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OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
HOMICÍDIO
INTENÇÃO DE MATAR
Sumário
Indicia-se um crime de ofensa à integridade física agravada, p. e p. pelos artigos 143º e 147º/CP e não um crime de homicídio, quando, no decurso de agressão entre um individuo portador de um barrote de metro e um indivíduo desarmado alguém, segurando um gancho que trazia a prender-lhe o cabelo, o espetou-o na parte superior direita do tórax do portador do barrote, o que lhe causou uma ferida com um único centímetro de diâmetro e cinco centímetros de profundidade, que lhe veio a causar a morte por ter atingido a aorta e a parede da aurícula direita. Não tendo a arguida, tal como o cidadão comum, conhecimentos de anatomia para saber precisamente em que ponto uma ferida de um centímetro poderia perfurar o corpo de um homem bem constituído, à profundeza de cinco centímetros, atravessando-lhe a zona das costelas e, atingindo a aorta e a aurícula direita, provocar-lhe um derrame sobre os pulmões e causar a morte, destes factos não resulta uma intenção de matar, mas apenas uma intenção de ferir e magoar.
Texto Integral
Acordam os Juízes, em conferência, na 3ª Secção Criminal, deste Tribunal:
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I – Relatório: MJ… foi detida e presente a primeiro interrogatório judicial, a 13/10/2018, findo o qual lhe foram aplicadas as medidas de coacção de proibição de se ausentar da ilha, apresentações diárias na esquadra da PSP da área da sua residência e entrega do passaporte.
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O Ministério Público recorreu, concluindo as alegações nos termos que se transcrevem: «1. O presente recurso visa por em crise o despacho que aplicou a medida de coacção à arguida MT…, em sede de primeiro interrogatório judicial de arguida detida, no dia 13.10.2018, não concordando com a mesma, pelo facto do Mrn° Juiz de Instrução Criminal ter considerado que, no caso em concreto, não existia perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas e por não ter aplicado a medida de coacção prisão preventiva, por ser a suficiente, adequada e proporcional ao caso concreto. 2. Verifica-se, pois, que o Tribunal a quo concluiu pela inexistência de perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas e, consequentemente, sujeitou a arguida MT… apenas à medida de coacção de obrigação de apresentações periódicas no posto da P.S.P. da área da residência. 3. O Mm° JIC entendeu Que não existia perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas concluindo que "não resulta qualquer sinal que vá para lá do ressentimento natural em face de factos desta natureza — muito especialmente não se vislumbra qualquer intenção vindicativa por parte dos parentes da vítima, sendo especialmente ilustrativo disso mesmo o sereno e ambivalente depoimento de todas as testemunhas familiares da vítima, com relevo para BL…; depois não há qualquer sinal, remoto sequer, de altercações sociais em razão dos factor (nem há qualquer aglomerado de pessoas junto deste edifício)". 4. Como condições gerais e especiais da aplicação de medida de coacção é necessária a existência de um processo criminal, se encontre indiciada a prática de um crime praticado pelo arguido, existência de forte indícios da prática de crime e periculo libertatis, as exigências cautelares ínsitas no artigo 204° do Código Processo Penal. Atenta a gravidade do crime, a lei processual consagra ainda o princípio da subsidiariedade da aplicação da prisão preventiva, ou seja, determina a lei, nos arts. 193.º, n.° 2, e 202.°, n.° 1, do Código Processo Penal, que o Juiz só pode impor ao arguido a prisão preventiva quando se revelarem inadequadas ou insuficientes todas as outras medidas de coacção. 5. A aplicação das medidas de coacção deve observar os princípios da suficiência, adequação para salvaguardar as exigências cautelares que no caso se mostram preenchidas e o princípio de proporcionalidade em face da gravidade do crime indiciado. 6. No caso em concreto existem fortes indícios que a arguida MT… praticou um crime de homicídio, previsto e punido pelo artigo 131° do Código Penal, perfurando a aorta de LL…, que acabou por falecer no dia 11.10.2018, em consequência directa e necessária da conduta da arguida. 7. Como exigências cautelares constatamos que é, por demais evidente, a existência de perigo de fuga, existindo uma elevada probabilidade da arguida ponderar eximir-se a acção da justiça, já que não podemos olvidar a sanção que, previsivelmente, lhe venha aplicada - pena de prisão efectiva - atenta a moldura penal do crime que lhe está indiciado e ao facto de residir numa ilha, em que grande parte da população emigra para países estrangeiros. 8. Contudo, o cerne da nossa divergência em relação ao despacho recorrido é pelo facto de não perfilhamos o entendimento do Mm° Juiz de Instrução Criminal quando concluiu pela não existência de um perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas. Pois, é por demais evidente a danosidade social do crime indiciado, consubstanciando o mesmo o crime mais grave do nosso ordenamento jurídico atento ao facto da vida humana ser o bem jurídico mais relevante. 9. O perigo de perturbação da ordem e tranquilidade pública não se afere pelo número de pessoas nas imediações do tribunal mas no impacto que essa decisão tem na comunidade, isto é, em como a libertação da arguida pode perturbar, negativamente, a sociedade no seu geral e não, apenas, na comunidade onde se mostra inserida. É, pois, necessário repor a paz social atendendo à gravidade do crime indiciado — o mais grave no nosso ordenamento jurídico - e transmitir à sociedade, com a aplicação de prisão preventiva, que não podemos, de forma alguma, justificar ou tentar desculpar a atitude da arguida ao dizer que houve uma recusa injustificada de entrega de um menor. 10. Ademais, não ficou provado a recusa ilegítima da vítima em entregar o menor e nada pode justificar ou desculpar a atitude da arguida que poderia sempre ter reagido de outra forma — em face da abordagem da vítima — sem esquecer que a arguida encontrava-se com o seu irmão, o também aqui arguido PT… e o seu familiar A… e não retirar um gancho do cabelo, pontiagudo, e atingir a vítima logo na área onde se encontram os seus órgãos vitais. 11. Com efeito, a decisão do Mm° juiz de Instrução Criminal não poderá colher sob pena de não transmitirmos aos cidadãos em geral a segurança e paz social que reclamam neste tipo de criminalidade, atenta a danosidade social do crime cometido, ou seja, que nenhuma conduta legitima e justifica tirar a vida humana e ao meio social pequeno e rural onde nos encontramos inseridos. 12. Até porque não podemos olvidar que estamos perante um crime de homicídio, no qual se verificou a perda de uma vida humana, encontrando-se a família da vítima a fazer o seu luto do seu ente querido e, por conseguinte, não podemos almejar que se estivessem pessoas concentradas à porta do Tribunal, este concluísse, sem margem para dúvidas, que existe perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas sob pena de misturarmos mediatismo com as exigências cautelares... 13. É pois no momento subsequente ao da arguida ser colocada em liberdade que se vai aferir se tal foi o suficiente para garantir a tranquilidade e ordem públicas. O que acontecerá. 14. No que respeita à suficiência das medidas de coacção a aplicar, cumpre referir que a arguida não tem antecedentes criminais mas, a moldura penal aplicada ao crime indiciado e a personalidade da arguida que não teve qualquer pudor em tirar a vida da vítima, num conflito no qual nem era a principal interessada e visada conjugado com a gravidade dos factos leva-nos a concluir que nada aponta, neste momento processual, para que não lhe seja aplicada uma medida de coacção não privativa da liberdade. 15. O princípio da adequação significa que a medida de coacção a aplicar ao arguido num concreto processo penal deve ser o estritamente necessário e idóneo para satisfazer as necessidades ou exigências cautelares que o caso requer, devendo, por isso, ser escolhida em função de tal finalidade e não de qualquer outra. Uma medida de coacção é idónea ou adequada se com a sua aplicação se realiza ou facilita a realização do fim pretendido e não o é se o dificulta ou não tem absolutamente nenhuma eficácia para a realização das exigências cautelares. 16. Não se nos levantam dúvidas quanto à proporcionalidade da medida de prisão preventiva, quando aplicada aos casos de homicídio. O bem jurídico tutelado pela punição do homicídio é a vida humana e este, no cotejo com o da liberdade - da arguida- é-lhe superior. A vida humana é a base e referência de todos os direitos, neles incluídos certamente os da personalidade. 17. Com efeito, as medidas de coacção não são uma antecipação da pena previsivelmente aplicável mas, tendo em conta, que à arguida MT… será de aplicar urna pena de prisão efectiva consideramos que, a gravidade deste crime, as circunstâncias em que foi cometido e a personalidade fria da arguida reclamam que a ordem e tranquilidade e públicas só fiquem acauteladas se lhe for aplicada uma medida de coacção privativa da liberdade. 18. Assim, ponderadas as exigências de natureza cautelar, no presente caso, a gravidade dos factos fortemente indiciados e as sanções que previsivelmente serão aplicadas à arguida, entendo que aquelas só se mostrarão, suficientemente, salvaguardadas com a imposição à mesma de uma medida ale coacção privativa da liberdade, por ser a suficiente, adequada e proporcional a acautelar os perigos de fuga e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas. 19. No caso de aplicação de urna medida de coacção privativa da liberdade, impõe o n.° 3 do art.º 193.° do Código de Processo Penal que se dê preferência à obrigação de permanência na habitação sempre que esta se revelar suficiente para a satisfação das exigências cautelares, a que Ministério Público não se opõe. 20. Pelo exposto, pelos motivos já aduzidos, impõe-se que Vossas Excelências façam justiça, revogando o despacho recorrido por não ter efetuado a correcta interpretação e aplicação dos princípios da adequação, proporcionalidade e suficiência das outras medidas de coacção, corrigindo-a e sujeitando a arguida, aos ulteriores termos do processo, à medida de coacção de prisão preventiva, eventualmente, substituída pela medida de obrigação de permanência na habitação, nos termos do disposto nos artigos 191, 193, n°1, 196°, 202°, n°1, alínea a) e 204°, alíne a), e c), todos do Código Processo Penal. Assim decidindo, farão V. Exas a costumada justiça! ».
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Contra-alegou a arguida, concluindo as respectivas alegações nos termos que se transcrevem: «A) No dia 13 de outubro do corrente ano, foi aplicada à arguida MJ… a medida de coação de apresentações diárias no posto do PSP próximo da residência da arguida, medida de coação determinada nos termos dos artigos 193°, n°1, 198°, 200°, n°1, alínea c) e n° 3 e 204°, alínea a) do C.P.P. B) Não se resignou a nobre beca do acusador público com a aplicação da referida medida de coação pugnando pela aplicação da medida de coação de prisão preventiva, eventualmente substituída pela obrigação de permanência na habitação chamando à colação os princípios da adequação, proporcionalidade e suficiência. C) Mas não lhe assiste razão pois, as medidas de coação devem ser adequadas às exigências cautelares que o caso em concreto, requer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas assim se respeitando o princípio da proporcionalidade. D) Por conseguinte, a medida de coação tem que respeitar o princípio da necessidade ( indispensabilidade das medidas restritivas para obter os fins visados), o da adequação (idoneidade das medidas para a prossecução dos fins), o da subsidiariedade ( corolário do princípio da presunção da inocência) E) No presente caso, vem a arguida indiciada da prática de um crime de homicídio previsto e punido pelo artigo 131° do Código Penal. F) Mas segundo as circunstâncias em que o mesmo ocorreu, o que eventualmente proporcionará uma alteração da sua qualificação jurídica, já assim proferiu o Sr. Procurador Adjunto, no âmbito do primeiro interrogatório - crime de ofensa à integridade física agravada pelo resultado morte, nos termos do preceituado nos artigos 143°, 145°, n°1, alínea b) e n°2 e 147° do C.P. por entender inverificado o dolo de homicídio e à personalidade da arguida, o Tribunal a quo entendeu justo e adequado a aplicação da referida medida de coação. G) Sempre se diga, que a prisão preventiva não pode ser encarada como uma pena ( por antecipação), nem tão pouco como uma medida de segurança, porquanto se trata de uma simples medida cautelar. H) Entende Digna Magistrada do Ministério Público que a fuga ou o perigo de fuga se encontra preenchido, nos termos da alínea a) do artigo 204° do C.P.P. I) No entanto, se algum perigo houvesse esse ficou sanado com a determinação da entrega do passaporte às entidades competentes. J) Outro requisito alegado pela Sra. Procuradora Adjunta é a perturbação da ordem e tranquilidade públicas querendo fazer-nos crer que só aplicando a medida de coação de prisão preventiva se fará justiça aos olhos sociais. (artigo 204°, alínea c) do C.P.P) K) Não obstante, tem se entendido que se exige a verificação em circunstâncias particulares que em concreto se tornem previsível a alteração da ordem e tranquilidade públicas. L) Ora, no caso em concreto, nada foi trazido aos autos que abale a ordem e tranquilidade pública, a não ser o crime que está em causa, que ofendeu o direito à vida. M) Mas não basta a convicção que certo tipo de crime pode em abstrato acusar emoção ou perturbação públicas mas, esse perigo tem que necessariamente se reportar a um comportamento futuro da arguida e não ao seu comportamento passado e à reação que a sua prática possa gerar na comunidade. N) E no presente caso, o requisito de perturbação de ordem e tranquilidade públicas não se encontra preenchido, não devendo o direito à liberdade ser abalado para o direito à vida sobrepor-se. O) Além de que, há que chamar à colação o princípio da presunção da inocência, previsto no artigo 32°, n° 2 da C.R.P. que consiste no tratamento da arguido como inocente até ao momento em que for condenado, por sentença com trânsito em julgado. P) Reitera-se, assim, que a aplicação de obrigação de permanência na habitação, maxime prisão preventiva, é no presente caso uma antecipação da pena para fazer justiça ao " alarme social", o que desde já, se refuta face aos factos que lhe são imputados. Termos em que deve o despacho objeto de recurso ser confirmado, negando-se provimento ao recurso interposto, assim fazendo-se a habitual e necessário Justiça. ».
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Nesta instância, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta apôs visto.
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II- Questões a decidir:
Do artº 412º/1, do CPP resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso ([1]), exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso ([2]).
A questão colocada pelo recorrente é a necessidade de aplicação de uma medida de coacção de prisão preventiva, eventualmente substituída por obrigação de permanência na habitação, face aos perigos de fuga, perturbação da ordem e tranquilidade pública e aos princípios da proporcionalidade e adequação.
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III- Fundamentação de facto: Para apreciação do recurso importa considerar que:
1. Detida a arguida e apresentada a primeiro interrogatório judicial, a 13/10/2018, foi-lhe imputada a prática, em autoria material, de um crime de homicídio simples, previsto e punido pelo artigo 131º/CP, por forte suspeita de haver praticado os seguintes factos: «Indiciam os autos que CL… contraiu matrimónio com o arguido PT… em maio de 2013. Deste relacionamento nasceu, no dia … de Março de 2015 o menor AT…. O casal veio a divorciar-se no dia 27-06-2017, tendo ainda sido determinado judicialmente a regulação do poder paternal relativo ao menor AT…. Em face deste acordo, PT… tem o direito de receber o filho durante os fins-de-semana e nos dias de folga e nas férias. Após o divórcio, PT… foi residir para a freguesia de Capelas enquanto CL… regressou com o filho para a moradia dos progenitores: a vítima LS… e MJB…, sita na Rua …, n.° …, freguesia de Porto Formoso, Concelho de Ribeira Grande. O entendimento entre CL… e PT… ficou, seriamente degradado há poucos meses, quando este teve conhecimento que aquela iniciara uma relação amorosa com um individuo de nome PG…. Este conflito agudizou-se na quarta-feira, dia 10/10/2018, data em que foram trocadas mensagens e mantidas conversas insultuosas entre PT… e PG…. Tendo PG… dito a PT… "Que raio de pai és tu que dizes que vens buscar o teu filho e depois não apareces" e "quando fosse a Porto Formoso ia bater com a cabeça dele contra o capô" As aludidas expressões foram verbalizadas durante uma chamada telefónica no decorrer da qual a arguida MT…, irmã do arguido, também teve intervenção, pois chamou a ex-cunhada CL… de "cabra", "vaca", "rediadeira" e que "iam conseguir tirar o A…". Na verdade, desde o divórcio, que a arguida MT… desenvolveu animosidade com a família da ex-cunhada, bem manifestada no comportamento hostil quando se deslocava ao Porto Formoso para recolher o sobrinho A…. Este conflito teve reflexos no agregado familiar de CL…, despoletando sentimentos reflexos na vítima LL…, sendo disto exemplo o facto de se referir à arguida MT… como "aquele bidão". Assim, no dia 11-10-2018, pela manhã, a PSP da Maia telefonou para CL…, a pedido da congénere de Capelas, indagando-a sobre a existência de eventuais problemas associados à entrega do filho. Esta esclareceu que tudo iria decorrer dentro da normalidade e que a partir das 16:00h o A… poderia ser entregue ao pai, o arguido PT…. Pelas 16:00h, o arguido enviou uma mensagem para o telemóvel de CL…, solicitando-lhe a realização de uma chamada de voz. Nesta, o arguido informou que estava a caminho do Porto Formoso para recolher o filho e pediu para que PG… "fosse lá para fora para acertarem contas", tendo aquela respondido que ele não estava em casa. Imbuída de espírito conciliador e com o propósito de apaziguar os ânimos, BL… — irmã mais nova de C… — tomou a iniciativa de ir para a rua, no sentido de receber e acalmar o arguido PT…. Por outro lado, a vítima LL… foi buscar um pau que tinha num barraco ao lado de casa e coloco-o atrás da porta, com o intuito de o utilizar caso o arguido PT… se portasse mal. Volvidos uns instantes, arguido PT… chegou à casa da vítima acompanhado pela irmã — a arguida MT… — e o primo de ambos, AM…, estacionando o veículo onde seguiam perto da porta da residência da vítima LL…. Logo após a saída dos ocupantes do veículo, a vítima LL… dirigiu-se ao arguido PT… perguntando-lhe "o que estás a fazer aqui, ou o que é que vens fazer para aqui? Já te disse para não vires cá", não obtendo qualquer resposta do seu interlocutor, que seguiu na direcção da porta da residência, mas acabou por não entrar pois a arguida M… começou a falar mais alto. Alterado, LL… alcançou o barrote de madeira que guardara atrás da porta de entrada o qual lançou contra o arguido PT…, acertando-lhe no antebraço. Nesta altura, ML… — mulher da vítima — e CL… já se encontravam no exterior da moradia, onde tentavam segurar os braços de LL…, no sentido de o impedir de prosseguir com as agressões ao arguido PT…. Tendo CL… conseguido tirar o barrote da mão do pai e pousou-o junto à porta de entrada. Por seu lado, a arguida MT… envolveu-se na contenda, levando LL… a imputar-lhe a culpa do que se estava a passar. Revoltada com aquela circunstância, a arguida MT… alcançou com a mão direita um gancho com formato "bico de pato", em metal, com cerca de 12,8 cm de comprimento (do tipo mola com uma curvatura) que lhe prendia o cabelo, espetando-o de seguida contra a parede superior direita do tórax da vítima LL…. Sentindo-se seriamente ferido, a vítima LL… começou a ficar fraco, desceu o pequeno degrau do pátio da moradia para o passeio, começando a desmaiar e ficar lívido sendo amparado pela filha CL… que o ajudou a deitar no chão. Enquanto isto, a arguida MT… empunhava o gancho de cabelo e dizia "Foi com isso! Foi com isso! Eu só estava a defender o meu irmão" LL… foi levado para o Hospital do Espírito Santo onde acabou por falecer pelas 17:45 horas do dia 11-10-2018. Na sequência da conduta da arguida, a vítima LL… sofreu um hemopericárdio causado por ferida perfurante transfixiva do hermitórax direito ao nível do 4 espaço intercostal direito com perfuração da Grossa da aorta e da parede da aurícula direita. Tais lesões traumáticas denotam haver sido produzidas pelo gancho utilizado pela arguida. A morte de LL… foi consequência directa, necessária e imediata pela conduta da arguida. A arguida sabia que ao utilizar tal instrumento perfurante e ao furar, com ele, aquela região do corpo da vítima LL… o mesmo era idóneo a provocar-lhe a morte, o que veio a suceder, resultado com o qual, naquele preciso momento, se conformou. A arguida agiu livre, deliberada, voluntária e conscientemente, sabendo a sua conduta proibida e punível por lei.».
2- A ferida causada pela actuação da arguida tem um centímetro de diâmetro e cinco centímetros de comprimento.
3- O ofendido era um homem de constituição física forte, que se muniu de um bastão com metro e meio de comprimento e o exibiu, pelo menos, negando a entrega do neto ao pai deste.
4- A arguida prestou declarações, mediante grande emoção e choro, dizendo que o irmão foi ameaçado no dia anterior, por um individuo que se identificou como namorado da C…, dizendo-lhe que se fosse buscar o filho ele lhe iria bater, o que achou estranho porque ela sempre se deu bem com a C…. Queixaram-se à polícia e consultaram um advogado que aconselhou o irmão a ir acompanhado. Quando chegaram à rua viram o pai da C… e a irmã mais nova, cá fora. O pai da C… dirigiu-se-lhe e perguntou-lhe o que é que ia fazer ali e que já sabia que não podia ir ali. E, quando o seu irmão se vai dirigir à porta ele foi buscar um barrote. O irmão nem chegou a entrar, afastou-se logo. Gerou-se discussão entre todos, com o pai da C… e ela também, tendo-lhe aquele dito que «se queres um filho faz um filho» e as filhas intervieram a puxar o pai e eles andavam de um lado para outro. Entretanto, ela sentiu o gancho a cair do cabelo e quando pegou nele e com ele empurrou a vítima com ele. Enquanto isto durou o pai da C… tinha o barrote na mão. Não percebeu como aconteceu mas depois de a mulher dele ter percebido que ele estava mal verificou que ele tinha sangue na blusa e ela disse «então só se foi do meu gancho».
Trabalha há 17 anos como chefe de caixas no C….
Ela própria ficou com lesões no peito que nem sentiu como aconteceram.
Não viu o A… na casa, naquele dia.
É o sustento da sua casa, que a integra a ela, à mãe, a um sobrinho filho de uma irmã sua falecida, que lho entregou para criar e o irmão, pai do A….
5- O despacho recorrido fundamentou-se nos seguintes termos: «Quanto aos factos, os meios de prova indicados a fls. 154 e ss., para os quais remeto, em especial a conjugação dos testemunhos com o resultado da perícia (autópsia) e com o exame efectuado ao objecto usado no crime, todos conjuram no sentido da indiciação do essencial dos factos constantes da promoção de fls. 142-145, os quais aqui tenho igualmente por reproduzidos por razões de economia processual, com as seguintes precisões: a) quanto aos factos constantes do § 8.° de fls. 143, consigna-se que, a mais do aí referido, se indicia, nomeadamente com base nas declarações da própria arguida, mas também com base no depoimento de AM…, que a PSP efectuou a comunicação referida nesse parágrafo porque PT… havia passado pela esquadra de Capelas dando conta das ameaças que recebera de PG…, companheiro de CL…, para o caso de ir recolher o seu filho a casa desta, tendo ainda PT… e MT… obtido conselho de advogado no sentido de se deslocarem ao local com outra pessoa a fim de evitar conflitos; b) quanto aos factos constantes dos §§ 4.°, 5.°, 6.°, 7.° e 8.° de fls. 144, os depoimentos testemunhais atrás mencionados conjugados com as declarações da própria arguida, dão outra coloração a esses factos, que terão ocorrido da seguinte forma: "na altura em que ML…, esposa da vítima, e CL… se encontram no exterior da moradia tentando segurar LL… para o impedir de prosseguir nas agressões a PT… com o pau, MT…, que igualmente se encontrava junto deles tirando partido pelo irmão, diante das palavras de LL… dizendo-lhe que 'se quiseres um filho, faz um filho' tirou um gancho de metal em bico de pato, com 12,8 cm de comprimento, que lhe prendia o cabelo e espetou na parte superior direita do tórax de LL… a cerca de 2 cm do externo". Além dessas precisões, tenho ainda por apurado que MT… não tem antecedentes criminais (fls. 121), tem 34 anos de idade, é solteira, reside na freguesia de Capelas com a mãe, o irmão PT… e um sobrinho que trata como se de filho fosse, trabalhando na cadeia de hipermercados C… na freguesia de Arrifes, Ponta Delgada, onde coordena uma equipe de funcionários (declarações da mesma). O Digno Procurador-Adjunto entendeu que os factos integrariam um crime de ofensa à integridade física agravada pelo resultado morte punido pelos artigos 143.° e 145.°, n.° 1, al. b) [será lapso pois querer-se-ia referir à al. c)] e n.° 2 e 147.°, do CP, por entender inverificado o dolo de homicídio. Creio certamente que esta é uma questão que terá de ser melhor ponderada adiante, sendo pertinente o suscitar dela, mas neste momento o que temos é o uso de um objecto com potencialidade letal usado numa parte do corpo que esconde órgãos vitais. Claro que apenas isto não chega para afirmar o dolo de homicídio sem margem para dúvida, mas nesta fase indiciaria creio que é suficiente. O crime é pois, o de homicídio, punido pelo artigo 131.°, do CP. §3 Quanto a medidas de coacção o Digno Procurador-Adjunto, divergindo agora da sua ilustre colega que formulou a promoção, entende que não há perigo de perturbação do inquérito. Devo dizer que o acompanho inteiramente nessa conclusão que de resto já se me tinha afigurado insustentável no momento em que se promoveu o 1.° interrogatório: o inquérito está sujeito a segredo de justiça, os factos ocorreram num contexto manifestamente emocional e a prova recolhida, em bom rigor, já seria suficiente para introduzir o feito em juízo - isso sem prejuízo do que as autoridades entendam ainda investigar. Depois, entende o Sr. Procurador Adjunto que a medida de coacção adequada é a de prisão preventiva, porventura substituída por obrigação de permanência na habitação, por entender que ocorre perigo de continuação da actividade criminosa e de grave altercação da ordem ou tranquilidades públicas, por um lado, e perigo de fuga, por outro — todos eles insusceptíveis de serem minimizados com medidas menos gravosas. Ora, um primeiro aspecto, de todos sabido mas não raro olvidado, é o de que as medidas de coacção não são antecipações de pena mas antes obedecem a uma pura lógica de prevenção, lógica essa que não se altera em função da gravidade dos factos. Por ser assim, também é ocioso dizer que os perigos que o artigo 204.° do CPP quer esconjurar são perigos concretos, assentes em dados objectivos, e não cogitações abstractas sobre o que sempre pode suceder. Feitas essas duas advertências o fundamento (o único) invocado pelo MP para sustentar os perigos de continuação da actividade criminosa ou de grave da ordem ou tranquilidade públicas é o de que existe um conflito entre a família da arguida e a da vítima. Ora ninguém desconhecerá que esse conflito existe e estranho era que alguém não se ressentisse da morte de um ente querido. Mas novamente aqui importa fincar os pés no chão e atentar aos factos: tratou-se de um homicídio, obviamente censurável como tal a mais de não justificado, mas ocorreu num contesto de um conflito sobre a ilegítima recusa de entrega de um menor, estabelecida em decisão judicial, recusa essa que se depreende logo da forma como a própria vitima abordou PT… e aqui arguida quando chegaram ao local, como se aquele não tivesse direito a levar o filho; por outro lado, e talvez ainda mais relevante, da inquirição das testemunhas, todas elas, e ainda da tornada de declarações à arguida, não resulta qualquer sinal que vá para lá do ressentimento natural em face de factos desta natureza – e muito especialmente não vislumbra qualquer intenção vindicativa por parte dos parentes da vítima, sendo especialmente ilustrativo disso mesmo o sereno e ambivalente depoimento de todas as testemunhas familiares da vítima, com relevo para BL…; depois não há qualquer sinal, remoto sequer, de altercações sociais em razão dos factos (nem há qualquer aglomerado de pessoas junto deste edifício); por fim trata-se de arguida sem antecedentes criminais e os factos aqui em causa, muito lamentáveis é certo, para além de não se poderem extrair de um qualquer passado criminoso, também não apontam para qualquer futuro da mesma natureza. § 4 Depois sustenta ainda o MP que ocorre perigo de fuga porque a arguida tem parentes no Canadá e EUA. Tenho visto esse argumento recorrentemente usado nessa comarca, mas ele levaria, tomado à letra, a uma situação absurda. Com efeito, há mais de um milhão de açorianos naqueles países, talvez outros tantos madeirenses na África do Sul e na Venezuela e também um número significativo de minhotos e transmontanos na França. E portanto, se o argumento valesse só por si, estaria fundada a aplicação da medida de coacção privativa de liberdade a todos os cidadãos dessas áreas dos país, porque quase todos eles têm parentes no estrangeiro. Ora, o CPP aplica-se a todos os cidadãos por igual e não em razão da expressão da diáspora nas várias zonas do país. Dito isto, naturalmente não sou insensível a algum perigo de fuga que resulta evidenciado da circunstância de o crime imputado ter uma moldura penal muito grave e ainda que seja "desclassificado" para ofensa à integridade física agravada pelo resultado a concretude da sua ilicitude poderá reclamar pena severa. Com isto não quero aqui cair no erro de dizer que há crimes incaucionáveis, porque não os há. O que sucede é que, como em tudo na vida, por vezes diferenças de quantidade projectam-se em diferenças "natureza" ou "qualidade". De modo que existe efectivamente um perigo de fuga, mas seguramente sem intensidade bastante que justifique (sublinho que as razões só podem ser cautelares) a imposição de medida coactiva privativa da liberdade. Assim sendo, creio que a esse perigo se pode fazer face proibindo a arguida de se ausentar da ilha, seja de que modo for, e bem assim obrigada a apresentar-se diariamente na esquadra da PSP da área da sua residência, em Capelas, o que determino nos termos do artigos 193.°, n.°1, 198.° e 200.°, n.°1, al. c) e n.°3 e 204.°, al. a) do CPP, devendo a mesma entregar o seu passaporte de imediato ou o mais tardar segunda-feira, comunicando-se de imediato à capitania do Porto de Ponta Delgada, ao aeroporto de Ponta Delgada, ao SEF e à esquadra de PSP de Capelas a proibição imposta e ainda à entidade responsável pela emissão ou renovação de passaporte no sentido de não renovarem ou emitir documento dessa natureza relativamente à aqui arguida. Notifique. Restitua a arguida à liberdade.».
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IV- Fundamentos de direito:
A questão que se coloca no âmbito deste recurso é, unicamente, saber se a medida de coacção aplicada à arguida é suficiente para acautelar o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas. O recorrente entende que apenas uma medida de coacção de prisão preventiva acautela tal perigo, atenta a natureza do crime e tendo em conta os princípios da adequação e proporcionalidade das medidas de coacção.
Em causa está a imputação à arguida de um crime de homicídio simples.
Salvo o devido respeito pela opinião do despacho recorrido, que relegou para momento posterior a apreciação da qualificação jurídica dos indícios recolhidos nos autos como integradores de um crime de ofensa à integridade física agravada pelo resultado morte, punido pelos artigos 143° e 145º/1- c) e 2 e 147º/CP, é precisamente um crime de ofensa à integridade física agravada que os factos indiciam, p. e p. pelos artigos 143º e 147º/CP. Não se encontrando, no relato dos factos, circunstâncias susceptíveis de revelar especial censurabilidade ou perversidade, nos termos do nº 2 do artigo 132º/CP, não ocorre a agravação prevista no artigo 145º/CP, pelo que a moldura penal aplicável ao crime é de um mês e dez dias a quatro anos de prisão.
O que se revela é uma desavença à volta da obrigação de entregar uma criança para contactos com o pai (entre as duas famílias, de mãe e pai), cujo avô materno, o falecido, querendo discussão com agressões inerente à recusa da entrega, se muniu previamente de um barrote, que escondeu por detrás da porta, sendo que o pai da criança e a arguida, irmã deste, também já tinham “anunciado” a intenção de se desavir com a família da mãe.
O barrote tinha metro e meio de comprimento, conforme relato fotográfico e medição constante dos autos.
Confusão gerada, o avô materno ameaçou todos com o barrote, na medida em que o brandia nas mãos, e utilizou o barrote contra o pai da criança, atingindo-o. Mais danos pessoais não causou com o barrote porque a sua mulher e filha (a mãe do menino) lho tiraram das mãos. No decurso da contenda a arguida segurou um gancho que trazia a prender-lhe o cabelo e espetou-o na parte superior direita do tórax do detentor do barrote. Em mau local o fez porque, não obstante ter provocado uma ferida com um único centímetro de diâmetro, lhe atingiu a aorta e a parede da aurícula direita, o que lhe causou, directa e necessariamente, a morte.
Logo no momento e no local, ao ver o desfalecimento do ofendido, a arguida clamou pela desadequação do meio ao desfalecimento, mostrando o gancho, como que a referir que em seu entender a utilização daquele gancho não tinha aptidão para causar lesões graves.
A arguida não tem conhecimentos de anatomia para saber precisamente em que ponto uma ferida de um centímetro poderia perfurar o corpo de um homem bem constituído à profundeza de cinco centímetros, na zona das costelas, atingir a aorta e a aurícula direita, provocar um derrame sobre os pulmões e causar a morte. Este é um autêntico acto da mais precisa cirurgia.
Destes factos não resulta uma intenção de matar, mas apenas uma intenção de ferir, magoar, como vingança da desavença e do uso do barrote.
Nenhuma outra prova se vislumbra nos autos que indicie intenção distinta.
Assim, temos que entender que em causa está a prática de um crime de ofensa à integridade física agravada, p. e p. pelos artigos 143º e 147º/CP.
Em face desta moldura penal o crime continua a ser susceptível de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, nos termos do disposto no artigo 202º/1-d), do CPP.
Vejamos, então, se a medida se justifica e adequa às circunstâncias concretas.
Quanto ao enquadramento jurídico da questão temos que considerar que a Constituição consagra o direito à liberdade o que engloba a vertente do direito a não ser detido ou preso, salvo nos casos e termos prevenidos (artº 27º). Por outro lado, fundamenta a soberania do Estado na dignidade da pessoa humana e impõe o respeito pelos direitos e liberdades fundamentais (artºs 1º e 2º), afirmando o primado de que os direitos, liberdades e garantias só podem ser restringidos nos casos expressamente previstos na Constituição, «devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos» e que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença que o condene (artº 32º/2). Significa isto que se permite que em certas condições se imponham medidas restritivas ou limitativas da liberdade individual, mas mediante o respeito pelos princípios de legalidade/tipicidade.
O CPP reafirma a natureza excepcional e residual da prisão preventiva e da obrigação de permanência na habitação (artºs 193º/2 e 3 e 202º/1), determinando que só se pode recorrer à prisão preventiva quando as demais medidas de coacção se mostrem inadequadas ou insuficientes e se verifique, em concreto, fuga ou perigo de fuga, perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, ou se verifique, em concreto, perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e da tranquilidade públicas (artº 204º).
Com a revisão do CPP, operada pela Lei 48/2007, de 29/8, o legislador proclamou o carácter subsidiário da prisão preventiva e da obrigação de permanência na habitação, relativamente às outras medidas de coacção (artº 193º/2), acentuando o carácter de “extrema ratio” e de excepcionalidade da prisão preventiva, ao estipular, no artº 193º/3, que quando couber ao caso medida de coacção privativa da liberdade – prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação – deve-se dar preferência a esta, sempre que ela se revelar suficiente para satisfazer as exigências cautelares.
As medidas de coacção admissíveis são as mencionadas nos artºs 196º e segs. do CPP: termo de identidade e residência; caução; obrigação de apresentação periódica; suspensão do exercício de funções; proibição de permanência, de ausência e de contactos; obrigação de permanência na habitação e prisão preventiva. A taxatividade/tipicidade das medidas, obstando a aplicação de outras não expressamente previstas, conforma-se com o princípio da legalidade previsto no artº 191º/CPP, segundo o qual a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção e de garantia patrimonial previstas na lei.
A aplicação de medidas de coacção rege-se pelos princípios da adequação, proporcionalidade e necessidade, e dependem da verificação, no momento da sua aplicação, dos pressupostos legais. Rege, a propósito, o artº 204º/CPP: «nenhuma medida de coacção, à excepção da prevista no artigo 196º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida», qualquer dos pressupostos que indica.
A prisão preventiva é a mais gravosa de todas as medidas de coacção, porquanto contende frontalmente com o direito à liberdade. Tem aplicação apenas em casos em que as demais medidas se revelem inadequadas ou insuficientes. Há-se de ser a estrita necessidade das medidas de coacção que legitimará em cada caso a vulneração do princípio da presunção da inocência ([3]). Na verdade, implicando uma restrição, em medida elevada, além do mais, do direito fundamental à liberdade (artº 27º/CRP), a sua aplicação deve ser limitada ao estritamente necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, nos termos do artº 18º/2, da mesma Lei Fundamental; ou seja, tem por pressuposto material o princípio da proporcionalidade, também chamado princípio da proibição do excesso ([4]) que se desdobra em três sub-princípios:
(a) Princípio da adequação - também designado por princípio da idoneidade -, que significa que as medidas restritivas aplicadas devem revelar-se como meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei (salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos);
(b) Princípio da exigibilidade - também chamado princípio da necessidade ou da indispensabilidade -, que significa que as medidas restritivas devem revelar-se necessárias (porque se tornaram exigíveis), na medida em que os fins cautelares não seriam obtidos por outros meios, menos gravosos para os direitos, liberdades e garantias;
(c) Princípio da proporcionalidade, em sentido estrito, que significa que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa «justa medida», impedindo-se a adopção de medidas legais restritivas, desproporcionadas, porquanto excessivas, em relação aos fins visados.
A aplicação de medidas de coacção não contende com a presunção da inocência consagrada no artº 32º/2, da CRP, atendendo a que os pressupostos em que assentam as duas realidades são diferentes: as medidas de coacção assentam em exigências processuais de natureza cautelar, enquanto tal presunção funciona até que se prove a efectiva culpabilidade do arguido e está intimamente associada ao princípio “nulla poena sine culpa”. De qualquer modo, sendo a presunção da inocência um princípio estruturante do processo criminal, a aplicação da prisão preventiva não poderá servir como antecipação de verdadeira pena a título de medida cautelar, ou como uma forma de antecipação da responsabilização e punição penal. Ela só se justifica, tal como as restantes medidas coactivas, como meio de tutela de necessidades de natureza cautelar, ínsitas às finalidades últimas do processo penal: a realização da justiça (através da descoberta da verdade material, de um modo processualmente válido) e o restabelecimento da paz jurídica ([5]). O princípio da presunção de inocência reflecte-se, contudo, na ponderação da medida de coacção, na estrita medida em que a limitação ou privação da liberdade do arguido está vinculada à exigência de que só lhe sejam aplicadas aquelas medidas que, em concreto, se mostrem comunitariamente suportáveis face à possibilidade de estarem a ser aplicadas a um inocente ([6]).
O princípio da adequação relaciona o perigo que justifica a imposição da medida de coacção com a previsível capacidade de esta lhe fazer face. Adequada é a medida que realiza ou facilita a realização do fim pretendido e não o é se o dificulta, ou não tem absolutamente nenhuma eficácia para realização das exigências cautelares. Não diz a lei ao que refere a “insuficiência” das demais medidas de coacção. Mas, se bem entendemos, não pode deixar de ser à garantia do desenvolvimento de cada concreto procedimento criminal, de modo a não se desbaratarem os meios, através dos quais se manifesta e executa a pretensão punitiva do Estado, enquanto expressão de uma necessidade básica da organização colectiva, sem garantia da eficácia da actuação punitiva.
A proporcionalidade a que a norma do artº 193º/1, do CPP, se refere não tem que ver com a antecipação do cumprimento de uma pena. Visa apenas evitar que a medida de coacção seja mais gravosa do que a sanção que é expectável para o crime que se indicia.
No caso dos autos consta do despacho recorrido que foi por considerar haver algum perigo de fuga que se considerou justificada a aplicação das supra referidas medidas de coacção. O MP entende que há perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas em razão da natureza do crime, de homicídio, e também perigo de fuga em face da pena aplicável ao crime.
Ora, não estando indiciado um crime de homicídio, mas sim um de ofensas à integridade física, agravado, cai a base de toda a fundamentação do recurso.
E a frieza de ânimo, de que o recorrente fala, implica um processo de preparação do crime, de formação da intenção de causar dano a outrem de forma calculada, reflectida, denotando indiferença ou insensibilidade perante as consequências do seu acto. Ora, dos factos indiciados está longe de se revelar uma situação de frieza de ânimo; o que se verificou foi uma actuação nervosa, de resposta imediata, impensada, de pessoa desnorteada no âmbito de uma desavença grave, que reage, longe de prever que do seu acto resultaria a morte do ofendido. A morte adveio como consequência do crime para além da intenção manifesta da arguida.
É certo que a questão pela qual se deu a desavença não tinha que ver directamente com a arguida, mas tinha que ver com o seu sobrinho e o direito a visitas do seu irmão, questões que normalmente arrastam os familiares próximos, se bem que nunca justifiquem a prática de um crime.
Mas um crime de ofensas à integridade física já tinha sido cometido – pela vítima, sobre o seu irmão – e ameaçado a todos os presentes, pela simples exibição do bastão. A vitima apresentava-se com intenções agressivas e prevenida com um barrote, o que deixava antever intenção de causar lesões corporais. Neste ambiente, a arguida reagiu. Mal, evidentemente, de forma grave, sem dúvida mas, até prova em contrário, sem intenção de causar mais do que dano físico – e, não sendo detentora de especiais conhecimentos clínicos, sem poder antever que iria atingir mortalmente a vitima, ao espetá-la naquele preciso ponto.
A arguida não tem antecedentes criminais. Tem trabalho e está inserida social e familiarmente. Não há notícia de incumprimento das medidas de coacção que lhe foram aplicadas.
Afigura-se-nos que não há fundamento algum, neste momento, para agravar tais medidas e, muito menos, para aplicar uma medida de privação de liberdade.
Em face do exposto, resta a declaração de improcedência do recurso.
***
V- Decisão:
Acorda-se, pois, negando provimento ao recurso, em manter a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Sem custas.
Lisboa, 13/ 02/2019
Texto processado e integralmente revisto pela relatora.
Maria da Graça M. P. dos Santos Silva
A.Augusto Lourenço
[1] Cf. Germano Marques da Silva, em «Curso de Processo Penal», III, 2ª edição, 2000, pág. 335, e Acs. do S.T.J. de 13/5/1998, em B.M.J. 477-º 263; de 25/6/1998,em B.M.J. 478º-242 e de 3/2/1999, em B.M.J. 477º-271. [2] Cf. Artºs 402º, 403º/1, 410º e 412º, todos do CPP e Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R., I – A Série, de 28/12/1995. [3] Germano Marques da Silva, ob. cit., vol. II, a pág.206. [4] Cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira em «Constituição da República Portuguesa Anotada», Coimbra Editora, 2007, vol.I, a pág.392. [5] Cf. Prof. Figueiredo Dias, com a colaboração da Prof. Maria João Antunes, em «Direito Processual Penal», FDUC, 1988/9, pág. 20 e segs. [6] Cf. Prof. Figueiredo Dias, em «Sobre os Sujeitos Processuais no novo Código de Processo Penal», «Jornadas de Direito Processual Penal. O Novo Código de Processo Penal», Almedina, 1988, a pág.27).