RECURSO DE REVISÃO
NOVOS FACTOS
NOVOS MEIOS DE PROVA
IDENTIDADE DO ARGUIDO
CORRECÇÃO DA DECISÃO
CORREÇÃO DA DECISÃO
Sumário


I  -   Não há lugar a revisão da sentença penal condenatória quando o condenado é a pessoa física que foi julgada e que cometeu o crime objecto da condenação, embora identificada com os elementos de identidade doutra pessoa.
II -  Nessa situação, feita a prova da verdadeira identidade do condenado, deve ser oficiosamente ordenada a correspondente correcção da sentença, nos termos do art. 380.º, do CPP, e providenciar-se pela correcção, em conformidade, dos elementos remetidos ao registo criminal.

Texto Integral

            Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1.  O Ministério Público na Instância Local – Secção de Pequena Instância Criminal da comarca de Lisboa, invocando o disposto nos arts. 449º nº 1 al. d) e 450º nº 1 do Código de Processo Penal, requereu o recurso extraordinário de revisão da condenação de AA, no âmbito do processo sumário nº 506/11.6PULSB. 243/06.3SILSB daquele Juízo, com os fundamentos que sintetizou nas conclusões que se transcrevem:

1°. Por Sentença já transitada em julgado, foi o arguido AA condenado pela prática de um crime de introdução em lugar vedado ao público previsto e punido pelo art. 196° do Código Penal na pena de 30 dias de multa à razão diária de € 6,00 num total de € 180,00 (cento e oitenta Euros).

2°. Sucede que toda a nova prova junta aos autos suscita indícios seguros de que o autor dos factos não foi AA.

3°. Na verdade o autor dos factos não se encontrava documentado, foi identificado na Polícia Judiciária através de resenha, nunca tendo comparecido em nenhuma audiência de julgamento, nem mesmo após tentada a sua detenção.

4°. Aquando da notificação pessoal da sentença proferida nos nossos autos a AA veio o mesmo informar os autos não ter sido o autor dos factos e ter apresentado denuncia por alguém ter "usurpado" a sua identificação

5°. Na senda de tal denúncia foram empreendidas diligências de prova no âmbito do Proc 5340/11.0TDLSB no qual procedeu-se à inquirição de AA que manteve o teor da denúncia de usurpação de funções identificando o seu autor como sendo BB; à junção de fotos deBB; às declarações dos agentes da PSP que procederam à intercepção e detenção do autor dos factos que confirmaram sem dúvidas ter sido BB o autor dos factos; às declarações da operacional de escola onde ocorreram os factos que no mesmo sentido identificou BB e à própria cópia das resenhas efectuadas na Policia Judiciária das quais ressalta que a resenha efectuada no âmbito dos nossos autos ao autor dos factos que as impressões digitais do autor dos mesmos não têm correspondência com as que o SEF possui sobre AA.

6º Pelo que pugnamos para que seja autorizada a revisão da Sentença – artºs 449º, nº 1, al. d) e 450º, nº 1 ambos do C.P.P.

 

Pela juiz do processo não chegou a ser prestada a informação que o art. 454º do Código de Processo Penal se refere. 

Neste Supremo Tribunal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, no visto, emitiu fundado parecer em que se pronuncia no sentido de que será de denegar a pedida revisão de sentença, sem prejuízo de se atingir o mesmo objectivo através da “rectificação oficiosa dos dados de identificação do condenado, a levar a efeito na 1ª instância”.  Considera para tanto que, em situações similares, o Supremo Tribunal de Justiça tem adoptado fundamentalmente uma de duas posições: a que entende que, tendo sido julgada e condenada a pessoa física que cometeu o crime, não há lugar a recurso de revisão, mas à correcção do erro de identificação nos termos do art. 380º nº 1 do Código de Processo Penal; a que considera haver fundamento para o recurso de revisão, fundado na existência da factos novos. Manifesta a sua propensão para a solução adoptada no acórdão de 28-01-2004 (CJ-STJ, 2004, I, 183), nos termos do qual «a falsa identidade do arguido como fundamento do recurso de revisão não pode ter uma solução unitária, antes dependendo das circunstâncias do caso. No essencial, importa determinar se a dúvida, divergência ou incompletude de identificação se refere exclusivamente ao sujeito ou também ao julgamento; no primeiro caso, será de efectuar apenas a correcção da sentença nos termos do art. 380º do CPP, no segundo, poderá ter lugar o expediente excepcional de revisão da sentença».

Examinando a esta luz o caso dos autos, considera o Ministério Público que “a divergência de identificação se refere exclusivamente ao sujeito, que não também ao julgamento. Não se trata, com efeito, de afirmar aqui qualquer "non liquet" sobre a pessoa que efectivamente foi objecto do julgamento. O mesmo é dizer que não se trata de fazer constar que a pessoa condenada foi Alexandru Luchlan, e não que não foi AA. Do que se trata é, antes, de afirmar e fazer constar que a pessoa condenada não tem a identidade (que indicou): AA(com os demais elementos que constam da sentença certificada fls. 44 e segs.), tratando-se antes de BB, nascido no dia ......., na Moldávia, titular do BI Moldavo n.º 0000000 filho de CC e de DD, e melhor identificado a fls. 73.”


2.  Nos termos do disposto no art. 29º nº 6 da Constituição da República Portuguesa, os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos.

            A inserção deste preceito na Lei Fundamental inscreve-se na pressuposto de que o caso julgado não é um dogma absoluto. Destinado a garantir a certeza e a segurança do direito, mesmo com sacrifício da justiça material, o caso julgado visa assegurar aos cidadãos a sua paz jurídica e evitar o perigo de decisões contraditórias. Todavia, deve ceder sempre que a injustiça da decisão seja seriamente posta em causa por posteriores elementos de apreciação. Visando obter, através da repetição do julgamento,  uma nova decisão judicial que se substitua a uma outra já transitada, o recurso extraordinário de revisão destina-se assim a possibilitar a realização de novo julgamento, com base em novos dados de facto. A lei limita, no entanto, os casos em que a revisão é possível, ao enunciar taxativamente os fundamentos do respectivo recurso extraordinário, que o número 1 do art. 449.º do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, fixa em sete.

            O Ministério Público requerente fundamenta o seu pedido na al. d) do nº 1 do referido art. 449º, sendo nesse preceito que se deverá focar, por ora, a atenção. Aí se estabelece ser possível a revisão pela descoberta de novos factos ou meios de prova que, confrontados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.
Tem o Supremo Tribunal entendido por factos novos, ou novos meios de prova, “aqueles que não tenham sido apreciados no processo que levou à condenação, por serem desconhecidos da jurisdição no acto do julgamento e que possam ter reflexos na culpabilidade do condenado” (ac. de 24-09-2003, proc. 2413/03), sendo necessário que da descoberta desses outros factos resulte a existência de dúvidas fundadas acerca da justiça da condenação.

3.  Conforme o Ministério Público neste Supremo Tribunal referiu, a necessidade de correcção da falsidade da identificação do condenado deu origem a duas correntes neste  Supremo Tribunal: uma, segundo a qual a verificação de erro nos elementos de identificação da pessoa condenada, cuja identidade foi assumida por outrem, constitui facto novo ou novo meio de prova, que é fundamento do recurso de revisão; outra, que reduz a questão a uma situação em que se impõe a necessidade de rectificação da sentença condenatória, a levar a efeito nos termos do art. 380º do Código de Processo Penal.
 O mecanismo do recurso extraordinário de revisão responderia à questão se, no caso presente, AA tivesse sido condenado na sua pessoa e se se viesse a verificar, posteriormente, que não fora esse indivíduo, mas um terceiro, quem cometeu o crime. O meio próprio para repor a justiça seria, então, sem dúvida, o recurso extraordinário de revisão.
Não foi isto, porém, que aconteceu no caso em análise.
Com efeito, no dia 17 de Março de 2011, quando, pelas 18H56, elementos da Policia de Segurança Pública se deslocavam a uma casa devoluta sita na Estrada de A-da-Maia, em Benfica, Lisboa, por haver suspeitas de ali se encontrarem indivíduos a consumir estupefacientes, verificaram que um indivíduo do sexo masculino se encontrava a escalar o muro da Escola Básica do 1º Ciclo Professor ......, o qual tem a altura de 1 metro encimado por vedação com igualmente 1 metro. Perseguido, tal indivíduo foi interceptado já no interior da escola, tendo sido detido, e por não ser portador de documento de identificação válido, nem ser possível identificá-lo, foi conduzido à Polícia Judiciária para ser feita a resenha.  Identificou-se como AA, nascido em......, na Moldávia, filho de CC e de DD, residente na ......, ......e, em Mem Martins.  Esse indivíduo foi constituído arguido e submetido a termo de identidade e residência. Sujeito a julgamento em processo sumário, não compareceu à audiência para a qual foi notificado, a qual, tendo sido iniciada por o tribunal haver inicialmente entendido que a presença do arguido não era indispensável para a descoberta da verdade material, foi, no entanto, interrompida com vista a permitir que o arguido esclarecesse os motivos da sua conduta. Contudo, não compareceu, nem foi possível fazê-lo comparecer às demais sessões da audiência. Foi condenado como autor do crime de introdução em lugar vedado ao público na pena de 30 dias de multa à taxa diária de € 6,00, o que perfaz € 180,00, a que correspondem 20 dias de prisão subsidiária.
Notificado para pagar a multa e custas do processo, o cidadão AA dirigiu-se à esquadra da Polícia de Segurança Pública, declarando não ter praticado os factos que motivaram a sua condenação, tendo sido seu primo BB quem tinha feito uso abusivo dos seus elementos de identificação, quando, perante os órgãos de polícia criminal, se identificou como sendo AA e indicando os elementos de identificação a este pertencentes.
Foi instaurado no DIAP o inquérito nº 506/11.6PULSB. tendo sido possível concluir que BB é a pessoa que, no dia 17-03-2011, pelas 18H56, se introduziu no espaço vedado da Escola Básica do 1º Ciclo Professor ......, sendo reconhecida como tal pelo agente da PSP que lavrou o auto de notícia e pela assistente operacional da escola, EE, perante o respectivo cliché fotográfico
 Deste inquérito faz parte a ficha biográfica da Polícia Judiciária, da qual consta que as impressões digitais colhidas aquando da resenha comparadas com as constantes do registo no SEF em nome de AA não são identificáveis entre si, tendo sido produzidas por pessoas diferentes.
Verifica-se, assim, que a pessoa física, que, tendo escalado o muro, se introduziu nas instalações da Escola Básica, foi a mesma que foi julgada e condenada e a quem foi imposta a pena.     Ou seja, verdadeiramente não foi AA quem foi condenado em 30 de Março de 2011 como autor do crime de introdução em lugar vedado ao público, mas a pessoa física que, dando o nome daquele, foi detida em flagrante delito. No inquérito nº 5340/11.0TDELSB, esse indivíduo foi identificado como sendo BB, nascido em 3-9-1978, em ......, na Moldávia, filho de CC e de DD, portador do bilhete de identidade nº 0000000 emitido em 15-11-2011 pela Moldávia, e residente na ......, nº ......e, em Mem-Martins - Sintra, o qual foi constituído arguido, mas não chegou a ser interrogado como tal nesse inquérito por, entretanto, abandonado voluntariamente o país, dado que se encontrava em situação ilegal. O referido inquérito foi arquivado por, no âmbito do processo nº 506/11.6PULSB, o arguido não ter sido interrogado, e, portanto, não ter sido advertido, nos termos do art. 141º nº 3 do Código de Processo Penal, não se encontrando por isso preenchidos os elementos do art. 359º nº 1 do Código Penal. Por outro lado, porque os factos foram cometidos antes da vigência do art. 348º-A do Código Penal, o qual estabelece como crime a prestação de falsas declarações sobre a identidade perante autoridade pública ou funcionário no exercício das suas funções.

4.  Em situação idêntica, julgou-se no acórdão deste Supremo Tribunal de 11 de Março de 1993 – proc. nº 43.414 (CJ – Acs S.TJ, I, 1, 212) do seguinte modo: “os factos descritos são acções humanas voluntárias, atribuídas por lei a uma pessoa física. O que releva, nesta parte, é o ente que age e procede e não tanto o titular dos direitos e obrigações correspondentes, a pessoa jurídica a que se reporta o requerente. … Os factos em si mesmos não foram postos em causa pela rectificação da identidade de quem os praticou e, por extensão, não se podem considerar falsos os meios de prova de que o tribunal se serviu para os dar como assentes.  O que aconteceu foi tão somente um erro na identificação do arguido submetido a julgamento …. De resto, nem é essencial, na sentença, a identificação do arguido por forma coincidente com  dos registos oficiais, porquanto a lei se contenta agora com simples indicações tendentes à sua identificação até onde isso for possível (art. 324º nº 1 Al. a) do C.P.P.)”

No acórdão deste Supremo Tribunal, de 27-03-2003 – proc. 876/03, relatado pelo Cons. Pereira Madeira argumentou-se que: “o Código de Processo Penal de 1929 determinava que, ‘quando fosse certa a pessoa que foi réu no processo, mas inexacta a sua identificação’, se procedesse - para a tornar exequível contra essa ‘certa pessoa que fora réu no processo’- à ‘rectificação desta nos autos, depois de realizadas as diligências necessárias’ (art.º 626º § único).  Nesse sentido, o parecer de 10 de Novembro de 1949 da Procuradoria Geral da República (BMJ, 18 pág 144) apontava para um ‘processo incidental’ como ‘forma de provar a falsidade’ em que o tribunal, ‘uma vez feita a prova’, ‘ordenasse oficiosamente as rectificações e cancelamentos necessários no registo criminal’. Nesse acórdão entendeu-se que não se encontra preenchido o condicionalismo da revisão de sentença contemplada no art. 449º do Código de Processo Penal, não havendo lugar à revisão da sentença quando é condenada a pessoa física que cometeu um crime, embora identificada com outro nome.

Assim também se decidiu no ac. de 20 de Fevereiro de 2003 – proc. 395/03, relatado pelo Cons. Carmona da Mota, ao determinar-se que “haverá, simplesmente, que averiguar, incidentalmente, a verdadeira identidade do condenado e, uma vez feita a prova, ordenar oficiosamente as correspondentes rectificações (na sentença) e cancelamentos (no registo criminal)”.

Neste mesmo sentido, decidiram igualmente os acórdãos de 11-05-2006 - Proc 1171/06, de 30-04-2009 - Proc. 243/06.3SILSB-A.S1, de 26-01-2012 - Proc. 31/10.2 GTCBR-A.S1 e de 15-10-2015 – Proc. 202/06.6PAMTA-A.S1, todos da 5 Secção.
 

5.  Em suma:

1. Não há lugar a revisão da sentença penal condenatória quando o condenado é a pessoa física que foi julgada e que cometeu o crime objecto da condenação, embora identificada com os elementos de identidade doutra pessoa.

2. Nessa situação, feita a prova da verdadeira identidade do condenado, deve ser oficiosamente ordenada a correspondente correcção da sentença, nos termos do artigo 380.º do CPP, e providenciar-se pela correcção, em conformidade, dos elementos remetidos ao registo criminal.          

Termos em que acordam no Supremo Tribunal de Justiça em denegar a revisão pedida pelo Ministério Público.

           

Sem custas, por o Ministério Público delas estar isento.

                                              

Lisboa, 17 de Novembro de 2016

Os Juízes Conselheiros

                                

 Arménio Sottomayor (Relator)                    

   Souto de Moura