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RESERVA DE PROPRIEDADE
ADMISSIBILIDADE
CONTRATO DE MÚTUO
Sumário
I - É prática comercial corrente que para a aquisição de bens móveis sujeitos a registo (vg automóveis, motociclos, barcos), porque o comprador não dispõe ou não pretende logo o pagamento integral do respectivo preço, possa recorrer a financiamento através de diversas modalidades de contratos de crédito ao consumo, ficando estabelecido contratualmente que o preço do bem será pago ao vendedor pelo financiador, o comprador pagará a este o valor do capital, juros remuneratórios e encargos em prestações acordadas e que sobre o bem ficará inscrita no registo a reserva de propriedade a favor ou do vendedor ou do financiador. II - Neste caso, a titular do direito de propriedade do veículo vendido reservou para si a propriedade, de acordo com uma relação contratual triangular com os compradores e com a financiadora, sendo ambas as entidades - financiadora e vendedora - pertencentes ao mesmo grupo de empresas. III - O conceito de "qualquer outro evento", previsto no artº 409.º do Código Civil, permite abarcar realidades como sejam a satisfação de crédito de terceiro que não o reservatário originário, nada impedindo a constituição, tal como foi efectuada, nos termos da aludida cláusula contratual do contrato de financiamento de uma reserva de propriedade a favor da entidade que vendeu o veículo automóvel aos insolventes e que vigora como garantia do integral cumprimento das obrigações daqueles relativas ao contrato conexo de financiamento celebrado com um sociedade comercial do mesmo grupo empresarial da vendedora. IV - Todas as partes, que devem agir de boa fé - artº 227º, nº1, CC- sabiam e quiseram que essa reserva de propriedade se destinava a garantir o pagamento das obrigações dos adquirentes do veículo automóvel, posteriormente declarados insolventes, resultantes do contrato conexo de crédito celebrado para pagamento do respectivo preço, sendo lícita de acordo com o princípio da liberdade contratual.
A massa insolvente de B… e de C… veio interpor contra o Banco D…, SA e E…, SA, em 17.03.2016, acção declarativa de condenação na forma de processo comum, pedindo a declaração de nulidade de cláusula de reserva de propriedade, registada a favor da 2ª ré vendedora e exigida no âmbito de contrato de mútuo que, para pagamento do preço do automóvel marca E…, modelo …, com a matrícula .. – HN - .., que adquiriram à 2ª ré, os insolventes celebraram com a 1ª ré e ordenado o cancelamento do respectivo registo, podendo a autora proceder à venda.
As rés contestaram defendendo a validade da cláusula em causa e concluem pela improcedência da acção.
Foi proferido saneador sentença, em 18.06.2018, que julgou procedente a acção e, em consequência:
1) Declarou a nulidade da cláusula de reserva de propriedade a favor de E…, SA sobre o veículo de marca E…, modelo …, com a matrícula .. – HN - ...
2) Determinou o cancelamento do respectivo registo junto da competente Conservatória do Registo Automóvel.
3) Determinou o registo da apreensão para a massa insolvente aqui autora do veículo em causa.
Nessa decisão foram considerados PROVADOS documentalmente por certidão judicial e documento do registo automóvel ou por aceites pelas partes, os seguintes factos:
1. B… e mulher, insolventes nos autos de processo de insolvência n.º7018/12.9TBVNG que correm termos na Secção Cível –J3 da Instancia Local de Vila Nova de Gaia, na Comarca do Porto, celebraram com a 1ª ré, em 27 de Abril de 2009, contrato de financiamento para aquisição a crédito da viatura de marca E…, modelo …, com a matrícula .. – HN - .., conforme contrato junto a fls 92, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
2. Tendo sido fixado o preço a liquidar em prestações, no total de €26.543,28, a ser pago, mediante 96 prestações mensais com inicio naquela data, sendo a primeira de €567,43, e as restantes 95 prestações de €273,43, bem como estipuladas, garantias de pagamento que consistiram na aceitação de livrança em branco, autorização de preenchimento da mesma e reserva de propriedade até integral pagamento da quantia mutuada pela 1ª ré.
3. Nos termos da cláusula terceira das condições gerais de tal contrato “Nos termos do artigo 409º do Código Civil, o Financiador poderá exigir que a venda financiada seja feita com reserva de propriedade a seu favor, ou de qualquer sociedade do Grupo E1…, até que seja paga a totalidade das prestações que lhe são devidas”.
4. Tal reserva de propriedade foi constituída a favor da vendedora, ora 2ª ré, com base no documento de fls. 116, que aqui se dá por reproduzido.
5. O referido veículo foi vendido pela 2ª ré ao insolvente marido, tendo esta recebido, de imediato, o respectivo preço ajustado, que ascendeu a €22.856,88.
6. O veículo foi objecto de apreensão para a massa insolvente, aqui autora.
7. A 1ª ré apenas financiou a aquisição do veículo no âmbito da sua actividade bancária, celebrando em concreto, um contrato de mútuo para o efeito.
*
Desta decisão o réu Banco D…, SA, interpôs o presente recurso, admitido e processado como apelação, apresentando as seguintes conclusões:
1 - A douta decisão ao declarar a nulidade da cláusula de reserva de propriedade a favor de Automóveis E…, SA sobre o veículo de marca E1…, modelo …, com a matrícula .. – HN - .., não considerou o incumprimento do contrato de mútuo por parte dos Autores;
2 - O Recorrente considera a cláusula de reserva de propriedade válida e por conseguinte, não deverá o respectivo registo ser objecto de cancelamento junto da competente Conservatória do registo Automóvel.
3 - A cláusula de reserva de propriedade tem de ser analisada como uma excepção ao regime previsto no art.º 408.º do Código Civil, pois desta forma os efeitos de transmissão da propriedade do bem são suspensos reservando para o alienante a mesma propriedade até que as obrigações assumidas pelo comprador no contrato de Financiamento sejam integralmente cumpridas.
4 - O tempo e o modo actuais do mercado de venda e financiamento automóveis têm de ser analisados de acordo com esta nova realidade económica e a dinâmica da sociedade o que implica que se considere uma nova realidade não comportada e acolhida pelo legislador aquando da entrada inicial em vigor do Código Civil e nesse sentido dispõe o artigo 9.º do Código Civil, daí que a douta decisão não teve em consideração uma interpretação que considere a mens legislatoris, relevando o momento em que a aplicação da lei se concretiza, a sua actualidade e o tempo e realidades próprias do contrato.
5 - A dinâmica económica está neste sentido vertida na legislação em vigor, veja-se para tanto o regime previsto no n.º 3 do Art.º 6.º do DL 359/91, de 21 de Setembro (regime do crédito ao consumo actualmente regulado pelo diploma DL n.º 133/2009, de 02 de Junho) prevê que o contrato regule a cláusula de reserva de propriedade.
6 - A reserva de propriedade clausulada entre as partes teve em vista, por parte dos Autores, obter o financiamento do Recorrente, garantindo assim o crédito que emergiu do contrato de financiamento para aquisição a crédito, sendo que este contrato só existiu porquanto só desta forma se realizou o pagamento do preço do veículo ao alienante, neste caso a E….
7 - O disposto no n.º 1 do Artigo 409.º do Código Civil, in fine, permite às partes estabelecer como condição da efectiva da transferência de propriedade qualquer outro evento futuro que não apenas o cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de compra e venda, ou seja, o simples pagamento do preço do veículo.
8 - O caso sub judice está circunscrito ao que se chama de princípio da autonomia contratual, que se traduz no princípio da liberdade contratual previsto no regime legal do Artigo 405.º do Código Civil.
9 - Os Autores, dentro daquele princípio da autonomia contratual conjuntamente com as Rés, acordaram no pacto que constituiu a reserva de propriedade, e desta forma ao comprarem o veículo com os sinais dos autos associaram o pagamento do preço deste mesmo bem ao efectivo e integral cumprimento do contrato de financiamento.
10 - Os Autores tiveram sempre plena consciência de que o pagamento mensal das prestações decorrentes do contrato de financiamento para aquisição a crédito, estava ligado à constituição da garantia da reserva de propriedade daí que a tenham aceitado e concordado em que a mesma condicionasse a transferência da propriedade.
11 - Os Autores sabem muito bem e já o sabiam no momento em que outorgaram o contrato que a reserva de propriedade foi constituída para assegurar e garantir o cumprimento do contrato de financiamento, sendo certo que a reserva de propriedade se constituiu para tal e nunca para garantia do cumprimento do contrato de compra e venda.
12 - Resulta de forma evidente e muito clara que o preço do contrato de compra e venda, a contrapartida pela transferência da propriedade, foi pago através do financiamento obtido junto do ora Recorrente.
13 - Entre os dois contratos, o de compra e venda e o de financiamento, há uma intrínseca conexão, sendo passível de uma interpretação extensiva a menção, constante no n.º 1 do Art.º 409.º do Código Civil, a “contratos de alienação”.
14 - No presente caso, aplicam-se os legais efeitos decorrentes do artigo 409.º, n.º 1 do Código Civil, ao contrato de mútuo já que este está intrinsecamente ligado ao contrato de compra e venda.
15 - A nulidade declarada na douta sentença, ora em crise, acarreta outras implicações que do ponto de vista legal são inadmissíveis e inaceitáveis face à realidade dos atuais dias e à segurança jurídica que deve presidir à celebração de contratos no sector da venda e financiamento de automóveis.
16 - A douta sentença não relevou o princípio da autonomia contratual, tratando esta matéria como se de um regime imperativo do ponto de vista legal se tratasse.
17 - A douta sentença, com o devido respeito, traduz para o comércio jurídico automóvel uma visão formal porquanto perfilha a nulidade do pacto da reserva de propriedade, porquanto não atende a uma lógica de venda de veículos automóveis, fabricados por grupos industriais cujo financiamento dessa venda assenta em sociedades financeiras, criadas pelos mesmos grupos industriais para impulsionar e permitir a sua alienação ao consumidor final, correndo assim um risco de afastar a justa e equilibrada composição dos interesses das partes envolvidas.
18 - A declaração de nulidade decorrente da douta sentença, acarreta em bom rigor consequências que concretizados em termos práticos levam a que quando o vendedor receba por parte da financeira o pagamento integral do preço referente à aquisição do veículo, situação que configura um cumprimento efectivo e integral do contrato de compra e venda, que a resolução deste mesmo contrato de compra e venda (repetimos, já cumprido) somente fosse feita pelo mesmo vendedor, tendo então e como consequência que seria ainda o vendedor do veículo quem executaria, a seu favor, a cláusula de reserva de propriedade.
19 - O caso dos autos representa uma situação em que a aquisição do veículo foi feita através de financiamento de uma entidade bancária, pelo que a cláusula de reserva de propriedade convencionada só terá sentido quando o fim em vista é o de garantir o cumprimento do contrato de financiamento, sendo ponto assente que o risco do incumprimento corre por conta do mutuante e não do vendedor.
20 - A nulidade decretada na sentença ora em crise, tem como consequência que, em última instância, numa situação de incumprimento do contrato de mútuo, fique vedado ao financiador invocar o incumprimento e a resolução do contrato como fundamento para acionar a reserva de propriedade constituída a seu favor, o que leva a que o financiado, neste caso adquirente do veículo nunca seja desapossado do mesmo, quando nunca chegou sequer a ser proprietário, uma vez que a condição para o ser não chegou sequer a verificar- se: o pagamento integral das prestações do contrato.
21 - A utilidade da reserva de propriedade só não foi concretizada em face da realidade decorrente do artigo 88.º do CIRE, uma vez que os Autores apresentaram-se à insolvência e desta forma para além de terem incumprido o contrato acabaram por não ter sequer restituído o veículo.
22 - A realidade nos tribunais portugueses passa pelo financiador acionar a reserva de propriedade constituída a favor do alienante, tendo em vista salvaguardar o seu crédito, o que faz através do veículo.
23 - O acionamento judicial da reserva tem lugar em consequência do incumprimento do contrato de financiamento, aliás no âmbito do qual foi constituída.
24 - No caso dos autos mais razão subsiste para que a mesma reserva de propriedade se mantenha garantindo pelo menos que o veículo sirva, em última instância como garante de que o contrato seja, ainda que em parte, objecto de pagamento com o produto da venda do veículo.
25 - O entendimento não pode, por conseguinte ser diverso do que vem sendo explanado, dado que estamos na presença de dois contratos diretamente conexionados entre si, e resulta óbvio que se não existisse o contrato de financiamento entre o Recorrente e a Autora, não se teria celebrado o contrato de compra e venda entre esta e o vendedor.
26 - Seguindo o regime do artigo 12.º do DL N.º 359/91, de 21/09 (atual regime regulado no DL n.º 133/2009, de 02 de Junho) concluir-se-á que as obrigações que originaram a reserva de propriedade e que decorrem do contrato de mútuo, a partir do incumprimento deste, corresponderão ao incumprimento do contrato de mútuo e, em consequência, a resolução deste afetará a eficácia do contrato de compra e venda.
27 - O contrato de mútuo que permitiu a compra inicial do veículo não foi integralmente cumprido.
28 - Mesmo que não tendo reclamado o crédito e, fundamento em que se estribaram os Autores, não deixa de ser evidente que o contrato de mútuo não foi cumprido e a dívida permanece por pagar.
29 - Acresce ainda a tudo isto que, ainda que o veículo seja entregue ao Recorrente, sem que o Administrador Judicial emita a competente declaração de venda, o mutuante nada poderá fazer de posse do veículo.
30 - A douta decisão não considera um princípio de justiça e equilíbrio atentos os interesses envolvidas.
31 - Não se pode conceber uma decisão em que o direito de crédito do mutuante é completamente ignorado, o que leva a uma negação da mais elementar justiça: o princípio do “Suum Cuique Tribuere”, ou seja, atribuir a cada um, aquilo que é seu por direito.
32 - Se os Autores não pagaram na totalidade o financiamento obtido para aquisição do veículo automóvel como se pode conceber e admitir que tem o direito de apreender o mesmo veículo para a massa insolvente e desta forma beneficiar da sua venda para diminuir o passivo, mas sacrificando o direito de crédito do recorrente.
33 - A concepção defendida na douta sentença sacrifica a natureza substantiva do direito de crédito dando primazia a uma concepção meramente formalista que resulta da rejeição da interpretação adequada e extensiva do n.º 1, in fine, do Artigo 409.º do Código Civil.
34 - A douta sentença não atentou e relevou o princípio de atribuir a cada um o que é seu e que por direito adquiriu, sendo certo que a justa composição dos interesses e uma aplicação do princípio em apreço permitem desde logo alcançar a justeza da pretensão do Recorrente.
35 - Os Autores não adquiriam o veículo, porquanto o mesmo ficou condicionado ao cumprimento integral do contrato de mútuo.
36 - A douta decisão ora em crise desrespeitou o disposto no artigo 409.º 1, in fine, do Código Civil, assim como o princípio da autonomia contratual previsto no art.º 405.º do Código Civil, o disposto nos artigos 6.º, n.º 3 e Artigo 12.º do DL 359/91, de 21 de Setembro, aplicável ao caso dos autos atenta a data da outorga do contrato de financiamento.
37 - Em face do exposto deve ser reconhecida a validade da cláusula de reserva de propriedade constituída e registada na Conservatória do registo Automóvel competente a favor de E…, S.A. sobre o veículo da marca E…, modelo …, com a matrícula .. – HN - .., revogando-se a douta decisão judicial na sua totalidade.
A ser assim, o modo como este comércio se processa ficará inviabilizado, necessariamente.
Nestes termos, deverá o recurso do executado ser julgado procedente, revogando-se a douta sentença, com a improcedência do pedido dos Autores.
Não foram apresentadas contra alegações.
Colhidos os vistos dos senhores desembargadores adjuntos, cumpre decidir.
* II - DO RECURSO:
O recurso é balizado pelas conclusões das alegações, estando vedado ao tribunal ad quem apreciar e conhecer de matérias que naquelas não se encontrem incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido e no recurso não se apreciam razões ou argumentos, antes questões- artºs 627º, nº1, 635º, nº2, 639º, nºs 1 e 2, NCPC, aprovado pela Lei nº 41/2013 e aplicável aos presentes embargos de executado - neste sentido são a jurisprudência e doutrina correntes (a título de exemplo Acórdão do STJ de 28.05.2009, in www.DGSI.pt, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Conselheiro Abrantes Geraldes, Amedina, p. 84 e 118.
A única questão submetida a este tribunal por via de recurso é a revogação da decisão de direito do saneador sentença recorrido.
* II.1 - Validade da reserva de propriedade:
A única questão a conhecer prende-se com a validade de cláusula de reserva de propriedade inserida no contrato de mútuo celebrado pelos cônjuges B… e C… com a 1ª ré financiadora, a favor da 2ª ré vendedora.
Dispõe o n.º 1 do art. 409.º do Código Civil: "Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento".
A cláusula de reserva de propriedade, nos termos legais do artigo 409.º, do Código Civil de 1966, apenas tem sentido quando relacionada com a transferência de propriedade operada pela compra e venda «nos contratos de alienação».
A reserva ocorre até o cumprimento total ou parcial das obrigações ou até à ocorrência de «qualquer outro evento».
Quer se entenda que a reserva tem natureza resolutiva (determinando o facto que a despoleta a resolução do contrato de alienação) quer se defenda que tem natureza suspensiva (determinando o facto a perfeição do negócio), sempre a mesma se encontra ligada às vicissitudes do contrato de alienação, à sua eficácia plena ou à sua resolução. O inominado evento que a poderá despoletar é assim um evento que «afecte» o contrato de alienação porque apenas a afecção deste poderá fazer reverter a propriedade ao alienante.
A teleologia da cláusula de reserva de propriedade é a de protecção do direito do credor do preço do bem, face à alienação do mesmo pelo devedor/vendedor ou face aos demais credores do vendedor. Razão de ser que encontra a sua sede, quando haja dissociação entre comprador e financiador, na protecção do financiador.
Como se refere no Ac.do STJ de 9.10.2008[1], «apesar da sua função de garantia de cumprimento de uma obrigação pecuniária, não assume a reserva de propriedade a estrutura de garantia real de cumprimento obrigacional, além do mais, por não fazer parte do respectivo elenco típico (art. 1306.º, n.o 1, do CC)».
É prática comercial contemporânea que a aquisição de bens móveis sujeitos a registo (vg automóveis, motociclos, barcos), porque o comprador não dispõe ou não pretende logo o pagamento integral do respectivo preço, recorrer a financiamento através de diversas modalidades de contratos de crédito ao consumo, ficando estabelecido contratualmente que o bem será paga ao vendedor pelo financiador, o comprador pagará a este o valor do capital, juros remuneratórios e encargos em prestações acordadas e que o bem ficará sujeito a uma reserva de propriedade a favor ou do vendedor ou do financiador.
Citando o douto acórdão do STJ de 30-09-2014 (MARIA CLARA SOTTOMAYOR)[2], “(…) a doutrina que melhor explica a figura, e que é hoje maioritária nas ordens jurídicas congéneres da nossa, é a tese da «venda em que o efeito translativo da propriedade é diferido ao momento do pagamento do preço, obtendo, no entanto, o comprador logo com a celebração do contrato uma posição jurídica específica distinta da propriedade, normalmente qualificada como uma expectativa real de aquisição»[3]. O vendedor é titular de um direito real diferente da propriedade plena – a propriedade reservada – e o comprador, por seu turno, titular de um direito de expectativa real, fortemente tutelado, de aquisição do direito de propriedade pleno e, ainda, de um direito de gozo que inere à coisa e é oponível erga omnes. «A propriedade reservada corresponde a uma posição intermédia entre a propriedade plena e o direito real de garantia; a expectativa do comprador é um pré-estádio do direito de propriedade pleno, sem que, todavia, seja equiparado a este». Apesar de o preceito contido no artigo 409.º parecer indicar que o vendedor permanece proprietário pleno da coisa até ao cumprimento das obrigações por parte do adquirente, na verdade, trata-se de uma propriedade limitada à função de garantia[4] ou de uma figura sui generis de natureza mista, com elementos obrigacionais e reais. A reserva de propriedade é assim uma figura que, devido à função assumida no tráfico negocial, pode ser designada como «uma propriedade com função de garantia»[5], a qual não atribui ao titular os direitos de um proprietário pleno, mas uma posição jurídica que lhe permite realizar, à custa do valor da coisa, o respectivo crédito. A titularidade da propriedade reservada até ao pagamento do preço impede os credores do comprador de executarem o bem e visa essencialmente funções de garantia do pagamento do preço, permitindo ao vendedor em caso de não cumprimento pelo comprador, resolver o contrato e exigir a restituição da coisa. A reserva de propriedade assegura ao beneficiário o direito de resolução do contrato, em caso de incumprimento da outra parte, mesmo que o bem tenha sido entregue ao comprador, e a restituição do bem, pois a eventual venda a terceiro pelo comprador é uma venda de bens alheios, e, portanto, nula (arts 892.º, 939.º e 956.º) e ineficaz em relação ao titular da propriedade reservada, que pode reivindicar o bem contra o terceiro. O recurso à reserva de propriedade impede, ainda, que o bem seja executado pelos credores do comprador, podendo o titular da reserva defender-se através dos embargos de terceiro (art 351.º do CPC). A cláusula de reserva de propriedade é, também, oponível, nos casos de insolvência do comprador, desde que tenha sido estipulada por escrito (art. 104.º, n.º 3 CIRE). A concepção da reserva de propriedade como garantia não é incompatível com o princípio da tipicidade dos direitos reais. Tal princípio tem sido entendido de forma flexível, e não impede que o intérprete, com base no regime jurídico estipulado na lei, proceda à qualificação como reais de certas situações jurídicas não nominadas como tal[6]. A propriedade com função de garantia também não encontra impedimento no facto de o direito positivo português não prever a figura da alienação em garantia. Com efeito, tradicionalmente considerados inválidos, estes contratos, que resultam da funcionalização da titularidade real ou obrigacional para a realização de um certo fim, passaram a ser admitidos pela doutrina como consequência do princípio da autonomia privada[7]. Nos casos em que o vendedor é simultaneamente o financiador da aquisição não tem levantado problemas a validade desta cláusula. Contudo, nos casos, como o dos autos, em que o financiador é um terceiro, uma parte da jurisprudência e da doutrina tem entendido que a cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador é nula por impossibilidade legal do objecto da estipulação (art. 280.º do CC) ou por violação de normas imperativas (arts 408.º, 409.º e 294.º do CC. A tese da invalidade assenta no argumento gramatical de interpretação: a letra do art. 409.º, n.º 1 apenas confere ao alienante a possibilidade de reservar para si a propriedade da coisa, não se referindo ao financiador do negócio, o qual, ao conceder ao comprador os meios económicos para realizar o negócio, não intervém no contrato de alienação. Por outro lado, constituiria uma impossibilidade jurídica que o financiador reservasse uma propriedade da qual nunca tinha sido titular e que nunca alienara. Trata-se de um obstáculo conceitual e terminológico, que, contudo, não assume um relevo decisivo na solução dos problemas jurídicos, que deve atender, sobretudo, a critérios teleológicos e valorativos, desde que compatíveis com a letra e com o espírito da lei. (…) Defendemos, portanto, a validade da cessão da reserva de propriedade do vendedor para o financiador, com base, em síntese, nos seguintes argumentos: 1) A natureza da propriedade reservada como um direito que assume uma função de garantia do crédito. 2) Uma interpretação actualista que, respeitando a vontade do legislador e a finalidade da lei, atribua à norma um sentido exigido pelas necessidades actuais de uma economia mais célere na aquisição de bens de consumo, e tenha como consequência a extensão da previsão do artigo 409.º, que se refere a “contratos de alienação”, à compra e venda financiada por um terceiro. 3) O princípio da liberdade contratual, pilar de todo o direito privado, permite que as partes possam, dentro dos limites da lei, celebrar um contrato de cessão da reserva de propriedade ao terceiro financiador, da mesma forma que permite a celebração de contratos inominados, atípicos ou mistos, que surgem habitualmente por iniciativa dos agentes económicos, só vindo a ser regulamentados na lei posteriormente”.
A tese da invalidade de uma reserva de propriedade a favor da entidade financiadora com base no elemento literal do artº 409.º do Código Civil, está plasmada na seguinte parte do sumário do acórdão do TRC de 08-03-2016 (SÍLVIA PIRES)[8]:
“No contrato de mútuo, tendo por finalidade o financiamento de aquisição de um determinado bem, apesar da conexão que possa existir entre os dois contratos, o mutuante não pode reservar para si o direito de propriedade sobre esse bem, pela simples razão que não é o seu titular, sendo juridicamente impossível que alguém reserve um direito de propriedade que não tem. Assim, a cláusula de reserva de propriedade a favor da Requerente, porque legalmente impossível, ter-se-á de considerar nula, nos termos do n.º 1 do art.º 280º do C. Civil, o que determina a improcedência dos pedidos de restituição do veículo e cancelamento da inscrição do registo de propriedade sobre o veículo a favor do Réu”.
Continuamos a concordar com ela[9].
Ora, não é esta a situação dos autos.
Neste caso a reserva de propriedade foi constituída com base no acordado pela financiadora inicial, E2… (Sucursal em Portugal), com a qual os insolventes celebraram um contrato de mútuo para aquisição de um veículo automóvel da marca E…, a favor da vendedora do automóvel aos autores, E…, SA, bem sabendo os autores que aos duas empresas pertencem ao mesmo grupo E1… e que estes dois contratos estavam interligados entre si e que a reserva de propriedade foi feita, nos termos da cláusula terceira das condições gerais do contrato de financiamento, a favor da vendedora e vigorava como garantia até ao pagamento das suas obrigações decorrentes do contrato de mútuo.
Assim, a titular do direito de propriedade do veículo vendido reservou para si a propriedade, de acordo com essa relação contratual triangular com os compradores e com a financiadora, sendo ambas as entidades-financiadora e vendedora- pertencentes ao mesmo grupo de empresas.
Esta é uma realidade comercial corrente no comércio automóvel actual.
Fizeram-no ao abrigo do princípio da liberdade contratual previsto no artº 405º, 408.º e 409.º do Código Civil e de acordo com as normas de natureza dispositiva e não imperativa, dos artigos 408.º e 409.º do Código Civil.
A redacção do artigo 409.º do Código Civil é clara e inequívoca: a reserva de propriedade pode ser condicionada ao cumprimento das obrigações da outra parte (normalmente o pagamento do preço por parte do comprador) ou até à verificação de qualquer outro evento.
O conceito de "qualquer outro evento" permite abarcar realidades como sejam a satisfação de crédito de terceiro que não o reservatário originário, nada impedindo a constituição, tal como foi efectuada, nos termos da aludida cláusula contratual do contrato de financiamento de uma reserva de propriedade a favor da entidade que vendeu o veículo automóvel aos insolventes e que vigora como garantia do integral cumprimento das obrigações daqueles relativas ao contrato conexo de financiamento celebrado com um sociedade comercial do mesmo grupo empresarial da vendedora.
Tal conceito permitirá inegavelmente enquadrar “as obrigações emergentes de um contrato de financiamento em que o próprio vendedor tenha outorgado, ou de cujo clausulado resulte para ele um interesse relevante” (Acórdão da Relação de Lisboa n.º 7622/00 de 26 de Julho de 2000 - não publicado).
“Nada obsta que ao abrigo da liberdade contratual, o devedor possa reservar a propriedade do bem adquirido com o empréstimo a favor do mutuante, como garantia de pontual cumprimento do acordado, O que é reforçado pelo art.º 6, n.º3, f) do DL 359/91, de 21/9 ao referir, em casos similares, o acordo sobre a reserva de propriedade”[10].
O interesse relevante, no presente caso, resulta claro do esquema de aquisição descrito nos autos que permite concluir que a vendedora e a mutuante são entidades que, embora distintas, se encontram comercialmente associadas, e que a comercialização de veículos quando não é feita a pronto pagamento, apenas é possível existindo o financiamento do capital necessário pela ora recorrente, que sucedeu por transmissão do estabelecimento comercial em Portugal à financiadora inicial, ora apelante, tendo, consequentemente, a vendedora do veículo todo o interesse no cumprimento integral pelos insolventes daquele contrato de financiamento.
É também este o entendimento constante do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 06.05.2010, (Carla Mendes)[11]: "É na relação pagamento integral do preço da coisa vendida/transferência da sua propriedade que o pactum reservati dominii encontra a sua razão de ser e daí que é perfeitamente admissível a constituição de reserva de propriedade com vista a garantir os direitos de crédito emergentes de um contrato de mútuo cuja finalidade última é a de assegurar o pagamento da coisa ao seu alienante, o que, de resto, sempre acolheria protecção na própria lei, que permite como condicionante à transferência de propriedade, qualquer outro evento futuro que não apenas o cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de compra e venda"[12].
Está provado que o preço da venda do veículo foi pago através do financiamento da ora apelante-facto provado 5- e não está provado que as obrigações do contrato de mútuo celebrado entre os insolventes e a ora apelante estejam cumpridas. Provado está também que a reserva de propriedade foi feita a favor da vendedora do veículo, de acordo com a cláusula 3ª das condições gerais do contrato de financiamento e o respectivo registo na Conservatória do Registo de Veículos do Porto foi efectuado em 09.06.2009- documento autêntico de fls 143- mediante o requerimento de registo automóvel, subscrito pelo adquirente e vendedora do veículo automóvel, matrícula ... – HN - .., marca E…, junto a fls 116.
Nos termos contratuais do negócio no seu todo, resulta que todas as partes, que devem agir de boa fé - artº 227º, nº1, CC- sabiam que essa reserva de propriedade destinava-se a garantir o pagamento das obrigações dos adquirentes do veículo automóvel, posteriormente declarados insolventes, resultantes do contrato conexo de crédito celebrado para pagamento do respectivo preço, sendo lícita nos termos acordados.
Em face do exposto, entendemos que aquela cláusula de reserva de propriedade constituída e registada na Conservatória do registo Automóvel competente a favor de E…, S.A. sobre o veículo da marca E…, modelo …, com a matrícula ... – HN - .., é válida pelo que, na procedência do recurso, se revoga a decisão recorrida na sua totalidade.
* III- DECISÃO:
Face ao exposto, ACORDAM os juízes nesta Relação em julgar procedente a apelação e revogar a decisão recorrida, pelo que se julga improcedente a acção e absolve-se as rés dos pedidos.
Custas pela apelada.
*
Porto, 21.03.2019
Madeira Pinto
Carlos Portela
Joaquim Correia Gomes
___________________
[1] In www.dgsi.pt.
[2] In www.dgsi.pt.
[3] Cf. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume III, Almedina, Coimbra, 2014, pp. 60-62; Isabel Menéres Campos, A reserva de propriedade…ob. cit., pp. 378-379 e 381. A tese da condição suspensiva tem sido criticada pela doutrina que se tem debruçado sobre o tema da natureza jurídica da reserva de propriedade: Ana Maria Peralta, A posição jurídica do comprador na compra e venda com reserva de propriedade, Coimbra, Almedina, 1990, pp. 142-148, salientando a diferença entre o instituto da reserva e o da condição; Isabel Menéres Campos, A reserva de propriedade…ob. cit., pp. 250-255; Menezes leitão, Direito das Obrigações, III, ob. cit., pp. 56-57, que faz uma síntese dos argumentos contra a tese da condição suspensiva: o cumprimento da obrigação de pagamento do preço não é tecnicamente um evento condicional, pois constitui um dos elementos essenciais do negócio e o vendedor pode proceder à sua cobrança em caso de não cumprimento; a aquisição da propriedade pelo comprador verifica-se no momento do pagamento do preço, e não retroage à data da conclusão do negócio, como exige o art. 276.º do CC; a solução do art. 796.º, n.º 3 do CC, segundo a qual o risco pela perda ou perecimento da coisa corre por conta do vendedor é inaceitável, pois quem tem o gozo, o uso e a fruição da coisa é o comprador.
[4] Parece ser este o entendimento de alguns dos votos de vencido no acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 10/2008, publicado no Diário da República, 1.ª série — N.º 222 — 14 de Novembro de 2008, que versando embora uma questão jurídica distinta da questão agora tratada, com ela se relaciona, dependendo também da natureza jurídica que se reconheça à reserva de propriedade. Veja-se a este propósito, a declaração de voto do Conselheiro Sebastião Póvoas: «Não há pois uma reserva de propriedade em sentido próprio, e nos termos laborados pela doutrina, mas sim uma nova figura que, embora com o mesmo nomen juris prefigura uma diferente modalidade que, como adiante melhor se dirá, tem a natureza primeira de garantia de crédito», designando-a mais adiante de «reserva garantia» ou reserva atípica».
[5] Cf. Isabel Menéres Campos, A reserva de propriedade…ob. cit., p. 195. Defendendo, também, o conceito de propriedade com função de garantia, vide Lima Pinheiro, «A cláusula de reserva de propriedade», in Estudos de Direito Civil, Direito Comercial e Direito Comercial Internacional, almedina, Coimbra, 2006, pp. 16-17 e p. 65 e Luís Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2013, p. 420.
[6] Sobre o princípio do numerus clausus, vide Oliveira Ascensão, A tipicidade dos direitos reais, Lisboa, 1968, pp. 121-122 e Menezes Cordeiro, Direitos Reais, Lisboa, 1993, pp. 334-335, para quem o legislador não tem o monopólio da classificação dos direitos, cabendo ao intérprete a prerrogativa de qualificar determinados direitos como reais, face aos dados legais, incluindo na categoria dos direitos reais situações não qualificadas expressamente como tal pelo legislador, mas a que este atribuiu um regime jurídico semelhante aos direitos reais.
[7] Cf. Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos atípicos, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2009, pp. 258 e ss; Maria João Vaz Tomé/Diogo Leite de Campos, A propriedade fiduciária (Trust). Estudo para a sua consagração no direito português, Coimbra, Almedina, 1999, pp. 199 e ss; Carvalho Fernandes, «A admissibilidade do negócio fiduciário no direito português», in Estudos sobre a simulação, Quid Iuris, Lisboa, 2004, p. 254 e ss.
[8] www.dgsi.pt.
[9] Ver acórdão de 25.09.2008, do ora relator e primeiro adjunto, in www.dgsi.pt.
[10] Acórdão do TRL de 05-07-2007 (AMÉRICO MARCELINO).
[11] Disponível em www.dgsi.pt
[12] No mesmo sentido, ver Acórdãos do TRL, de 5.5.2005, (Carlos Valverde), de 20.10.2005, (Fátima Galante), de 6.3.2007, relatora Graça Amaral, in www.dgsi.