COMPARTICIPAÇÃO
AGENTE
ILICITUDE NA COMPARTICIPAÇÃO
COMUNICABILIDADE
CRIME CONTINUADO
REQUISITOS
Sumário

I - O art. 28º, nº 1, do Cód. Penal estatui que nas diversas formas de comparticipação em que estejam em causa factos cuja ilicitude ou grau de ilicitude dependa de qualidades ou relações especiais do agente, basta que um deles as detenha para que a pena aplicável se estenda a todos os outros.
II - Se o agente concorre para a existência do próprio quadro ou condicionalismo exterior está a criar condições de que não pode aproveitar-se para que possa dizer-se verificada a figura legal da continuação criminosa.

Texto Integral

Processo n º 225/14.1JAPRT.P1

Relator: Paulo Emanuel Teixeira Abreu Costa
Adjunta: Élia São Pedro

Acórdão, julgado em conferência, na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto:

O M.P. a fls.1090 e ss não se conformando com o acórdão proferido em processo singular do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro- Juízo de competência genérica de Vale de Cambra, que nos autos à margem referenciados decidiu condenar:
I - arguido B… pela prática de um crime continuado de atestado falso, previsto e punido pelos artigos 14.º, 26.º, 28.º, n.º 1, 30.º, n.º 2 e 260.º, n.º 3, todos do Código Penal, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa diária de 10,00€ (dez euros);
II - 2. Condenar a arguida C… pela prática de um crime continuado de atestado falso, previsto e punido pelos artigos 14.º, 26.º, 28.º, n.º 1, 30.º, n.º 2 e 260.º, n.º 3, todos do Código Penal, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa diária de 10,00€ (dez euros);
III - 3. Condenar o arguido D… pela prática de um crime continuado de atestado falso, previsto e punido pelos artigos 14.º, 26.º, 30.º, n.º 2 e 260.º, n.º 3, todos do Código Penal, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa diária de 25,00€ (vinte e cinco euros);
IV - 4. Condenar a arguida E… pela prática de um crime continuado de atestado falso, previsto e punido pelos artigos 14.º, 26.º, 30.º, n.º 2 e 260.º, n.º 3, todos do Código Penal, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa diária de 25,00€ (vinte e cinco euros);
V - 5. Absolver todos os arguidos do demais pelo que vinham pronunciados;
VI - 6. Não declarar perdidas a favor do Estado as quantias pagas pela emissão dos atestados por não consubstanciarem uma vantagem resultante da prática do crime;

veio recorrer nos termos que ali constam, que ora aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os legais efeitos, concluindo pela forma seguinte (partes relevantes): (transcrição)

“Em conclusão:
A.O que resultou do julgamento e nomeadamente ficou assente na factualidade provada foi que os quatro arguidos acordaram entre SI que sempre que os requerentes da revalidação da carta de condução não estivessem munidos do necessária atestado médico, os arguidos médicos se comprometiam a passar aquele mesmo atestado.
B. Ou seja, os arguidos combinaram entre SI que, verificadas que fossem determinadas circunstâncias, os mesmos praticariam o crime em causa. Em nenhum momento as várias resoluções criminosas fosse que foram tomando foram determinadas ou devidas a factores externos a eles.
C. O desígnio foi inicialmente formulado pelos quatro arguidos nestes termos, pelo que não ocorreu, durante a execução dos factos, qualquer circunstância exterior ao acordo prévio entre os arguidos que possa fundar uma diminuição da culpa destes e, por via disso, a verificação da figura do crime continuado.
D. Assim, entendemos que deveriam os arguidos ter sido condenados nos seguintes termos:
os arguidos B… e C…, em co-autoria, na forma consumada e em concurso real e efectivo, pela prática de 64 crimes de atestado falso, crime este p. e p. pelo art. 260º, nº3 do Código Penal;
- o arguido D…, em co-autoria, na forma consumada e em concurso real e efetivo, pela prática de 35 crimes de atestado falso, crime este p. e p. pelo art. 260º, nº3 do C.P. e
- a arguida E…, em co-autoria, na forma consumada e em concurso real e efectivo de 29 crimes de atestado falso, crime que vem previsto e punido no art. 260º, nº 3 do C.P.
E. Não duvidamos que os arguidos são pessoas social, familiar e profissionalmente integradas. Não obstante, foi patente durante todo o julgamento a fraca interiorização por parte dos arguidos do desvalor das suas condutas, tendo revelado alguma leviandade na forma como encararam o cometimento destes crimes.
F. Esta postura dos arguidos demanda da parte do aplicador do Direito que escolha uma pena capaz de suster o ímpeto criminoso que os arguidos revelam, atenta a sua atitude de desvalorização da conduta assumida.
G. Acresce que a escolha da pena não se limita a responder às exigências de prevenção especial, devendo também ser capaz de fazer face à prevenção geral.
H. Ora, os arguidos acordaram entre si a passagem de dezenas de atestados falsos, atestados médicos passados sem que efectivamente as pessoas em causa fossem observadas clinicamente, sendo tais atestados destinados a renovar cartas de condução.
I. É sabido que a condução de um veículo automóvel é hoje uma actividade perigosa por natureza, exigindo de quem o conduz extrema concentração e máxima cautela.
J. É que os atestados passados não foram destinados a uma mera justificação de falta ou a uma baixa medica sequer, o que sempre seria criminalmente censurável.
Os atestados passados permitiram que pessoas, com idades já em alguns casos bastante avançadas, pudessem ver a sua carta de condução renovada.
K. A especial gravidade e perigosidade das condutas em causa demandam da parte do Tribunal uma resposta adequada, que possa garantir a reafirmação contrafáctica da norma violada.
L. Assim, face a todo o exposto, é entendimento do Ministério Público que o Tribunal a quo deveria ter optado pela aplicação de uma pena de prisão, de medida concreta nunca inferior a 5 meses, embora se admita que devesse ser substituída por pena não privativa da liberdade ou suspensa na sua execução, atento, aqui sim, o facto de os arguidos não terem antecedentes criminais e se encontrarem plenamente integrados.
M. Os arguidos não praticaram o acto médico da consulta. Receberem antes o valor de 15€ pela passagem de cada um dos atestados "falsos", como recompensa pela sua actuação ilícita, a qual se traduziu em atestar um facto relativamente ao qual não tinham qualquer conhecimento.
N. Não vemos, aliás, como pode o Tribunal compatibilizar o entendimento segundo o qual a passagem dos atestados em causa nos autos configura um crime e, ao mesmo tempo, decidir que, afinal, a passagem dos atestados foi uma conduta lícita.
O. É, portanto, entendimento nosso que também neste aspecto, deverá a decisão recorrida ser alterada, por uma outra que decida declarar perdidas a favor do Estado as quantias que foram pagas aos arguidos D… e E…, pela prática dos factos pelos quais foram condenados.
P. Ou seja o decidido conforme decidiu, violou o Tribunal o disposto nos artigos 30º, n º 1 e nº 2, art. 70º r art. 110, n º 1, al.a) e nº 4 (anterior art. 111º, n º 1) todos do Código Penal.”
A este recurso responderam os arguidos, sendo B… e C… a fls. 1193 e ss e D… e E… a fls. 1197 e ss o, pugnando pela improcedência do recurso.
Apresentaram as seguintes conclusões:
B… e C….
“1. Propugna o Mº Pº nas suas, aliás doutas, motivações de recurso, a condenação dos Arguidos B… e C… pela prática, em co-autoria, na forma consumada e em concurso real e efectivo, de 64 crimes de atestado falso.
2. A verdade é que, a considerar-se haver crime, o que não se concede em harmonia e nos termos do recurso interposto, tem forçosamente de se reconhecer que os factos ocorreram em condições de tempo, lugar e modo de execução que indicam os demais (pretensos) crimes mais não foram do que a continuação do 1º delito.
3. Ou seja, há crime continuado porque há continuidade no tempo; há as mesmas condições de espaço e idêntico modo de execução.
4. A aplicação da pena de multa decorre da lei, donde promana o princípio de que o julgador deve aplicar preferencialmente pena de multa, e sempre que esta se mostre suficiente para prevenir a prática de novos crimes.
5. No caso dos Arguidos B… e C… tal aplicação tem plena justificação (considerando-se haver crime) dado que não têm antecedentes criminais, são pessoas honestas, educadas, pacatas, trabalhadoras, respeitadas pelas pessoas das suas relações de vizinhança, amizade e conhecimento, que sentem enorme vergonha, sofrimento e transtornos com o presente processo e que, estando reformadas, cessaram definitivamente toda a actividade que vinhamdesenvolvendo, ou qualquer outra.
6. Improcedem, pois, todos os argumentos vertidos na D. motivação de recurso que, assim, deve ser julgada totalmente improcedentes e não provados.”

D… e E….
“1º - Os arguidos tiveram oportunidade de apresentar o seu recurso, expondo a sua discordância em relação à sentença proferida, expondo quais os pontos da matéria de facto dados como provados e não provados que consideram incorrectamente julgados, indicando, de forma objectiva, as provas que impõem decisão diversa da recorrida.
2º - O Ministério Público não refutou os argumentos e a análise a essas provas, limitando-se a invocar, em termos genéricos (aplicáveis a este processo como a qualquer outro) o princípio da livre apreciação da prova testemunhal.
3º - O Recurso apresentado pelos arguidos permitirá a este Tribunal verificar que não pode afirmar, com a certeza exigível, que os arguidos médicos que emitiram os atestados ignoravam se
os visados se encontravam nas condições que declaravam.
4º - A dúvida assim gerada impõe o recurso ao princípio in dubio pro reo, e, consequentemente, a absolvição dos arguidos.
5º - São razões atinentes à culpa do agente (a diminuição considerável desta) que justificam o instituto do crime continuado.
6º - Perante culpa significativamente diminuída entende o legislador apenas ser admissível um só juízo de censura, e não vários, como seria de fazer, o que alcança precisamente mediante a unificação jurídica em um só crime (continuado) de comportamento ou comportamentos que violam diversas normas incriminadoras ou a mesma norma incriminadora por mais de uma vez.
7º - Nos presentes autos, não há qualquer dúvida que, atendendo aos factos dados como provados, ocorreu a realização plúrima do mesmo tipo de crime, executada por forma essencialmente homogénea, através do mesmo meio e dentro de idêntico circunstancialismo factual, e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminui consideravelmente a culpa dos arguidos – numa altura da sua vida em que tinham amplo conhecimento da população do município em que durante longos anos residiram e/ou trabalharam.
8º - Essa solicitação ocorreu também porque se sucederam os pedidos dos beneficiários para que lhes fossem emitidos atestados para efeitos de renovação da sua carta de condução, e porque os restantes arguidos, B… e C…, procediam ao envio das fichas clinicas e restante documentação a solicitar a emissão dos atestados em causa.
9º - Pelo que, atendendo aos factos dados como provados, estamos perante a prática de um crime continuado.
10º - A pretensão do Ministério Público em que seja aplicada aos arguidos de uma pena de prisão, ao invés da pena de multa que foi aplicada baseia-se numa apreciação subjectiva em nada
consentânea com o que se passou no decorrer do julgamento, não passando de uma conclusão sem qualquer suporte nos factos dados como provados.
11º - O Ministério Público confunde a suposta “fraca interiorização por parte dos arguidos do desvalor das suas condutas” com o facto de os arguidos explicarem e contextualizarem as circunstâncias em que procederam à emissão dos atestados, nomeadamente o facto de as testemunhas residirem na zona ou nas proximidades de Vale de Cambra, localidade onde se situava a agência F… e onde os arguidos médicos vivem e exerceram a sua profissão, o facto de conhecerem os arguidos e de terem sido consultados por estes.
12º - Acresce ainda o teor dos pontos 20. a 27. dos factos dados como provados na douta Sentença.
13º - Diz-nos o art.º 70.º do Código Penal que “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição” e que são, segundo o n.º 1 do art.º 40.º do mesmo diploma “a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.
14º - Considerando que os arguidos são primários, social, familiar e profissionalmente integrados, as exigências de prevenção especial não se mostram elevadas e por isso, ainda que as exigências de prevenção geral possam ser elevadas, não se justifica, de modo algum, a opção por pena privativa da liberdade.
15º - Não se justifica a perda a favor do Estado do valor de €15 recebido por cada atestado emitido, uma vez que o referido preço de 15,00€ era devido pela passagem do atestado (conduta lícita) e não pela falsidade do mesmo, ou seja, tal valor reporta-se ao serviço prestado no exercício da atividade de médico e independentemente da verificação ou não da prática do crime.
16º - Não se apurou em concreto qualquer efetiva vantagem, ainda que indireta, decorrente da prática do crime (designadamente, o aumento da clientela dos arguidos em virtude da desnecessidade de ser presencialmente observado pelo médico para a emissão do atestado), pelo que não deve haver lugar a qualquer declaração de perda a favor do Estado de quantias monetárias.”

D… e E… inconformados apresentaram igualmente recurso a fls 1103 e ss, com as seguintes conclusões ( partes relevantes):
“1º - O presente recurso é interposto por se impor a modificação da decisão do tribunal “a quo” sobre a matéria de facto, a qual se impugna, por se entender incorrectamente julgada.
2º - Os PONTOS DE FACTO QUE OS RECORRENTES CONSIDERAM INCORRECTAMENTE JULGADOS (art. 412º, n.º 3, al. a) do CPP):
DOS FACTOS PROVADOS Os Recorrentes consideram incorrectamente julgados os pontos 8 19 a da matéria de facto provada da douta Sentença.
DOS FACTOS NÃO PROVADOS Os Recorrentes consideram incorrectamente julgados os seguintes pontos 5 e 6 da matéria de facto dados como não provados na douta Sentença recorrida
3º - As PROVAS QUE IMPÕE DECISÃO DIVERSA DA RECORRIDA (art. 412º, n.º 3, al. b) do CPP):
Quanto aos factos provados e não provados são as seguintes:
- As declarações dos arguidos - Conjugação das declarações produzidas em audiência de julgamento, em concreto:
- Depoimento do arguido B… (cfr. CD – acta de audiência de 12-02-2018 (gravação iniciada a 09:42:29):De 07´57 a 10´39: De 38´18 a 38´48: De 50´38 a 51´00:
- Depoimento da arguida C… (cfr. CD – acta de audiência de 12-02-2018 (gravação iniciada a 10:52:14): De 19´44 a 22´20:
- Depoimento do arguido D… (cfr. CD – acta de audiência de 12-02-2018 (gravação iniciada a 11:31:29): De 24´38 a 28´27:
- A prova testemunhal, em concreto:
Declarações da testemunha G… (cfr. CD – acta de audiência de 12-02- 2018 (gravação iniciada a 14:09:20): 01´36 a 02´50 11´00 a 11´24
Declarações da testemunha H… (cfr. CD – acta de audiência de 12- 02-2018 (gravação iniciada a 14:09:20): 19´50 a 20´40
Declarações da testemunha I… (cfr. CD – acta de audiência de 12-02-2018 (gravação iniciada a 14:09:20): 23´44 a 24´07; 27´53 a 29´50; 34´23 a 34´38
Declarações da testemunha J… (cfr. CD – acta de audiência de 12-02-2018
(gravação iniciada a 14:09:20):37´15 a 38´00 38´58 a 41´08, 44´10 a 44´30, 49´42 a 50´13
Declarações da testemunha K… (cfr. CD – acta de audiência de 12-02-2018 (gravação iniciada a 14:09:20):52´50 a 53´30, 56´00 a 56´30, 58´14 a 59´19
Declarações da testemunha L… (cfr. CD – acta de audiência de 12-02-2018 (gravação iniciada a 14:09:20):01´06´30 a 01´07´21
Declarações da testemunha M… (cfr. CD – acta de audiência de 12-02-2018 (gravação iniciada a 14:09:20):01´10´25 a 01´13´56
Declarações da testemunha N… (cfr. CD – acta de audiência de12-02-2018 (gravação iniciada a 14:09:20):01´26´10 a 01´26´40,01´27´25 a 01´29´05,01´29´54 a 01´31´00,01´32´00 a 01´32´20
Declarações da testemunha O… (cfr. CD – acta de audiência de 12-02-2018 (gravação iniciada a 14:09:20):01´35´05 a 01´35´3,01´36´05 a 01´38´00
Declarações da testemunha P… (cfr. CD – acta de audiência de 12-02-
2018 (gravação iniciada a 16:17:05):02´20 a 02´41,08´17 a 08´21
Declarações da testemunha Q… (cfr. CD – acta de audiência de 12-02-2018
(gravação iniciada a 16:17:05):10´35 a 11´33,16´22 a 17´28
Declarações da testemunha S… (cfr. CD – acta de audiência de12-02-2018 (gravação iniciada a 16:17:05):19´03 a 19´36,23´56 a 24´09,24´15 a 24´25
Declarações da testemunha T… (cfr. CD – acta de audiência de 12-02-2018 (gravação iniciada a 16:17:05):40´20 a 40´58
Declarações da testemunha U… (cfr. CD – acta de audiência de07-03-2018 (gravação iniciada a 10:24:38):05´28 a 06´45,10´20 a 10´40
Declarações da testemunha V… (cfr. CD – acta de audiência de 12-02-2018 (gravação iniciada a 16:17:05):42´35 a 42´58,48´00 a 49´22
Declarações da testemunha W… (cfr. CD – acta de audiência de 12-02-2018 (gravação iniciada a 16:17:05):50´32 a 50´40,53´35 a 54´30
Declarações da testemunha X… (cfr. CD – acta de audiência de 07-03-2018 (gravação iniciada a 10:24:38):31´04 a 32´55
Declarações da testemunha Y… (cfr. CD – acta de audiência de 07-03-2018 (gravação iniciada a 10:24:38):35´06 a 35´20,36´40 a 37´15,37´45 a 39´26
Declarações da testemunha Z… (cfr. CD – acta de audiência de07-03-2018 (gravação iniciada a 10:24:38):45´40 a 48´12
Declarações da testemunha AB… (cfr. CD – acta de audiência de 07-03-2018 (gravação iniciada a 10:24:38):50´40 a 50´50,52´58 a 53´25,55´50 a 59´00,59´08 a 59´37
Declarações da testemunha AC… (cfr. CD – acta de audiência de 07-03-2018 (gravação iniciada a 10:24:38):01´02´15 a 01´03´15,01´05´33 a 01´07´35,01´08´10 a 01´09´53,01´10´12 a 01´10´46
Declarações da testemunha AD… (cfr. CD – acta de audiência de 07-03-2018 (gravação iniciada a 10:24:38):01´27´50 a 01´28´54
Declarações da testemunha AE… (cfr. CD – acta de audiência de 07-03-2018 (gravação iniciada a 10:24:38):01´34´10 a 01´34´52
Declarações da testemunha AF… (cfr. CD – acta de audiência de 07-03-2018 (gravação iniciada a 10:24:38):01´46´15 a 01´46´54,01´47´07 a 01´47´16,01´47´37 a 01´48´15
Declarações da testemunha AG… (cfr. CD – acta de audiência de 07-03-2018 (gravação iniciada a 10:24:38):01´50´00 a 01´51´04,01´51´43 a 01´53´44,01´55´30 a 01´56´40
Declarações da testemunha AH… (cfr. CD – acta de audiência de 07-03-2018 (gravação iniciada a 10:24:38):02´01´15 a 02´02´25
Declarações da testemunha AI… (cfr. CD – acta de audiência de 07-03-2018 (gravação iniciada a 10:24:38):02´09´00 a 02´09´31,02´11´32 a 02´12´12
Declarações da testemunha AJ… (cfr. CD – acta de audiência de 05-04-2018 (gravação iniciada a 16:06:28):03´00 a 03´40
Declarações da testemunha AK… (cfr. CD – acta de audiência de 07-03-2018 (gravação iniciada a 10:24:38):02´17´20 a 02´19´16
Declarações da testemunha AL… (cfr. CD – acta de audiência de 07-03-2018 (gravação iniciada a 10:24:38):02´20´52 a 02´21´16,02´23´20 a 02´24´50
Declarações da testemunha AM… (cfr. CD – acta de audiência de 07-03-2018 (gravação iniciada a 10:24:38):02´31´12 a 02´33´00
Declarações da testemunha AN… (cfr. CD – acta de audiência de 07-03-2018 (gravação iniciada a 10:24:38):02´35´00 a 02´36´27
Declarações da testemunha AO… (cfr. CD – acta de audiência de 07-03-2018 (gravação iniciada a 14:49:02):14´28 a 15´00
Declarações da testemunha AP… (cfr. CD – acta de audiência de 07-03-2018 (gravação iniciada a 14:49:02):19´00 a 19´55
Declarações da testemunha AQ… (cfr. CD – acta de audiência de 07-03-2018 (gravação iniciada a 14:49:02):25´20 a 26´10
Declarações da testemunha AR… (cfr. CD – acta de audiência de 05-04-2018 (gravação iniciada a 16:06:28):03´00 a 03´40
Declarações da testemunha AS… (cfr. CD – acta de audiência de 07- 03-2018 (gravação iniciada a 14:49:00):58´35 a 59´06
Declarações da testemunha AT… (cfr. CD – acta de audiência de 07-03-2018 (gravação iniciada a 14:49:00):01´01´27 a 01´08´42
Declarações da testemunha AU… (cfr. CD – acta de audiência de 07-03-2018 (gravação iniciada a 14:49:00):01´11´18 a 01´17´30
Declarações da testemunha AV… (cfr. CD – acta de audiência de 07-03-2018 (gravação iniciada a 14:49:00):01´19´08 a 01´22´03
Declarações da testemunha AW… (cfr. CD – acta de audiência de 07-03-2018 (gravação iniciada a 14:49:00): 01´23´53 a 01´27´26
Declarações da testemunha AX... (cfr. CD – acta de audiência de 07-03-2018 (gravação iniciada a 14:49:00):01´35´07 a 01´40´30.
Declarações da testemunha AY… (cfr. CD – acta de audiência de 07- 03-2018 (gravação iniciada a 14:49:00):01´42´33 a 01´43´33
Declarações da testemunha AZ… (cfr. CD – acta de audiência de 14-02-2018 (gravação iniciada a 09:48:31):04´30 a 22´19
Declarações da testemunha BA… (cfr. CD – acta de audiência de 14-02-2018 (gravação iniciada a 09:48:31):24´57 a 34´02
Declarações da testemunha BC… (cfr. CD – acta de audiência de 14-02-2018 (gravação iniciada a 09:48:31):36´00 a 42´57
Declarações da testemunha BD… (cfr. CD – acta de audiência de 14-02-2018 (gravação iniciada a 09:48:31):56´32 a 01´01´14
Declarações da testemunha BE… (cfr. CD – acta de audiência de 14- 02-2018 (gravação iniciada a 09:48:31):01´03´44 a 01´11´00
Declarações da testemunha BF… (cfr. CD – acta de audiência de14-02-2018 (gravação iniciada a 09:48:31):01´21´49 a 01´28´51
Declarações da testemunha BG… (cfr. CD – acta de audiência de 14-02-2018 (gravação iniciada a 09:48:31):01´37´49 a 01´41´46
Declarações da testemunha BH… (cfr. CD – acta de audiência de 14-02-2018 (gravação iniciada a 09:48:31):01´43´44 a 01´48´37
Declarações da testemunha BI… (cfr. CD – acta de audiência de 14-02-2018 (gravação iniciada a 09:48:31):01´50´00 a 01´54´21
Declarações da testemunha BJ… (cfr. CD – acta de audiência de 14-02-2018(gravação iniciada a 09:48:31):01´56´03 a 02´02´10
Declarações da testemunha BK… (cfr. CD – acta de audiência de 14-02-2018(gravação iniciada a 09:48:31): 02´04´10 a 02´09´22
Declarações da testemunha BL… (cfr. CD – acta de audiência de 14-02-2018 (gravação iniciada a 09:48:31):02´11´39 a 02´19´39
Declarações da testemunha BM… (cfr. CD – acta de audiência de 14-02-2018 (gravação iniciada a 09:48:31):02´18´17 a 02´25´57
Declarações da testemunha BN… (cfr. CD – acta de audiência de 14-02-2018 (gravação iniciada a 09:48:31):02´27´25 a 02´30´58
Declarações da testemunha BO… (cfr. CD – acta de audiência de 14-02-2018 (gravação iniciada a 09:48:31):02´32´41 a 02´37´09
Declarações da testemunha BP… (cfr. CD – acta de audiência de 14-02-2018 (gravação iniciada a 09:48:31):02´38´41 a 02´45´15
Declarações da testemunha BQ… (cfr. CD – acta de audiência de 14-02-2018 (gravação iniciada a 14:30:20):03´48 a 08´54
Declarações da testemunha BR… (cfr. CD – acta de audiência de 14-02-2018 (gravação iniciada a 14:30:20):11´32 a 20´01
Declarações da testemunha BS… (cfr. CD – acta de audiência de 14-02-2018 (gravação iniciada a 14:30:20):36´54 a 45´24
Declarações da testemunha BT… (cfr. CD – acta de audiência de 14-02-2018 (gravação iniciada a 14:30:20):48´00 a 55´10
4º - O tribunal fundou a sua convicção “com base no conjunto da prova produzida e examinada em audiência, a qual foi apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador”, afirmando que “os arguidos prestaram declarações, quase totalmente confessórias, embora em diferentes medidas.”
5º - Os arguidos não prestaram declarações confessórias no sentido que lhe é dado pelo tribunal, ou seja, de que existisse um acordo para os arguidos médicos passarem atestados sem necessidade de, aquando da sua emissão, avaliarem presencialmente se os beneficiários dispunham de condições físicas e mentais legalmente exigidas.
6º - A ausência desse acordo é sublinhada pelo facto de no despacho de acusação, na página 8, serem mencionados os nomes de 16 “beneficiários” dos atestados emitidos pelos arguidos, que confirmaram ter sido observados pelos arguidos, o que determinou, nesta parte, o arquivamento dos autos, o que demonstra a ausência de um plano prévio que colocasse de parte a necessidade de examinar presencialmente os “beneficiários” dos atestados.
7º - Os arguidos sempre estiveram disponíveis para atender os utentes no seu consultório, atenderam efectivamente muitos deles, chegando mesmo a recusar a emissão de atestado em alguns desses casos.
8º - O único acordo existente entre os arguidos consistia no facto de os arguidos B… e C… indicarem aos clientes que não dispunham de atestado médico para efeito de revalidação da carta de condução o consultório dos arguidos médicos, porquanto estes procederiam à emissão do atestado com um preço mais vantajoso, de €15, beneficiando os médicos, ainda que auferindo um valor inferior ao corrente para tal serviço, da clientela assim indicada.
9º - Os arguidos tinham um amplo conhecimento da situação de saúde das pessoas visadas nos atestados em questão por força do exercício na área geográfica de residência de tais pessoas das respetivas atividades profissionais, sendo o dos médicos em contexto de Centro de saúde, urgências ou consultório privado.
10º - Atento esse conhecimento, não se verifica qualquer falsidade de atestado, tanto mais que aquilo que era atestado tinha por base, para além do já referido conhecimento advindo do contacto com as pessoas em contexto profissional, as declarações prestadas pelos próprios requerentes do atestado no momento em que davam início na agência F… ao processo de revalidação das cartas de condução, declarações essas prestadas por força de um extenso questionário acerca da sua situação de saúde a que eram sujeitos pelos responsáveis da agência.
11º Dos depoimentos das testemunhas, que servem de base para o tribunal dar como os provados e não provados os factos indicados, decorre que não é possível que o tribunal não tenha ficado com dúvidas sobre se os arguidos médicos ignoravam se os visados se encontravam nas condições que declaravam.
12º - Desses depoimentos, em traços gerais é possível extrair que:
- As testemunhas residiam na zona ou nas proximidades de Vale de Cambra, localidade onde se situava a agência F… e onde os arguidos médicos vivem e exerceram a sua profissão.
- As testemunhas conhecem os arguidos, quer sejam os gerentes da Agência F…, quer sejam os médicos em causa, quer todos eles.
- As testemunhas dirigiram-se à Agência F… para tratar da renovação da carta de condução;
- A algumas dessas testemunhas foi perguntado se tinham atestado médico, a outras foi perguntado se pretendiam que a agência diligenciasse pela sua obtenção;
- A maioria das testemunhas refere que lhes foram colocadas questões sobre o seu estado de saúde, terem sido apontadas as respostas, terem assinado uma declaração.
- As testemunhas referem terem dito a verdade sobre o que lhes foi perguntado.
- A maioria das testemunhas já renovou, em data posterior, a sua carta de condução, tendo obtido um atestado para tal e conduzindo actualmente.
- Todas as testemunhas a quem foi perguntado referem que não teriam qualquer problema em ir a uma consulta com o médico para obter o atestado, não pretendendo eximir-se a fazê-lo.
13º - Estes factos devem suscitar a dúvida acerca do conhecimento efetivo dos arguidos médicos acerca dos factos que atestaram nos atestados em causa.
14º - O Tribunal não pode afirmar, com a certeza exigível, que os arguidos médicos que emitiram os tais atestados ignoravam se os visados se encontravam nas condições que declaravam.
15º - Sendo certo que a dúvida assim gerada impõe o recurso ao princípio in dubio pro reo, e, consequentemente, não pode este Tribunal deixar de fixar tal matéria de facto em favor dos arguidos, dando-a como não provada.
16º - Em todos os casos que suscitaram dúvidas, os arguidos chamaram as pessoas ao seu consultório (verificando-se casos em que as pessoas comprovaram terem ido ao consultório dos médicos aqui arguidos) e, em alguns desses casos, não emitiram qualquer atestado.
17º - Além dos casos em que efectuaram consultas às testemunhas, os arguidos apenas emitiram os atestados nos casos em que não tiveram dúvidas e sempre acompanhados da informação clínica devidamente preenchida e assinada pelas pessoas em causa.
18º - Essa circunstância, juntamente com o facto de se tratarem de pessoas da terra, que conheciam, com quem se cruzavam, de quem foram médicos de família ou de seus familiares, muitos dos quais já tinham consultado (ainda que há algum tempo antes), levou a que os arguidos acreditassem que o que constava nessas fichas clínicas correspondia à verdade.
19º - Por esse motivo não surgiu durante todo o julgamento a descrição de qualquer situação que revelasse um qualquer incidente ao nível da condução das pessoas beneficiárias dos atestados em causa.
20º - As limitações constantes dos atestados não surgem por mero acaso, correspondendo às limitações que as pessoas tinham para conduzir.
21º - Não é uma mera coincidência o facto que a maioria das testemunhas tenha renovado, posteriormente, a sua carta de condução, tendo obtido um atestado para tal e conduzindo actualmente, porque dispunham dessas mesmas condições em 2013.
22º - Os arguidos são profissionais sérios, competentes, disponíveis, experientes, como decorre dos factos dados como provados nos pontos 22 a 26.
23º - Os arguidos, entretanto já reformados, tiveram um percurso de vida profissional incólume, que jamais colocariam em causa com os factos de que foram acusados.
24º - Os factos dados como provados na douta Sentença, e que sustentaram e conduziram à condenação dos arguidos, foram-no de forma errada, sendo evidente que o Tribunal não pode afirmar, com a certeza exigível, que os arguidos médicos emitiram os atestados ignorando se os visados se encontravam nas condições que declaravam.
25º - A dúvida assim gerada impõe o recurso ao princípio in dubio pro reo, e, consequentemente, não pode este Tribunal deixar de fixar tal matéria de facto em favor dos arguidos, dando-a como não provada.
26º - Não foi devidamente apreciada a prova produzida, pois a mesma impõe uma decisão diversa da recorrida, ou seja, a absolvição dos arguidos dos crimes de que foram acusados.
27º - As dúvidas existentes, em obediência ao princípio basilar “in dubio pro reo”, devem conduzir à absolvição dos arguidos.
28º - Deve ser devidamente reapreciada e ponderada a prova produzida e serem absolvidos os arguidos dos crimes pelos quais foram condenados, porquanto NÃO SE PROVARAM OS FACTOS QUE NO ACORDÃO RECORRIDO VÊM DADOS COMO PROVADOS acima descritos.
29º - Devendo, ao invés, darem-se como provados os factos supra mencionados.
30º - Sem prescindir, ainda que se considere que os recorrentes devam ser condenados pela prática do crime de Atestado Falso, discorda-se da medida da pena que lhe foi aplicada.
31º - Atendendo a todo o supra exposto, mormente ao contexto em que foram emitidos os atestados em causa, tanto a culpa como as necessidades de prevenção são diminutas, pelo que a pena concreta deverá situar-se próxima do limite mínimo.
32º - Os arguidos não agiram com dolo directo, tendo actuado na convicção de que aquilo que atestaram correspondia à verdade, não colocando a hipótese que assim não fosse, pois nesse caso não emitiriam qualquer atestado.
33º - Pelo que, no limite, agiram de forma negligente.
34º - Os arguidos prestaram declarações afirmando expressamente terem sido ingénuos, tendo consciência de que a forma como emitiram muitos dos atestados em causa não foi a mais correcta.
35º - A explicação e a contextualização de como ocorreram os factos não se traduzem numa ausência de interiorização do desvalor das suas condutas.
36º - Considerando as condições pessoais dos arguidos e a ausência de quaisquer antecedentes criminais, mais se justifica que a pena se situe próxima desse mínimo.
37º - Pelo que, ainda que se entenda condenar os arguidos pela prática de um crime continuado de Atestado Falso, a pena de multa a aplicar deverá ser sempre próxima do mínimo.”

Por sua vez, B… e C… inconformados apresentaram igualmente recurso a fls. 1170 e ss, com as seguintes conclusões (partes relevantes):
“1º - Vem o presente recurso interposto da, aliás douta, sentença, proferida a fls. dos autos, que, além do mais, condenou os Arguidos B… e C…, pela prática de um crime continuado de atestado falso, previsto e punido pelos artigos 14º, 26º, 28º, nº 1, 30º, nº 2 e 260º, nº 3, todos do Código Penal.
2º - Considerando os Arguidos não haver matéria de facto nem razões de direito que permitam sustentar a referida condenação e, desde logo, porque o tipo legal do dito crime só pode ser praticado por um específico agente que, ele sim, está vinculado a um dever especial de verdade.
3º - Além de que os elementos do tipo subjectivo do ilícito da norma do artº 260º, nº 1, do Cód. Penal exigem que o agente actue, pelo menos, prevendo que aquele atestado por ele passado possa não corresponder à verdade, conformando-se, ainda assim, com a sua realização.
4º - Os Arguidos B… e C…, não detendo nenhuma das qualidades profissionais mencionadas no artº 260º, nº 1, do Cód. Penal, não tendo emitido atestado algum nem se tendo arrogado tais qualidades ou funções, não são destinatários da norma incriminadora contida naquele artº 260.
5º - Nem tão-pouco podem ser condenados com base numa pretensa relação de comparticipação, assente na alegada existência de um plano conjunto entre todos os Arguidos que, em boa verdade, ninguém mencionou, descreveu ou demonstrou.
6º - Daí que, ante a inexistência de prova sobre a referida matéria, não seja possível concretizar os meios de prova que determinam decisão diversa no que à mesma refere, sendo possível afirmar, peremptoriamente, que os Arguidos não formaram um qualquer projecto criminosos nem distribuíram tarefas entre si.
7º - Já que o único acordo que os Arguidos fizeram (e resulta provado), foi o de que os Arguidos B… e mulher remeteriam para os co-Arguidos médicos os processos para emissão de atestados das pessoas que os não obtivessem por sua própria iniciativa, preenchendo aqueles a face do mod. de impresso do IMTT (que deve ser preenchida pelo interessado), “Exame Médico de Condutores ou Candidatos a Condutores de Veículos a Motor”, que os candidatos à revalidação da carta assinavam.
8º - Serviço pelo qual os co-Arguidos médicos cobrariam a quantia de 15,00€, por cada atestado emitido.
9º - Nenhuma outra “decisão conjunta” houve, nem qualquer “execução conjunta” ocorreu para além dessa e, concretamente, nada os Arguidos B… e C… acordaram com os demais Arguidos acerca da necessidade, ou não, de se avaliar presencialmente as condições físicas e mentais dos interessados.
10º - Seja como for, a tese do acordo com vista à emissão dos atestados médicos sem avaliação presencial dos interessados é desmentida pelo facto de cerca de 5% das testemunhas inquiridas (descontando as que disseram não se recordar ou cujo depoimento foi impreciso e/ou contraditório) terem afirmado ter sido consultadas por um dos médicos – para além das que o d. despacho de arquivamento descreve como tendo confirmado ter sido observadas pelos médicos co-Arguidos aquando da emissão dos respectivos atestados (e das que disseram não se recordar desse facto).
11º - A comparticipação criminosa sob a forma de co-autoria baseia-se na existência de uma acção conjunta, assente na divisão do trabalho e na distribuição funcional dos papéis, com vista à obtenção de um resultado, o que neste caso concreto não se verifica nem os Arguidos B… e C… executavam por si o facto materialmente relevante ou tinham domínio algum do mesmo.
12º - Aqui chegados, importa efectuar a valoração autónoma da conduta individual de cada comparticipante nos factos olhando, com a devida lucidez e como um trabalho de filigrana, para o comportamento de cada um dos Arguidos.
13º - Donde se conclui que o simples desempenho de tarefas administrativas (preenchimento de impressos e encaminhamento para um determinado médico mediante prévia ajuste de preço, do qual não recebiam percentagem alguma), sem a prova de qualquer conformação dirigida ao facto, não constitui elemento do tipo de crime nem revela a dita comparticipação.
14º - Não resultando demonstrada a existência dessa consciência de cooperação na acção comum que, no plano subjectivo, é imprescindível ao sancionamento criminal da comparticipação em co-autoria.
15º - Ou seja, e em síntese, não foi produzida nos autos prova suficiente para sustentar a condenação dos Arguidos, ora Recorrentes, desde logo pelo não preenchimento do elemento do tipo objectivo e subjectivo de tal crime.
16º - E, de qualquer modo, por força do princípio in dúbio pro reo, enquanto regra de apreciação da prova decorrente da presunção de inocência, e que constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido sempre que, como no caso presente, se suscitem dúvidas acerca dos factos decisivos para a decisão de condenação, sempre os Arguidos B… e C… devem ser absolvidos da prática do crime por que vêm condenados.
17º - Tanto mais quanto se provou que tais Arguidos não têm antecedentes criminais (ptº 27, “Factos Provados”, II, 1.), são pessoas honestas, educadas, pacatas, trabalhadoras (ptº 20, idem), respeitadas pelas pessoas das suas relações de vizinhança, amizade e conhecimento (ibidem), que sentem enorme vergonha, sofrimento e transtornos com a pendência do presente processo (ptº 21, também aí) e que cessaram a actividade a que se dedicavam (ptº 18, in fine, ibidem), encontrando-se os dois reformados.
18º - Decidindo em contrário, a douta sentença recorrida fez incorrecta apreciação dos factos e errada aplicação da lei, violando, entre outros, o disposto nos artºs 14º, 26º, 28º, nº 1, 30º, nº 2, e 260º, nº 3, todos do Código Penal.”

O M.P. respondeu aos recursos interpostos nos termos que constam de fls. 1182 e ss, pugnando pelas suas improcedências.

Neste tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto no parecer que emitiu e que se encontra a folhas 1207 e ss, pugnou pela parcial procedência do recurso do M.P. e pela total improcedência dos recursos dos arguidos.

Cumprido o preceituado no artigo 417º número 2 do Código Processo Penal nada veio a ser acrescentado de relevante no processo.

Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.

Nada obsta ao conhecimento do mérito.
II. Objeto do recurso e sua apreciação.
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar (Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP.

Matéria de facto.

Impugnação da decisão sobre a matéria de facto, negando, em suma e sucintamente a prática da conduta delituosa que lhes é imputada.

Matéria de direito.

In dubio pro reo.

Comunicabilidade da qualidade de coautor.

Pluralidade de crimes e preenchimento dos pressupostos do crime continuado.

Declaração de perda a favor do Estado das quantias recebidas pelos arguidos médicos pela emissão de atestados falsos.

Medida concreta da pena.

Do enquadramento dos factos dados como provados.
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Da autoria.
Na tese dos arguidos B… e C…, nunca poderiam ser coautores de tal crime, visto este tipo legal de crime só poder, pela sua especificidade, ser cometido por médico, dentista, parteira, dirigente ou empregado de laboratório ou de instituição de investigação que sirva fins médicos ou pessoa encarregada de fazer autópsias, sendo certo que os ora recorrente não exercem, nem nunca exerceram qualquer destas funções, nem para tal possuem sequer habilitações.
Quid juris?
Segundo HELENA MONIZ [In “O Crime de Falsificação de Documentos. Da Falsificação Intelectual e da Falsidade em Documento”, 1999, p. 247.], uma das razões que levou o legislador a autonomizar este tipo legal de crime atualmente descrito no art. 260º, nº 1, do Código Penal de 1995 (disposição correspondente, embora com ligeiras alterações formais e nas molduras penais, ao art. 234º, nº 1, do Cód. Penal de 1982, na sua versão originária) relativamente ao tipo base da falsificação de documentos (atualmente descrito no art. 256º do Código Penal de 1995 e originariamente previsto no art. 228º do Cód. Penal de 1982) está em que se trata «de um tipo legal de crime que deverá ser praticado por um específico agente». Estamos perante «um crime específico próprio, dado que o agente do crime não poderá ser uma qualquer pessoa, mas sim uma pessoa com especiais características – terá que ser um “médico, dentista, enfermeiro, parteira, dirigente ou empregado de laboratório ou de instituição de investigação que sirva fins médicos, ou pessoa encarregada de fazer autópsias» [HELENA MONIZ in “O Crime de Falsificação de Documentos” cit., p. 245.]. Este específico agente «tem um dever especial de dizer a verdade; além de que a sua conduta no caso em apreço não se resume a uma incorporação num escrito de um facto falso, pois, também, ele atesta ou certifica falsamente» [HELENA MONIZ in “O Crime de Falsificação de Documentos” cit., p. 247.].
«Considerando que os crimes específicos próprios são aqueles em que a qualidade do agente é que justifica a criação autónoma do tipo, e considerando que o crime específico impróprio é aquele em que a qualidade do agente apenas determinou uma agravação da pena, parece que estamos perante um crime específico próprio» [HELENA MONIZ in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, “Parte Especial”, Tomo II, Artigos 202º A 307º, 1999, p. 728.]
Porém, a mera circunstância de o tipo legal de crime descrito no cit. art. 260º-1 do Código Penal vigente ser um crime específico próprio, isto é, um crime cujo agente não pode ser uma pessoa qualquer, antes tem de ser uma pessoa com especiais características, não consequência, necessariamente, que os coarguidos ora Recorrentes não possam ser havidos como coautores ou cúmplices de um tal crime, dado eles não serem médicos, nem dentistas, nem enfermeiros, nem parteiras, nem dirigentes ou empregados de laboratório ou de instituição de investigação que sirva fins médicos, nem pessoas encarregadas de fazer autópsias. Efetivamente, o art. 28º, nº 1, do Cód. Penal estatui precisamente que, em situações de comparticipação (ou seja, de pluralidade de agentes: coautoria, autor(es) e cúmplice(s), autor(es) e instigador(es) e autor mediato e executor material ou autor mediato e autor imediato não plenamente responsável) em factos cuja ilicitude ou grau de ilicitude dependa de qualidades ou relações especiais do agente, basta que um deles as detenha para que a pena aplicável se estenda a todos os outros.
«As qualidades ou relações especiais fundamentadoras ou modificativas do grau da ilicitude são “elementos pessoais” (art. 12º, nº 1, a) do Cód. Penal), que ao serem exigidos pelo tipo incriminador significam que o círculo dos potenciais autores deixa de ser indeterminado, como é na generalidade dos casos em que a lei usa expressões como “quem” ou “aquele que”» [TERESA PIZARRO BELEZA in “Ilicitamente Comparticipando – O Âmbito de Aplicação do ART. 28º do Código Penal”, Estudos em Homenagem ao Prof. Eduardo Correia, III, 1984, p. 593.]. «São elementos ou requisitos de “idoneidade típica”, cuja ausência determina o carácter atípico do comportamento» [TERESA PIZARRO BELEZA, ibidem].
De facto, «as normas incriminadoras da parte especial do Código Penal não exigem, em geral, qualquer elemento típico do agente, pelo que pode ser sujeito activo do crime qualquer pessoa» [HENRIQUE SALINAS MONTEIRO in “A Comparticipação em Crimes Especiais no Código Penal”, 1999, p. 11.]. «Noutros casos, porém, excepcionalmente, mas não raramente, verifica-se, em certas normas incriminadoras, uma restrição do círculo dos possíveis agentes» [HENRIQUE SALINAS MONTEIRO, ibidem.]. «As normas incriminadoras em que esta restrição do círculo de agentes existe são em geral designadas crimes especiais ou próprios, dando assim origem a tipos especiais» [HENRIQUE SALINAS MONTEIRO, ibidem].
Todavia, «a mera restrição do círculo de agentes não basta (…) para caracterizar devidamente os crimes especiais; se assim fosse, o conceito tornar-se-ia demasiado amplo, permitindo a inclusão no seu âmbito de realidades completamente distintas» e, «em consequência, ficaria sem qualquer utilidade prática» [HENRIQUE SALINAS MONTEIRO in “A Comparticipação…” cit., p. 13.]
Segundo HENRIQUE SALINAS MONTEIRO [In “A Comparticipação…” cit., p. 16.], «o núcleo definidor dos crimes especiais é o dever jurídico, que só vincula certas pessoas e cuja violação é sancionada penalmente no tipo respectivo». «Daqui resulta, necessariamente, uma restrição do círculo de possíveis agentes àqueles que se encontrem vinculados ao dever específico» [Ibidem.]. «A existência deste dever específico pode ser revelada por diferentes vias: pela circunstância de constituírem elementos do tipo determinadas qualidades pessoais do agente; mediante a descrição, no tipo, do dever específico; ou através da descrição típica de uma situação de facto que é a fonte desse dever» [Ibidem.]
Segundo TERESA PIZARRO BELEZA [In loc. cit., p. 594.], casos possíveis dessas qualidades ou relações especiais exigidas pelo tipo incriminador especial são, nomeadamente:
a) Qualidades profissionais: funcionário, médico, comerciante, advogado, solicitador, médico analista ou empregado de laboratório, farmacêutico ou empregado de farmacêutico, perito, técnico, tradutor, etc.;
b) Qualidades que resultam da prática esporádica de atos que vinculam a deveres especiais: testemunha, declarante;
c) Qualidades derivadas da prática de crimes: habitualidade ou profissionalismo;
d) Relações familiares: ascendente, descendente, cônjuge, marido, parente em segundo grau, etc.;
e) Relações de trabalho, de dependência hierárquica ou de guarda, educação ou proteção;
f) Relações com certas pessoas que fundamentem um dever jurídico de pessoalmente evitar resultados danosos contidos em tipos legais de crime (art. 10º), isto é, fontes de “dever de garante” (algumas relações familiares, por exemplo, ou relações de guarda e proteção).
Ora, quando colaboram na prática do mesmo crime agentes vinculados ao mencionado dever especial e agentes não vinculados àquele dever, põe-se o problema de saber se todos eles poderão ser punidos pelo crime especial, apesar de apenas alguns deles estarem vinculados ao dever especial cuja violação é sancionada pela incriminação. É deste problema que precisamente se ocupa o cit. art. 28º, nº 1, consagrando a regra da comunicabilidade ou transmissibilidade da ilicitude na comparticipação criminosa em crimes próprios.
De notar que - como põe em evidência HENRIQUE SALINAS MONTEIRO [In “A Comparticipação…” cit., p. 69.] -, embora este artigo 28º tenha por epígrafe “Ilicitude na comparticipação”, o seu âmbito é, afinal mais restrito: «esta restrição do âmbito de aplicação do artigo 28º resulta de, nos termos da própria letra da lei, esta norma apenas regular a ilicitude na comparticipação nos casos em que esta ilicitude (ou o seu grau) está dependente da existência de certas “qualidades ou relações especiais”».
Procurando delimitar este conceito, em ordem a traçar os limites do campo de aplicação do cit. art. 28º, o mesmo Autor acaba por concluir o seguinte [In “A Comparticipação…” cit., p. 92.]:
«Em primeiro lugar, da referência expressa à pessoa do agente resulta que estão fora do âmbito de aplicação do artigo 28º do Código Penal os elementos do tipo que não se lhe refiram, correspondentes aos que o legislador do Código Penal de 1886 incluía, segundo certa doutrina, no campo de aplicação do artigo 31º, ou seja, as então denominadas “circunstâncias relativas ao facto”».
«Por outro lado, nem todos os elementos do tipo relacionados com a pessoa do agente devem ser incluídos no âmbito de aplicação do artigo 28º do Código Penal»[ HENRIQUE SALINAS MONTEIRO, ibidem.]. «Só estão aí em causa “qualidades ou relações pessoais” e portanto excluem-se os estados de espírito, intenções, fins específicos, como a “avidez”, o “prazer de matar”, o “motivo torpe ou fútil” artigo 132º, nº 2, alínea c) do Código Penal, a “ilegítima intenção de apropriação” artigo 203º; artigo 210º do Código Penal, a “intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo” artigo 217º do Código Penal, que não podem considerar-se “qualidades ou relações especiais”».
Ainda assim, «nem todas as “qualidades ou relações especiais” atrás referidas estão submetidas ao âmbito de aplicação do artigo 28º do Código Penal»[ HENRIQUE SALINAS MONTEIRO in “A Comparticipação…” cit., p. 94.]. Por um lado, «ficam de fora do domínio do artigo 28º do Código Penal todas as “qualidades ou relações pessoais” que não influenciem a “ilicitude” ou o “grau de ilicitude” do facto, como sejam aquelas cuja relevância se traduza em causas de isenção ou dispensa de pena, ou em condições de procedibilidade»; «por outro lado, estão também fora do âmbito de aplicação do artigo 28º do Código Penal as “qualidades e relações especiais” que não respeitem à “ilicitude” ou ao “grau de ilicitude” do facto, mas antes à culpa» [HENRIQUE SALINAS MONTEIRO, ibidem.], às quais é aplicável o artigo 29º do mesmo Código [«Assim, se num determinado tipo legal existirem “qualidades ou relações pessoais” que digam respeito à culpa, será aplicável o artigo 29º do Código Penal, o que conduz a que apenas possam ser punidos por esse tipo os comparticipantes nos quais essas “qualidades ou relações” se verifiquem» (HENRIQUE SALINAS MONTEIRO in “A Comparticipação…” cit., p. 95). «Se as “qualidades ou relações especiais” fundamentarem o juízo de culpa, os comparticipantes que não as possuam ficarão impunes; se apenas revelarem uma maior ou menor culpabilidade, o tipo legal respectivo só será aplicável aos comparticipantes em relação aos quais se demonstre terem as “qualidades ou relações especiais”» (ibidem). Daí que «é sempre relevante, no Código Penal português, saber se as “qualidades ou relações pessoais” dizem respeito à ilicitude – caso em que será aplicável o artigo 28º, com a consequente aplicabilidade do tipo legal respectivo a todos os comparticipantes – ou à culpa – caso em que será aplicável o artigo 29º, pelo que o tipo legal que contenha tais qualidades só será aplicável aos comparticipantes em que estas se verifiquem» (ibidem).]
De todo o modo, dúvidas não existem que, no tipo legal de crime descrito no artigo 260º, nº 1, do Cód. Penal, médico, dentista, enfermeiro, parteira, dirigente ou empregado de laboratório ou de instituição de investigação que sirva fins médicos e pessoa encarregada de fazer autópsias constituem “qualidades ou relações pessoais”, nos termos e para os efeitos do cit. artigo 28º-1 do mesmo Código [Cfr., explicitamente neste sentido, HENRIQUE SALINAS MONTEIRO (in “A Comparticipação…” cit., p. 93).].
Finalmente, a despeito das divergências existentes na doutrina acerca da fundamentação apresentada para tal solução, todos os autores estão de acordo quanto à solução final a dar às hipóteses de comparticipação em crimes especiais de executores intranei e extranei não executores: «na verdade, as hipóteses de comparticipação em crimes especiais nas quais intervêm executores intranei e extranei não executores (…) são consensualmente resolvidas mediante a punição pelo crime especial de todos os intervenientes, intranei e extranei» [HENRIQUE SALINAS MONTEIRO in “A Comparticipação…” cit., p. 142.]. Designadamente, «todos estão de acordo em considerar que o cúmplice e o instigador extranei devem ser punidos pelo crime especial se o executor for um intaneus» [HENRIQUE SALINAS MONTEIRO in “A Comparticipação…” cit., p. 149.].
Por outro lado, inexiste qualquer divergência entre os autores quanto à aplicabilidade do cit. art. 28º, nº 1, do Cód. Penal aos casos de comparticipação em crimes especiais de executores extranei e cúmplices ou instigadores intranei [Cfr., neste sentido, HENRIQUE SALINAS MONTEIRO in “A Comparticipação…” cit., pp. 180-181.]. «Deste modo, se um cúmplice ou um instigador for intraneus também o executor extraneus responderá pelo crime especial» [HENRIQUE SALINAS MONTEIRO in “A Comparticipação…” cit., p. 184.]. O que, de resto, se afigura ser um resultado justo, se se tiver presente que «o executor imediato, apesar de ser um extraneus, adopta uma conduta que seria considerada verdadeira autoria, de acordo com os critérios gerais vigentes na matéria» [HENRIQUE SALINAS MONTEIRO in “A Comparticipação…” cit., p. 186.].
E «caem também no âmbito de aplicação do artigo 28º, nº 1, do Código Penal as situações de comparticipação em crimes especiais em que intervêm um executor extraneus, um cúmplice ou instigador intraneus e um cúmplice ou instigador extraneus, não existindo aqui divergência entre a doutrina que se tem pronunciado sobre o âmbito de aplicação desta norma» [HENRIQUE SALINAS MONTEIRO in “A Comparticipação…” cit., pp. 200-201.]. «Assim, basta para que todos os comparticipantes respondam pelo crime especial, próprio ou impróprio, que seja intraneus um cúmplice ou um instigador, ainda que o executor e os outros cúmplices ou instigadores sejam extranei» [HENRIQUE SALINAS MONTEIRO in “A Comparticipação…” cit., p. 201.]
Finalmente, «a execução conjunta de intranei e extranei em crimes especiais está também incluída no âmbito de aplicação do artigo 28º, nº 1, do Código Penal», visto que «a co-autoria é também uma modalidade de “comparticipação”, bastando, em consequência, que um dos co-autores seja intraneus para tornar aplicável a disciplina jurídica constante do artigo 28º, nº 1, do Código Penal»[ HENRIQUE SALINAS MONTEIRO in “A Comparticipação…” cit., p. 201in “A Comparticipação…” cit., p. 215.]. «Assim, nos termos deste preceito, basta que um dos co-autores seja intraneus para que todos respondam pelo crime especial» [HENRIQUE SALINAS MONTEIRO, ibidem.].
Aliás, que assim é, isto é, que o cit. art. 28º-1 é aplicável à coautoria em crimes especiais, é algo que é defendido mesmo pelos autores – como CAVALEIRO DE FERREIRA e FIGUEIREDO DIAS - que interpretam aquele preceito no sentido de ele só ser invocável quando um executor é intraneus. «Com efeito, estas situações representariam mesmo, nesta interpretação, as únicas hipóteses de aplicação do artigo 28º, nº 1, do Código Penal, já que as restantes situações de comparticipação em crimes especiais ou seriam resolvidas por aplicação do princípio da acessoriedade, ou ficariam sem resolução legal expressa» [HENRIQUE SALINAS MONTEIRO, ibidem].
Ora, o caso dos autos reconduz-se precisamente a uma hipótese de execução conjunta de intranei e extranei num crime especial.
Efetivamente, está provado que os arguidos D… e E… (que são médicos de profissão) acordaram com os coarguidos B… e C… (que são sócios de uma agência que entre outras atividades revalidava cartas de condução, passar atestados médicos necessários aos clientes que recorriam à agência, recebendo como contrapartida monetária €15,00, tendo os arguidos combinado entre si que os primeiros passariam os referenciados atestados sem fazer os respetivos exames médicos. Ora, tal acordo perdurou durante um período de tempo que não foi possível apurar com precisão, mas que se prolongou, pelo menos até ao ano de 2013 inclusive e, no âmbito do mesmo, os primeiros arguidos subscreveu um número considerável, pelo menos 85 de atestados médicos, mas, para efeitos de revalidação da carta de condução de veículos, os quais eram enviados ao IMTT pelos segundo arguidos depois de os recolherem no consultório dos primeiros, atestando que os clientes não apresentavam alterações de visão e tinham aptidão física e mental para a condução de veículos automóveis ou de motociclos, consoante os casos, sem restrições, sendo que o os primeiros arguidos emitiram os referidos atestados sem ter efetuado exame médico específico, o que faziam com o conhecimento e o consentimento e acordo dos segundo arguidos.
Situação que teve lugar em execução duma combinação previamente estabelecida entre aqueles, nos termos do qual os primeiros se comprometeram a passar atestados médicos necessários à atividade da agência, recebendo contrapartida monetária, sem fazer os respetivos exames médicos, sendo, portanto, os segundos arguidos coautores de tal infração, nos termos do art. 26º do Cód. Penal, a circunstância de ele não possuir a qualidade especial de médico exigida pelo tipo incriminador do art. 260º-1 do mesmo diploma não impede a aplicação a ele da pena cominada neste preceito, mercê da regra contida no cit. art. 28º-1 do mesmo Código.
É certo que a disciplina resultante deste art. 28º-1 do Cód. Penal encontra limites, um dos quais consta da parte final do mesmo preceito, onde se determina que a consequência jurídica estabelecida na sua 1ª parte (ser suficiente, nos casos de comparticipação em crimes especiais, que um dos comparticipantes seja intraneus para que a pena do crime especial seja aplicável a todos) não se desencadeia “se outra for a intenção da norma incriminadora”.
Esta ressalva da parte final do nº 1 do art. 28º do Cód. Penal à aplicabilidade da consequência jurídica estatuída na primeira parte do mesmo preceito teve a sua origem nos casos de comparticipação em crimes de mão própria, embora tivesse sido admitida a possibilidade de a ela se recorrer noutras hipóteses [Cfr., neste sentido, HENRIQUE SALINAS MONTEIRO in “A Comparticipação…” cit., pp. 243 a 245.].
«O ponto de partida para a exclusão da aplicação da consequência jurídica do artigo 28º, nº 1, 1ª parte, do Código Penal, aos casos de comparticipação em “crimes de mão própria”, parece residir na circunstância de estes crimes apenas poderem ser cometidos mediante uma execução corporal de certas pessoas» [HENRIQUE SALINAS MONTEIRO in “A Comparticipação…” cit., p. 245.]. «O tipo exige, assim, não apenas a violação de um dever especial, mas também que essa violação seja realizada corporalmente pelo intraneus» [HENRIQUE SALINAS MONTEIRO, ibidem].
Segundo FIGUEIREDO DIAS [In “Textos de Direito Penal. Doutrina geral do crime”, Lições ao 3º ano da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, elaboradas com a colaboração de Nuno Brandão, Coimbra, 2001, pp. 28-29.], crimes de mão própria são «os tipos de ilícito em que o preceito legal quer abranger como autores apenas aqueles que levam a cabo a acção através da sua própria pessoa, não através de outrem; quer abranger apenas pois, em princípio, os autores imediatos, ficando excluída a possibilidade da autoria mediata; e mesmo da coautoria relativamente àqueles comparticipantes que não tenham chegado a executar por próprias mãos a conduta típica, não podendo, por isso, nestes casos, verificar-se a “comunicabilidade” a que se refere o art. 28º (cf. a parte final do nº 1: “excepto se outra for a intenção da norma incriminadora”)». «É o caso, v.g., dos arts. 165º e 166º: só quem pratica, por si mesmo, o acto sexual incriminado pode ser considerado autor; como é o caso do art. 295º relativo à auto-colocação em estado de inimputabilidade através da ingestão ou consumo de bebidas alcoólicas ou de substância tóxica» [FIGUEIREDO DIAS, ibidem.]
Ora o tipo legal de crime descrito no cit. art. 260º, nº 1, do Cód. Penal não figura, seguramente, entre os crimes de mão própria. Aquele delito é, isso sim, um crime específico próprio, isto é, um crime cujo tipo legal exige a intervenção de pessoas dum certo círculo, detentoras de certas qualidades especiais (cfr., supra). Porém, crimes próprios e crimes de mão própria são conceitos distintos, que se não confundem, nem identificam.
Como assim, não opera, in casu, a ressalva contida na parte final do cit. art. 28º-1 do Cód. Penal e, portanto, apesar de apenas dois dos quatro coautores do crime de passagem de atestado falso ser intraneus (os médicos de profissão), os outros (donos da agência) não deixam de responder por tal crime, nos termos da regra da comunicabilidade estabelecida na 1ª parte daquele preceito. Ver a respeito. AC.RP.17.03.04 in WWWDGSI.
Não têm, pois, razão os recorrentes, nesta parte.
Do crime continuado.

Refere o M.P da 1ª instância “Entendeu O Tribunal a quo que deveriam as condutas de todos os arguidos ser punidas no âmbito do crime continuado uma vez que tais condutas teriam sido levadas a cabo de forma homogénea, preenchendo crimes que protegiam o mesmo bem jurídico (o que admitimos) e no quadro de uma solicitação de uma situação exterior que diminuiu consideravelmente a culpa dos agentes. Ora, é neste ponto que discordamos da sentença recorrida. Na verdade, o Tribunal entendeu que a circunstância de os arguidos terem "amplo conhecimento da população do município" configuraria a tal solicitação de uma mesma situação exterior que diminuiu consideravelmente a culpa.
Ora, antes de mais, o conhecimento da população por parte dos arguidos não configura uma situação exterior a eles, já que se reporta a uma característica dos próprios. Acresce que, não vemos como· é que esse conhecimento da população pode justificar um entendimento segundo o qual a culpa dos arguidos diminuiu consideravelmente ao longo da execução dos factos. Tanto mais que não se demonstrou que tivesse havido qualquer solicitação externa aos arguidos, nomeadamente da parte dos beneficiários dos atestados, que tenha colocado os arguidos numa posição de menor exigibilidade no que respeita ao dever de atuar conforme o Direito.
É esta constante renovação da resolução criminosa, devida às solicitações externas exercidas sobre o agente, que justifica e legitima a atenuação da culpa, coisa que não sucede sempre que a repetição da conduta criminosa seja devida a outros factores, como uma tendência da personalidade ou quando a oportunidade de cometer o delito seja provocada e procurada pelo próprio agente.
O que resultou do julgamento e nomeadamente ficou assente na factualidade provada foi que os quatro arguidos acordaram entre si que sempre que os requerentes da revalidação da carta de condução não estivessem munidos do necessária atestado médico, os arguidos médicos se comprometiam a passar aquele mesmo atestado. Ou seja, os arguidos combinaram entre si que, verificadas que fossem determinadas circunstâncias, os mesmos praticariam o crime em causa. Em nenhum momento as várias resoluções criminosas Que foram tomando foram determinadas ou devidas a factores externos a eles.
Ou seja, o desígnio foi inicialmente formulado pelos quatro arguidos nestes termos, pelo que não ocorreu, durante a execução dos factos, qualquer circunstância exterior ao acordo prévio entre os arguidos que possa fundar uma diminuição da culpa destes.”
Esta posição não é sufragada pelos arguidos.
Consideremos.
São requisitos do crime continuado descritos nos nºs 2 e 3 do artigo 30º, do Código Penal: a) A realização plúrima de violação típicas do mesmo bem jurídico, desde que este não proteja bens eminentemente pessoais. b) Execução essencialmente homogénea das sobreditas violações. c) No quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que lhe diminua consideravelmente a culpa. d) Um elemento subjetivo que se há de estender à inteira relação de continuação, abrangendo as hipóteses de um dolo conjunto (planeamento prévio pelo agente das diversas resoluções típicas) ou de um dolo continuado (o plano do agente de que repetiria a realização típica sempre que a ocasião se proporcionasse), com exceção de crimes eminentemente pessoais.
O crime continuado distingue-se do concurso real de crimes apenas em razão dos elementos aglutinadores que a lei prevê: unidade do bem jurídico protegido, execução por forma essencialmente homogénea e diminuição considerável da culpa em razão de uma mesma situação exterior. Ver Ac. Rc de 08-11-2017 in WWWDGSI.pt.
Refere o Prof. Germano Marques da Silva em “Direito Penal Português, Parte Geral – II Teoria do Crime”, Verbo, 1998, págs 315 e ss, que “(...) como nota característica do crime continuado destaca-se uma pluralidade de acções que, naturalisticamente consideradas, podem constituir o corpus de uma pluralidade de crimes, tantos quantas as acções, mas que a lei unifica e trata como um crime só.
(...)
O crime continuado distingue-se do concurso real de crimes apenas em razão dos elementos aglutinadores que a lei prevê: unidade do bem jurídico protegido, execução por forma essencialmente homogénea e diminuição considerável da culpa em razão de uma mesma situação exterior.
(...)
No crime continuado não há apenas uma resolução criminosa, mas tantas resoluções quantas as condutas que o integram, de tal modo que cada conduta parcelar constitui materialmente um crime autónomo, apenas unificado para efeitos punitivos e de sorte que a não verificação de um dos pressupostos que determinam a unificação se verificará uma pluralidade de crimes em concurso real.
(...)
O elemento verdadeiramente determinante do conceito de crime continuado é a diminuição considerável da culpa do agente no caso concreto, determinada pela disposição exterior das coisas para o facto (...)”.
E ainda:
“(...) Têm deste modo de se conjugar todos os elementos (...) apontados não só com uma certa homogeneidade, que pode ganhar relevância à luz de um critério espaço-temporal, pelo menos como ponto de referência negativo, mas também com o circunstancialismo exógeno que faça consideravelmente diminuir a culpa do agente. E é neste específico ponto que se toca o essencial. É justamente em homenagem a uma ideia de menor exigibilidade que o crime continuado ganha solidez dogmática, mesmo que só se admita, no plano subjectivo uma “linha psicológica continuada” (...)” (“Formas do Crime” – J.F.Faria Costa, em “Jornadas de Direito Criminal - O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar”, Fase I, CEJ, pág.183).
Na jurisprudência encontramos a seguinte posição:
- Ac. TRE de 6-10-2012:
“I. A pedra de toque do crime continuado, que lhe determina os limites e lhe configura a natureza, está na circunstância da acção se desenrolar no quadro de uma situação exterior ao agente, de forma a poder dizer-se que era para este cada vez menos exigível que se comportasse de acordo com o direito.
- Ac. TRL de 13-04-2011:
XV. No crime continuado encontramo-nos diante de uma pluralidade de factos aos que, por força da lei, corresponde uma unidade de acção e portanto o tratamento como um único crime. O crime continuado pode entender-se como uma pluralidade de acções semelhantes objectiva e subjectivamente, que são objecto de valoração jurídica unitária.
XVI. Na figura do crime continuado consideram-se os casos de pluralidade de acções homogéneas que, apesar de enquadrar cada uma delas no mesmo tipo penal ou em tipos penais com igual núcleo típico, uma vez realizada a primeira, as posteriores se apreciam como a sua continuação, apresentando assim uma dependência ou vinculação em virtude da qual se submetem a um único desvalor normativo, que as reduz a uma unidade delitiva.
XVII. O cerne do crime continuado, o seu traço distintivo, à luz do qual todos os outros orbitam parece situar-se na existência de uma circunstância exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente. O quid essencial está em saber em que medida a solicitação externa diminui a censura que determinada(s) conduta(s) merece(m).
XVIII. Só ocorrerá diminuição sensível da culpa do agente, tradutora de uma menor exigibilidade para que o agente actue de forma conforme ao direito, quando essa tal circunstância exógena se lhe apresenta, nas palavras impressivas de Eduardo Correia, de fora, não sendo o agente o veículo através do qual a oportunidade criminosa se encontra de novo à sua mercê.
XIX. Sempre que as circunstâncias exógenas ou exteriores não surgem por acaso, em termos de facilitarem ou arrastarem o agente para a reiteração da sua conduta criminosa é de concluir pela existência de concurso real de crimes.”
Fazendo a necessária subsunção jurídica dos factos provados aos requisitos exigidos para que de crime continuado se trate, verificamos o seguinte:
Quanto ao primeiro dos pressupostos, entende-se que o mesmo se mostrará verificado, na medida em que existem distintas resoluções criminosas na conduta dos arguidos lesivas dos mesmos bens jurídicos.
Quanto à execução essencialmente homogénea, entende-se que este pressuposto se mostra igualmente verificado, encaminhamento de questionário para os médicos e elaboração de atestado sem prévio exame.
Quanto ao requisito de os factos terem sido praticados no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que lhe diminua consideravelmente a culpa, entendemos que não se verifica.
Sobre este requisito pronuncia-se Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal, 2ª Ed., pág. 162, afirmando:
A diminuição sensível da culpa só tem lugar quando a ocasião favorável à prática do crime se repete sem que o agente tenha contribuído para essa repetição. É o que sucede quando o agente depara repetidamente com um meio facilitador da prática do crime, como uma janela ou uma porta aberta. Isto é quando a ocasião se proporciona e não quando ele activamente a provoca. No caso do agente provocar a repetição da ocasião criminosa, por exemplo, procurando de novo a vítima no local onde ela se encontra, não há diminuição sensível da culpa. Também não há diminuição sensível da culpa quando o agente engendra ou fabrica o meio apto para realizar o crime (…). Em todos estes casos a culpa pode até ser mais grave, por revelar firmeza e persistência do propósito criminoso.Também afasta a culpa diminuta a circunstância de o agente ter sido advertido por algum órgão do estado ou particular durante a repetição dos factos, uma vez que ele não se deixou motivar pelos valores da ordem jurídica apesar de eles lhe terem sido lembrados.”
Este exemplo clarifica o presente caso para se concluir que inexiste a situação exterior que possa facilitar ou tivesse facilitado a execução dos crimes pelos arguidos, não bastando para o seu preenchimento dizer- se os mesmos tinham conhecimento o tipo de população do município.
Como refere o recorrente Ministério Público, “decorre efectivamente da matéria de facto provada que os arguidos praticaram os factos, através de várias resoluções criminosas, sem que qualquer circunstancialismo externo se vislumbre, que lhes tenha facilitado, propiciado, esta repetição de condutas, desse modo lhes diminuindo a culpa.”
E não é, de todo, a alegada circunstância de conhecer a população do município, que de algum modo possa atender-se no sentido de justificar a repetição dos atos, para efeitos de diminuição da culpa da arguida.
Na verdade, o que temos é uma determinada atividade exercida pelos arguidos, ao longo de um tempo considerável, de modo a agilizar o processo de revalidação de carta de condução sem recurso à sujeição a exame médico dos candidatos que procuravam a agência.
É necessário ser rigoroso na aferição dos requisitos de que depende a figura do crime continuado, sob pena de se premiar e promoverem as carreiras criminosas longas.
É que se o agente concorre para a existência daquele quadro ou condicionalismo exterior está a criar condições de que não pode aproveitar-se para que possa dizer-se verificada a figura legal da continuação criminosa.
É esse o entendimento da jurisprudência dominante ao afirmar que inexiste crime continuado, “quando as circunstâncias exógenas ou exteriores não surgem por acaso, em termos de facilitarem ou arrastarem o agente para a reiteração da sua conduta criminosa, mas pelo contrário, são conscientemente procuradas e criadas pelo agente para concretizar a sua intenção criminosa” – cf. Acs. do STJ de 10-12-1997, Proc. Nº 1192/97, de 07-03-2001 e de 12-06-2002, in SASTJ, nºs 49 e 62, respectivamente (...)” – ACSTJ de 19-03-2009.
Os arguidos gizaram um acordo para que os clientes que se deslocassem à agência F…, fossem por regra dispensados de consulta médica e respetivo exame, emitindo-se atestados sem observação física médica daqueles.
Note-se o ponto 8 a 10 dos factos provados e 14. “8. Em data não concretamente apurada, os arguidos D… e C… acordaram com os arguidos D… e E… que, nos processos de revalidação de cartas de condução que tratassem e em que os requerentes não estivessem munidos do necessário atestado médico, os segundos passariam o atestado em causa, sem necessidade de, aquando da sua emissão, avaliarem presencialmente se os seus beneficiários dispunham das condições físicas e mentais legalmente exigidas.
9. Em contrapartida, os arguidos B… e C… entregariam aos arguidos D… e E… o valor de 15,00€ (quinze euros) por cada atestado emitido.
10. Assim, na prossecução de tal plano conjunto, no decurso do ano de 2013, pelo menos uma vez por semana, a arguida C… dirigiu-se ao consultório particular dos arguidos D… e E…, sito na Travessa …, Rua …, na cidade de Vale de Cambra, local onde deixava os requerimentos para revalidação de títulos de condução, tendo em vista a emissão dos necessários atestados médicos, aí regressando um ou dois dias depois, para os levantar, entregando então a quantia acordada destinada aos arguidos D… e E….
14. Todos os arguidos agiram de comum acordo e na prossecução do plano que previamente delinearam.”
Pelo exposto e nesta perspetiva, a conduta dos arguidos, ao invés de lhes diminuir a culpa, traduziu-se antes numa culpa agravada, consistente na firmeza e persistência do propósito criminoso, perante terceiros, que a procuravam.
Foram os arguidos que criaram o ambiente favorável para cativarem os clientes e procuraram o meio apto, para a realização da reiteração. Por tudo isto, em nosso entender, fica excluída qualquer atenuação da culpa, afastando, por conseguinte, a aplicação do regime punitivo da continuação.

Coloca-se, a nosso ver, agora a questão de saber se estamos perante a existência de várias resoluções criminosas, com concurso efetivo de crimes, como defende o M.P. ou se, pelo contrário, apenas perante uma resolução criminosa.
É que a realização plúrima do mesmo tipo legal pode constituir, um só crime, persistindo o dolo ao longo de toda a realização da conduta.
A este respeito, tendo presente o Ac. RP desta secção de 12-03-2014.
A lei substantiva penal regula a problemática do concurso de crimes, do crime continuado e do crime único constituído por uma pluralidade de atos ou ações no artº 30º sob a epígrafe de «Concurso de Crimes e Crime Continuado», traduzindo o pensamento desde há muito expresso pelo Professor Eduardo Correia, na sua obra Unidade e Pluralidade de Infrações - Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz.
O preceito em causa estabelece um critério mínimo de distinção entre unidade e pluralidade de infrações.
No nº1 do art.30º estabelecem-se critérios relativos à problemática do concurso de crimes «tout court», no n.º2 pretendem-se regular situações que também têm a ver com a pluralidade de crimes, mas que o legislador juridicamente unifica em um só crime. Neste último caso estamos perante o chamado crime continuado, bem como face a outros casos de unificação jurídica (crime único com pluralidade de atos ou ações).
Já ponderamos previamente que não estamos perante uma pluralidade de crimes subsumível ao conceito constante do n.º2 daquele artigo (crime continuado, como defende o juiz a quo e os arguidos recorrentes.
Estaremos perante vários crimes ou antes face a um só crime?
Dispõe o n.º1 do art. 30º que «O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente».
Da análise do texto transcrito decorre que o mesmo contém duas partes, ambas se referindo a situações de pluralidade de crimes cometidos pelo mesmo agente. Na primeira parte, estatui-se que o número de crimes se determina pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos; na segunda parte, declara-se que o número de crimes (também) se determina pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
Na primeira situação estamos face ao apelidado «concurso heterogéneo» (realização de diversos crimes - violação de diversas normas incriminadoras). Na segunda estamos perante o chamado «concurso homogéneo» (realização plúrima do mesmo crime - violações da mesma norma incriminadora).
Certo é que, quer na primeira, quer na segunda situação, o comportamento do agente tanto se pode consubstanciar num só facto ou numa só ação, como em vários factos (naturais) ou várias ações. Com efeito, a partir de um só facto ou de uma só ação podem realizar-se diversos crimes, por violação (simultânea) de diversas normas incriminadoras, bem como o mesmo crime plúrimas vezes, por violação da mesma norma incriminadora, tal como a partir de vários factos ou várias ações pode realizar-se o mesmo crime plúrimas vezes, por violação (repetida) da mesma norma incriminadora, bem como diversos crimes, por violação de diversas normas incriminadoras.
Em qualquer dos casos, estamos, no entanto, perante concurso de crimes, já que este ocorre sempre desde que o agente cometa mais do que um crime, quer mediante o mesmo facto, quer através de vários factos.
Não basta, porém, a ocorrência deste concreto condicionalismo (objetivo) para que se conclua, sem mais, estar-se perante «concurso de crimes». A expressão «tipos de crime» utilizada no n.º1 do art.30º tem o significado de «tipo legal objetivo e subjetivo», a significar que a vontade culpável, como dolo ou como negligência, por um só ato de vontade ou por atos plúrimos da vontade, deve ter por objeto todos os crimes concorrentes, que serão dolosos ou culposos, consoante a vontade tomar quanto a cada um deles a forma de dolo ou de negligência.
Tendo já sido feita a distinção entre concurso de crimes e crime continuado, convirá agora destrinçar o crime continuado do crime único constituído por uma pluralidade de atos ou ações.
São dois os critérios que têm sido seguidos e defendidos pela doutrina para encontrar a forma de distinguir as situações em que se deve considerar um só crime constituído por uma pluralidade de atos ou ações e a figura do crime continuado.
O primeiro - critério objetivo - parte da posição sustentada por Carrara[In Programa del Curso de Derecho Criminal (tradução castellana de 1944), I, § 535, pág. 345.], o qual após advertir que a unidade de tempo não tem carácter absoluto humanamente considerada, nos diz, com aparente ambiguidade, que o critério distintivo da continuação ou descontinuidade criminosa reside no seguinte: «se os atos são materialmente continuados, com mais facilidade se dirá que não são juridicamente continuados; se constituem diversos momentos de uma só ação criminal teremos um crime único. Se são materialmente descontinuados, de modo a que haja um intervalo que represente interrupção da ação criminal, poder-se-á aceitar mais facilmente a ideia, não só de vários atos, mas também de várias ações distintas e excluir assim o crime único para reconhecer a ocorrência de vários crimes, caso existam diversas resoluções; o crime continuado só ocorrerá se se verificou unidade de determinação».
Daqui se deduz que para o insigne autor é na descontinuidade que se encontra o critério distintivo entre o crime continuado e o crime único com pluralidade de atos.
O segundo - critério subjetivo - tem por referência a intenção do agente. Haverá crime único, com pluralidade de atos, caso ocorra unidade de desígnio e intenção criminosa. Por sua vez, estaremos perante crime continuado se se verificar unidade de desígnio e pluralidade de resolução criminosa.
Fazendo apelo à conjugação destes dois critérios vêm-se orientando a doutrina e a jurisprudência alemãs. Assim, refere Jescheck[In Tratado de Derecho Penal Parte General (4ª edição), 648.] que: «deve-se ter por verificada uma ação unitária quando os diversos atos parcelares correspondem a uma única resolução de vontade e se encontram tão vinculados no tempo e no espaço que para um observador não interveniente são tidos como uma unidade».
Entre nós a voz autorizada do Professor Eduardo Correia parece que se inclinou no sentido do critério objetivo (mitigado, já que não prescinde de considerações de índole subjetiva, por certo face às dificuldades de prova sobre a intenção do agente), ao referir que: «... verificado que entre as atividades do agente existe uma conexão no tempo tal que, de harmonia com a experiência comum e as leis psicológicas conhecidas, se deva presumir tê-las executado a todas sem renovar o respetivo processo de motivação, estamos em presença de uma unidade jurídica, de uma só infração».
Por sua vez, a jurisprudência dos nossos tribunais superiores não é pacífica, já que enquanto nalgumas decisões se vem optando pelo critério subjetivo, noutras vem-se enveredando pelo critério objetivo.
Uma vez que o artigo 30º do Código Penal, como já se deixou consignado, traduz o pensamento do Prof. Eduardo Correia, propendemos a perfilhar o critério de distinção pelo mesmo proposto.
Com base nos ensinamentos supraexpostos, importa proceder à qualificação jurídica dos factos.
A nosso ver, esse plano tomado inicialmente traduz a existência de um só crime, já que a resolução dolosa inicial foi única, não passando os demais atos, meras execuções dessa decisão inicial plasmada em 8 e 9 dos factos provados.
Ora, da decisão da matéria de facto resulta que, como suprarreferido, os arguidos em data não concretamente apurada acordaram que nos processos de revalidação a carta de condução seriam passados atestados médicos sem necessidade de avaliação presencial. Logo combinando os preços que os donos da agência entregariam aos médicos.
Na prossecução do plano, no decurso do ano de 2013, pelo menos uma vez por semana a arguida C… dirigia-se ao consultório onde deixava os requerimentos com os questionários, tendo em vista a emissão dos atestados médicos, aí regressando um ou dois dias depois, para os levantar, entregando a quantia acordada aos arguidos médicos.
Resulta ainda dos factos descritos em 11 e 12 que os atestados foram emitidos todos em 2013 e em períodos temporais de intervalo curtos, regra, alguns com intervalo de um, dois, três dias, quatro dias, mais espaçados nos períodos coincidentes com férias, pelo que seguindo o critério objetivo mitigado, entendemos que existiu apenas uma resolução criminosa, ou seja, foi tomada uma só decisão criminosa de realização de violações plúrimas do bem jurídico, cometendo, assim cada um dos arguidos um só crime de atestado falso.

Da perda a favor do Estado do valor
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Decisão.
Acordam em conferência na Primeira Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo M.P. e totalmente improcedentes os recursos apresentados pelos arguidos e consequentemente:
1. Condenar o arguido B… pela prática de um só crime de atestado falso, previsto e punido pelos artigos 14.º, 26.º, 28.º, n.º 1 e 260.º, n.º 3, todos do Código Penal, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa diária de 10,00€ (dez euros);
2. Condenar a arguida C… pela prática de só crime de atestado falso, previsto e punido pelos artigos 14.º, 26.º, 28.º, n.º 1 e 260.º, n.º 3, todos do Código Penal, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa diária de 10,00€ (dez euros);
3. Condenar o arguido D… pela prática de um só crime de atestado falso, previsto e punido pelos artigos 14.º, 26.º, e 260.º, n.º 3, todos do Código Penal, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa diária de 25,00€ (vinte e cinco euros);
4. Condenar a arguida E… pela prática de um só crime de atestado falso, previsto e punido pelos artigos 14.º, 26.º e 260.º, n.º 3, todos do Código Penal, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa diária de 25,00€ (vinte e cinco euros);
5. Declarar perdidas a favor do Estado as quantias pagas pela emissão dos atestados por consubstanciarem uma vantagem resultante da prática do crime, condenando o arguido D… e a arguida E…, respetivamente no pagamento aos Estado das quantias de €525,00 e €435,00.

Manter quanto ao mais a decisão recorrida.

Custas cm taxa de justiça que fixo em 4Ucs a cargo de cada um dos arguidos- art. 513º, n º 1, al.a) do CPP.
Sem custas pelo M.P.
Notifique.

Porto, 27 de março de 2019.
(Elaborado e revisto pelo 1º signatário)
Paulo Costa
Élia São Pedro