DIREITO DE CORRECÇÃO
MAUS TRATOS
Sumário

– O crime de maus tratos visa prevenir formas de violência no âmbito da família, da educação e do trabalho, pelo que abrange no seu âmbito, para além dos maus tratos físicos, os maus tratos psíquicos, humilhações, provocações, ameaças, curtas privações da liberdade de movimentos, sujeição a trabalhos desproporcionados à idade ou saúde física, psíquica ou mental do subordinado, bem como a sujeição a actividades perigosas, desumanas ou proibidas sendo o bem protegido por este tipo de crime a saúde – física, psíquica e mental, que pode ser afectada por vários comportamentos e que pressupõe que o agente se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo daqueles comportamentos.

– O “poder de corrigir moderadamente o filho nas suas faltas”, antes previsto no art. 1884º nº 1 do Código Civil, na sua versão original, deixou de ter consagração legal autónoma em Portugal.

– A lei aponta um caminho de ampliação das condutas que podem configurar o crime de maus-tratos e  actualmente urge pôr o acento tónico no poder correctivo da persuasão, do exemplo e da palavra e na desnecessidade de causar dor física para corrigir, de forma a poder dar uma resposta satisfatória a este problema social tão disseminado [(essa disseminação resulta da transmissão geracional desses comportamentos – criança maltratada tende a, como adulto, infligir maus-tratos – e da facilidade com que se vulgariza – a palmada que pontua um comportamento desadequado até como forma de o parar passa a ser a forma mais habitual de relacionamento com a criança.

 

Texto Integral

Acordam, em conferência, na Secção Criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Lisboa:


1.– No processo comum (Tribunal Singular) nº1533/17.5T9SNT, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Criminal de Sintra - Juiz 1, o arguido A., foi julgado e condenado pela prática de um crime de maus tratos, p. e p. nos termos do disposto no art.° 152.°-A, n.° 1, al. a) do Código Penal, na pena de um ano de prisão, a qual foi declarada suspensa pelo período de 1 (um) ano, condicionando-se tal suspensão ao cumprimento da obrigação de frequência de acções de formação/sensibilização para o bem jurídico violado, incluindo frequência de formação parental.
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Não se conformando com a decisão, interpôs o arguido recurso, com os fundamentos constantes da motivação e com as seguintes conclusões:

1)– As provas valoradas em audiência de julgamento e constantes da gravação nele realizada, impunham ao Tribunal «a quo» decisão diversa.
2)– Da prova produzida resulta estarmos perante um cenário pautado pelas dificuldades em controlar a menor e que tornam verosímil alguma frustração e desespero por banda do arguido.
3)– Entende o arguido que não se encontram preenchidos os elementos tipo do crime de maus tratos, p. e p. no art.° 152° A, n°1 al. A) do CP.
4)– O crime previsto no art. 152°A, n°1 al. A) do CP supõe a inflição de sofrimento cruel bem como o aproveitamento simultâneo de uma determinada dimensão de fragilidade do outro.
5)– Para a caracterização do crime de maus tratos importa a aferir a gravidade da conduta traduzida por crueldade, insensibilidade ou até vingança.
6)– A Conduta do arguido consubstancia um ato isolado com finalidade corretiva.
7)– Da análise da matéria de facto dada como provada, conclui-se que a conduta do arguido não preenche a tipicidade exigida no preceito legal em análise.
8)– A factualidade apurada não reflete a gravidade exigida pelo crime de maus tratos, pois não se apurou o necessário ultrapassar o poder/dever de educar ou de corrigir, a necessária intimidação e provocação do sofrimento da vítima que justificam que se considere, na globalidade, uma conduta que atenta de forma inaceitável contra a dignidade da vítima e da sua dignidade enquanto menor. 
9)– A conduta do arguido preenche a tipicidade do crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo artigo 143°, n° 1 do Código Penal.
10)– E a ser assim, tal como nos parece ser, o Tribunal «a quo» fez uma errada interpretação do estatuído no art.° 152°-A, n°1 al a) do CP.
11)– Pelo que se impõe a absolvição do crime de maus tratos previsto e punido pelo no art.° 152°-A, n°1 al a) do CP.
Pelo exposto, e no mais que for doutamente suprimido por V. Exas., deve conceder-se provimento ao recurso, revogando-se o douto acordão, com o que se fará a tão costumada JUSTIÇA!
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O Digno Magistrado do Ministério Público apresentou a sua contra-motivação, como as seguintes conclusões:

1.– O recorrente não conformado com a douta sentença entendendo que a mesma impunha decisão diversa, devendo o mesmo ser absolvido da prática do crime de maus- tratos uma vez que não se encontram preenchidos os elementos do tipo do referido crime.
2.–  Estatui o artigo 152°-A, n° 1, alínea a), do Código Penal, que, “quem tenha ao seu cuidado (...) pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez, e: a) lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente; (...) É punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”
3.– O crime de maus tratos os bens jurídicos protegidos são a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e a honra. O crime de maus-tratos é um crime específico, em face da relação da guarda ou vigilância entre o agente e a vítima, sendo cometido por quem tiver, ao que no caso dos autos interessa, a guarda, responsabilidade da sua direção ou educação.
4.– A vítima de maus-tratos é um menor de 18 anos ou uma pessoa particularmente indefesa, ou seja, uma pessoa que se encontra numa situação de especial fragilidade devido à sua idade precoce ou avançada, deficiência, doença física ou psíquica ou gravidez.
5.– É também um crime de dano ou de resultado, sendo aplicável a teoria da adequação do resultado à conduta. Ou seja, dado que nem todos os casos de agressões físicas ou psicológicas e de tratamentos cruéis, cometidas contra um menor, são suscetíveis de afetar a saúde física e psíquica da vítima, podemos deparar-nos com comportamentos que apenas satisfaçam o tipo do crime de ofensa à integridade física (simples ou qualificada), sem que perfaçam os elementos objetivos do artigo 152°-A, n° 1 do Código Penal.
6.– Da prova produzida efetivamente o Recorrente bateu na sua sobrinha de 13 anos de idade e que se encontrava entregue à sua guarda e cuidados, com um cabo de eletricidade de um computador, logrando atingi-la ao longo do corpo com especial incidência na zona das pernas e nos braços causando-lhe, como consequência direta e necessária de tal conduta, dores e hematomas nas zonas atingidas, não oferecerão dúvidas que tal comportamento integra o conceito de maus-tratos.
7.– Com efeito, o Recorrente vem justificar os seus atos pelas dificuldades encontradas em controlar a menor e que provocou lhe provocou desespero e frustração. E acrescenta que a sua conduta consubstanciou um ato isolado com finalidade corretiva.
8.– Pese embora o arguido tenha agido, julgando, justificado o recurso de uma forma mais severa de castigo com vista a dissuadir a sua sobrinha de perpetrar os problemas de comportamentais que começaram a acentuar-se aos 13 anos, pois para além da indisciplina na escola, mentia e subtraia dinheiro de colegas, evidencia-se uma grande desproporção de meios e de sentimentos revelados. O Recorrente revelou desta forma especial censurabilidade, na medida em que utilizou um cabo elétrico, como se fosse um “chicote”, por forma a atingir a sua sobrinha no castigo corporal que lhe provocou.
9.– O Recorrente excedeu o poder-dever de correção/educação, agindo de forma inadmissível nos tempos atuais, onde a consciencialização não permite a justificação de agressões com cabos elétricos pelo corpo.
10.– Taipa de Carvalho, refere que a “finalidade educativa pode justificar uma ou outra leve ofensa corporal simples” e Paula Ribeiro de Faria (também no Comentário Conimbricense do Código Penal, a página 214 do Tomo I) afirma que “de acordo com o ponto de vista maioritário a ofensa da integridade física será justificada quando se mostre adequada a atingir um determinado fim educativo e seja aplicada pelo encarregado de educação com essa intenção”. Na verdade, pode ler-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10 de outubro de 1995, que “ospais detêm o poder-dever de corrigir moderadamente os filhos”.
11.– Importa chamar à colação a constante evolução normativa na área do poder paternal. Efetivamente, “o poder de corrigir moderadamente o filho nas suas faltas” antes previsto no artigo 1884°, n° 1 do Código Civil na sua versão original, deixou de ter consagração legal autónoma em Portugal, com a redação dada a esse diploma pelo Decreto-Lei 496/77 de 25.11. Só será compreensível atualmente, como parte do poder-dever de educar consagrado no artigo 1878° do Código Civil e, consequentemente, só se assim o impuser o superior interesse da criança.
12.– Além disso, veja-se também a rápida evolução do crime de maus-tratos na nossa lei, “resultado da progressiva consciencialização da gravidade destes comportamentos e de que a família, a escola e a fábrica não mais podiam constituir feudos sagrado?’.
13.– Recentemente, a Lei 59/07 de 04.09 veio dar à alínea do n° 1 do artigo 152°- A do Código Penal uma redação que tornou inequívoca a possibilidade de existência de maus-tratos resultantes de conduta não reiterada, assim tomando posição na querela doutrinária e jurisprudencial pré-existentes.
14.– Da conduta do Recorrente resultou lesões na menor. O comportamento do Recorrente foi despropositado, agiu de forma imponderada e a sua ação provocou humilhação na sua sobrinha tendo sido desproporcional à conduta da menor.
Pelo que, não restam dúvidas de que os elementos, objetivo e subjetivo do crime em causa se encontram preenchidos.
Termos em que deverá negar-se provimento ao recurso interposto pelo recorrente, quanto às questões alegadas.
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Neste Tribunal o Ex.mº  Procurador-Geral Adjunto  emitiu douto parecer no sentido da adesão à resposta formulada pelo Ministério Público, pugnando igualmente pela improcedência do recurso e subsequente manutenção da sentença recorrida.
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2.– A sentença recorrida fixou a matéria de facto e a respectiva motivação, bem como o enquadramento fáctico-jurídico, da seguinte forma:

II.– Fundamentação.

II.– 1.- Da discussão resultaram provados os seguintes factos:
1.– A.  e B. são tios da menor LD., nascida em 09/04/2003 e que com eles foi residente na Rua G. A... - M... S....
2.– A menor LD.  esteve entregue à guarda e cuidados dos seus tios desde data não concretamente apurada, mas seguramente desde os seus seis meses de idade até ao dia 23/02/2017 data em que foi institucionalizada.
3.– No dia 22/02/2017, cerca 07,00 horas, no interior da residência familiar, o arguido A.  após tomar conhecimento bateu-lhe com um cabo de electricidade pertencente a um computador, logrando de a atingir ao longo do corpo com especial incidência na zona das pernas e nos braços.
4.– Como consequência directa e necessária de tal conduta, LD.  sofreu dores e hematomas nas zonas atingidas.
5.– O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de castigar fisicamente a sua sobrinha, que sabia menor de idade e que se encontrava aos seus cuidados, atentando contra a sua dignidade humana e pondo em causa o equilíbrio emocional e afectivo, o seu desenvolvimento físico e psíquico harmonioso e efectivamente provocando dores, susceptíveis de condicionarem o seu desenvolvimento.
6.– Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
7.– Aos 13 anos de idade os problemas de comportamento de LD.  começaram a acentuar-se, pois para além do absentismo, indisciplina e falta de empenho na escola, aquela mentía e, por vezes, subtraía dinheiro de colegas.
8.– Numa dessas situações, quando confrontado com um pai que lhe veio pedir satisfações, o arguido veio a chamar LD.   à atenção e, desagradado com a resposta que esta lhe deu, veio a agir do modo descrito em 3..
9.– A.  completou licenciatura em Relações Pública e Publicidade e depois curso técnico de Jornalismo, área profissional da sua eleição, quer em Cabo-Verde, quer em Portugal.
10.– A data da conclusão da sua formação académica, o arguido já tinha casado com B., licenciada em engenharia do Ambiente e Saúde Pública e já era pai de C..
11.– O arguido tem um filho mais velho, V., com 32 anos, licenciado em Direito, fruto de anterior relacionamento de namoro.
12.– O arguido trabalhou 20 anos em Cabo-verde, tendo vindo para Portugal em 2009, por questões de saúde (problemas de rins).
13.– A menina LD.  foi confiada aos tios paternos devido a problemas do foro psiquiátrico da progenitora daquela, irmã do arguido, C., e que à data tinha 15 anos.
14.– A menor frequentou o 1° ano do 1° ciclo em Cabo-Verde, após o que juntamente com os seus tios veio para Portugal.
15.– A integração no 2° ano e ensino básico de LD.   foi pautada por alguns problemas, ao nível da língua e do cumprimento das normas.
16.– A.  era o encarregado de educação, sujeito neste período a três sessões de hemodiálise semanais, enquanto aguardava cirurgia.
17.– O agregado do arguido é, à data, constituído pela sua mãe de 79 anos, diabética, pela esposa B., de 49 anos, assistente de telemarketing e pelo próprio.
18.– O arguido está reformado por questões de saúde, desde 2005, auferindo uma pensão de cerca de €600.
19.– Na actualidade está a estabilizar problema grave de saúde (sofreu transplante renal), situação que durante muitos anos condicionou, hábitos e rotinas (realização de tratamentos de hemodiálise).
20.– A. mantém hábitos e rotinas estruturados, apoia nas tarefas domésticas, de acordo com sua condição de saúde e desenvolve interesses a nível do jornalismo e da comunidade de Cabo-verde em Portugal.
21.– Tem um estilo pragmático e tendencialmente assertivo de resolver conflitos, revelando todavia, no caso em apreço que se deixou conduzir, ainda que de forma momentânea e pontual por sentimentos de ira.
22.– Aquele constitui-se como a figura paterna da ofendida, num quadro de progressiva e positiva reabilitação das relações e comunicação familiares.
23.– Após 8 meses de acolhimento social de emergência a jovem LD., que chegou a estar ausente sem paradeiro certo e veio a associar-se a pares desviantes, foi integrada na Obra do Padre Gregório, estando há mais de seis meses, em situação de estabilização de comportamentos.
24.– Na actualidade, há visitas e períodos de férias, com pernoita de LD.   na casa dos tios.
25.– A relação melhorou a nível da comunicação e da entreajuda e a jovem está a ser colaborante, na mudança de comportamentos.
26.– Não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido.
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II.–2.- Inexistem factos não provados constantes da acusação pública.
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II.– 3.- Motivação:
Dado que toda a prova produzida em sede de audiência e julgamento foi integralmente gravada em suporte digital - o que permite a ulterior reprodução de toda a referida prova e um rigoroso controlo do modo como o Tribunal formou a sua convicção sobre a matéria de facto - proceder-se-á a uma mais sucinta fundamentação, sendo unicamente dado maior destaque aos aspectos essenciais em matéria de prova, tornando desnecessário tudo o que vá para além disso.

A factualidade assente decorreu da conjugação das declarações globalmente confessórias do arguido (que, todavia, invocou que se tratou de uma acção isolada e enquadrada num contexto em que se encontrava a chamar a atenção da sua sobrinha pelo facto desta ter tido um comportamento contrário aos valores que defende, de retirado dinheiro de uma colega e de lhe ter faltado ao respeito), no relato dos factos pela própria jovem LD.  , que foram analisados criticamente e enquadrados com a documentação clinica, fls. 3-7, 43-45 (com particular destaque para os ferimentos que a jovem apresentava no momento em que foi assistida em meio hospitalar), bem como no relatório pericial de fls. 107/108.

Para firmar a convicção quanto aos factos provados o Tribunal atendeu ainda ao relato produzido por DF. , no relatório social da DGRSP e no certificado de registo criminal do arguido.

Quanto às consequências que tais factos tiveram na vida da ofendida o Tribunal criou a tal convicção, já que o comportamento em causa é passível de criar quer fortes dores (quer pelo meio empregue para infligir as agressões, quer pelas lesões objectivamente detectadas).

No que concerne à intenção do arguido, ou seja, o dolo, tal convicção extrai-se da análise dos factos objectivos que resultaram provados, sendo que o modo de actuação ilustra o carácter desejado da conduta.
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III– Enquadramento fáctico-jurídico
Vem o arguido acusado da prática de um crime de maus tratos, p. e p. nos termos do disposto no art.° 152.°-A, n.° 1, al. a) do Código Penal, preceito que apresenta a seguinte redacção:
“1– Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e:
a)- Lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente;
b)- A empregar em actividades perigosas, desumanas ou proibidas; ou
c)- A sobrecarregar com trabalhos excessivos;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2– Se dos factos previstos nos números anteriores resultar:
a)- Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a
oito anos;
b)- A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
 
No art. 152°-A a exigência de coabitação não é feita. Neste tipo legal cabem os maus tratos a menores, em quaisquer circunstâncias, seja quem for o perpetrador.

Resulta deste preceito que os bens jurídicos protegidos pela incriminação são a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e até a honra.

Nessa medida, poderá afirmar-se que o crime de maus tratos físicos e psíquicos é, por regra, um crime de dano (quanto ao bem jurídico) e de resultado (quanto ao objecto da acção).

Provado que no dia 22/2/2017 o arguido A.  bateu na sua sobrinha LD.   (de 13 anos de idade e que se encontrava entregue à sua guarda e cuidados) com um cabo de electricidade pertencente a um computador, logrando de a atingir ao longo do corpo com especial incidência na zona das pernas e nos braços causando-lhe, como consequência directa e necessária de tal conduta, dores e hematomas nas zonas atingidas, não oferecerão dúvidas que tal comportamento integra o conceito de maus-tratos a que alude o artigo 152.°-A do C.Penal.

Inexiste qualquer dificuldade em concluir que ocorreu preenchimento in casu do elemento objectivo do tipo do art.152.°A do Cód. Penal.

Conforme resulta dos art°s 14° e 15° do Cód. Penal, age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar. Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta. Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da sua conduta, há dolo se o agente actuar, conformando-se com aquela realização.

Com efeito, ficou demonstrado que o arguido quis provocar um mal no corpo da sua sobrinha, como forma de dissuadi-la de persistir em comportamentos desobedientes.

Verificado está assim ainda o elemento subjectivo do tipo.

Pese embora o arguido tenha agido, julgando, de certo modo, justificado o recurso a uma forma mais severa de castigo com vista a dissuadir a sua sobrinha de perpetuar os problemas de comportamentais que começaram a acentuar-se aos 13 anos, pois para além do absentismo, indisciplina e falta de empenho na escola, aquela mentia e, por vezes, subtraia dinheiro de colegas, destaca-se uma clara desproporção de meios e de sentimentos revelados.

Não obstante o contexto psicológico que era o do arguido, e de conduta latente de educação da jovem, não deixou o arguido de revelador especial censurabilidade, porquanto utilizou um cabo eléctrico de alimentação, como se de um “chicote” se tratasse, por forma a atingir a sua sobrinha no castigo que lhe inflingiu.

É certo que estamos numa área em que é imprescindível delimitar a fronteira entre o que constitui a esfera interior da família, bem como o exercício do dever de correcção e educação, e as condutas que requerem a intervenção do Direito Penal (cujo princípio da subsidariedade reveste aqui especial acuidade, tendo em conta a gravidade das consequências no relacionamento futuro dos membros dessa família).

Todavia, perante a importância e “sensibilidade” dos valores em causa, impõe-se às entidades judiciárias uma actuação especialmente distanciada e equilibrada, que evite o “empolamento” das situações ou uma distorção na apreciação e avaliação dos casos (em parte gerada pela desmesurada difusão mediática de que alguns são objecto).

O que se encontra provado é uma actuação de um tio, gerada por um comportamento censurável da sobrinha - que teria subtraído quantia em dinheiro pertencente de terceiros que impunha o exercício do poder-dever de correcção no cumprimento das responsabilidades parentais.

Analisando os factos pelo prisma oposto ao dos autos, se o tio ignorasse a situação e não procurasse repreender e corrigir a sua sobrinha, não estariam a cumprir devidamente o dever de assegurar o seu saudável desenvolvimento intelectual e comportamental e poderiam, por isso, também ser alvo - caso o comportamento se agravasse, por não ser corrigido - de procedimento no âmbito do Direito tutelar de menores.

Porém, o arguido, tio da menor excederam esse poder-dever de correcção/educação, agindo de forma inaceitável à luz da consciencialização ético-social dos tempos actuais, não se justificando a agressão com o cabo de alimentação de electricidade (nas pernas e braços).

Neste enquadramento, como se referiu, o comportamento é de reprovar.

Em conclusão, por estarem reunidos os requisitos do tipo, sem que ocorra qualquer causa de exclusão da culpa ou da ilicitude, será o arguido condenado pela prática de um crime de maus tratos, p. e p. nos termos do disposto no art.° 152.°-A, n.° 1, al. a) do Código Penal.
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3.– É pacífica a jurisprudência do STJ no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso.

Entende o recorrente que não se encontram preenchidos os elementos tipo do crime de maus tratos, p. e p. no art.° 152° A, n°1 al. A) do CP., porquanto, a conduta do arguido consubstancia um ato isolado com finalidade corretiva e preenche a tipicidade do crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo artigo 143°, n° 1 do Código Penal. E a ser assim, o Tribunal «a quo» fez uma errada interpretação do estatuído no art.° 152°-A, n°1 al a) do CP., pelo que se impõe a absolvição do crime de maus tratos previsto e punido pelo no art.° 152°-A, n°1 al a) do CP.

Da leitura dessas conclusões, afigura-se-nos que a questão a analisar consiste em saber se o arguido deve ser absolvido da prática do crime de maus-tratos, por não se encontram preenchidos os elementos do tipo do referido crime. 
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4.– Dispõe o artigo 152.°-A, n.° 1, al. a) do Código Penal, que:
1Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e:
a)- Lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente;
b)- A empregar em actividades perigosas, desumanas ou proibidas; ou
c)- A sobrecarregar com trabalhos excessivos;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2– Se dos factos previstos nos números anteriores resultar:
a)- Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;
b)- A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.”

O crime de maus tratos visa prevenir formas de violência no âmbito da família, da educação e do trabalho, pelo que abrange no seu âmbito, para além dos maus tratos físicos, os maus tratos psíquicos, humilhações, provocações, ameaças, curtas privações da liberdade de movimentos, sujeição a trabalhos desproporcionados à idade ou saúde física, psíquica ou mental do subordinado, bem como a sujeição a actividades perigosas, desumanas ou proibidas - cfr. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, PE, Tomo I, Artigos 131º a 201º, dirigido por Figueiredo Dias, Coimbra Editora – 1999, p. 332 e seguintes.

O bem protegido por este tipo de crime é a saúde – física, psíquica e mental, que pode ser afectada por vários comportamentos e que pressupõe que o agente se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo daqueles comportamentos.

O âmbito de protecção desta norma abrange os comportamentos que, de modo reiterado, lesam a dignidade do ser humano.

O bem jurídico protegido é, pois, a saúde (a saúde física, psíquica e mental).

O crime de maus-tratos pressupõe um agente que se encontre em determinada relação para com o sujeito passivo desses comportamentos. Este crime é, portanto, um crime específico. É um crime próprio ou impróprio consoante a natureza das condutas em si mesmas consideradas já constituam ou não crime.

Relativamente ao elemento subjectivo do tipo, este é um crime fundamentalmente doloso em uma qualquer das suas formas: directo, necessário e eventual.

Da factualidade provada, resultou demonstrado que no dia 22/2/2017 o arguido A.  bateu na sua sobrinha LD.   (de 13 anos de idade e que se encontrava entregue à sua guarda e cuidados) com um cabo de electricidade pertencente a um computador, logrando de a atingir ao longo do corpo com especial incidência na zona das pernas e nos braços causando-lhe, como consequência directa e necessária de tal conduta, dores e hematomas nas zonas atingidas, não oferecerão dúvidas que tal comportamento integra o conceito de maus-tratos a que alude o artigo 152.°-A do C.Penal.

Da análise da matéria de facto dada como provada, conclui-se assim que a conduta do arguido preenche a tipicidade exigida no preceito legal em análise.

Com efeito, de tal factualidade dada como assente resulta que o recorrente bateu na sua sobrinha de 13 anos de idade e que se encontrava entregue à sua guarda e cuidados, com um cabo de eletricidade de um computador, logrando atingi-la ao longo do corpo com especial incidência na zona das pernas e nos braços causando-lhe, como consequência direta e necessária de tal conduta, dores e hematomas nas zonas atingidas,  e que as agressões perpetradas assumem a gravidade suficiente para ser enquadrada no tipo legal de maus tratos.

O recorrente vem justificar os seus atos pelas dificuldades encontradas em controlar a menor e que provocou lhe provocou desespero e frustração. E acrescenta que a sua conduta consubstanciou um ato isolado com finalidade corretiva.

Nos termos do disposto no artigo 31º, nºs 1 e 2, al. b), o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade, nomeadamente, no exercício de um direito, que contempla o "direito de correcção".

A este propósito, tal como se salienta in "Comentário Conimbricense ao Código Penal - parte Especial", Tomo I, pág. 214 e segs., assume-se como discutível a natureza do direito ao castigo dos pais e educadores quando se traduza, em concreto, em lesões da integridade física do educando, como é o caso. Tratando-se de direito de correcção, assumem-se como controvertidos não só a sua admissibilidade como os seus limites. Tem-se entendido que a ofensa da integridade física será justificada quando se mostre adequada a atingir um determinado fim educativo e seja aplicada pelo encarregado de educação com essa intenção. Colocam-se a este nível dúvidas sobre a proporcionalidade pedagógica dos castigos físicos e da sua compatibilidade com a dignidade humana do ser humano em desenvolvimento. Faz-se normalmente uma distinção dentro do direito de castigo consoante este seja exercido sobre crianças próprias ou de outrem. Os pais estarão em princípio legitimados ao castigo por força do poder paternal. Dado que o direito de correcção resulta da relação familiar entre pais e filhos, a transferência desse direito apenas poderá ocorrer relativamente a pessoas próximas da criança ou que gozem da confiança pessoal dos encarregados de educação. Considera-se, ainda, que o direito ao castigo nunca será exercido na presença dos verdadeiros encarregados de educação, uma vez que o direito destes últimos prevalece.” – Ac R Porto de 2-7-2008 Rec. Penal nº 2772/08 - 4ª Sec.

Pese embora o arguido tenha agido, julgando, justificado o recurso de uma forma mais severa de castigo com vista a dissuadir a sua sobrinha de perpetrar os problemas de comportamentais que começaram a acentuar-se aos 13 anos, pois para além da indisciplina na escola, mentia e subtraia dinheiro de colegas, evidencia-se uma grande desproporção de meios e de sentimentos revelados.

A possibilidade aventada pelo recorrente de ter actuado com um propósito educativo não foi acolhida, e bem, pelo tribunal a quo. É certo que a finalidade educativa abrange o poder de correcção, que se revela (deve revelar) essencialmente no exemplo e na palavra. O que é claramente discutível é se esse poder de correcção pode abranger castigos corporais. No entanto, dir-se-á que, no caso em apreço é manifesto que o recorrente não quis exercer qualquer poder de correcção ou atingir uma finalidade educativa. A evidência da inexistência dessas boas intenções resulta claramente da postura agressiva – por oposição a educativa –  porquanto, a violência e a agressividade revelada na actuação do arguido, exclui claramente a sua actuação do âmbito do poder-dever ou direito de correcção, por não ser adequada a atingir um fim educativo, sendo a conduta do arguido intencionalmente dirigida à lesão do corpo ou da saúde da ofendida, revelando especial censurabilidade, na medida em que utilizou um cabo elétrico, como se fosse um “chicote”, por forma a atingir a sua sobrinha no castigo corporal que lhe provocou.

O recorrente excedeu o poder-dever de correção/educação, agindo de forma inadmissível nos tempos atuais, onde a consciencialização não permite a justificação de agressões com cabos elétricos pelo corpo.

É certo que, castigos moderados aplicados a menor por quem de direito, com fim exclusivamente educacional e adequados à situação, não são ilícitos. Devendo, no entanto, ter-se consciência de que estamos numa relação extremamente vulnerável e perigosa quanto a abusos.

Taipa de Carvalho, refere que a “finalidade educativa pode justificar uma ou outra leve ofensa corporal simples” e Paula Ribeiro de Faria (também no Comentário Conimbricense do Código Penal, a página 214 do Tomo I) afirma que “de acordo com o ponto de vista maioritário a ofensa da integridade física será justificada quando se mostre adequada a atingir um determinado fim educativo e seja aplicada pelo encarregado de educação com essa intenção".

Do mesmo modo, no Acórdão Tribunal da Relação de Coimbra de 10 de outubro de 1995 (que se pode ver sumariado em www.dgsi.pt) entendeu que "os pais detêm o poder-dever de corrigir moderadamente os filhos”.

Toda esta doutrina e jurisprudência têm de ser analisadas tendo em atenção que a área dos maus tratos é uma área em constante e rápida evolução, em que a doutrina e a jurisprudência não sedimentam com facilidade, obrigadas a seguir novos caminhos, resultado de tomadas de consciência colectivas, de compromissos internacionais e de constantes alterações legislativas.

Por isso, importa chamar a atenção em primeiro lugar para a constante evolução normativa na área do poder paternal. Efectivamente, “o poder de corrigir moderadamente o filho nas suas faltas” antes previsto no art. 1884º nº 1 do Código Civil, na sua versão original, deixou de ter consagração legal autónoma em Portugal, com a redacção dada a esse diploma pelo Decreto-Lei 496/77 de 25.11. Só será compreensível actualmente, como parte do poder-dever de educar consagrado no art. 1878º do Código Civil (Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricense do Código Penal, T I, pg. 214.) e, consequentemente, só se assim o impuser o superior interesse da criança.

Além disso, veja-se, também a rápida evolução do crime de maus-tratos na nossa lei, “resultado da progressiva consciencialização da gravidade destes comportamentos e de que a família, a escola e a fábrica não mais podiam constituir feudos sagrados”(Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, T I, pg. 330).

A Reforma de 1995 aboliu a referência à exigência de malvadez e crueldade provinda do Anteprojecto e que a versão original do Código Penal de 1982 consagrava, passou a prever os maus-tratos psíquicos, a par dos maus-tratos físicos e agravou substancialmente as penas.

Recentemente, a Lei 59/07 de 4.9 veio a dar à al. a) do nº 1 do art. 152º-A do Código Penal uma redacção que tornou inequívoca a possibilidade de existência de maus-tratos resultantes de conduta não reiterada, assim tomando posição na querela doutrinária e jurisprudencial pré-existentes.

A lei aponta, por isso, um caminho de ampliação das condutas que podem configurar o crime de maus-tratos.

Actualmente, urge pôr o acento tónico no poder correctivo da persuasão, do exemplo e da palavra e na desnecessidade de causar dor física para corrigir, de forma a poder dar uma resposta satisfatória a este problema social tão disseminado [(essa disseminação resulta da transmissão geracional desses comportamentos – criança maltratada tende a, como adulto, infligir maus-tratos – e da facilidade com que se vulgariza – a palmada que pontua um comportamento desadequado até como forma de o parar passa a ser a forma mais habitual de relacionamento com a criança (a propósito, “Direitos das Crianças e Jovens – Actas do Colóquio”, ISPA/CEJ, pg.s 228 a 233)].

Como bem salienta a decisão recorrida:
«Pese embora o arguido tenha agido, julgando, de certo modo, justificado o recurso a uma forma mais severa de castigo com vista a dissuadir a sua sobrinha de perpetuar os problemas de comportamentais que começaram a acentuar-se aos 13 anos, pois para além do absentismo, indisciplina e falta de empenho na escola, aquela mentia e, por vezes, subtraia dinheiro de colegas, destaca-se uma clara desproporção de meios e de sentimentos revelados.

Não obstante o contexto psicológico que era o do arguido, e de conduta latente de educação da jovem, não deixou o arguido de revelador especial censurabilidade, porquanto utilizou um cabo eléctrico de alimentação, como se de um “chicote” se tratasse, por forma a atingir a sua sobrinha no castigo que lhe inflingiu.

É certo que estamos numa área em que é imprescindível delimitar a fronteira entre o que constitui a esfera interior da família, bem como o exercício do dever de correcção e educação, e as condutas que requerem a intervenção do Direito Penal (cujo princípio da subsidariedade reveste aqui especial acuidade, tendo em conta a gravidade das consequências no relacionamento futuro dos membros dessa família).

Todavia, perante a importância e “sensibilidade” dos valores em causa, impõe-se às entidades judiciárias uma actuação especialmente distanciada e equilibrada, que evite o “empolamento” das situações ou uma distorção na apreciação e avaliação dos casos (em parte gerada pela desmesurada difusão mediática de que alguns são objecto).

O que se encontra provado é uma actuação de um tio, gerada por um comportamento censurável da sobrinha - que teria subtraído quantia em dinheiro pertencente de terceiros -, que impunha o exercício do poder-dever de correcção no cumprimento das responsabilidades parentais.

Analisando os factos pelo prisma oposto ao dos autos, se o tio ignorasse a situação e não procurasse repreender e corrigir a sua sobrinha, não estariam a cumprir devidamente o dever de assegurar o seu saudável desenvolvimento intelectual e comportamental e poderiam, por isso, também ser alvo - caso o comportamento se agravasse, por não ser corrigido - de procedimento no âmbito do Direito tutelar de menores.

Porém, o arguido, tio da menor excederam esse poder-dever de correcção/educação, agindo de forma inaceitável à luz da consciencialização ético-social dos tempos actuais, não se justificando a agressão com o cabo de alimentação de electricidade (nas pernas e braços).

Neste enquadramento, como se referiu, o comportamento é de reprovar (…)».

Em conclusão, por estarem reunidos os requisitos do tipo, sem que ocorra qualquer causa de exclusão da culpa ou da ilicitude, será o arguido condenado pela prática de um crime de maus tratos, p. e p. nos termos do disposto no art.° 152.°-A, n.° 1, al. a) do Código Penal.
*

5.– Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quatro (4) UCs.

                                        
Lisboa, 23 de Abril de 2019


Cid Geraldo
Ana Sebastião