Em simulação subjectiva, por interposição fictícia de pessoas, a forma do negócio simulado só aproveitará ao negócio dissimulado desde que haja uma declaração negocial do verdadeiro adquirente com a forma exigida por lei.
I. RELATÓRIO
1. No Juízo Central Cível do Tribunal Judicial da Comarca de ...., AA demandou BB, pedindo que seja declarada nula a compra e venda de imóvel identificado nos autos, celebrada entre CC e a Ré, por ter sido celebrada com simulação absoluta e, em consequência, restabelecida a situação pré-existente à data da celebração do referido contrato, devendo, para o efeito, o imóvel voltar a pertencer à herança por morte do referido CC e rectificar-se o registo predial em conformidade.
Contestada a acção, realizou-se audiência prévia, na qual se julgou improcedente a excepção de caducidade que havia sido deduzida na contestação.
Identificado o objecto do processo e enunciados os temas da prova, realizou-se julgamento, após o que se proferiu sentença julgando a acção parcialmente procedente e, em consequência:
— declarou a nulidade, por simulação, do negócio de compra e venda celebrado através da escritura pública identificada em 9. dos factos provados;
— determinou a rectificação do registo de aquisição efectuado a favor da Ré passando a constar como causa de aquisição doação;
— absolveu a Ré do demais peticionado.
2. Da sentença proferida em 1.ª instância recorreram ambas as partes para o Tribunal da Relação de Évora.
2.1. As conclusões da Ré foram as seguintes:
“a) Com o presente recurso visa a Recorrente questionar a apreciação da prova feita e da qual resultará a violação dos arts. 392.º e segs. do CC.
b) Ora salvo o devido respeito, não se verifica qualquer tipo de contradição relevante quanto às declarações das testemunhas, sendo que as mesmas foram peremptórias ao afirmarem que emprestaram dinheiro e viram entregar ao vendedor, CC para a aquisição do imóvel sito na ........ n.º ...., ..... E.............F......
c) E consequentemente o negócio jurídico realizado foi uma compra/venda e não uma doação pelo que a douta sentença recorrida violou, por má interpretação, o disposto no art. 607.º n.º 4 do CPC, com remissão para os arts. 363.º, 369.º, 371.º n.º 1 e 352.º do CC”.
2.2. Quanto ao Autor, coloca as seguintes questões nas suas conclusões (que aqui se sumariam, pois aquelas que apresentou não efectuam uma verdadeira síntese das suas alegações):
A) Deveria ter sido considerada provada a al. b) dos factos não provados, pois tal resulta do depoimento das testemunhas P.... e A.... e dos documentos juntos aos autos, bem como das regras de experiência comum.
B) Da prova produzida em audiência de julgamento resultou também provado que o pai do A. pretendia doar a fracção em apreço nos autos à pessoa que cuidasse dele, ou seja, à mãe da Ré.
C) A 1.ª instância só poderia ter conhecido da existência e validade do negócio dissimulado, se alguma das partes lho pedisse.
D) Ora tal pedido não foi deduzido por qualquer das partes, limitando-se a Ré a solicitar a improcedência da pretensão do A., o que até contraria o reconhecimento, que só agora pretende, da existência e validade do negócio dissimulado – art. 241.º do Código Civil. Quer a factualidade provada integre a previsão deste art. 241.º, quer não, a Ré teria de deduzir por via reconvencional um pedido autónomo contra o A. para que a 1.ª instância pudesse conhecer do negócio dissimulado.
E) Por outro lado, não sendo os mesmos os intervenientes nos dois negócios jurídicos, o negócio dissimulado tem de ser sancionado com a nulidade porquanto não é possível aproveitar a forma observada na celebração do negócio simulado (em que tiveram intervenção sujeitos diversos daqueles que efectivamente celebraram o negócio oculto ou dissimulado).
F) Pois o que o pai do A. pretendeu foi doar o imóvel à mãe da Ré.
G) A mãe da Ré não é parte, nem se associou à presente acção.
H) A sentença é nula por ter conhecido de questões de que não podia tomar conhecimento – art. 615.º n.º 1 al. d) do C.P.Civil.
I) Dos factos provados, não existe um único que considere provado que o pai do A. pretendeu doar à Ré a fracção vendida (negócio simulado) e que esta aceitou tal doação.
J) Nem tal questão constituiu o objecto do litígio, o qual consistiu em “saber se o contrato de compra e venda celebrado entre o pai do autor e a ré é nulo, por simulação e, em caso afirmativo, quais as consequências de tal nulidade.”
K) Não é consequência da declaração de nulidade o considerar que houve uma doação. A única consequência é o restabelecimento da situação anterior.
L) O Autor pediu ao Tribunal que declarasse nula a compra e venda celebrada entre o pai do Autor e a Ré por ter sido celebrada com simulação absoluta e, em consequência, restabelecida a situação pré-existente à data da celebração do referido contrato, devendo, para o efeito, a referida fracção voltar ao acervo hereditário de CC
M) Citada para contestar, a Ré pugnou pela validade da compra e venda, sem que tivesse deduzido pedido reconvencional, pugnando pela validade e existência do negócio dissimulado (doação).
N) A factualidade provada e indicada na sentença recorrida, sob os n.ºs 1 a 12 dos Factos Provados, não integra a previsão do artigo 241 do Código Civil, razão pela qual, tendo a decisão recorrida conhecido da existência da doação como negócio dissimulado pela compra e venda (simulada) e ao reconhecer a validade daquela, cometeu a nulidade supra referida, por excesso de pronúncia.
As partes não responderam às alegações das respectivas contra-partes.
3. O Tribunal da Relação de Évora concedeu provimento ao Recurso interposto pelo Autor e negou provimento ao recurso interposto pela Ré, alterando a sentença recorrida nos seguintes termos:
a) mantém-se a declaração de nulidade, por simulação, da escritura de compra e venda de 23.07.2015, identificada no ponto 9 dos factos provados;
b) determina-se o restabelecimento da situação pré-existente à data da celebração da referida escritura, cancelando-se o registo de aquisição a favor da Ré.
4. A Ré, BB, interpôs recurso de revista, alegando duas coisas:
— que o acórdão do Tribunal da Relação de Évora é nulo, por ter sido proferido na sequência de um requerimento de apelação extemporâneo;
— que, ainda que o acórdão não fosse nulo, teria feito uma incorrecta aplicação do direito.
As suas conclusões foram as seguintes:
1. O douto Acórdão ora recorrido enferma de manifesta nulidade uma vez que o requerimento de Apelação que esta na base da presente decisão, foi extemporâneo e como tal não devia ter sido admitido, questão esta que não foi analisada e que origina a nulidade de todo o processo.
2. Não foi comprovado que a ora Recorrente não pagou o valor da compra e que o vendedor não o recebeu, e como tal o negócio jurídico celebrado entre ambos, que representava a sua vontade é perfeitamente válido, não existindo simulação.
3. Pelo que deverá a aquisição do imóvel, pela Recorrente, sito na sito na travessa .....n° ..., na ..., Edifício ....., em ..., ser considerada válida, mantendo-se na sua propriedade e consequentemente anulando-se a decisão proferida pelo tribunal "ad quo” (sic).
Contra-alegou o Autor, pugnando pela improcedência do recurso.
5. Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do Recorrente (cf. arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. arts. 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), as questões a decidir, in casu, são as seguintes:
1.º — se há um vício da necisão recorrida; se o acórdão da Relação será nulo, por ter sido proferido na sequência de um requerimento de apelação extemporâneo;
e, desde que não haja um vício na decisão recorrida,
2.º — se há um vício no contrato concluído entre o pai do Autor, CC, e a Ré, BB, determinante da sua invalidade.
II. FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
São os seguintes os factos dados como provados no acórdão recorrido:
1. O A. era o único filho de CC.
2. O qual faleceu no estado de viúvo de DD, no dia 04.02.2017, com última residência habitual na Travessa .............., em .....
3. A Ré é filha de EE, a qual iniciou um relacionamento com CC em data não concretamente apurada e que perdurou até à data da sua morte.
4. Os quais viveram em condições análogas à dos cônjuges na referida residência, na qual a Ré também residiu por escasso período.
5. Em Setembro de 2014, o CC foi internado no Hospital das ....., onde lhe foi diagnosticado um cancro.
6. Aí tendo permanecido até Outubro de 2014, data em que teve alta hospitalar e regressou à sua residência.
7. Em Julho de 2015, o CC residia sozinho na referida residência.
8. Data a partir da qual fez cessar o contrato de trabalho que tinha celebrado com a sua empregada doméstica FF.
9. Através de escritura pública, datada de 23.07.2015, outorgada no Cartório Notarial a cargo de GG, em ...., CC declarou vender a BB, que declarou comprar, pelo preço de € 85.789,58 a fracção autónoma, designada pelas letras “AA”, correspondente ao R............., destinada a habitação, com uma divisão na sub-cave destinada a arrumos com o n.º 106 e um lugar de estacionamento com o n.º 200, integrada no prédio urbano denominado “.......”, Lote n........., E........e, situado na Travessa V.......... n.º........., P........., .......de .... (......), descrito na Conservatória do Registo Predial de .... sob o n.º 00000000000 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 9207, da freguesia de .... (...).
10. A Ré não efectuou o pagamento do preço declarado na escritura de compra e venda.
11. A escritura de compra e venda foi realizada com o propósito de retirar a fracção autónoma do acervo hereditário de CC.
12. Evitando que o A. reclamasse o seu direito na partilha deste bem.
13. O pai do A. pretendia doar a fracção em apreço nos autos à pessoa que cuidava dele, ou seja, à mãe da Ré.
14. A Ré e a respectiva mãe, aproveitando-se da situação de fragilidade de CC, conluiaram-se no sentido de se apropriarem dos bens de que o mesmo era proprietário.
O DIREITO
1. Começará por dizer-se (i) que a Ré, agora Reocrrente, não suscitou a questão da intempestividade do recurso de apelação nos prazos e nos termos legais — i-e-, nos prazos e nos termos do art. 638.º, n.º 6, do Código de Processo Civil — e (ii) que, ainda que a Recorrente a tivesse suscitado, não procederia a arguição da nulidade do acórdão recorrido.
O Autor foi notificado da sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Faro em 7 de Dezembro de 2017 e o prazo para interposição de recurso era de 40 dias (art. 638.º, n.ºs 1 e 7, por se tratar de recurso que tinha por objecto a reapreciação da prova gravada).
O art. 248.º do Código de Processo Civil presume que a notificação é feita “no 3.º dia posterior ao da elaboração ou no 1.º dia útil seguinte a esse, quando o não seja” e o art. 138.º, n.º 1, que os prazos processuais se suspendem durante as férias judiciais.
Como a notificação se presume feita “no 3.º dia posterior ao da elaboração ou no 1.º dia útil seguinte a esse, quando o não seja”, o autor devia presumir-se notificado na segunda-feira, dia 11 de Dezembro de 2018 e, como os prazos processuais se suspendem durante as férias judiciais, o prazo suspendeu-se entre os dias 22 de Dezembro de 2017 e 3 de Janeiro de 2018.
O recurso podia ser, como foi, interposto até ao dia 2 de Fevereiro de 2018.
2. A Ré, agora Recorrente, alega que “[n]ão foi comprovado que a ora Recorrente não pagou o valor da compra e que o vendedor não o recebeu, e como tal o negócio jurídico celebrado entre ambos, que representava a sua vontade é perfeitamente válido, não existindo simulação”.
O teor da conclusão é algo ambíguo, podendo significar duas coisas:
— pode, por um lado, significar que a Ré pretende pôr em causa a existência de simulação e, por consequência, a nulidade do contrato de compra e venda;
— pode, por outro lado, significar que a Ré pretende pôr em causa a nulidade do contrato de doação, “dissimulado” de compra e venda.
Embora o texto da conclusão sugira que a Recorrente pretendeu atribuir-lhe o primeiro significado, o texto das alegações sugere que pretendeu atribuir-lhe o segundo.
Com efeito, a Recorrente alega que “a simulação é um vício de vontade, sendo que pode ser absoluta quando as partes não quiseram realizar o negócio, ou relativa quando as partes quiseram realizar o negocio, mas no caso concreto o ‘animus donandi’ do CC foi por escritura de compra e venda vender o imóvel ora Recorrente, de livre vontade, sendo sua vontade assinou aquela escritura, correspondendo este negócio à vontade das partes intervenientes, portanto o negocio jurídico é válido”. Ora a referêmcia ao animus donandi só pode interpretar-se como um reconhecimento de que houve simulação, ainda que relativa, e que a Recorrente pretende, tão-só, põr em causa a nulidade do contrato de doação, “dissimulado” pela compra e venda.
3. O acórdão recorrido pode decompor-se em dois segmentos decisórios:
O primeiro corresponde à declaração de nulidade da venda, por simulação e o segundo corresponde à declaração de nulidade da doação, por falta da forma legalmente prescrita.
Em relação à declaração de nulidade da venda, as instâncias estiveram de acordo e os factos dados como provados sob os n.ºs 10, 11 e 12 são suficientes para sustentar que havia simulação:
10. A Ré não efectuou o pagamento do preço declarado na escritura de compra e venda.
11. A escritura de compra e venda foi realizada com o propósito de retirar a fracção autónoma do acervo hereditário de CC.
12. Evitando que o A. reclamasse o seu direito na partilha deste bem.
Estando as instâncias de acordo em que havia simulação, e em que a simulação era relativa, a divergência estava, tão-só, no seguinte. A 1.ª instância considerou que havia uma simulação objectiva e, dentro da simulação objectiva, uma simulação sobre a natureza do negócio — a venda pretendia encobrir uma doação [1] [2]. A Relação considerou que havia, simultaneamente, uma simulação objectiva e uma simulação subjectiva: que havia uma simulação objectiva, porque a venda pretendia encobrir uma doação, e que havia uma simulação subjectiva, por interposição fictícia de pessoas [3], porque a venda a Ré pretendia encobrir uma doação à mãe da Ré [4].
O art. 241.º do Código Civil determina que a validade ou invalidade do negócio dissimulado deve ser apreciado autonomamente, “[como] se fosse concluído sem dissimulação”.
Entendendo que havia, exclusivamente, uma simulação objectiva, a 1.ª instância concluiu que a forma do negócio simulado, da compra e venda, aproveitava ao negócio dissimulado — a doação seria formalmente válida, por ter sido celebrado por escritura pública (art. 241.º, n.º 2, do Código Civil). Entendendo que havia, cumulativamente, uma simulação objectiva e uma simulação subjectiva, por interposição fictícia de pessoas, a Relação concluiu que a forma do negócio simulado, da compra e venda à Ré, não aproveitava ao negócio dissimulado, à doação à mãe da Ré.
4. O raciocínio do acórdão recorrido afigura-se-nos correcto.
I. — Em primeiro lugar, os factos dados como provados sob os n.ºs 10 a 12 são suficientes para que se possa concluir-se que há simulação, que a simulação é relativa e que a simulação relativa é objectiva (sobre a natureza do negócio).
10. A Ré não efectuou o pagamento do preço declarado na escritura de compra e venda.
11. A escritura de compra e venda foi realizada com o propósito de retirar a fracção autónoma do acervo hereditário de CC.
12. Evitando que o A. reclamasse o seu direito na partilha deste bem.
II. — Em segundo lugar, os factos dados como provados sob os n.ºs 13 e 14, aditados pelo Tribunal da Relação da Évora, são suficientes para que possa concluir-se que há simulação subjectiva, por interposição fictícia da pessoas.
13. O pai do A. pretendia doar a fracção em apreço nos autos à pessoa que cuidava dele, ou seja, à mãe da Ré.
14. A Ré e a respectiva mãe, aproveitando-se da situação de fragilidade de CC, conluiaram-se no sentido de se apropriarem dos bens de que o mesmo era proprietário.
III. — Em terceiro lugar, no caso de simulação relativa subjectiva, por interposição fictícia de pessoas, a forma do negócio simulado só aproveitará ao negócio dissimulado desde que haja uma declaração negocial do verdadeiro adquirente, com a forma exigida por lei.
Em 1921, há praticamente um século, Beleza dos Santos escrevia:
“… se existe uma interposição ficícia de pessoas e as declarações de vontade dos outorgantes, necessárias para a formação do acto jurídico, se não efectuarem com a forma devida, o acto é nulo, ainda que a interposição seja lícita” [5]
e, em nota de rodapé, explicava:
“Se, portanto, se efectuar uma doação de imobiliários por interposta pessoa e não houver uma contra-declaração com a forma devida, em que o doador declare a sua vontade de doar ao verdadeiro donatário e se este não declarar, nos termos gerais, a sua vontade de aceitar […], a doação feita ao intermediário será nula por ser aparente e não poderá valer a doação que se quis fazer ao donatário real por falta de forma” [6].
O critério preconizado por Beleza dos Santos para resolver o problema dos efeitos da simulação subjectiva, por interposição fictícia de pessoas, foi amplamente aceite na vigência do Código Civil de 1867, como o comprova, p. ex., as adesão de Manuel de Andrade [7], e é (continua a ser) amplamente aceite na vigência do Código Civil de 1966:
“No caso de simulação por interposta pessoa,” diziam os anotadores do Código Civil, “o acto dissimulado não é válido enquanto não se celebrar o segundo negócio, dada a falta de intervenção da pessoa a quem a coisa deveria, por hipótese, ser definitivamente transmitida” [8] [9].
Confirmando-o, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem sido constante no sentido de que, desde que do negócio simulado não conste uma declaração de vontade do real comprador ou do real donatário, a forma do negócio simulado não aproveitará ao negócio dissimulado: — no sumário do acórdão de 29 de Maio de 1973 — processo n.º 064536 — diz-se, sem se considerar expressamente a questão da validade, que “[e]m caso de venda simulada, realizada (em data anterior a entrada em vigor do novo Codigo Civil) por interposição ficticia de pessoas, a escritura publica pela qual o predio se transmitiu (simuladamente) para a interposta pessoa não constitui titulo de aquisição para o verdadeiro comprador”; — no sumário dos acórdãos de 27 de Maio de 2004 — processo n.º 04A1442 [10] —, de 15 de Março de 2010 — processo n.º 983/06.7TBBGR.G1.S1 [11] — ou de de 23 de Novembro de 2011 — processo n.º 783/09.2TBLMG.P1.S1 [12] —, diz-se que o negócio dissimulado não é (não pode ser) válido [13].
Como se escreve, paradigmaticamente, na fundamentação do acórdão de 15 de Março de 2010,
“… costumam apontar-se fundamentalmente três ordens de razões justificativas do abandono do princípio da liberdade da forma (artigo 219º do Código Civil) e da exigência de maior ou menor formalismo como condição de validade de uma declaração negocial tem em vista (reconhecidamente sintetizadas de forma elucidativa no conhecido relatório do Decreto-Lei nº nº 32.032, de 25 de Maio de 1942):
— assegurar uma correcta ponderação dos outorgantes quanto aos efeitos que do negócio resultam para a sua esfera jurídica;
— permitir aos interessados, sobretudo se a forma se reveste de publicidade (documento autêntico, por exemplo), tomar conhecimento dos efeitos que de algum modo os possam afectar.
— provar o acto realizado; como se sabe, há regras estritas quanto à possibilidade de prova de um acto solene (cfr. n.ºs 1 e 2 do artigo 364.º do Código Civil).
Ora, se parece evidente que o primeiro objectivo estará alcançado ainda que não conste de escritura pública o conjunto das duas declarações de vontade dos verdadeiros contraentes […], já os dois últimos impedem que, no caso, se possa considerar suficiente para se ter como respeitada a forma de escritura pública para o negócio dissimulado […]”.
5. Concluir-se-á, dizendo o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, ao concluir que o negócio dissimulado era nulo por falta da forma exigida por lei, fez uma correcta interpretação e aplicação do direito.
III. DECISÃO
Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o acórdão recorrido.
Lisboa, 21 de Fevereiro de 2019
Nuno Manuel Pinto Oliveira (Relator)
Maria dos Prazeres Beleza
Olindo Geraldes
___________________
[1] Cf. designadamente Manuel de Andrade, Teoria geral da relação jurídica, vol. II — Facto jurídico, em especial negócio jurídico, Livraria Almedina, Coimbra, 1974 (reimpressão), pág. 174; ou Carlos Alberto da Mota Pinto / António Pinto Monteiro / Paulo Mota Pinto, Teoria geral do direito civil, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2005, págs. 470-471.
[2] Menezes Cordeiro fala a propósito de uma simulação objectiva total — vide António Menezes Cordeiro (com a colaboração de A. Barreto Menezes Cordeiro), Tratado de direito civil, vol. II — Parte geral. Negócio jurídico. — Formação. Conteúdo e interpretação. Vícios da vontade. Ineficácia e invalidades, 4.ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2014, pág. 889.
[3] Cf. designadamente Manuel de Andrade, Teoria geral da relação jurídica, vol. II — Facto jurídico, em especial negócio jurídico, cit., págs. 186-187; Carlos Alberto da Mota Pinto / António Pinto Monteiro / Paulo Mota Pinto, Teoria geral do direito civil, cit., págs. 469-470.
[4] Embora haja alguma controvérsia, e possa haver algumas dúvidas, sobre a admissibilidade de revista em relação ao primeiro segmento decisõrio, não há (não deverá haver) dúvidas sobre a admissibilidade de revista em relação ao segundo O Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que, “[q]uando a decisão recorrida é decomponível em mais do que um segmento decisório autónomo”, a dupla conforme relativamente a um não prejudica o recurso de revista “para apreciação das questões que respeitem aos restantes” (vide, por último, o acórdão de 6 de Novembro de 2018 — processo n.º 452/05.2TBPTL.G2.S1).
[5] José Beleza dos Santos, A simulação em direito civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1921, págs. 362-363.
[6] José Beleza dos Santos, A simulação em direito civil, cit., pág. 363 (nota n.º 1)
[7] Com o argumento de a forma exigida para a compra e venda ou doação se inspirava em “duas razões capitais”, consistindo a primeira em “obrigar as partes (rectius, o vendedor e o doador) a uma ponderada reflexão sobre as consequências do respectivo acto” e a seguda, em “estabelecer prova segura da transferência dos bens vendidos ou doados”. Ora, na interposição fíctícia de pessoas não estaria satisfeira a segunda razão, “enquanto não estive[sse] formalizada a transmissão (simulada) do interposto para o adquirente” (Manuel de Andrade, Teoria geral da relação jurídica, vol. II — Facto jurídico, em especial negócio jurídico, cit., pág. 193).
[8] Fernando Andrade Pires de Lima / João de Matos Antunes Varela (com a colaboração de Manuel Henrique Mesquita), anotação ao art. 241.º, in: Código Civil anotado, vol. I — Artigos 1.º a 761.º, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pág. 228.
[9] Concordando com a nulidade do negócio dissimulado, por falta de forma, vide, p. ex., Carlos Alberto da Mota Pinto / António Pinto Monteiro / Paulo Mota Pinto, Teoria geral do direito civil, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2005, pág. 475.
[10] Em cujo sumário pode ler-se: “2. — A simulação subjectiva por interposição fictícia de pessoa é relativa. Neste caso o acordo simulatório é trilateral, nele devendo participar o contraente real, a contraparte e o interposto fictício. 3. — Não constando do contrato declarações negociais atribuídas ao contraente real, o respectivo documento não observou a forma exigida por lei quanto ao negócio dissimulado”.
[11] Em cujo sumário pode ler-se: “2. — Em caso de simulação relativa, por interposição fictícia de pessoas, é nulo o negócio aparente, por ser simulado. 3. — A nulidade do negócio simulado não implica a nulidade do negócio dissimulado. 4. — Sendo de natureza formal o negócio dissimulado, e tratando-se de negócio translativo, só será válido se a transmissão efectivamente pretendida constar da forma exigida”.
[12] Em cujo sumário pode ler-se: “VI. — Não tendo intervindo o encontro de vontades inerente à realização do negócio, não se estabeleceu entre os vendedores e esses compradores (dissimulados). VII. — Por isso, foram certas as decisões das instâncias que determinaram a nulidade do negócio (dissimulado) por vício de forma”.
[13] Os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça citados encontram-se disponíveis na base de dados do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, IP: WWW: < http://www.dgsi.pt >.