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DIREITO DE ACÇÃO
COMPETÊNCIA
INVENTÁRIO
DIVÓRCIO
Sumário
I - O direito de acesso aos tribunais inclui o direito de acção, ou seja, o direito de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional e a obter deste uma decisão fundamentada, direito que abrange o recurso a procedimentos cautelares, típicos ou atípicos, ou o uso de outros instrumentos que visam antecipar a tutela definitiva do direito ou evitar o prejuízo decorrente da demora na tramitação da acção.
II – A relação processual define-se por referência a uma relação material controvertida construída em função da causa de pedir e do pedido, em que o efeito jurídico visado pela parte activa corporiza o direito de acção enquanto direito ao pedido.
III – Visando a requerente obter uma determinada tutela cautelar para um concreto direito que alega e solicitando essa tutela em juízo, socorrendo-se do meio processual que é o procedimento cautelar comum, a competência em razão da matéria para a sua apreciação é aferida em função do tribunal que for materialmente competente para conhecer da acção, por força do disposto nos artigos 91º, n.º 1 e 364º, n.º 3 do Código de Processo Civil.
IV – De acordo com os artigos 2º, n.º 3 e 3º, n.º 6 do Regime Jurídico do Processo de Inventário aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, a tramitação do processo de inventário cabe, em primeira linha, aos cartórios notariais sediados no município do lugar da casa de morada de família ou, na falta desta, o cartório notarial competente nos termos da alínea a) do n.º 5 deste normativo legal.
V – Contudo, o legislador estabeleceu várias competências exclusivas ou residuais dos tribunais (cf. artigo 6º, n.º 7 do Regime Jurídico do Processo de Inventário), incumbindo-lhes a decisão das questões mais complexas de facto e de direito, por iniciativa do notário ou a requerimento das partes, nos termos do artigo 16º daquele regime.
VI – Face ao estatuído no artigo 122º, n.º 2 da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a competência material para a prática dos actos no inventário subsequente às acções de divórcio, separação de bens ou declaração de nulidade ou anulação de casamento, cabe aos juízos de família e menores, pelo que, tendo em conta que o legislador não atribuiu ao notário competente para a tramitação do inventário a função jurisdicional de instruir e julgar procedimentos cautelares, serão aqueles juízos os competentes para apreciar as providências cautelares conexas com tal processo.
Texto Integral
Acordam as Juízas na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
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I – RELATÓRIO CM… apresentou, em 18 de Maio de 2018, requerimento inicial de procedimento cautelar inominado contra NM… requerendo a providência consistente na retirada do requerido como fiel depositário, bem como da administração de todo o património arrolado à ordem do procedimento cautelar sob o n.º …/… – Juízo de Família e Menores do Seixal Juiz … do Tribunal Judicial e de Comarca de Lisboa, devendo ser nomeado como administrador pessoa idónea, para administrar e ser fiel depositário dos referidos bens.
Alega para tanto, muito em síntese, o seguinte:
- A requerente foi casada com o requerido, segundo o regime da comunhão geral de bens, matrimónio já dissolvido por divórcio, tendo este ficado na posse de todos os bens móveis e imóveis que integram o património comum, desde Janeiro de 2012;
- Em 9-03-2016, a requerente intentou procedimento de arrolamento dos bens comuns, que foi decretado, tendo o requerido sido nomeado fiel depositário e continuado a administrar os bens;
- Desde 2012, o requerido passou a arrendar os bens imóveis, sem a autorização e sem prestar contas, recebendo todas as rendas e rendimentos, assim como não presta contas da administração da sociedade IL…, Lda.;
- O requerido instaurou inventário no Cartório Notarial do Dr. EF…, em Lisboa, onde foi suscitada a incompetência territorial, mas, entretanto, o requerido foi nomeado cabeça-de-casal e apresentou a relação de bens, onde não fez constar as rendas recebidas dos imóveis arrendados, nem as contas bancárias, depósitos e aplicações, relativamente à qual a requerente apresentou reclamação;
- A requerente irá intentar acção de prestação de contas, sendo de recear que o requerido continue com a sua conduta de delapidação e dissipação das rendas e rendimentos dos imóveis, causando prejuízo difícil de recuperar, pelo que, a manter-se a administração dos bens do casal pelo requerido, aquela está na iminência de perder os rendimentos e o restante activo do património comum, pelo que se impõe que seja afastado dessa administração.
Em 22 de Maio de 2018 foi proferido despacho em que, relevando o facto deste procedimento cautelar ser intentado como preliminar de acção de prestação de contas a intentar e respeitar ainda a questão incidental de arrolamento e inventário, atinente à remoção de administrador de bens/cabeça-de-casal, se determinou a junção da decisão que incidiu sobre a competência territorial para o inventário (cf. fls. 53 dos autos).
Junta aos autos a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa no âmbito do processo n.º …/… (cf. fls. 71 a 75) foi proferido, em 10-12-2018, o seguinte despacho: “Conforme já referido a fls. 53, cujo teor se dá aqui por reproduzido, os presentes autos respeitam nomeadamente a questão incidental do mencionado inventário. Pelo que, atento o inventário, se ordena a remessa dos mesmos ao Cartório Notarial id. a fls. 76 v. Notifique. Transitado, remeta.”
É deste despacho que a requerente CM… recorre, concluindo assim as suas alegações:
a. A Requerente nos autos supra referenciados, tendo sido notificada do despacho com a referência 382210467, em que considera que a questão incidental deverá ser resolvida no Processo de Inventário, tendo ordenado a remessa dos mesmos ao Cartório competente para o inventário Cartório da Dra. FL… no Seixal, não concordando com tal decisão vem interpor Recurso;
b. A Requerente interpôs Procedimento Cautelar com os fundamentos já enunciados na Motivação e com o seguinte pedido: pelo exposto, nestes termos e nos demais de direito deverá o presente procedimento cautelar ser procedente por provado devendo o requerido ser retirado como fiel depositário, bem como da administração de todo o património que foi arrolado à ordem do procedimento cautelar sob o nº …/… – Juízo de Família e Menores do Seixal Juiz … do Tribunal Judicial e de Comarca de Lisboa […] e consequentemente deve ser nomeado como administrador pessoa idónea, para administrar e ser fiel depositário dos referidos bens”;
c. O Juiz a quo proferiu decisão considerou por despacho com a referência 37372338, que se devia aguardar pela decisão do Tribunal da Relação sobre a competência para a tramitação do processo de Inventário, dado que nos termos do artigo 947 do CPC, das contas a prestar pelo Cabeça de Casal, são prestados por dependência do processo em que a nomeação haja sido feita, sendo que tal processo é de Inventario. Após decisão do Tribunal da Relação que manteve a decisão de primeira instância e decidiu não conhecer do Recurso do Notário foi, a agora Requerente veio aos autos juntar a decisão do Tribunal da Relação em 03/12/2018, nº 30880830.
d. Por despacho com a referência 382095482 e que agora se recorre, o Juiz a quo ordenou a remessa do presente procedimento cautelar para o Cartório Notarial do Seixal da Dra. FL….
e. O referido despacho não está fundamentado: tendo sido violado o artigo 154, nº 1 que dispõe o seguinte: “ as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida no processo, são sempre fundamentadas”;
f. Para além da falta de fundamentação, de acordo com a Nova Lei do Inventário, não está previsto, que o Cartório Notarial é seja competente para decidir providências cautelares.
g. No caso sub judice, não estamos perante um arrolamento de bens, nem sequer acção de prestação de contas mas sim a retirada do requerido NF…, de fiel depositário, dos bens que fazem parte do Património do Casal, bem como de todo o património e cujo arrolamento foi efectuada no Procedimento Cautelar que correu os seus tramites sob o nº …/…, Juízo de Família e Menores, do Tribunal de Comarca de Lisboa - Seixal, conforme e peticionado.
h. No entanto, não existe norma na Lei do Inventário que confira competência ao Cartório Notarial para decidir questões que não sejam próprios do Inventario, designadamente, Providências Cautelares relativas aos cônjuges, o artigo 3, nº 6 da lei do Inventário, prevê que em caso de Inventário em consequência de separação, divorcio, declaração de nulidade, ou anulação de casamento, é competente o Cartório Notarial sedeado no Município do lugar da Casa de Morada de Família ou, na falta desta o Cartório Notarial competente nos termos da alínea a) do número anterior.
i. Também não existe norma no RGPI que confira ao Notário poderes para o mesmo decidir e fazer executar decisão proferida em Providência Cautelar, atendendo à natureza de tais procedimentos.
j. A competência para o presente processo é, de acordo com o artigo 122 nº 1 alínea c) nº 2 da Lei da Organização do Sistema Judiciário, da competência dos juízos de família e menores, para preparar e julgar todas as acções de divórcio nelas tendo que se incluir os incidentes os procedimentos cautelares, que sejam delas dependentes, bem como ainda as competências que a Lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de processo de divórcio.
k. Também de acordo com o artigo 78º nº 1 do CPC, dispõe que para outros procedimentos para além do arresto, o arrolamento e o embargo de obra nova, é competente o tribunal em que deva ser proposta a acção respectiva.
l. Artigo 40 LOSJ e artigo 64 do mesmo diploma, prevê o seguinte: Competência dos Tribunais Judiciais determina que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
m. A competência do Tribunal em razão de matéria determina-se por referência à data de instauração da acção e afere-se em razão do pedido e de causa de pedir tal como se mostrem estruturadas na petição.
n. O Novo Regime de Processo de Inventário que desjudicializou este procedimento, iniciou-se em a Lei nº 29/2009 de 29 de Julho (alterada pelas Leis 1/2010 e 44/2010 e foi seguida pela actual Lei 23/2013 de 5 de Março e Portarias nºs 278/2013 de 26 de Agosto e 46/2015 de 23 de Fevereiro) tudo na sequência de resolução (Pragmática) do Conselho de Ministros nº 172/2007 de 6 de Novembro.
o. A competência do Juiz de Família e Menores engloba entre outros a prática dos seguintes actos:- Decidir os incidentes suscitados ao abrigo do artigo 24-B e artigo 26 I da Portaria 278/2013 de 26/08 na Redacção de Portaria 46/2015 de 23 de Fevereiro. A competência afere-se em razão do pedido e de causa de pedir tal como se mostrem estruturados na Petição no requerimento, inicial a requerente vem peticionar que o requerido deve ser retirado como fiel depositário, bem como da administração de todo o património que foi arrolado à ordem do procedimento cautelar sob o nº …/… – Juízo de Família e Menores do Seixal Juiz … do Tribunal Judicial e de Comarca de Lisboa, imóveis designadamente: a) fracção autónoma designada pela letra "l", correspondente ao ….0 andar e, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua …, Vila Rocha, freguesia e concelho de Portimão, descrito na CRP de Portimão, sob o n.° …/…, da freguesia de Portimão, inscrito na matriz sob o artigo …; b) terreno para construção, sito na Rua …, lote …, freguesia de Arrentela, concelho do Seixal, descrito na Conservatória do Registo Predial de Seixal, sob o n.° …/…, da freguesia de Arrentela, inscrito na matriz sob o artigo …; c) prédio urbano sito na Rua … n.° …, belverde, freguesia de Amora, concelho de Seixal, descrito na Conservatória do Registo Predial de Amora sob o n.° …/…, da freguesia de Amora, inscrito sob o artigo matricial …; d) recheio da casa de morada de família em Belverde; e) recheio da casa de Portimão; f) duas quotas no valor nominal de 2500,00€, cada, na sociedade comercial por quotas, "IL…, Limitada", com o número único de matrícula e pessoa colectiva …, com sede na Rua …, lote …, em Pinhal de Frades, freguesia de Arrentela, concelho de Seixal; g) gavetão n.° … do ...° talhão no cemitério da freguesia de Amora; h) ciclomotor de marca Saxi, matrícula …SXL …-….”e consequentemente deve ser nomeado como administrador pessoa idónea, para administrar e ser fiel depositário dos referidos bens.
p. O Juiz tem que fundamentar a decisão, pela qual entende que a concreta questão colocada cabe na Competência do Notário, justificando a não complexidade e a natureza própria dos actos e praticar pelo Notário, tendo em conta que estamos perante um Procedimento Cautelar.
q. De acordo com o artigo 154 do CPC, nº 1, “ as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida no processo, são sempre fundamentadas”.
r. De acordo com a lei nº 23/2013 de 5 de Março, que veio instituir o Novo Regime Jurídico do processo de Inventario, no seu nº 7, do artigo 3, dispõe o seguinte: Compete ao Tribunal da Comarca do Cartório Notarial onde o processo foi apresentado praticar os actos que nos termos da presente Lei, sejam da competência do Juiz.
s. Ao contrário do que resulta do despacho recorrido as secções de família e menores exercem ainda as competências que a Lei confere aos Tribunais nos Processos de Inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil.
t. O Despacho recorrido viola os artigos 154 e 362 ambos do CPC, 122 nº 1 alínea c) nº 2 da Lei da Organização do Sistema Judiciário, lei nº 23/2013 de 5 de Março, que veio instituir o Novo Regime Jurídico do processo de Inventário, no seu nº 7, do artigo 3, e artigo 24-B e artigo 26 I da Portaria 278/2013 de 26/08 na Redacção de Portaria 46/2015 de 23 de Fevereiro, e Artigo 40 LOSJ e artigo 64 do mesmo diploma.
Pelo exposto deverá ser revogado o douto despacho, e consequentemente ser declarado competente para a tramitação da presente providência cautelar o Tribunal Judicial e de Comarca de Lisboa, Juízos de Família e Menores.
Não foram apresentadas contra-alegações.
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II – OBJECTO DO RECURSO
Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil[1], é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente,apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. De notar, também, que o tribunal de recurso deve desatender as conclusões que não encontrem correspondência com a motivação (cf. A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3ª edição, pág. 95).
Assim, perante as conclusões da alegação da requerente/recorrente há que apreciar as seguintes questões:
a) A nulidade da decisão por falta de fundamentação;
b) A competência para a apreciação do presente procedimento cautelar.
Colhidos que se mostram os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. – FUNDAMENTOS DE FACTO
Com interesse para a decisão relevam as ocorrências processuais que se evidenciam do relatório supra e, bem assim, os seguintes factos que se extraem dos documentos juntos aos autos:
1. No Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo de Família e Menores do Seixal – Juiz … correu termos um processo de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, sob o número …/…, em que foi autor NM… e ré CM…, tendo sido proferida sentença, em 27 de Março de 2015, transitada em 6 de Maio de 2015, que julgou a acção procedente e decretou o divórcio declarando dissolvido o casamento celebrado entre o autor e a ré no dia 20 de Abril de 1996.
2. No Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo de Família e Menores do Seixal – Juiz … correram termos uns autos de procedimento cautelar de arrolamento de bens comuns, como preliminar de acção de inventário, sob o número …/…, em que foi requerente CM… e requerido NM…, tendo sido proferida decisão em 27 de Julho de2016, transitada em julgado em 16 de Agosto de 2016, que julgou parcialmente procedente o procedimento cautelar e decretou o arrolamento dos seguintes bens:
a) fracção autónoma designada pela letra "L", correspondente ao ….0 andar e, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua …, Vila Rocha, freguesia e concelho de Portimão, descrito na CRP de Portimão, sob o n.º …/…, da freguesia de Portimão;
b) terreno para construção, sito na Rua …, lote …, freguesia de Arrentela, concelho do Seixal, descrito na Conservatória do Registo Predial de Seixal, sob o n.º …/…, da freguesia de Arrentela;
c) prédio urbano sito na Rua … n.º …, belverde, freguesia de Amora, concelho de Seixal, descrito na Conservatória do Registo Predial de Amora sob o n.º …/…, da freguesia de Amora;
d) recheio da casa referida em c);
e) recheio da casa referida em a);
f) duas quotas no valor nominal de 2500,00€, cada, na sociedade comercial por quotas, "IL…, Limitada", com o número único de matrícula e pessoa colectiva …;
g) gavetão n.º … do ….º talhão no cemitério da freguesia de Amora;
h) ciclomotor de marca Saxi, matrícula …SXL …-…,
sendo nomeado fiel depositário dos bens arrolados o requerido.
3. No Recurso de Notário que correu termos sob o número …/…, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo de Família e Menores do Seixal – Juiz … foi proferida sentença, em 18 de Janeiro de 2018, que declarou a incompetência territorial do Cartório Notarial do Exmo. Notário, Dr. EM…, para a tramitação do processo de inventário para divisão de meações por divórcio, requerido por NF…, decidindo ser competente territorialmente para o efeito qualquer Cartório Notarial junto do Município do Seixal, devendo os autos serem remetidos para o Cartório que vier a ser indicado pelo ex-casal.
4. O Notário Dr. EM… interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa da decisão referida em 3., vindo a ser proferido acórdão, em 11 de Outubro de 2018, que declarou a ilegitimidade do recorrente para interpor tal recurso, pelo que não tomou conhecimento deste.
5. Em 25 de Outubro de 2018, no âmbito do processo n.º …/… a correr termos no Cartório Notarial em Lisboa de EM…, foi proferido despacho que ordenou ao ex-casal, NM… e CC…, que indicasse o Cartório Notarial do concelho do Seixal para onde deveria remeter o processo de inventário.
6. Por requerimento de 3 de Dezembro de 2018, CC… indicou o Cartório Notarial da Dr.ª FL….
7. No procedimento cautelar n.º …/… que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo Local Cível do Seixal – Juiz …, que CC… deduziu contra NM…, pedindo a remoção do requerido do seu cargo de fiel depositário e da administração do património comum de ambos arrolado no processo n.º …/… foi proferida decisão, em 8 de Maio de 2018, que julgou aquele tribunal incompetente, em razão da matéria, para a tramitação e decisão do procedimento cautelar comum e indeferiu liminarmente a petição inicial.
8. Nos presentes autos foi proferido, em 22 de Maio de 2018, o seguinte despacho (cf. fls. 53): “Pendeu o divórcio …/… em J…. Pendeu o arrolamento …/… em J…. Pendeu o P. .../… em J…. Em tal P. … decidiu-se da competência territorial de cartório notarial para ulterior tramitação de processo de inventário. Tal decisão estará sob recurso pendente na Relação de Lisboa. Na providência cautelar …/… a instância local cível declarou-se materialmente incompetente, invocando nomeadamente o vertido no artº.122º., nº.1, al.c) e nº.2, da LOSJ. Constata-se que este P. …/… por um lado se mostra intentado como preliminar de acção de prestação de contas a intentar e, por outro lado, respeita ainda a questão incidental dos mencionados arrolamento e inventário, atinente à remoção de administrador de bens/cabeça-de-casal. Cumpre decidir liminarmente. Nos termos do artº.947º., do CPC, as “contas a prestar (…) pelo cabeça-de-casal (…) são prestadas por dependência do processo em que a nomeação haja sido feita.” Tal processo é o de inventário. Que se desconhece neste momento se pende em Tribunal ou Cartório, uma vez que tal questão estará pendente de recurso. Termos em que, antes do mais, se ordena se notifique a requerente, com cópia deste despacho, para, oportunamente, juntar certidão do decidido na Relação, com nota de trânsito em julgado. Imprima PI, docs. que a acompanham e este despacho e junte ao pp., por pertinente.”
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Os factos descritos nos pontos 1., 2., 3., 4., 5. e 7. basearam-se no conteúdo das decisões neles referenciadas e que se afere dos documentos que delas constituem fotocópia, juntos aos autos a folhas 10 verso a 16, 17 a 31, 36 a 38, 71 a 75 e 44 verso a 56, respectivamente.
Os factos enunciados sob os pontos 5. e 6. resultam do conteúdo dos documentos de fls. 75 verso e 76 e 76 verso e 77.
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3.2. – APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
Ainda que a recorrente não tenha suscitado expressamente a nulidade da decisão sob recurso, certo é que não deixou de convocar como fundamento da sua pretensão recursória de ver revogada a decisão que determinou a remessa dos presentes autos para o Cartório Notarial da Dr.ª FL…, a falta de fundamentação de tal decisão, onde não é explicado por que razão se entende que a questão colocada nestes autos cabe na competência do Notário.
As decisões judiciais podem estar feridas na sua eficácia ou validade por duas ordens de razões: por erro de julgamento dos factos e do direito; por violação das regras próprias da sua elaboração e estruturação ou das que delimitam o respectivo conteúdo e limites, que determinam a sua nulidade, nos termos do art.º 615.º do Código de Processo Civil (CPC).
Dispõe o art.º 615º, n.º 1 do CPC o seguinte:
“1 - É nula a sentença quando: a) Não contenha a assinatura do juiz; b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”
Para a correcta interpretação deste preceito importa distinguir entre nulidades de processo e nulidades de julgamento, sendo que apenas a estas últimas se aplica o normativo em referência.
Conforme impõe o n.º 3 do art.º 607º do CPC, o juiz deve especificar os fundamentos de facto e de direito da decisão, observando o disposto quer nesse normativo, quer no respectivo n.º 4, ou seja, o juiz deve discriminar os factos que julga provados e os que julga não provados, analisando criticamente as provas, o que fará em conformidade com a sua livre apreciação (princípio da liberdade de julgamento – cf. n.º 5 do art. 607º do CPC).
É usual verificar-se alguma confusão entre nulidade da decisão e discordância quanto ao resultado, entre a falta de fundamentação e uma fundamentação insuficiente ou divergente da pretendida ou até entre a omissão de pronúncia (quanto a alguma questão ou pretensão) e a falta de resposta a algum argumento de entre os que são convocados pelas partes – cf. A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luí Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, pág. 737.
A nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do art.º 615º do CPC é reconduzida à falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito ou a sua ininteligibilidade, o que tem sido uniformemente entendido pela jurisprudência como abrangendo apenas a absoluta falta de fundamentação e não a fundamentação alegadamente insuficiente ou o desacerto da decisão.
“As causas de nulidade tipificadas nas alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 615º […] ocorrem quando não se especifiquem os fundamentos de facto e de direito em que se funda a decisão (al. b)) ou quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou se verifique alguma ambiguidade ou obscuridade que a torne ininteligível (c)). O dever de fundamentar as decisões tem consagração expressa no artigo 154º do Código de Processo Civil e impõe-se por razões de ordem substancial, cumprindo ao juiz demonstrar que da norma geral e abstracta soube extrair a disciplina ajustada ao caso concreto, e de ordem prática, posto que as partes precisam de conhecer os motivos da decisão, em particular a parte vencida, a fim de, sendo admissível o recurso, poder impugnar o respectivo fundamento ou fundamentos […] Não pode, porém, confundir-se a falta absoluta de fundamentação com a fundamentação insuficiente, errada ou medíocre, sendo que só a falta absoluta de motivação constitui a causa de nulidade prevista na al. b) do nº 1 do artigo 668º citado, como dão nota A. Varela, M. Bezerra e S. Nora (Manual de Processo Civil, 2ª ed., 1985, p. 670/672), ao escreverem “Para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”. Só a total omissão dos fundamentos, a completa ausência de motivação da decisão pode conduzir à nulidade suscitada.” – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2-06-2016, relatora Fernanda Isabel Pereira, processo n.º 781/11.6TBMTJ.L1.S1; no mesmo sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-12-2011, relator Pereira Rodrigues, processo n.º 2/08.9TTLMG.P1S1, disponíveis na Base de dados Jurídico-documentais do Instituto de Gestão Financeira e de Equipamentos da Justiça, IP em www.dgsi.pt[2].
A decisão sob recurso, recorde-se, tem o seguinte teor: “Conforme já referido a fls. 53, cujo teor se dá aqui por reproduzido, os presentes autos respeitam nomeadamente a questão incidental do mencionado inventário. Pelo que, atento o inventário, se ordena a remessa dos mesmos ao Cartório Notarial id. a fls. 76 v. Notifique. Transitado, remeta.”
Ora, a decisão recorrida remeteu e acolheu, dando por reproduzido, o que já antes havia sido ponderado no despacho constante de fls. 53 dos autos, ou seja, o despacho proferido em 22 de Maio de 2018, cujo teor se mostra reproduzido no ponto 8. do elenco factual acima consignado.
Do teor desse despacho é possível descortinar que a decisão de remessa do presente procedimento cautelar para o Cartório Notarial da Dr.ª FL… assentou na circunstância de se ter entendido que este procedimento é preliminar de uma acção de prestação de contas e que esta é questão incidental do arrolamento que foi objecto do processo n.º …/… e do inventário que, conforme depois se apurou, corre termos naquele Cartório Notarial, por se tratar de uma questão de remoção de administrador de bens/cabeça-de-casal, sendo que a prestação de contas a prestar pelo cabeça-de-casal tem lugar por dependência do processo onde a nomeação haja sido feita, ou seja, no processo de inventário.
Se, por um lado, da conjugação destes dois despachos se retira que o tribunal a quo identifica a questão como sendo de remoção do administrador dos bens ou cabeça-de-casal, podendo estar relacionada quer com o procedimento cautelar de arrolamento, quer com o inventário, por outro, é possível concluir que acabou por decidir a remessa para o Cartório Notarial onde prosseguirá o inventário, por a prestação de contas relativamente à qual a providência aqui requerida será cautelar ser dependência desse processo de inventário.
Ainda que parcamente fundamentada e não primando pela clareza da exposição e menos ainda pela clara enunciação dos fundamentos pelos quais se entende incumbir ao senhor notário apreciar e decidir um processo judicial de natureza cautelar, certo é que, posto que deficiente, tal fundamentação existe, sendo possível discernir o motivo que determinou a remessa dos autos para o Cartório Notarial.
Como tal, tendo presente o acima expendido quanto à nulidade decorrente de falta de fundamentação, impõe-se concluir que esta, no caso, não se verifica. Da Competência para a apreciação da pretensão deduzida pela recorrente
A recorrente insurge-se contra a decisão de remessa dos presentes autos para o Cartório Notarial da Dr.ª FL… por este ser apenas competente para a tramitação do inventário e não para decidir procedimentos cautelares, não constituindo estes uma questão própria do inventário.
O art.º 20º da Constituição da República Portuguesa – “1- A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos. 2 – Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas e ao patrocínio judiciário.” – consagra uma panóplia de direitos – como o acesso ao direito, o acesso aos tribunais, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário - que conformam um direito geral à protecção jurídica (tanto contra os particulares como contra os poderes públicos), sendo este um elemento essencial da ideia de Estado de Direito.
O direito de acesso aos tribunais inclui, como é natural, o direito de acção, ou seja, “o direito de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional, solicitando a abertura de um processo, com o consequente dever (direito ao processo) do mesmo órgão de sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada” – cf. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, pág. 163.
No âmbito do direito a uma tutela judicial efectiva inclui-se o direito a um processo justo, baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade, que atenda aos direitos cujo exercício possa ser coarctado pela falta medidas de defesa expeditas, o que se revela no direito de habeas corpus e em algumas providências cautelares.
O art.º 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o art.º 20º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa impõem ao Estado o dever de proporcionar mecanismos de tutela jurisdicional que, com garantia de independência e de imparcialidade, cumpram o objectivo da celeridade e da eficácia na resolução do conflitos e na regulação de interesses.
Numa perspectiva orgânica, em que incumbe aos órgãos jurisdicionais a administração da justiça (cf. art. 202º da Constituição da República Portuguesa), o direito à tutela jurisdicional é o direito de acesso aos tribunais, precisamente, mediante o exercício do direito de acção (no que se inclui o recurso às acções declarativas e executivas ou procedimentos cautelares).
O art.º 2º do CPC transpõe para a lei ordinária o direito à jurisdição, enquanto conjunto das garantias constitucionais conferidas no âmbito da heterotutela ou tutela judiciária (direito a decisão de mérito, princípios da independência e da legalidade, princípio da fundamentação, princípio da publicidade – cf. art.ºs 20º, 202º, n.º 2, 203º, 205º, n.º 1 e 206º da Constituição).
É no contexto do direito de acção, em sentido amplo, que se inscreve o recurso a procedimentos cautelares, típicos ou atípicos, ou o uso de outros instrumentos que visam antecipar a tutela definitiva do direito ou evitar que a demora na tramitação da acção (ou da execução) coloque em perigo a sua utilidade ou eficácia – cf. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, pág. 15.
Note-se que “a função necessariamente instrumental do direito de acção implica que a relação processual apresente um objecto mediato, para o qual concorrem direta (no caso da sentença de mérito) ou indirectamente os efeitos daqueles atos processuais: a “relação material controvertida” […] estruturada em causa de pedir e em pedido, i. e., o efeito jurídico que a parte ativa pretende do tribunal. […] o direito de acção é o direito ao pedido. O fundamento constitucional do direito de acção determina que se tenha direito de acção mesmo que não se tenha razão […]” – cf. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 2018, pág. 34.
A requerente/apelante vem a juízo solicitar uma tutela que configura como tutela cautelar de um direito que delineou do seguinte modo:
- Foi casada com o requerido/recorrido e na sequência do seu divórcio este ficou na posse de todos os bens móveis e imóveis que integram o património comum e como preliminar do inventário, requereu o arrolamento dos bens comuns, o que foi decretado, tendo o requerido sido nomeado fiel depositário, prosseguindo na sua administração;
- No contexto dessa administração, o requerido arrendou os imóveis sem a autorização da recorrente, recebe as rendas e demais rendimentos e destes não presta contas;
- O inventário foi instaurado e na relação de bens que o requerido, nomeado cabeça-de-casal, apresentou não constam alguns dos bens, nem tais rendas;
- A recorrente receia que se o requerido continuar na administração dos bens do casal, perderá rendimentos que jamais poderá recuperar, pelo que, sendo este o receio de lesão do seu direito que invoca, pretende, como medida cautelar relativamente à acção de prestação de contas que irá intentar, obter a remoção do requerido das funções de fiel depositário e a sua substituição por pessoa idónea.
Atendendo ao modo como a recorrente configura a relação material controvertida e considerando o efeito jurídico que pretende obter, não sobram dúvidas que lançou mão do direito de acção, sob a perspectiva da prevenção da violação de um direito ou de acautelamento da sua satisfação, solicitando uma providência cautelar.
Os procedimentos cautelares são um instrumento processual para protecção eficaz de direitos subjectivos e de outros interesses juridicamente relevantes, que representam uma antecipação ou garantia de eficácia relativamente ao resultado do processo principal, não tendo, pois, autonomia (não figuram entre as diversas categorias de acções elencadas no art. 10ºdo CPC).
Assim, os procedimentos cautelares assumem natureza incidental, não dispondo de autonomia e caracterizando-se pela provisoriedade e pela dependência face ao processo principal a que se encontram acoplados - cf. art.º 364º, n.º 1 do CPC; cf. António Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, III Volume - Procedimento Cautelar Comum, 1998, pág. 36.
Aquilo que se pretende com a tutela cautelar é neutralizar os prejuízos que o interessado tenha de suportar, decorrentes da duração do processo declarativo ou executivo. A providência cautelar constitui um meio de afastamento da ameaça de dano a uma posição jurídica reconhecida pelo direito.
Atento o princípio do dispositivo que rege em sede de processo civil, é ao requerente que cabe solicitar e indicar a providência que considera, em concreto, adequada a tutelar a situação de periculum in mora em que se encontre.
O Tribunal a quo entendeu que pretendendo a recorrente alcançar a remoção do fiel depositário ou do cabeça-de-casal nomeado no inventário, de modo a afastar o requerido da administração dos bens arrolados/relacionados, não obstante aquela tenha lançado mão de um procedimento cautelar, visando a obtenção de uma tutela cautelar, tal pretensão haveria de ser apreciada no Cartório Notarial onde pende o inventário, por se tratar de questão incidental por referência da tal processo ou ao processo de arrolamento.
Ainda que a decisão não tenha sido clara quanto à ligação que, a final, entendia existir entre a pretensão aqui deduzida – ou seja, se contende com o processo do arrolamento ou com o processo de inventário ou ainda se com ambos -, certo é que a decisão de remessa dos autos para o Cartório Notarial apenas pode significar que o senhor juiz a quo entendeu que competia a quem dirige o processo de inventário apreciar a presente questão.
Conforme se referiu, o incidente ou providência cautelar em causa visa, em demanda judicial, definir provisoriamente ou conservar um direito já adquirido ou a definir em acção, mas sempre na dependência de uma acção, pendente ou a deduzir, em que se discutirá e definirá o direito em apreço, e a cuja demora se pretende assim obviar – cf. art.º 362º e seguintes do CPC.
Neste caso, a acção definitiva de que a presente providência será dependente foi reportada pela recorrente como sendo a acção de prestação de contas que irá intentar, segundo refere, ao abrigo do disposto no art.º 941º do CPC.
Ora, a competência do Tribunal constitui um pressuposto processual essencial para que um determinado tribunal se possa pronunciar sobre um concreto litígio, sendo aferida em função da relação material controvertida e do pedido formulado pelo autor/requerente no requerimento ou petição inicial.
Com efeito, o n.º 1 do art.º 211º da Constituição da República Portuguesa estipula que “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.”
O poder jurisdicional encontra-se dividido por diversas categorias de tribunais, segundo a natureza das matérias que são suscitadas perante eles – cf. art.º 37º, n.º 1 da Lei n.º 62/2013, de 26-08 (Lei de Organização do Sistema Judiciário[3]) – “Na ordem jurídica interna, a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território.”
De igual modo, o art.º 40º da LOSJ estabelece:
“1 - Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional. 2 - A presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os juízos dos tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada e aos tribunais de competência territorial alargada.”
Ou seja, a competência dos tribunais comuns é meramente residual –cf. art.º 211º, n.º 1 da Constituição e art. 64º do CPC.
A competência em razão da matéria para as providências cautelares, instauradas como incidente, como a generalidade das questões processuais que lhes digam respeito, não tem autonomia, porquanto o procedimento cautelar está na dependência da acção principal, pelo que por força do disposto nos art.ºs 91º, n.º 1 e 364º, n.º 3 do CPC, o tribunal que for materialmente competente para conhecer da acção é também competente para conhecer dos seus incidentes, independentemente de serem processados por apenso ou nos próprios autos, bem como para os procedimentos cautelares que sejam preliminares à propositura da acção de que dependam.
Na verdade, decorre do disposto no art.º 364º, n.º 2 do CPC, que o procedimento (antecipado), requerido antes de proposta a acção é a esta apensado logo que a acção seja instaurada e se a acção vier a correr noutro tribunal, para aí é remetido o apenso, ficando o juiz da acção com exclusiva competência para os termos subsequentes à remessa.
Assim, o juiz que tem a seu cargo a providência cautelar, logo que tenha conhecimento da pendência da acção principal deve, oficiosamente, ou a requerimento dos interessados, remete-la para apensação àquela, assim como o juiz da acção deverá solicitar a sua apensação.
Por outro lado, se a providência for intentada no decurso da acção, o procedimento deve ser instaurado no tribunal onde esta corre e processado por apenso, a não ser que a acção esteja pendente de recurso; neste caso a apensação só se faz quanto o procedimento cautelar estiver findo ou quando os autos da acção principal baixem à 1ª instância – cf. art.º 364º, n.º 3 do CPC.
Consagram, assim, estes normativos, o princípio da coincidência em matéria de competência do Tribunal (seja absoluta, seja relativa), cuja razão de ser radica em se fazer coincidir no mesmo juiz a competência para decidir quer a acção quer o procedimento cautelar, o que concretiza a instrumentalidade e a dependência da providência cautelar em relação à acção – cf. A. Abrantes Geraldes, Temas…, pág. 186; acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19-11-2015, relator Bernardo Domingos, processo n.º 1423/15.6T8STR.E1 eacórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13-11-2018, relatora Cristina Neves, processo n.º 2131/18.1T8OER-L1-6.
Ora, neste caso, anunciando a requerente/apelante que o procedimento cautelar inominado que deduziu visa assegurar o direito que pretende exercer na acção de prestação de contas que irá intentar importa aferir da competência para tal acção.
Importa ter presente, porém, que o requerido tem a administração dos bens comuns, quer porque em sede de procedimento cautelar de arrolamento foi nomeado fiel depositário, quer porque, tendo sido nomeado cabeça-de-casal no âmbito do processo de inventário para partilha dos bens que integram a meação do casal dissolvido, essa administração também lhe compete – cf. art.ºs 406º, n.º 5, 408º e 760º do CPC e art.º 2079º do Código Civil.
No entanto, o que se impõe aqui apreciar é a decisão de remessa dos autos para o Cartório Notarial onde pende o processo de inventário, ou seja, por se ter entendido que a questão deve ser apreciada enquanto questão incidental do inventário.
Em face do Novo Regime Jurídico do Processo de Inventário[4] aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, a tramitação do processo de inventário cabe, em primeira linha, aos cartórios notariais sediados no município do lugar da casa de morada de família ou, na falta desta, o cartório notarial competente nos termos da alínea a) do número anterior do mesmo regime – cf. art.ºs 2º, n.º 3, e 3º, n.º 6, do referido Regime.
No entanto, ainda que eivado pelo objectivo da desjudicialização do processo de inventário, o legislador estabeleceu várias competências exclusivas ou residuais dos tribunais, dispondo o n.º 7 do art.º 6º do RJPI que “Compete ao tribunal da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado praticar os atos que, nos termos da presente lei, sejam da competência do juiz.”
Embora a divisão de competência entre o notário e o tribunal seja expressamente assumida (cf. artigo 3º do RJPI), a deste último é quase residual, não podendo sequer afirmar-se um controlo judicial ou uma análise jurisdicional cabal integrada na decisão homologatória da partilha constante do mapa e das operações de sorteio, tal como se encontra prevista no art.º 66º do RJPI.
A intervenção do tribunal surge então cingida à decisão das questões mais complexas de facto e de direito, por iniciativa do notário ou a requerimento das partes, nos termos do artigo 16º do RJPI onde se estatui que: “1 - O notário determina a suspensão da tramitação do processo sempre que, na pendência do inventário, se suscitem questões que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto e de direito, não devam ser decididas no processo de inventário, remetendo as partes para os meios judiciais comuns até que ocorra decisão definitiva, para o que identifica as questões controvertidas, justificando fundamentadamente a sua complexidade. 2 - O notário pode ainda ordenar suspensão do processo de inventário, designadamente quando estiver pendente causa prejudicial em que se debata alguma das questões a que se refere o número anterior, aplicando-se o disposto no n.º 6 do artigo 12.º 3 - A remessa para os meios judiciais comuns prevista no n.º 1 pode ter lugar a requerimento de qualquer interessado. […]”
No que concerne à matéria que subjaz à providência visada pela recorrente, importa notar que o art.º 45º do RJPI rege especificamente sobre prestação de contas pelo cabeça-de-casal, o que faz do seguinte modo:
“1-O cabeça de casal deve apresentar a conta do cabecelato, até ao 15.º dia que antecede a conferência preparatória, devidamente documentada, podendo qualquer interessado proceder, no prazo de cinco dias, à sua impugnação. 2- Compete ao notário decidir sobre a impugnação prevista no número anterior”.
Assim, no contexto da atribuição genérica de competências em sede de processo de inventário aos notários, compete-lhes também apreciar a prestação de contas que o cabeça-de-casal deve apresentar no prazo estipulado no n.º 1 do mencionado art.º 45º, incumbindo-lhes ainda apreciar a impugnação que incida sobre tais contas – cf. no sentido de que a prestação de contas terá de ser requerida como incidente no processo de inventário notarial, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30-03-2017, relator Eduardo Petersen da Silva, processo n.º 13079/16.4T8SNT.L1-6.
Significa isto que a “acção” a que alude a requerente não pode ser a prevista e regulada no art.º 941ºdo CPC, posto que estando em causa a prestação de contas pelo cabeça-de-casal em processo de inventário que corre no cartório notarial, a apreciação dessas contas tem lugar no processo de inventário, seguindo os trâmites previstos no RJPI.
Pode, contudo, suceder que o notário, confrontado com o âmbito das contas, sua complexidade e natureza da impugnação venha a remeter a questão para apreciação judicial, nos termos do art.º 16º, n.º 1 do RJPI. No entanto, essa é questão que ora não releva.
Não obstante o assim afirmado, tal não significa que a pretensão trazida a juízo pela requerente nestes autos – a obtenção de uma tutela cautelar – deva ser apreciada pelo notário em cujo cartório pende o processo de inventário.
Com efeito, “muito embora a competência atribuída ao cartório notarial seja bastante ampla, em confronto com a atribuída ao Tribunal e ao juiz, a delimitação de competências entre o notário e o juiz não se baseia na dicotomia entre regra e excepção, pois os casos de intervenção do juiz constituem verdadeiramente a concretização de regras gerais, incluindo de princípios de natureza constitucional, visando, para além do mais, tornar efectivos o direito à tutela da tutela jurisdicional efectiva, o direito ao processo equitativo e justo e a reserva jurisdicional.” – cf. Eduardo de Sousa Paiva, O Novo Processo de Inventário - Traves Mestras da Reforma Tutela Jurisdicional Algumas Questões, Revista Julgar, n.º 24, 2014, pág. 111.
Não há dúvida que o legislador entendeu, por razões de eficiência, ao que se depreende, retirar, na sua essencialidade, o processo de inventário da competência dos tribunais, mas não o fez integralmente.
Como se disse, continua a competir ao tribunal da comarca do cartório notarial onde foi apresentado o processo, praticar os actos que, no RJPI, sejam da competência do juiz. Esta norma, porém, define a competência territorial.
Quanto à competência material para a prática dos actos no inventário subsequentes às acções de divórcio, separação de bens ou declaração de nulidade ou anulação de casamento, cabe esta aos juízos de família e menores, conforme se extrai do art.º 122º, n.º 2 da LOSJ onde se estabelece que “Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos.”
Como tal, deve aceitar-se que os juízos de família e menores continuam a ter competência para praticar os actos jurisdicionais relativos aos inventários «instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos, tal como se concluiu no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19-11-2015 acima mencionado.
Independentemente do bem fundado ou não da pretensão deduzida pela recorrente e, mais do que isso, da verificação dos pressupostos processuais gerais a que os procedimentos cautelares também estão sujeitos e que devem ser sindicados pelo tribunal (entre os quais figura o interesse processual, que faltará sempre que o requerente possa atingir a garantia do direito ou a regulação provisória, através de um meio mais adequado que o procedimento cautelar – cf. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa 1997, pág. 234), certo é que os presentes autos configuram um procedimento cautelar, sendo esse o meio processual (bem ou mal) escolhido pela requerente.
Ora, o RJPI não atribui ao Notário a competência para tramitar e julgar os procedimentos cautelares relacionados com o inventário que dirige. Não obstante, e por outro lado, também não se estabelece expressamente que estes são tramitados pelo referido tribunal.
Note-se que na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 105/XII, que está na origem do actual Regime do Inventário, se realçou, precisamente, a necessidade de manter a intervenção judicial, evitando a total subtracção do processo ao controlo jurisdicional:
“A Lei n.º 29/2009, de 29 de Junho, aprovou o Regime Jurídico do Processo de Inventário, atribuindo aos serviços de registos, a designar por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça, e aos cartórios notariais a competência para a realização das diligências do processo de inventário, e reservando ao juiz o controlo geral do processo. Por esta via pretendeu-se, por um lado, desjudicializar o processo de inventário, atribuindo aos conservadores e notários a competência para a prática dos vários actos e, por outro lado, atribuir ao juiz o poder geral de controlo do processo. […]
Relativamente à Lei n.º 9/2009, de 29 de Junho, o Regime Jurídico do Processo de Inventário aprovado pela presente lei contempla diversas alterações em matéria de repartição de competências para a prática de actos e termos do processo de inventário, criando um sistema mitigado, em que a competência para o processamento dos actos e termos do processo de inventário é atribuída aos cartórios notariais, sem prejuízo de as questões que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto e de direito, não devam ser decididas no processo de inventário, serem decididas pelo juiz do tribunal da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado.
[…] entende o Governo que o controlo do processo por parte do juiz não pode ser devidamente exercido quando este não tem contacto direto com o processo e com as partes. A atribuição ao juiz de um mero poder de controlo do processo não permite alcançar os objetivos pretendidos, desde logo porque o juiz não tem sequer conhecimento da existência do processo.” – acessível em http://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063446f764c324679595842774f6a63334e7a637664326c756157357059326c6864476c3259584d7657456c4a4c33526c6548527663793977634777784d44557457456c4a4c6d527659773d3d&fich=ppl105-XII.doc&Inline=true.
Não tendo o legislador atribuído ao notário competente para a tramitação do inventário a função jurisdicional de providenciar provisoriamente pela definição do direito em crise, ou seja, instruir e julgar procedimentos cautelares, não se pode deixar de concluir que a competência descrita no n.º 2 do art. 122º da LOSJ abrange as providências cautelares conexas com os processos aí tipificados, que, não tendo sido desjudicializadas, pela sua natureza, têm de ser decididas pelo tribunal competente – cf. neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-02-2019, relator José Flores, processo n.º 1551/18.6T8VRL.G1.
Em consonância, a conclusão a retirar é que o presente litígio deve ser apreciado e julgado pelos juízos de família e menores, não sendo da competência do cartório notarial.
Como tal, a apelação deve proceder, com a consequente revogação da decisão, determinando-se a competência do Juízo de Família e Menores do Seixal para a apreciação da presente causa.
*
Das Custas
De acordo com o disposto no art. 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Nos termos do art. 1º, n.º 2 do RCP, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
A recorrente obtém vencimento na pretensão recursória que trouxe a juízo mas não há decaimento do recorrido.
Ainda que em razão do proveito houvesse de ser a recorrente a suportar as custas (nos termos do art. 527º, n.º 1, in fine do CPC), certo é que estas integrariam apenas as custas de parte, que aquela, porém, não suportou por beneficiar de apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento de taxa de justiça e encargos e nomeação de pagamento da compensação de patrono (cf. fls. 58 a 60), pelo que não há lugar a condenação em custas.
* IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em:
a) julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogar a decisão recorrida, declarando o Juízo de Família e Menores do Seixal competente para a apreciação do presente procedimento cautelar.
Sem custas.
*
Lisboa, 12 de Março de 2019
Micaela Sousa
Maria Amélia Ribeiro
Dina Maria Monteiro
[1] Adiante designado pela sigla CPC. [2] Todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem encontram-se disponíveis na Base de dados Jurídico-documentais do Instituto de Gestão Financeira e de Equipamentos da Justiça, IP em www.dgsi.pt. [3] Adiante designada pela sigla LOSJ. [4] Adiante designado pela sigla RJPI.