso de morte, quer em caso de invalidez, a CC até ao montante em dívida, no máximo de € 55.000” (facto 5) e que “No contrato referido em 1) a Ré obrigou-se a liquidar o capital seguro à citada instituição bancária, até ao montante em dívida, e liquidar o remanescente ao segurado sobrevivo” (facto 6), as suas obrigações são apenas e só aquelas que nascem do contrato de seguro, a saber: a obrigação de entregar à CC o valor do capital seguro (€ 55.000,00), até ao montante (a liquidar) em que a A. estiver em dívida para com aquela entidade bancária; e a obrigação de entregar o remanescente (também a liquidar) à A., na qualidade de segurada sobreviva.
Para além disto, entende a Recorrente que só poderá ser condenada no pagamento de juros moratórios a partir da data da dedução do incidente de liquidação.
Distintamente, na perspectiva da A., a condenação da R. deve ser tanto ao cumprimento das obrigações contratuais, como à reparação dos danos que para a A. advieram da mora no cumprimento de tais obrigações. Assim se compreendem os pedidos c) e d) formulados na p.i., no sentido de a R. ser obrigada a:
c) “Reconhecer que o contrato de seguro celebrado entre si, o seu falecido marido e a Ré implica, no caso de se verificar, como verificou, uma situação de morte do tomador de seguro e primeiro segurado, que a Ré pague o montante de dívida relativa ao crédito à habitação ao beneficiário CC até ao valor de € 55.000”;
d) “Pagar-lhe a quantia por si despendida desde a data do sinistro até ao trânsito em julgado da sentença que aqui seja proferida, em cumprimento do contrato de mútuo celebrado com a CC para crédito à habitação, valor esse acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a data de cada um dos pagamentos que a Ré deveria ter realizado em sua substituição até efectivo e integral pagamento”.
Sendo que, posteriormente (cfr. o relatório do presente acórdão), veio a A. requerer a ampliação do pedido d) – o que foi aceite – nos seguintes termos: “no sentido de que a Ré ser condenada a pagar à Autora todas as quantias por esta devidas a título de capital, juros, juros de mora, comissões de processamento e de incumprimento, imposto de selo e comissão devida por aplicação de indemnização de seguros de vida”, ou quaisquer outras quantias pagas pela A. desde a morte do marido até efectivo e integral pagamento, acrescidas de juros de mora desde a data do seu pagamento pela A. à CC, a liquidar em sede de execução de sentença em virtude de os pagamentos continuarem a ser feitos até à data.
O que dizer em relação à explanada divergência entre as partes?
Que se afigura essencialmente correcta a posição de princípio da A., sem prejuízo das precisões que a fazer infra quanto aos direitos que lhe assistem.
Mas quanto a saber se, na presente acção, está em causa apenas o dever de prestar ou também o dever de indemnizar, verifica-se que – na medida em que a R. Seguradora não aceitou a cobertura do sinistro quando a A. lhe comunicou o óbito do seu marido (factos 27 e 28), nem posteriormente – ficou constituída em mora desde .../2010, sendo por isso de reconhecer à A. tanto o direito a exigir o cumprimento do contrato como, nos termos do art. 798º do Código Civil, o direito a ser indemnizada pelos danos causados pela mora da R. devedora.
6.1. Aqui chegados deparamos, porém, com a dificuldade de apurar qual o regime legal aplicável à determinação e cálculo da indemnização: se o regime geral da obrigação de indemnizar, consagrado nos arts. 562º e segs. do Código Civil; se o regime específico da incidência de juros moratórios, previsto no art. 806º, nºs 1 e 2, do mesmo Código.
Na verdade, se se entender que – tendo a R. Seguradora assumido, em virtude do contrato, a obrigação de liquidar o capital seguro (€ 55.000,00) à entidade bancária (até ao valor em dívida pelos mutuários), bem como a obrigação de entregar o (eventual) remanescente ao(à) segurado(a) sobrevivo(a) – tais obrigações revestem a natureza de obrigações pecuniárias, a obrigação de indemnizar a que a R. se encontraria adstrita passaria apenas pela contagem de juros de mora sobre o valor em dívida. E, estando em causa responsabilidade civil contratual, não poderia a A. exigir uma indemnização suplementar por danos superiores ao valor dos juros moratórios (faculdade prevista no nº 3 do art. 806º do CC, que, ainda que imperfeitamente expressa na letra da lei, se entende comummente restringir-se ao domínio da responsabilidade civil extracontratual).
A questão afigura-se, contudo, bem mais complexa porque, para apurar a natureza e conteúdo da obrigação ou obrigações desrespeitadas pela R. seguradora, é preciso, tendo presentes os critérios normativos de interpretação e integração das declarações negociais dos arts. 236º e segs. do Código Civil, começar por caracterizar o contrato de seguro dos autos, por entre a multiplicidade de variantes de seguros de vida, celebrados ao abrigo da autonomia da vontade, que a realidade sócio-económica nos mostra.
Relevam os seguintes factos provados:
1. Por contrato designado “BB Crédito Habitação”, celebrado em 1 de Fevereiro de 2010, titulado pela apólice nº .../2010, a Autora e seu marido DD, transferiram para a Ré a responsabilidade pelo pagamento de um valor até € 55.000, em caso de morte, invalidez total permanente ou incapacidade temporária profissional da Autora ou do seu marido
4. A Autora e o seu marido decidiram celebrar o contrato referido em 1) para garantia do pagamento do capital mutuado pela instituição bancária CC no âmbito do crédito à habitação
5. O contrato referido em 1) indica como “Beneficiário Irrevogável”, quer em caso de morte, quer em caso de invalidez, a CC até ao montante em dívida, no máximo de € 55.000
6. No contrato referido em 1) a Ré obrigou-se a liquidar o capital seguro à citada instituição bancária, até ao montante em dívida, e liquidar o remanescente ao segurado sobrevivo
Acrescente-se que, da apólice de seguros indicada no ponto 1 dos factos provados (fls. 46 e segs.), constam ainda os seguintes elementos relevantes:
Tomador do seguro: DD
Pessoa segura: DD (39 anos)
2ª Pessoa Segura: AA (35 anos).
6.2. As regras da Lei do Contrato de Seguro (aprovada pelo Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril) relativas aos seguros de vida (arts. 183º e segs.) não prevêem tipologias de contratos, sendo manifestamente insuficientes para, por si mesmas, fundarem a caracterização do contrato de seguro dos autos.
Quanto à jurisprudência, designadamente a jurisprudência deste Supremo Tribunal, tem-se pronunciado frequentemente sobre questões relativas a contratos de seguro de vida conexos com contratos de mútuo bancário; mas fê-lo estando quase sempre em causa um seguro de grupo no qual o tomador do seguro é a própria entidade bancária e os mutuários são aderentes ao seguro de grupo. Ora, não é esta a situação sub judice, uma vez que se trata de um contrato de seguro singular (por contraposição a seguro de grupo) e o tomador do seguro é um dos mutuários.
Assim, afigura-se que, para dispormos de uma base dogmática que permita, a partir dos dados de facto indicados no ponto 6.1., caracterizar devidamente o seguro de vida dos autos, será de recorrer ao estudo de Margarida Lima Rego (Contrato de Seguro e Terceiros, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, em especial, págs. 473 a 623), que constitui a obra de referência na doutrina nacional quanto à problemática dos seguros que envolvam terceiros.
Desse trabalho doutrinal recolhem-se os seguintes subsídios (com sublinhados nossos):
- A respeito da noção de contrato de seguro a favor de terceiros: “Também um contrato de seguro pode celebrar-se a favor de terceiro. Disse há pouco que o contrato de seguro será a favor de terceiro, entre outros casos menos significativos, quer quando a própria cobertura protege directamente a esfera de um terceiro, isto é, quando o contrato corre um risco de terceiro, caso em que o terceiro ocupará a posição de segurado, quer quando ao terceiro cabe apenas o direito à indemnização, caso em que ocupará a posição de beneficiário. Em qualquer dos casos, para que se trate de um contrato a favor de terceiro em sentido próprio, é necessário, claro que as partes tenham estipulado um efeito jurídico positivo de terceiro. O que significa que é necessário que o efeito jurídico em causa fique na titularidade do terceiro. Que o terceiro passe a ser, por mero efeito do contrato, ainda que diferidamente, mas sem necessidade de aceitação, sujeito de uma qualquer situação jurídica activa. Naturalmente, sem com isso passar a ser (tratado como) parte no contrato.” (cit., págs. 584-585).
- Entre a multiplicidade de seguros de vida a favor de terceiro, aquele que “foi desde o início um dos principais, senão mesmo o principal paradigma do contrato a favor de terceiro” é “o seguro de vida em caso de morte, ou seguro de vida em sentido estrito, em que é segurado e pessoa segura o próprio tomador do seguro.” (cit., pág. 590).
- “O segurado pode designar como beneficiário uma qualquer pessoa quer a título de liberalidade, porque tipicamente se preocupa com a sua subsistência e qualidade de vida após a sua morte, quer a outro título, designadamente funcionando o seguro como garantia a um seu credor” (cit., pág. 596). Trata-se, afinal, de um “seguro de vida dado em garantia do cumprimento de uma obrigação do tomador-estipulante perante um terceiro credor do primeiro (geralmente, um banco)” (cit., pág. 582).
- Quanto aos sujeitos envolvidos, a autora que vimos citando aponta “cinco hipóteses de configurações possíveis de seguros de vida em sentido estrito, em função da coincidência ou separação dos sujeitos que desempenham os papéis de tomador, segurado, pessoa segura e beneficiário, sem pretensões de exaustividade (…)”. A primeira dessas hipóteses é a seguinte: “Uma única pessoa pode desempenhar os papéis de tomador, de segurado e de pessoa segura, sendo o beneficiário um terceiro. É o caso mais simples e mais comum. Imaginemos um progenitor que, preocupando-se com a família, segura a sua própria vida em benefício do seu cônjuge e descendência. É ele quem celebra o contrato: é ele o tomador. O seguro é feito sobre a sua própria vida: é ele a pessoa segura. Também lhe cabe o direito de designar o(s) terceiro(s) beneficiário(s): é ele o segurado. Os beneficiários são terceiros: o cônjuge e descendentes.” (cit., pág. 599).
- Quanto à distinção entre segurado, pessoa exposta ao risco e tomador do seguro, pode ler-se: “Pensar-se-ia que, num seguro de pessoas, como, por exemplo, o seguro de vida, a pessoa exposta ao risco seria a pessoa cuja vida se segura, que será também o segurado, pelo que a distinção seria despicienda. Mas não é assim. A pessoa cuja vida se segura é o sujeito do risco primário: o risco de morte. É este o evento que está na base do seguro. No entanto, não é o risco seguro. O risco seguro diz respeito, neste como em qualquer outro contrato de seguro, às consequências potencialmente negativas do sinistro – a morte da pessoa segura. Neste sentido, quem corre o risco é a mesma pessoa a quem se reconhece uma necessidade de previdência. É aquela cuja esfera o seguro visa proteger: o segurado. Por isso digo que, para efeitos do contrato de seguro, é o segurado o sujeito do risco (seguro), enquanto a pessoa segura funciona apenas como objecto com o qual o sujeito do risco economicamente se relaciona – à semelhança da coisa segura. Dizer que a pessoa segura é quem suporta o risco seguro seria o mesmo que dizer que é a coisa segura que suporta o risco de deterioração ou perecimento coberto por um seguro de coisas.” (cit., págs. 603-604).
A partir deste enquadramento doutrinal, que se nos afigura de extrema importância, podem retirar-se ilações para, de seguida, se proceder à caracterização do contrato de seguro dos autos.
6.3. Trata-se de um contrato a favor de terceiro, sendo terceiro aquele que ocupa a posição de Beneficiário, ou seja, a entidade bancária. A celebração do contrato de seguro tendo como beneficiário “irrevogável” a CC teve como finalidade garantir o cumprimento da obrigação que o Tomador do seguro assumiu perante o banco, em virtude do contrato de mútuo. No caso dos autos, ainda que na apólice surja como tomador apenas o marido da A., sabe-se que a dívida perante o banco foi contraída por ambos (a A. e o seu marido).
Além disso, está em causa um seguro em que tanto a vida da A. como a vida do seu marido foram seguras[1]. Quer isto dizer que ambos são sujeito(s) do risco primário: o risco da (respectiva) morte. Que, no entanto, como se assinalou supra, ponto 6.2., não é o risco coberto pelo seguro.
Simultaneamente, quer a A. quer o seu marido são Segurados, ou seja, são aquelas pessoas a quem se reconhece a necessidade de previdência ou de protecção em relação às consequências negativas do sinistro: a morte de uma ou de outra das pessoas seguras.
Porém, precisamente por a A. e o seu marido serem, ao mesmo tempo, Pessoas cuja vida é segura e Segurados, é legítimo questionar como se conjuga o risco primário da morte de cada um deles (não seguro) com o risco seguro.
Da seguinte forma:
(i) Quanto à vida do marido da A., ele é a pessoa cuja vida é segura, mas, na eventualidade de ocorrer a sua morte, a segurada é a A.;
(ii) Inversamente, quanto à vida da A., ela é a pessoa cuja vida é segura, mas, na eventualidade de ocorrer a sua morte, o segurado é (seria) o marido.
Qual é afinal o risco coberto pelo contrato de seguro em relação a cada um dos segurados? As consequências potencialmente negativas da ocorrência do sinistro, sinistro que consiste na morte do cônjuge, ou seja, a outra pessoa segura.
Vejamos melhor.
No caso dos autos – repita-se – o contrato de seguro é um contrato a favor de terceiro, sendo esse terceiro o banco credor, e destinando-se o seguro a garantir o cumprimento da dívida que o tomador e a sua mulher (a aqui A.) assumiram, em virtude do contrato de mútuo, para com o mesmo banco.
Verificando-se a morte de uma das pessoas cuja vida foi segura (no caso, a morte do marido da A.), o seguro seria (como foi) accionado para que, cumprindo a R. Seguradora a obrigação de liquidar o valor em dívida perante o credor bancário, tal dívida se extinguisse (ou, se o capital não fosse suficiente para o efeito, se reduzisse).
Deste modo, o terceiro beneficiário do seguro é a entidade bancária, mas (nas expressões da autora supra citada) a pessoa “cuja esfera o seguro visa proteger” das “consequências potencialmente negativas do sinistro” (a morte do marido) é a segurada sobreviva, isto é, a A.
Feito este percurso, resta apenas responder à pergunta de saber quais são as consequências negativas que podem resultar para a A. da morte do marido e que estão cobertas pelo seguro de vida dos autos (que, uma vez accionado teria levado à extinção, ou pelo menos à redução, da dívida da A. perante a CC).
Tais consequências negativas consistem, precisamente, na necessidade de a A. ter de continuar a pagar periodicamente à CC as prestações do contrato de mútuo, de que teria ficado dispensada se a dívida do mútuo tivesse sido extinta através da sua liquidação atempada pela R. Seguradora (ou, pelo menos, se tivesse sido reduzida até ao limite do capital contratado).
São também consequências negativas do sinistro, aquelas que resultam de uma eventual situação de impossibilidade de a A. suportar, por si só, o pagamento de tais prestações; ou seja, de vir a incorrer em mora diante da entidade bancária com todos os custos acrescidos que isso pode originar para a A.
Podemos assim concluir:
(i) Que o conteúdo essencial da obrigação contratual da R. Seguradora consiste em assegurar que, ocorrendo a morte de uma das pessoas cuja vida foi segura (no caso, a morte do marido da A.), liquidaria de imediato (totalmente ou, se o capital garantido não fosse suficiente, pelo menos parcialmente), a dívida da segurada sobreviva (a A.) perante a CC, de modo a que a mesma segurada não tivesse de suportar as enunciadas consequências negativas;
(ii) Assim, a obrigação essencial da R. Seguradora não é uma obrigação pecuniária, mas sim a obrigação de assegurar a extinção/redução de uma dívida bancária da segurada sobreviva, que essa sim, tem natureza pecuniária;
(iii) Apenas se, e na medida, em que o valor máximo do capital seguro exceda (excedesse) a dívida a liquidar é que a R. Seguradora estará (estaria) obrigada a entregar o “remanescente” à segurada sobreviva (a A.) pelo que só esta obrigação, eventual, é que pode ser tida como assumindo natureza pecuniária.
Conclui-se assim que, não tendo a R. Seguradora cumprido atempadamente a obrigação essencial a que estava adstrita, deixou a A. sem tutela quanto à possibilidade de verificação das enunciadas consequências negativas (afinal, o risco seguro pelo contrato), pelo que se encontra a mesma R. obrigada a reparar todos os danos causados à A., ao abrigo dos princípios gerais da obrigação de indemnizar dos arts. 562º e segs do Código Civil, desde que, naturalmente, tanto os danos alegados como o nexo causal entre a mora da R. e tais danos se encontrem provados.
7. Antes, porém, de prosseguir com a verificação da questão da prova dos danos e do nexo causal, entende-se que as considerações expendidas no número anterior acerca do fim e do conteúdo do contrato de seguro, nos permitem, desde já, tomar posição quanto à pretensão da Recorrente de revogação do segmento [6] da decisão da Relação pela qual foi condenada “a pagar à CC o valor das prestações relativas à amortização do empréstimo que se vencerem desde o trânsito da presente decisão e até à entrega, pela Ré, à CC do capital seguro nos termos determinados nesta decisão”.
Alega a Recorrente que “Quer na petição inicial, quer no posterior aditamento efectuado pela Autora, jamais a mesma peticionou tais pagamentos (conclusão 11).
Tal alegação é incorrecta pois, conforme resulta do relatório supra, a A. formulou também o pedido de que R. seja condenada a:
e) “Substituir-se a si no pagamento à CC da quantia em dívida relativa ao crédito à habitação desde o trânsito em julgado da sentença que aqui seja proferida até ao termo do mútuo contraído entre si e o seu falecido marido e aquela instituição bancária, até um valor máximo de € 55.000”.
Contudo, este pedido não pode ser atendido. Não apenas por poder constituir uma duplicação, total ou parcial, do montante da dívida do mútuo a liquidar à CC, mas também, e sobretudo, por não encontrar correspondência nem nas obrigações contratuais da R. Seguradora (o dever de prestar) nem na obrigação de reparar os danos que a mora da R. terá causado à A (o dever de indemnizar). Na verdade, ao peticionar que a R. seja condenada a substituir-se à A. no pagamento das prestações futuras em relação à decisão de condenação na presente acção, está a A. a “criar” uma nova obrigação da R. seguradora que não encontra suporte contratual ou legal.
Conclui-se pois que, no que se refere à pretensão da Recorrente de revogação do segmento [6] da decisão de condenação recorrida, o recurso deve ser julgado procedente.
8. Retomando a questão da prova dos danos da A. e do nexo causal entre a mora da R. e aqueles danos, estão em causa os seguintes segmentos decisórios impugnados pela Recorrente:
- [3] Condenação da R. “a pagar à A. o valor das prestações que esta pagou à CC e continua a pagar, para amortização do empréstimo para aquisição de habitação própria e ainda a título de juros, juros de mora, comissões de processamento e de incumprimento desde a data em que comunicou à Ré o óbito do seu marido (…/2010) e até ao trânsito da presente decisão”.
- [5] “Sobre os montantes a pagar à A. são devidos os respetivos juros de mora calculados desde a data em que cada uma das quantias em causa foi ou será liquidada e até integral pagamento, à taxa dos juros civis. Em qualquer caso, a contagem dos juros só poderá iniciar-se após …/2010”.
Compulsado o processo, verifica-se que, apesar de, na petição inicial (artigo 165º), ter sido alegado que “E é com grande dificuldade que tem pago, mensalmente, o crédito à habitação e, bem assim, todos os encargos correspondentes às necessidades básicas da sua família”, não foi dado como provado, nem levado aos Factos Assentes (fls. 245 e segs.) que a A. tenha efectivamente continuado a pagar à CC as prestações (de capital e juros remuneratórios) devidas pelo contrato de mútuo, nem os valores pagos a esse título.
Quanto aos factos relativos à constituição em mora da A. diante da CC, em sede recursória vem a Recorrente alegar que, “Não estando provado nos presentes autos, nem tendo tais factos sequer sido sujeitos a prova e contraditório nos presentes autos, a existência de que existiu incumprimento da A., que tal incumprimento seja imputável à Ré, nem que daí tenham resultado danos para a A., que repete-se não foram quesitados nem provados, não pode a Ré ser condenada no pagamento de tais montantes” e que “Não existe um único facto que, por um lado, demonstre sequer o incumprimento contratual da Autora perante a CC e, por outro, que a Autora tenha sofrido "danos"- sejam eles quais forem - resultantes de um alegado, mas não provado, incumprimento do contrato de mútuo”.
Deste modo, por um lado, não foi dado como provado que a A. tenha, após o falecimento do marido, continuado a pagar à CC as prestações do crédito à habitação, nem o valor dessas prestações; e está posto em causa que tenha sido feita prova de que a A. incorreu em mora diante da CC e de que, a existir, tal mora tenha sido causadora de danos para a A.
Vejamos.
Tem a R. Recorrente razão ao invocar que não foram provados, nem contraditados, factos de que resulte que, em consequência da mora da mesma R. no cumprimento das obrigações do contrato de seguro dos autos, incorreu a A. em mora perante a CC quanto ao pagamento das prestações e juros (remuneratórios) devidos pelo contrato de mútuo. Assim como não foram provados, nem contraditados, factos dos quais se possa concluir que, a existir mora da A. perante a CC, tal terá acarretado para aquela consequências danosas acrescidas, tais como o pagamento à entidade bancária de “juros de mora, comissões de processamento e de incumprimento” e outras quantias.
Mais uma vez, compulsado o processo, verifica-se que, conforme consta do relatório do presente acórdão, no início da audiência final (fls. 400), a A. requereu a alteração do pedido formulado na alínea d) da p.i., alegando, por remissão para o documento de fls. 303 (resposta da CC, datada de 05/11/2013, ao ofício do tribunal relativamente às quantias devidas pela A. à CC que, naquela data ascenderiam a mais de € 60.000,00) que, entretanto, entrara em mora diante da CC quanto ao pagamento das prestações do crédito à habitação (devido às dificuldades financeiras suportadas após o falecimento do marido), o que originou agravamento da situação de devedora diante da entidade bancária. Em conformidade, requereu que o pedido da alínea d) fosse alterado “no sentido de [que] a Ré ser condenada a pagar à Autora todas as quantias por esta devidas a título de capital, juros, juros de mora, comissões de processamento e de incumprimento, imposto de selo e comissão devida por aplicação de indemnização de seguros de vida”, ou quaisquer outras quantias pagas pela A. desde a morte do marido até efectivo e integral pagamento, acrescidas de juros de mora desde a data do seu pagamento pela A. à CC, a liquidar em sede de execução de sentença em virtude de os pagamentos continuarem a ser feitos.
Por articulado de fls. 411 a R. opôs-se à alteração do pedido e impugnou os factos alegados.
A alteração/ampliação do pedido foi admitida por despacho de fls. 420.
Constata-se que na audiência final foi requerida a alteração do pedido e da causa de pedir, tendo sido alegados (por remissão para o documento de fls. 303) factos relativos à constituição em mora da A. diante da CC quanto ao pagamento das prestações devidas pelo contrato de mútuo, assim como quanto aos juros de mora, comissões de processamento e de incumprimento, imposto de selo e comissão devida por aplicação de indemnização de seguros de vida (e outras quantias pagas pela A. à CC desde a morte do marido e até à data da audiência). Tais factos não foram submetidos a instrução.
Assim, nos termos do art. 682º, nº 3, do Código de Processo Civil, a decisão relativa à matéria de facto deve ser ampliada, de modo a constituir base suficiente para a decisão de direito.
9. Pelo exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente o recurso:
1. Revogando-se a decisão do acórdão recorrido na parte em que condenou a R. “a pagar à CC o valor das prestações relativas à amortização do empréstimo que se vencerem desde o trânsito da presente decisão e até à entrega, pela Ré, à CC do capital seguro nos termos determinados nesta decisão”, absolvendo-a deste pedido.
2. Quanto ao mais, anulando parcialmente o acórdão recorrido e mandando baixar os autos à 1ª instância para, nos termos do art. 682º, nº 3, do Código de Processo Civil, ser ampliada a decisão relativa à matéria de facto quanto aos factos alegados relativos:
a) À realização, quantitativos e datas, dos pagamentos da A. à CC, após o falecimento do seu marido, correspondentes a prestações devidas pelo contrato de mútuo;
b) À constituição em mora da A. perante a CC quanto ao pagamento das prestações devidas pelo contrato de mútuo;
c) Aos juros de mora, comissões de processamento e de incumprimento, imposto de selo e comissão devida por aplicação de indemnização de seguros de vida, ou quaisquer outras quantias pagas pela A. à CC após a morte do marido, em consequência da constituição em mora indicada em b), se provada.
Dado que, por ora, não é possível determinar a proporção dos decaimentos, as custas da acção e dos recursos serão fixadas a final.
Lisboa, 28 de Março de 2019
Maria da Graça Trigo (Relatora)
Maria Rosa Tching
Rosa Maria Ribeiro Coelho (Voto de vencida)*
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[1] E, na verdade, também a incapacidade de um e/ou de outro). Porém, como, para a resolução do caso dos autos, a situação de incapacidade não releva, optamos por prescindir de desenvolver a caracterização do contrato no que respeita à cobertura daquela categoria de sinistro.
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* Voto de Vencida
Salvo o devido respeito pela posição que fez vencimento, dela discordo e me demarco na medida e pelas razões que, sucintamente, passo a expor.
Porque, a meu ver, concorrem, de modo determinante, para o enquadramento da prestação a que a ré seguradora se vinculou numa das várias modalidades que as obrigações podem assumir, destaco os seguintes factos julgados como provados:
“1. Por contrato designado “BB Vida Crédito Habitação”, celebrado em 1 de Fevereiro de 2010, titulado pela apólice nº ..., a Autora e seu marido DD, transferiram para a Ré a responsabilidade pelo pagamento de um valor até € 55.000, em caso de morte, invalidez total permanente ou incapacidade temporária profissional da Autora ou do seu marido [alínea A) dos factos assentes].
(…)
5. O contrato referido em 1) indica como “Beneficiário Irrevogável”, quer em caso de morte, quer em caso de invalidez, a CC até ao montante em dívida, no máximo de € 55.000 [alínea U) dos factos assentes].
6. No contrato referido em 1) a Ré obrigou-se a liquidar o capital seguro à citada instituição bancária, até ao montante em dívida, e liquidar o remanescente ao segurado sobrevivo [alínea V) dos factos assentes].”
É de qualificar como pecuniária, de quantidade, a obrigação que tem por objeto uma prestação em dinheiro Neste sentido, Antunes Varela, “Das Obrigações em geral”, 8ª edição, vol. I págs. 862 e 867-868; Menezes Leitão, “Direito das Obrigações, 13ª edição, Vol. I, pág. 135 e Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 10ª edição, págs. 735 e 737 e que visa proporcionar ao credor o valor que as respetivas espécies possuam.
Em consonância, a prestação pecuniária “será, pois, aquela que consista na entrega de uma determinada quantia em dinheiro, entendido como valor monetário” Menezes Cordeiro, “Direito das Obrigações”, AAFDL, 1986, I Vol., pág.350.
Ora, se a obrigação contratualmente assumida pela ré no contrato de seguro foi tão só a de, em caso de morte, invalidez total permanente ou incapacidade temporária profissional da autora ou de seu marido, liquidar à CC o montante ainda em dívida, no máximo de € 55.000,00, pagando, no caso de existir, o remanescente ao segurado sobrevivo, é pecuniária a sua natureza, não se vendo, salvo o devido respeito, que, concomitantemente, possa ser enquadrada noutra das modalidades que as obrigações podem revestir.
A afirmação segundo a qual o risco coberto pelo seguro é o das consequências potencialmente negativas do sinistro para o cônjuge sobrevivo, apenas poderá ser feita a respeito do plano do foro íntimo do tomador/segurado, não havendo, nem na lei nem no contrato, sinal de que o fim de evitar esse risco seja assumido pela seguradora como conteúdo essencial da sua obrigação.
O regime legal e o clausulado no contrato, em meu entender, não dão cobertura a que se diga que o conteúdo essencial da obrigação da seguradora é o de assegurar a extinção/redução de uma dívida bancária do cônjuge sobrevivo.
Estando-se no âmbito de um contrato de seguro, a ocorrência do sinistro gera para a seguradora o dever fundamental de realizar a prestação convencionada, procedendo à sua liquidação – arts. 1º, 99º e 102º da LCS.
E, tratando-se, como se trata, de um contrato de seguro de pessoas (rectius de capitais), essa liquidação consiste, nas palavras de Engrácia Antunes, “(…) no pagamento de um determinado capital ou renda previamente fixados na apólice («prestação convencionada»)”. “Direito dos Contratos Comerciais”, Almedina, pág. 717
Daí que, a meu ver, seja este, e só este, o conteúdo obrigacional do contrato no que à ré seguradora respeita.
Recorrendo às indicações dadas pela lei a este propósito, saliento o teor nº 2 do art. 175º da LCS, segundo o qual no seguro de pessoas se garantem, ou prestações de valor predeterminado não dependente do efetivo montante do dano, ou prestações de natureza indemnizatória.
Nestas últimas a prestação garantida é de montante dependente de averiguação concreta dos danos ocorridos; nas primeiras, diversamente, a obrigação da seguradora é sempre de igual montante – no caso, € 55.000,00 –, sendo que a única incerteza quanto ao seu pagamento reside em saber se o seu credor é apenas a entidade bancária, ou se será esta quanto a uma parte e o cônjuge sobrevivo quanto ao remanescente.
Se o dever de prestar, por parte da ré seguradora, tem por objeto a entrega de dinheiro, o seu dever de indemnizar pelo atraso no cumprimento dessa obrigação pecuniária – art. 804º do CC – mostra-se balizado pelo comando do art. 806º do mesmo diploma legal, em cujos nºs 1 e 2 se estabelece que em obrigações dessa natureza “a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora” e que esses juros são, em princípio, os legais.
Apenas quando se trate de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o credor pode exigir indemnização suplementar, provando que a mora lhe causou dano superior aos ditos juros de mora – nº 3 da mesma norma –; estamos, porém, em campo diverso.
Assim delimitada a indemnização que será devida pela ré à autora por atraso de cumprimento, considero, com ressalva do respeito devido à posição que fez vencimento, que a averiguação de danos - a que se reportam as alíneas b) e c) do ponto 2 do segmento decisório - ordenada às instâncias não tem razão de ser.