I - O regime especial relativo ao atraso no pagamento de transações comerciais, estabelecido no DL n.º 32/2003, de 17-02, prevê duas formas processuais a seguir quando, havendo oposição, os autos são apresentados à distribuição: (i) se o valor da ação é superior à alçada da Relação, segue-se a forma do processo comum; (ii) se esse valor for inferior a essa alçada, segue-se a forma da ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos.
II - O valor da ação subsequente a um procedimento de injunção determina-se de acordo com o art. 18.º do DL n.º 269/98, de 01-09, segundo o qual o valor processual da injunção e da acção declarativa que lhe seguir é o do pedido, atendendo-se, quanto aos juros, apenas aos vencidos até à data da apresentação do requerimento.
III - Tratando-se de uma acção especial, a mesma é regulada pelas disposições que lhe são próprias – cfr. n.º 1 do art. 549.º do NCPC (2013).
IV - Seguindo o procedimento de injunção, os termos da ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergente de contratos, não é admissível reconvenção.
Em 2013.11.22, AA limitada apresentou requerimento injuntivo contra a requerida BB limitada, pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de 18.111,24 €.
Alegou, em resumo, que no âmbito das relações comerciais estabelecidas entre a requerente e a requerida, forneceu vinhos da sua produção à requerida e emitiu várias faturas, no total de 17,169.37€ e que as faturas venceram-se 30 dias após a respectiva emissão e não foram pagas, apesar de terem sido recebias as mercadorias e ter sido repetidamente pedido o pagamento.
Em sede de oposição ao requerimento de injunção, a ré, ali requerida, veio defender-se por impugnação quanto a uma das faturas e por exceção, alegando em síntese que:
- é verdade que a requerida adquiriu à requerente as mercadorias descriminadas nas faturas referidas no requerimento de injunção, com exceção da fatura n.º 2634 de 12 de Março de 2013 no valor de 825,55€, existindo tal fatura em débito;
- requerente e requerida celebraram acordo de distribuição em exclusivo de vinhos da requerente, qualificado com contrato de concessão comercial e que esteve em vigor entre Janeiro de 2011 e Maio de 2013;
- de modo a fazer a colocação de vários produtos da requerente, a requerida realizou inúmeros investimentos; utilizou a sua influência no mercado, conhecimento e prestígio comercial para promover os produtos da Requerente e desenvolveu várias iniciativas de marketing, incluindo ações de prova de vinhos; investimentos que, nos anos de 2011 a 2013, ascenderam a 16.054,59€;
- com o desenvolvimento da atividade de promoção, os vinhos da requerente passaram a ser comercializados em vários locais e estabelecimentos do Algarve;
- a atividade desenvolvida pela requerida permitiu o aumento de vendas nos clientes já existentes, tendo a requerente revelado satisfação pelo trabalho e empenho da requerida;
- no dia 7 de Maio de 2013, sem que nada fizesse prever, a requerente cessou de forma unilateral o acordo que tinha com a requerida, passando a vender os seus produtos a outros distribuidores e revendedores;
- a rutura afetou o prestígio e a credibilidade empresarial da requerida; ficando impossibilitada de cumprir diversos acordos já firmados com clientes a nível nacional;
- a requerente entrou em contacto com os clientes angariados pela requerida para fornecer diretamente, obtendo ganhos diretos na sua margem de comercialização;
- as vendas vinham a crescer ao longo dos anos de atividade desenvolvida pela requerida;
- a requerida tem direito à indemnização pela clientela nos termos do art.º 28.º, n.º 1 al. c) do Decreto-lei n.º 178/86 de 3 de Julho, aplicável por analogia;
- a requerida é, assim, credora da requerente no valor total de 99.019,05 €, resultando um saldo, após compensação com os valores peticionados, de €85.575,23.
Pediu, em reconvenção, a condenação da requerente no valor de 84.400,78 €, após a dedução do valor de 16.343,82 €.
Em 2014.02.17 e no Tribunal Judicial de Albufeira, foi proferida decisão em que não se admitiu a reconvenção.
A ré requerida, inconformada, deduziu apelação.
Depois de realizado o julgamento, foi proferida sentença que, além de se fixar o valor da ação em 18.958,24 €, condenou-se a ré a pagar à autora a quantia de 16.343,82 €, acrescida de juros no valor de 749,88 €, e absolveu-se a mesma no demais pedido.
Desta sentença recorreu a ré, impugnando o despacho que não admitiu a reconvenção e em relação à sentença, impugnando a matéria de facto, bem como a solução de direito.
Em 2014.12.16, foi proferido acórdão na Relação de Évora, em que se confirmou as decisões da 1ª instância quanto à não admissão da reconvenção e ao mérito da causa.
Novamente inconformada, a ré deduziu revista excecional, que foi admitida apenas quanto à questão da admissibilidade da reconvenção.
Não houve contra legações.
Cumpre decidir.
As questões
Tendo em conta que
- o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº3 e 690º do Código de Processo Civil;
- nos recursos se apreciam questões e não razões;
- os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido
a única questão proposta para resolução consiste em saber se a reconvenção devia ser admitida.
Os factos
Os factos a ter em conta são os decorrentes da tramitação processual, acima referida.
Mais se toma em conta, ao abrigo do disposto no nº4 do artigo 607º do Código de Processo Civil, que o contrato invocado pela autora foi celebrado em 2011.
Os factos, o direito e o recurso
Na decisão proferida na 1ª instância não se admitiu o pedido reconvencional formulado pela ré porque se entendeu que sendo a presente ação para pagamento de remunerações de transações comerciais e uma vez que o valor das quantias peticionadas pela autora não era superior à alçada da Relação, seguia a forma processual de “ação especial para cumprimento de obrigações emergentes de contratos”, forma esta que não comtemplava a dedução daquele pedido reconvencional.
No acórdão recorrido sufragou-se este entendimento, salientando-se que o valor da ação declarativa que segue a uma injunção é apenas o valor do pedido formulado pelo autor, pelo que é com base nesse valor que se tem que verificar se a ação segue o processo especial acima referido ou o processo comum.
A ré recorrente defende que a reconvenção deve ser admitida porque entende que a forma do processo a seguir após o requerimento de injunção era a forma comum e não o processo especial acima referido, na medida em que o valor da causa devia ser fixado tendo em conta o valor do pedido reconvencional e não apenas o do pedido formulado no requerimento de injunção, pelo que aquele valor ultrapassava a alçada do tribunal da Relação.
Mais entendeu que mesmo que se considerasse que o valor da injunção inicial era inferior à alçada da Relação – 30.000,00 € - mas superior a 15.000,00 €, sempre se teria que considerar que, no caso de oposição, se transforma em processo comum - com a necessária admissibilidade de reconvenção – tendo em conta a interpretação de diversos diplomas legais que sucessivamente se pronunciaram sobre a questão.
Cremos que não tem razão e se decidiu bem.
O Decreto-lei 32/2003, de 17.02, procedeu à transposição para a ordem jurídica interna da Diretiva nº2000/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de junho, a qual estabelece medidas de luta contra os atrasos de pagamento das transações comerciais.
Recentemente foi publicado o Decreto-lei 62/2013, de 10.05, em que se procedeu à revisão do regime introduzido por aquele Decreto-Lei 32/2003, introduzindo medida adicionais e revogando o mesmo.
Com algumas exceções que para aqui não interessam, tal Decreto-Lei é aplicável apenas aos contratos celebrados a partir de 2013.06.11, data da sua entrada em vigor – cfr. arts 14º e 15º do mesmo Decreto-Lei.
Assim, tendo o contrato invocado pela autora no requerimento de injunção sido celebrado em 2011, não pode este Decreto- Lei ser-lhe aplicado.
Temos, pois, que ter em conta tão só aquele Decreto- Lei 32/2003.
Nos termos da alínea a) do artigo 3º deste Decreto-Lei, transação comercial é “qualquer transação entre empresas ou entre empresas e entidades públicas, qualquer que seja a respectiva natureza, forma ou designação, que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração”.
Sendo assim e no caso concreto em apreço, parece não haver dúvidas que estamos perante uma transação comercial.
Na verdade, estamos perante o fornecimento de vinhos entre duas empresas.
Nos termos do disposto no nº1 do artigo 7º daquele Decreto-lei 32/2003, “o atraso de pagamento em transações comerciais (…) confere ao credor o direito de recorrer à injunção, independentemente do valor da dívida”.
E nos termos do nº 2 deste preceito “para valores superiores à alçada da Relação, a dedução de oposição (…) no procedimento de injunção determina a remessa dos autos para o tribunal competente, aplicando-se a forma de processo comum”.
Finalmente, determina-se no nº4 do mesmo preceito que “as ações destinadas a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergente de transações comerciais, nos termos do presente diploma, de valor não superior à alçada da Relação seguem os termos da ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos”.
Estes termos estão estabelecidos no Anexo ao Diploma Preambular do Decreto-lei 269/98, de 01.09.
Neste Anexo estabeleceu-se o regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a 15.000,00 €, indicando dois procedimentos: a ação declarativa e a injunção.
Face ao disposto nos artigos 3ºe 4º daquele Anexo e ao modelo que presidiu ao regime nele estabelecido – o da antiga ação sumaríssima – não podemos deixar de concluir que tal ação especial não comporta a possibilidade de ser deduzida reconvenção, ao contrário do que acontece nas ações de processo comum.
No caso concreto em apreço estamos perante um processo de injunção relativo a atrasos no pagamento de remunerações de transações comerciais em que houve oposição.
A questão que é levantada é a de saber se, havendo oposição da requerida recorrente, se está perante uma ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos ou de uma ação de processo comum.
Resulta do disposto no artigo 1º do citado Diploma Preambular do Decreto-lei 269/98, com a redação que lhe foi dada pelo Decreto-lei 303/2007, de 24.08, que no caso de se tratar do cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, o valor máximo que pode ser invocado em injunção a instaurar é de 15.000,00 €, sendo que se o valor ultrapassar essa quantia, o requerimento deve ser rejeitado, nos termos da alínea g) do nº1 do artigo 11º do anexo daquele diploma preambular.
Ou seja, se um credor invocar as obrigações pecuniárias emergentes de um contrato e o seu montante for superior a 15.000,00 €, não pode ele utilizar o procedimento da injunção e, portanto, não se coloca a questão da forma processual a seguir se houver oposição.
Mas se se invocar a existência de uma transação comercial, não existe esse valor máximo.
Na verdade e como já ficou referido, dispõe-se no nº1 do artigo 7º do Decreto-lei 32/2003 que nesse caso o credor pode recorrer à injunção “independemente do valor da dívida”.
Ora sendo assim, a questão da forma processual a utilizar no caso de dedução de oposição – ou frustração da notificação – a uma injunção só se pode colocar em casos em que é invocada uma transação comercial, pois nos outros caso em que apenas fosse invocada uma obrigação pecuniária emergente de um contrato apenas podia ser seguido a forma de ação especial prevista no anexo ao Decreto-lei 269/98.
Daí, a distinção feita no artigo 7º do Decreto-lei 32/2003, acima referida, tomando em consideração a alçada da Relação e distinguindo, como consequência, os casos em que se aplicava aquela ação especial dos casos em que se aplicava o processo comum.
Distinção esta que, aliás, veio a ser também adotada no art.º 10º do já acima referido Decreto-lei 62/2013, que revogou o Decreto-lei 32/2013.
Assim, temos que concluir que o regime especial relativo ao atraso de pagamento de transações comerciais, estabelecido no Decreto-lei 32/2003, prevê duas formas processuais a seguir quando, havendo oposição, os autos são apresentados à distribuição, nos termos do disposto nas disposições conjugadas no nº1 do artigo 16º e alínea j) do nº1 do artigo 10º do Anexo ao Diploma Preambular do Decreto-lei 269/98:
- se o valor da ação, determinado de acordo com o critério estabelecido no artigo 18º do Decreto Lei 269/98, é superior à alçada da Relação, segue-se a forma do processo comum;
- se esse valor foi inferior a essa alçada, segue-se forma da ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos.
É essa a única interpretação possível dos textos legislativos em face da letra da lei, sabendo-se que, embora a interpretação não deva cingir-se a esta, mas reconstituir a partir de textos o pensamento legislativo, “não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal ainda que imperfeitamente expresso”, sendo que “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” – cfr. artigo 9º do Código Civil.
Ora, a letra da lei é clara sobre a questão, não comportando outra interpretação senão a que acima ficou exposta e a solução encontrada não se revela desacertada e incongruente com o pensamento legislativo, também acima referido.
Finalmente e quanto ao valor da ação subsequente a um procedimento de injunção, determina-se no já referido artigo 18º daquele Decreto-lei 269/98 que “o valor processual da injunção e da ação declarativa que lhe seguir é o do pedido, atendendo-se, quanto a juros, apenas os vencidos até à data da apresentação do requerimento”.
Esta forma de fixação do valor adequa-se ao facto de nesta espécie de ações não ser admitida a reconvenção – cfr. nº1 do artigo 299º do Código de Processo Civil.
Depois, tratando-se de uma ação especial, a mesma é regulada pelas disposições que lhe são próprias – cfr. nº1 do artigo 549º do Código de Processo Civil.
Sendo assim e tendo em conta o valor do pedido, acima referido, o valor processual da injunção e da presente ação declarativa é de 18.111,24 €.
O valor da alçada da Relação está fixado em 30.000,00 € - nº 1 do artigo 31º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei 52/2008, de 28.08.
Assim e tendo em conta o disposto no transcrito nº4 do artigo 7º do Decreto-lei 32/2003, a presente ação segue os termos da ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos.
Ação na qual, como já se referiu, não é admissível reconvenção.
Assim, não merece qualquer censura o decisão proferida no acórdão recorrido quanto à questão em causa.
A decisão
Nesta conformidade, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 24 de Setembro de 2015
Oliveira Vasconcelos (Relator)
Fernando Bento
João Trindade