ANULAÇÃO DE ESCRITURA
CESSÃO DE MEAÇÃO E QUINHÃO HEREDITÁRIO
TRANSMISSIBILIDADE DO DIREITO DE ANULAÇÃO
Sumário

I-A consequência da falta de consentimento na venda a filhos e netos é a anulabilidade (art.º 877.º n.º2), podendo ser arguida pelos filhos ou netos que não deram o seu consentimento, no prazo de um ano a contar do conhecimento da celebração do contrato ou do termo da incapacidade, no caso de descendentes incapazes, sendo esta sanável mediante confirmação nos termos gerais (art.º 288.º).
II- A ratio deste preceito, como é entendimento pacífico na doutrina é a protecção da legítima dos filhos ou netos, nas situações em que venham a ser prejudicadas mediante vantagem ou favorecimento de outro descendente, seja filho, neto ou, com respeito por melhor entendimento, bisneto. Para se efectuar uma venda de pais a filhos ou de avós a netos, é exigido o consentimento dos outros filhos ou - se algum filho não puder, no caso de ter morrido antes dessa venda ou não quiser aceitar por repúdio a herança nos termos do art.º 2039.º do CC - dos descendentes deste que ocupem a sua posição na estirpe.
III- E isto é assim porque por força do disposto no art.º 287/1 do CCiv só têm legitimidade para arguir a anulabilidade as pessoas em cujo interesse a lei estabelece, e no caso de venda a um dos filhos a legitimidade para a acção assiste ao filho ou filhos cujo consentimento não foi obtido, filho que, no caso dos autos, era então vivo. Não a tendo exercido em vida, independentemente da prova do seu efectivo conhecimento da venda durante a sua vida, o direito à acção de anulação não se transmite ao seu filho, ora Autor, na medida em que o direito de anulação foi conferido intuitu personae pelo art.º 287 ao pai do Autor.

Texto Integral

RELATÓRIO
APELANTE/AUTOR:BL... (Litigando com apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, conforme decisão do ISSfaro de 21/1/2019 de fls. 82/83, representada em juízo, juntamente com outros pelo ilustre advogado JO..., com escritório em Lisboa, conforme cópia do instrumento de procuração de 4/4/2017, de fls. 12 v.º)
APELADOS/RÉUS:ML..., VM... e LJ... (representados em juízo pela ilustre advogada IC... conforme cópias dos instrumentos de procuração de 5/4/2018, fls. 29/32 dos autos)

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Com os sinais dos autos.
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Valor da acção: 40.000,00 euros (decisão recorrida)
I.1. Autor propôs contra os réus acção declarativa com processo comum onde pede a anulação do contrato exarado na escritura pública de 9/12/2013 exarada no Cartório Notarial de Vila Pouca de Aguiar nos termos da qual a 1.ª Ré ML... declarou pelo preço de 40.000,00 euros que já tinha recebido ceder a título oneroso aos 2.º outorgantes pra 2.ºs réus VM... e LJ... a meação e o quinhão hereditário que lhe pertencia na herança líquida e indivisa aberta por óbito de AR... falecido aos 29/5/1991, em suma dizendo que tendo este último falecido no estado de casado com a 1.ª Ré ML... sem testamento ou disposição de última vontade deixando como herdeiros o seu cônjuge a referida ML... e os 2 filhos de ambos respectivamente LA... casado com VL... e VM... casado com LJ... ora 2.ºs réus, tendo o mencionado LA...falecido em 2/3/2017 já divorciado da mencionada VL... e sem testamento ou disposição e última vontade, sendo o ora Autor seu filho o único e universal herdeiro, mantendo-se a herança do avô do Autor o mencionado AR..., indivisa, não tendo o seu pai e filho daquele AR... outorgado a escritura de cessão em 2013 (estando ainda vivo), nem consentido nela não a tendo confirmado nenhum dos réus tendo dado conhecimento dessa cessão a LA...que dela não soube até à data da sua morte, o Autor seu filho só dela tendo tomado conhecimento em 23/1/2018 quando lhe foi disponibilizada cópia certificada da referida, consubstanciando a escritura de cessão de meação uma compra e venda da mencionada meação e quinhão hereditário da 1.ª Ré na herança aberta por óbito do seu marido aos 2.ºs réus respectivamente filha e genro daquela e do autor da herança, venda essa concretizada sem o consentimento de LA...filho da mencionada 1.ª outorgante e do autor da herança , irmão e cunhado dos 2.ºs réus, tanto bastando para que nos termos do art.º 877 do CCiv seja anulável tendo o Autor legitimidade para a acção.
I.2. Citados, os réus vieram contestar, excepcionando a ilegitimidade do Autor, por o consentimento deste neto, ora Autor nunca foi requisito formal e substancial para a validade formal da escritura de cessão, mas apenas a do seu pai, sendo que o Autor não age em direito de representação e a caducidade do direito pelo decurso do ano, que era exclusivo do pai, e o não exerceu naquele prazo, aceita os factos 1 a 4, 7 a 12 e impugna os factos 13 15, 16, 20, 21, 24, 26, 27 e 28, desconhecendo sem obrigação do contrário por serem factos de índole pessoal os de 5, 6 e 26 impugnando todo os outros com expressa oposição à defesa, sustentando a intransmissibilidade do direito, de requerer a anulação por força do art.º 2025/1 e por força do art.º 877 do CCiv, sendo que o pai do Autor teve conhecimento da escritura quando efectuou a consulta da escritura pessoalmente na companhia do contabilista aquando da execução do seu IRS referente a 2015 que se encontrava entregue à empresa que trata da contabilidade da herança, conforme declaração do gabinete de contabilidade e nessa consulta o pai do Autor confirmou que já havia sido efectuada a alteração da quota parte da herança para a irmã e que não lhe estava a ser imputada nenhum percentual superior ao que devia para efeitos da tributação em IRS. Termina pedindo a procedência das excepções de ilegitimidade do Autor e de caducidade do direito do Autor reconhecer que a escritura foi comunicada e considerar que se verificou a extinção do direito a peticionar a anulação da escritura pública de cessão da meação e do quinhão hereditário exarado em 9/12/2013; houve resposta do Autor no exercício do contraditório em que o mesmo, com base no AcSTJ de 14/10/04 processo 04b2212, disponível no sítio www.dgsi.pt, no sentido de que porque os réus contestam que o pai do Autor não tenha sabido nem consentido nem confirmado a venda esses factos devem servir de referencial à apreciação da excepção de ilegitimidade, porque se se vier a demonstrar, como o Autor sustenta que o seu pai não teve conhecimento nem consentiu o confirmou a escritura, pode esse direito ser exercido pelo ora Autor, o art.º 877/2, do CCiv deve ser interpretado no sentido de que a anulação só começa a correr a partir do momento em que o filho tiver conhecimento, ou, não o tendo tido em vida, quando o neto tiver conhecimento da celebração do contrato e o direito do Autor não caducou.
I.3. Inconformado com o saneador sentença de 26/10/2018 de fls. 62 e ss (ref.ª), que decidiu julgar improcedente a excepção da ilegitimidade e conhecendo desde logo de mérito julgou totalmente improcedente a acção, consequentemente absolveu os réus do pedido dela apelou o Autor, em cujas alegações, conclui:
I- O direito de pedir a anulação do contrato de compra e venda a filho, sem o consentimento do outro filho, transmite-se ao neto, filho deste último, nos casos em que o mesmo não teve conhecimento em vida do contrato anulável por falta do seu consentimento.
II. Neste caso, não se opõe à transmissibilidade do direito a natureza da relação jurídica em que se integra, nem a própria lei.
III. A solução da intransmissibilidade desse direito não evita, por si só, o estado de incerteza sobre a transacção anulável, durantes períodos mais ou menos longos, uma vez que o pedido de anulação pode ser deduzido pelo titular filho enquanto viver e não começa a contar enquanto este não tiver conhecimento do contrato a que não deu o consentimento.
IV. Tratando-se de um direito potestativo, com natureza preventiva, não é possível defender a sua intransmissibilidade com base no argumento de que o titular falecido pode não ter querido exercê-lo, nos casos em que este desconheceu a sua existência até à morte.
V. O direito a pedir a anulação do contrato de cessão do quinhão hereditário transmitiu-se ao autor, no caso de o seu pai não ter tido conhecimento do mesmo contrato até à data da sua morte.
VI. A douta sentença recorrida violou o disposto no artigo 877º, nºs 1 e 2 e 2025º, nº 1 do CC.
Termos em que, sempre com o douto suprimento, deverá ser concedido provimento ao presente recurso e revogar-se a douta sentença recorrida, com a necessária consequência da remessa da devolução dos autos à 1ª instância, para aí serem submetidos a julgamento e apurada a demais matéria de facto relevante para a decisão, nomeadamente, se o pai do autor teve conhecimento do contrato a que não deu o consentimento durante a sua vida.
I.2. Não houve contra-alegações.
I.3. Nada obsta ao conhecimento do recurso.
I.4: Questões a resolver: Saber se ocorre na decisão recorrida violação do disposto nos art.ºs 877 e 2025/1 do CCiv
II- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É do seguinte teor o saneador sentença:
“…BL... intenta a presente acção declarativa, que segue os termos do processo comum, contra ML..., VM... e LJ....
Peticiona o autor: ser declarada a anulação do contrato exarado na escritura pública outorgada no dia 9 de Dezembro de 2013, no Cartório Notarial de Vila Pouca de Aguiar, a cargo da Notária Licenciada Dra. Sibila André Capitão Calado, de fls. 114 a 115 do livro de notas para escrituras diversas número oitenta do dito Cartório Notarial, celebrado entre a 1ª ré e os 2ºs réus, com os efeitos previstos no artigo 289º, nº 1 do Código Civil.
Entende o autor que o negócio é anulável em face do regime previsto no art. 877º do Código Civil.
Consideram-se assentes os seguintes factos (por acordo entre as partes e por documentos autênticos):
1-AR... faleceu em 29 de Maio de 1991, no estado de casado com a 1ª ré, em primeiras núpcias de ambos, no regime da comunhão geral.
2- AR... não fez testamento ou qualquer disposição de última vontade.
3- Os herdeiros de AR... são o seu cônjuge, ML... - ora 1ª ré - e os dois filhos de ambos, respectivamente, LA... - casado com VL..., no regime da comunhão de adquiridos - e VM... – a 2ª ré mulher -, casada com LJ... – o 2º réu marido -, no regime da comunhão geral de bens.
4- LA... faleceu no dia 2 de Março de 2017, já no estado de divorciado de VL..., que também usou VL... na constância do casamento.
5- A herança de AR..., avô do autor, mantém-se no estado de indivisão.
6-O cabeça-de-casal desta última herança é a 1ª ré, avó do autor.
7-No dia 9 de Dezembro de 2013, no Cartório Notarial de Vila Pouca de Aguiar, a cargo da Notária Licenciada Dra. Sibila André Capitão Calado, a 1ª ré e os 2ºs réus outorgaram uma escritura pública de Cessão da Meação e do Quinhão Hereditário, a qual foi exarada de fls. 114 a 115 do livro de notas para escrituras diversas número oitenta do dito Cartório.
8-Nos termos desta escritura, a 1ª ré, na qualidade de 1ª Outorgante, declarou que, pelo preço de quarenta mil euros que já tinha recebido, cedia a título oneroso aos 2ºs Outorgantes, ora 2ºs réus, a meação e o quinhão hereditário que lhe pertencia na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de AR..., falecido em 29 de Maio de 1991.
9- Nos termos da mesma escritura pública, os 2ºs réus, na qualidade de 2ºs Outorgantes, declararam que aceitavam a mesma cessão nos termos exarados.
10- LA... não outorgou a referida escritura pública.
11- Em escritura de habilitação de herdeiros celebrada em 28/3/2017, o autor declarou LA... não fez testamento ou qualquer outra disposição de última vontade e que é o herdeiro universal de LA..., sendo seu único filho.
Cumpra apreciar e decidir:
O artigo 877º do Código Civil dispõe o seguinte:
“1. Os pais e avós não podem vender a filhos ou netos, se os outros filhos ou netos não consentirem na venda; o consentimento dos descendentes, quando não possa ser prestado ou seja recusado, é susceptível de suprimento judicial.
2. A venda feita com quebra do que preceitua o número anterior é anulável; a anulação pode ser pedida pelos filhos ou netos que não deram o seu consentimento dentro do prazo de um ano a contar do conhecimento da celebração do contrato, ou do termo da incapacidade, se forem incapazes.
3. A proibição não abrange a dação em cumprimento feita pelo ascendente.”
A razão de ser deste preceito, tal como é comummente sublinhado pela doutrina e jurisprudência é a de a lei pretender evitar vendas simuladas em prejuízo das legítimas dos filhos (ou netos) nos casos em que se entende que a simulação seria mais difícil de provar, isto é, nas vendas de pais a filhos ( ou de avós a netos) ("Venda de Padrasto a Enteado", parecer de António Pinto Monteiro, C.J., 1994, Tomo IV, pág. 5/15).
É nosso entendimento, que a legitimidade conferida aos interessados (art. 287.º, n.º 1, do CC) referidos no art. 877.º do CC, tendo em vista a anulação da venda de pais a filhos ou netos, implica um direito que não é transmissível por morte do titular nos termos do art. 2025.º, n.º 1, do CC, não apenas por força do aludido comando legal, mas também porque estamos face a um poder potestativo que não se justifica que tenha existência mais longa do que a do titular.
Nesta senda, é referido Ac. do STJ de 29/05/2012:
“Pode sustentar-se que a lei, prescrevendo a anulabilidade e limitando a invocação da invalidade aos interessados que integrem as categorias acima referidas, prescreve um regime de intransmissibilidade, devendo, assim, por força da lei, haver-se por extinto o direito de pedir a anulação por morte do respectivo titular”, solução que se compreende já que um dos fundamentos de intransmissibilidade é o de evitar que o direito tenha existência mais longa que a do respectivo titular ([6]).
“Ora precisamente porque estamos face a um direito potestativo, de natureza preventiva – que não afasta a possibilidade de se intentar acção de simulação se efectivamente houve a intenção de prejudicar os herdeiros (…) – direito esse que o interessado em vida pode entender não querer exercer por sentir que não houve prejuízo, não nos parece que não seja aceitável a ideia da intransmissibilidade desse direito”.
(…) Aceite a natureza preventiva deste artigo 877.º do Código Civil e a possibilidade de os herdeiros intentarem acção de simulação, parece que, ficando assim salvaguardado o risco derivado de actos praticados que lhes sejam prejudiciais, as vantagens da intransmissibilidade superaram as de uma acção de anulação”.
E conclui, assim, o mesmo douto aresto do STJ que “a não haver intransmissibilidade, a procedência da acção pode verificar-se, como se disse, muitos anos volvidos, considerada a venda impugnada, não se justificando efectivamente um estado de incerteza causado por uma transacção que não violou nenhuma regra que pudesse justificar a procedência de uma acção de simulação (…) (Ac. proferido no proc. 4146/07.6TVLSB.L1.S1, versão integral em www.dgsi.pt).
Sufragando os argumentos e doutrina expostos, propendemos para considerar intransmissível o direito à anulação por se dever considerar extinto por morte do respectivo titular (art. 2025.º nº 1 do CC).
No caso dos autos é irrelevante saber se, tal como alegou o autor na sua petição inicial, o seu pai não tomou conhecimento do negócio de cessão, pelo que não consentiu no mesmo. Com o falecimento do pai do autor, extinguiu-se o direito de anular o negócio, porque, pelas razões supra expostas, entendemos que tal direito não se transmitiu ao autor, não podendo este exercê-lo no presente pleito.
Face às conclusões a que chegámos, fica prejudicada a análise da excepção peremptória de caducidade deduzida pelos réus.
Pelo exposto, julgo totalmente improcedente, por não provada a presente acção e, consequentemente, absolvo os réus do pedido. Custas pelo autor. Registe e notifique.(…)”
III- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
III.1. Conforme resulta do disposto nos art.ºs 608, n.º 2, 5, 635, n.º 4, 649, n.º 3, do CPC[1] são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso. É esse também o entendimento uniforme do nosso mais alto Tribunal (cfr. por todos o Acórdão do S.T.J. de 07/01/1993 in BMJ n.º 423, pág. 539.
III.2. Não havendo questões de conhecimento oficioso são as conclusões de recurso que delimitam o seu objecto tal como enunciadas em I.
III.3. Saber se ocorre na decisão recorrida violação do disposto nos art.ºs 877 e 2025/1 do CCiv
III.3.1. O art.º 877.º n.º1 do CC estatui que “Os pais e avós não podem vender a filhos ou a netos, se os outros filhos ou netos não consentirem na venda”. O preceito limita subjectivamente os casos em que a proibição se aplica: vendas de pais a filhos ou de avós a netos. O legislador não proíbe a venda de filhos a pais ou de netos a avós pelo simples facto de, com este negócio, não se correr o risco de existir alguma simulação prejudicial aos restantes descendentes: ainda que se simule uma compra e venda para esconder uma doação, nestes casos a massa da herança não sofreria nenhum decréscimo, antes pelo contrário. No que diz respeito ao direito de arguir a anulabilidade da compra e venda feita por pais a filhos ou avós a netos, sem consentimento dos descendentes, só surge na esfera jurídica do descendente preterido se este for vivo à data da celebração do contrato. A personalidade jurídica é a aptidão para ser titular autónomo de relações jurídicas e, nos termos do art.º 66.º n.º1 do CC, adquire-se no momento do nascimento completo e com vida. A lei permite que, aos nascituros concebidos ou não concebidos, se façam doações (art.º 952.º do CC) e se defiram sucessões (concebidos - art.º 2033.º n.º1 - e não concebidos - art.º 2033.º n.º2). Já a capacidade de exercer aquele direito é adquirida com maioridade (art.º 130.º do CC): nestes casos o prazo previsto no art.º 877.º n.º1 conta-se a partir da data em que filho ou neto, que não deu o seu consentimento, fizer dezoito anos ou, em caso de incapacidade dos interditos (art.º 139.º) ou incapacidade dos inabilitados (art.º 152.º e segs.) poder ser suprida pela representação legal ou pela assistência. A consequência da falta de consentimento na venda a filhos e netos é a anulabilidade (art.º 877.º n.º2). Pode ser arguida pelos filhos ou netos que não deram o seu consentimento, no prazo de um ano a contar do conhecimento da celebração do contrato ou do termo da incapacidade, no caso de descendentes incapazes. Sendo esta sanável mediante confirmação nos termos gerais (art.º 288.º). A ratio deste preceito, como é entendimento pacífico na doutrina é a protecção da legítima dos filhos ou netos, nas situações em que venham a ser prejudicadas mediante vantagem ou favorecimento de outro descendente, seja filho, neto ou, com respeito por melhor entendimento, bisneto. Para se efectuar uma venda de pais a filhos ou de avós a netos, é exigido o consentimento dos outros filhos ou - se algum filho não puder, no caso de ter morrido antes dessa venda ou não quiser aceitar por repúdio a herança nos termos do art.º 2039.º do CC - dos descendentes deste que ocupem a sua posição na estirpe[2]. E isto é assim porque por força do disposto no art.º 287/1, do Cciv só têm legitimidade para arguir a anulabilidade as pessoas em cujo interesse a lei estabelece, e no caso de venda a um dos filhos a legitimidade para a acção assiste ao filho ou filhos cujo consentimento não foi obtido e era, como no caso dos autos, então vivo. Não o tendo exercido em vida, independentemente da prova do seu efectivo conhecimento da venda durante a sua vida, não se transmite na medida em que o direito de anulação foi conferido intuitu personae pelo art.º 287 ao pai do Autor.[3]
III.3.2. Tanto quanto sabemos esta interpretação é pacífica na jurisprudência. No que ao Ac do STJ de 29/5/2012 citado diz respeito concorda-se em absoluto com a fundamentação para a concussão da não transmissibilidade do direito que para além da natureza intuitu persoane do direito de anulação como da lei decorre acresce a circunstância de o titular desse direito não estar onerado com a prova da simulação ao invés do que aconteceria se a acção tivesse por fundamento a simulação do negócio consubstanciado na escritura, o que significaria que muitos anos depois os envolvidos no negócio se poderiam ver confrontados com uma acção interposta não pelo titular mas por um seu herdeiro fora do direito de representação do art.º 2039 do CCiv, sem que o autor dessa acção tivesse que alegar e provar os factos consubstanciadores da simulação tal como decorre da seguinte passagem:
“…47. A montante, porém, situa-se a questão da intransmissibilidade do direito à anulação por se dever considerar extinto por morte do respetivo titular (artigo 2025.ª/1 do Código Civil). Aceite a natureza preventiva deste artigo 877.º do Código Civil e a possibilidade de os herdeiros intentarem ação de simulação, parece que, ficando assim salvaguardado o risco derivado de atos praticados que lhes sejam prejudiciais, as vantagens da intransmissibilidade superaram as de uma ação de anulação.
48. Note-se que esta ação de anulação nos termos do artigo 877.º do Código Civil não deixa de proceder uma vez provada a venda sem consentimento ainda que nenhum prejuízo afinal tenha efetivamente ocorrido com a transação; assim, a não haver intransmissibilidade, a procedência da ação pode verificar-se, como se disse, muitos anos volvidos, considerada a venda impugnada, não se justificando efetivamente um estado de incerteza causado por uma transação que não violou nenhuma regra que pudesse justificar a procedência de uma ação de simulação. E se a lei limitou aos interessados mencionados no artigo 877.º do Código Civil a legitimidade substantiva para proporem a ação de anulação do artigo 877.º/2 do Código Civil o campo previsional deste preceito exclui a transmissibilidade do direito à anulação nos casos em que o decesso do titular desse direito foi posterior à venda, valendo apenas a assinalada representação para os casos em que o decesso se verificou em momento anterior à transação visto que então, para esse efeito, se impõe a chamada dos filhos que representam o progenitor falecido.
IV- DECISÃO
Tudo visto acordam os juízes na 2.ª secção desta Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.
As custas são da responsabilidade do apelante que decai e porque decai (art.º 527/1 e 2)
Lxa., 24-04-2019

João Miguel Mourão Vaz Gomes
Jorge Manuel Leitão Leal
Pedro Martins

[1] Na redacção que foi dada ao Código do Processo Civil pela Lei 41/2013 de 26/7, atento o disposto nos art.º 5/1, 8, e 7/1 (a contrario sensu) e 8 da mesma Lei que estatuem que o novel Código de Processo Civil entrou em vigor no passado dia 1/09/2013 e que se aplica imediatamente, atendendo a que a acção foi autuada e distribuída inicialmente ao Juiz 1 do Juízo Local Cível de Almada do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa em 16/3/2018 e a data da decisão recorrida que é de 26/10/2018; ao Código referido, na redacção dada pela Lei 41/2013, pertencerão as disposições legais que vierem a ser mencionadas sem indicação de origem.
[2] SANTOS PAIVA, Ana Catarina, “Regime de Venda a Descendentes invocado em contexto societário”, dissertação e mestrado universidade de Coimbra, 2015, pág. 15, disponível on line https://eg.uc.pt/bitstream/10316/34766/1/O%20Regime%20da%20Venda%20a%20Descendentes%20Invocado%20em%20Contexto%20Societario.pdf
[3] PIRES DE LIMA  e NUNES VARELA, anotação ao art.º2025, Coimbra Editora, 2011, vol VI