RESERVA DA VIDA PRIVADA
CONTA BANCÁRIA
SIGILO BANCÁRIO
Sumário

I. A recusa de uma parte processual de juntar aos autos o extrato bancário da sua conta pessoal é legítima, se a obediência à notificação para junção importar intromissão na sua vida privada ou familiar.
II. É notório que a observação dos movimentos de uma conta bancária pode desvelar dados da vida privada do seu titular (por onde viajou, quando o fez, que restaurantes, supermercados, lojas, hotéis, ginásio ou outros estabelecimentos frequentou, ou frequenta habitualmente, quando foi ao médico ou fez exames complementares de diagnóstico, quanto gasta em farmácia, etc.).
III. Caso o tribunal peça os extratos à instituição bancária, na falta de autorização do cliente, esse pedido está votado ao insucesso, considerando o dever de segredo a que as instituições de crédito e sociedades financeiras estão sujeitas.
IV. Sem autorização do seu cliente, no âmbito de um processo cível, a instituição de crédito só poderá ser compelida a revelar o conteúdo de conta bancária do cliente após levantamento do segredo a efetuar no processo especial para esse fim destinado (previsto e regulado no Código de Processo Penal).

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
«BB», cabeça-de-casal nos autos de prestação de contas identificados à margem, apenso B, em que é interessada «CC», notificado do despacho proferido no dia 16 de março de 2018 e com ele não se conformando, interpôs o presente recurso.
O despacho recorrido tem o seguinte teor:
«Reqº Refª 26683546 (fls. 161): Prestação de contas pelo cabeça de casal relativa à Verba 1 (única em discussão nos presentes autos).
Reqº Refª 27134190 (fls. 622): Vem a interessada «CC» requerer a junção de elementos documentais na posse do cabeça de casal.
Reqº Refª 27259966 (fls. 624): Vem o cabeça de casal invocar a extemporaneidade do anteriormente requerido, reitera que ainda não rececionou os documentos do BNP, alega que quanto ao mais não possui mais documentação e entende que os documentos relativos às contas pessoais do cabeça de casal atentam contra a sua privacidade.
Reqº Refª 27334710 (fls. 626): Contestação às contas apresentada pela interessada «CC».
Reqº Refª 28213221 (fls. 638): Resposta à Contestação apresentada pelo cabeça de casal.
Cumpre apreciar e decidir:
Dos documentos protestados juntar pelo Cabeça de Casal relativos ao BNP Paribas e Barclays Bank, verifica-se que os relativos ao BNP ainda não foram juntos e os relativos ao Barclays o cabeça de casal invoca que os existentes já se mostram juntos.
Assim, deve o Cabeça de Casal juntar a referida documentação relativa ao BNP.
Quanto à tempestividade do requerimento da interessada «CC» a requerer a junção de documentos antes de apresentada a contestação afigura-se que o requerimento é tempestivo uma vez que a interessada justificou que esses elementos eram importantes para uma cabal contestação. Não tendo sido juntos veio, ainda assim, contestar com os elementos de que dispunha.
A interessada «CC» vem requerer a notificação do cabeça de casal para juntar documentos bancários. O cabeça de casal refere que não dispõe dos mesmos e que quanto à sua conta pessoal não tem de proceder à sua junção por ser uma devassa da sua vida pessoal.
Quanto aos documentos pretendidos pela interessada «CC» e que dizem respeito ao BNP os autos devem aguardar que o cabeça de casal junte os elementos que já solicitou para depois se aferir se ainda haverá outros em falta.
Quanto aos demais documentos que a interessada «CC» pretende nomeadamente – comprovativos de transferências e extratos de conta do Barclays afigura-se que os mesmos são relevantes para o apuro das contas pelo que deve o Cabeça de Casal diligenciar pela sua junção.
No que se refere à junção dos elementos bancários relativos à conta pessoal do cabeça de casal afigura-se que tais elementos são essenciais para a descoberta da verdade, uma vez que uma das questões centrais quer dos presentes autos, quer do Apenso K, quer dos autos principais é o eventual desvio de valores das contas da herança para contas pessoais.
Termos em que os elementos pretendidos devem efetivamente ser juntos pelo cabeça de casal

Importa desde já dizer em que consiste a verba 1, única em discussão nos autos, conforme dito no despacho sob recurso.
No requerimento com a ref.ª 26683546, entrado em 06/09/2017, e certificado a fls. 520-529 dos presentes autos de recurso, pelo qual o recorrente prestou contas, as verbas 1 e 1-A consistem em saldos de contas bancárias, assim discriminados:
- Union Bancaire Privée de Genève, n.º …, saldo em 31/03/2017 de USD 59.837;
- KBL Mónaco, n.º …, saldo USD 3.267.355,85;
- Conta pessoal do recorrente, USD 400.000,00 + USD 19.045,28 de juros;
- No final, ao fazer o resumo, acrescenta, ainda, além dos valores referido na sua conta pessoal, os seguintes outros valores aplicados fora da UBP e do KLB: USD 106.000 e USD 5.238,20 (levantamentos ATM),
TOTAL USD 3.907.476,33 (EUR 3.286.355,20 ao câmbio de 06/09/2017).
O recorrente relacionou, ainda, várias outras contas bancárias entretanto encerradas, e descreveu os seus movimentos, de modo a explicar a origem dos valores das contas acima referidas.

O recorrente termina as suas alegações de recurso, concluindo:
«A. O presente recurso vem interposto do despacho que ordenou a junção aos autos dos elementos bancários relativos à conta pessoal do cabeça-de-casal.
B. Na prestação de contas apresentada pelo ora Recorrente, este indicou (na pág. 13) que retirara da conta do Barclays Bank Mónaco dois montantes: em 09.2012, a quantia de USD 400.000 e em 05.04.2013, a quantia de USD 50.000 e na pág. 14, in fine, reportou igualmente que “transferiu USD 450.000 para uma conta pessoal noutra instituição de crédito; aplicou USD 400.000,00 e USD 50.000 manteve em depósito à ordem para fazer face a despesas da herança e que se acertarão a final, creditando as quantias.” E na pág. 15 desse mesmo documento indicou qual foi a frutificação registada da quantia de USD 400.000,00.
C. Portanto, em sede de prestação de contas pelo Cabeça de Casal e ora Recorrente, foi este que, por sua iniciativa, deu conta ao Tribunal que fizera aqueles dois levantamentos da conta do Barclays Bank Mónaco para uma conta pessoal sua, pelas razões que ali deu nota.
D. Temos, portanto, um facto alegado pelo Cabeça de Casal: proveniente de uma conta bancária titulada por si, procedeu a dois movimentos para uma outra conta bancária que, sendo também sua, era contudo uma conta pessoal sua; por contraposição às demais contas bancárias por si indicadas, que sendo também contas bancárias suas, não eram contas pessoais suas no sentido de nelas não existirem fundos a não ser fundos que são pertença da família [das partes]. 
E. A fls. dos autos (requerimento de fls., de 24.10.2017 e requerimento de fls., de 13.11.2017) a interessada «CC», requereu ao Tribunal que o Cabeça-de-Casal fosse notificado para juntar «Extratos de conta relativos à conta bancária pessoal de «BB» para o período entre 20.09.2012 e o momento presente. (…) Sem cuidar, por ora, doutros aspetos, apenas com aqueles documentos se poderão verificar os movimentos nas diversas contas a que o cabeça de casal se refere”
F. O Tribunal proferiu o seguinte despacho de deferimento desse meio de prova que lhe havia sido requerido pela contraparte “No que se refere à junção dos elementos bancários relativos à conta pessoal do cabeça de casal, afigura-se que tais elementos são essenciais para a descoberta da verdade, uma vez que uma das questões centrais dos presentes autos, quer do apenso K, quer dos autos principais, é o eventual desvio de valores das contas da herança para contas pessoais. Termos em que os elementos pretendidos devem efetivamente ser juntos pelo cabeça de casal.» Não se conforma o Recorrente com o aqui decidido, que deve ser anulado por violação de lei.
G. Dos extratos bancários relativos à conta pessoal do Recorrente podem-se, efetivamente, verificar os movimentos dessa conta realizados pelo cabeça de casal nessa mesma conta. Claro que sim, e nesse ponto tem razão a Recorrida. Só que o objeto da prova em sede de prestação de contas é diverso de “verificar os movimentos nas diversas contas a que o cabeça de casal se refere”.
H. Se a ação de prestação de contas tivesse por objeto uma espécie de voyeurismo sobre a vida privada do Recorrente, fazia sentido, através do acesso aos extratos bancários da sua conta pessoal, ficarmos a conhecer onde passou férias o ano passado; em que hotéis esteve, etc. Evidentemente, nada disto faz sentido exibir como meio probatório nestes autos de prestação de contas, e sobretudo a propósito do que o Recorrente indicou – foi ele que indicou – que levantara de uma conta USD 450.000, e a Recorrida quer ir vasculhar a conta de destino. Se ainda fosse vasculhar a conta de origem, ainda poderia fazer algum sentido, se outras formas ou meios não existissem para demonstrar os montantes alegados pelo Cabeça de Casal. Não a de destino.
I. O Recorrente, como aliás, disse, opõe-se à devassa da vida privada que decorre da exibição desses extratos.
J. Não se aceita que, num processo de prestação de contas de uma herança, em que o Cabeça de Casal exibiu já, e fez já junção aos autos, dos extratos das contas bancárias que pediu por escrito aos bancos respetivos para este fim, e que estes mesmos lhos remeteram, que a despropósito se vasculhe a sua vida privada através dos extratos da conta pessoal de destino dos USD 450.000,00, quando o que há, ou havia, a vasculhar, era a conta de origem do Barclays Mónaco, de onde saiu esse dinheiro, para porventura averiguar sobre se mais dinheiro tinha saído, ou não.
K. Aliás, conforme resulta dos autos, o Cabeça-de-Casal já solicitou por duas vezes ao Barclays Bank Mónaco informou de que não dispunha, por forma a fornecer às Interessadas toda a documentação pertinente. E se querem, ou carecem de mais prova, seja a mesma pedida ao Barclays Mónaco.
L. Por outro lado, o recurso a um meio de prova como o requerido e decretado (documentos e informação na posse de terceiros) pressupõe, desde logo, que a parte onerada com o ónus da prova alegue ter uma qualquer dificuldade em realizar a prova que se propõe fazer e, daí, ter necessidade de recurso ao Tribunal para a obter oficiosamente ou de terceiros. Não faz nenhum sentido processual que uma parte, sem alegar o que quer que seja sobre dificuldade de acesso a documentos e, ao contrário, alegando que “apenas com aqueles documentos se poderão verificar os movimentos nas diversas contas a que o cabeça de casal se refere”, quando tal nem sequer constitui o objeto a lide, veja deferido o acesso a meios probatórios que, no caso, constituem uma grave e inadmissível intromissão na vida privada do Recorrente.
M. A prova da saída dos dinheiros obtém-se a partir da conta de onde saíram os dinheiros (do Barclays Mónaco), e a partir dos documentos que já estão nos autos. Ou outros que o Tribunal e a Recorrida queiram adicionalmente dessa conta de saída.
N. A única prova que seria relevante a partir da conta de destino (a conta pessoal do Recorrente), seria a realização de qualquer contra-prova quanto aos juros (frutos) que o Recorrente alegou ter tal quantia produzido no período considerado (USD 19.045,28), e essa poderia ser feita perguntando ao Banco essa específica informação, e não pedindo ao CC de que exiba toda a informação que consta dos seus extratos….  
O. É manifesto que a Recorrida tem acesso a meios de prova menos invasivos, ou nada invasivos, da intimidade da vida privada do Recorrente e a sua possibilidade como meio de prova preclude, evidentemente, a possibilidade da Recorrida deitar mão e ter acesso àquilo que constitui, como se demonstrou, violação da reserva da sua intimidade e nenhuma prova pertinente e adequada ao thema decidendi, pois tal prova tem por objeto a conta bancária de origem dos fundos, e não a de destino.
P. Ao determinar um meio de prova sem que outros meios de prova, ao alcance da Recorrida, tivessem sido peticionados ou diligenciados, ou pelo menos não tivessem sido obtidos após uma diligência séria quanto à sua obtenção, violou, assim, o despacho recorrido, o disposto no artigo 342º do CC e 417º do CPC.
Q. É certo que o Tribunal pode oficiosamente determinar a realização de meios de prova, mas tal determinação estaria naturalmente sujeita, e necessariamente, a um critério de oportunidade, adequação e de pertinência. E com fundamento legal.
R. Os extratos bancários da conta pessoal do Cabeça de Casal não se tratam de documentos em falta quanto às próprias contas pois os extratos bancários da conta de onde estavam, e saíram, os fundos objeto da prestação de contas haviam sido juntos aos autos. E documentavam a saída dos USD 400.000 e USD 50.000.
S. Evidentemente que não é, nem poderia ser, questão central dos autos, ou do apenso K, qualquer questão de “eventual desvio de valores das contas da herança para contas pessoais.” Simplesmente não é assim, nem poderia ser assim.
T. O apenso é de prestação de contas. Neste apenso, não existe qualquer questão de “desvio de valores das contas da herança para contas pessoais” a que o Tribunal possa fazer referência. Nem neste apenso, nem no apenso K. Que trata das contas quanto aos bens do outro progenitor.
U. Depois, nada nos autos sugere sequer a existência de “desvio de valores das contas da herança para contas pessoais”. A relação de bens foi apresentada, ocorreram reclamações, e há muito que a mesma se encontra fixada. Sem desvios. Aliás, em matérias de dinheiros, ocorreram apenas duas divergências entre os co-herdeiros (que nada têm a ver com desvios).
V. Por fim, existe (ou melhor, existiu) um incidente de sonegação de bens. Que foi julgado, no respetivo apenso, estando a questão para decisão desta Relação em recurso autónomo, onde o Recorrente espera ver reconhecida a sua inexistência, pois que nunca o bem foi sonegado, estando sempre declarado pelo Cabeça de Casal, bem sabendo todos da sua existência e montante. Aliás, por alguma razão a Recorrida irmã «DD» sempre declarou e concordou que nunca ocorrera sonegação. A Recorrida «CC» sempre confundiu o direito de o cabeça de casal ter os bens hereditários na sua posse (direito para o qual até existe uma ação judicial própria designada de petição a herança) com “desvios de dinheiros”, na mira de colher benefícios processuais.
W. Ora, mesmo no incidente de sonegação de bens nunca se pôs qualquer questão de “desvio de valores das contas da herança para contas pessoais”, Trata-se de alegação, e falsa, reproduzida pelo Tribunal no despacho recorrido, e sem qualquer fundamento. E muito menos fundamento no incidente de prestação de contas….
X. Processualmente, só com o fundamento no que ocorre neste apenso de prestação de contas, é que pode ser decidida qual a prova a produzir no mesmo.
Y. Não há, nem nunca houve, desvios de dinheiros da herança para contas pessoais.
Z. (Ainda que tivessem ocorrido desvios) a prova admissível, porque seria a única pertinente, realizar seria através da obtenção dos extratos das contas da herança para saber o que dela saiu, e não, como o despacho recorrido decidiu, através da obtenção dos extratos das contas ... pessoais.
AA. Parece evidente ao Recorrente que, existindo objetivamente duas vias para obter o mesmo fim (leia-se, dois meios de prova alternativos para o mesmo fim) a via menos invasiva da privacidade e dos direitos à sua reserva da vida provada deveria ser privilegiada, desde logo por força do mecanismo do artigo 335º do CC, que assim foi violado. E essa via não é ir vasculhar a conta bancária pessoal do Recorrente.
BB. (Ainda que tivessem ocorrido desvios para contas pessoais), nem assim era justificado ter acesso aos extratos da conta bancária pessoal. Bastavam os registos das entradas, sem se ter de verificar o registo das saídas, como os seus possíveis gastos pessoais.
CC. (Ainda que tivessem ocorrido desvios para contas pessoais), a única prova admissível, ante o que o Cabeça de Casal apresentou de terem saído USD 400.000 € 50.000 dos quais fizera, entretanto, uma aplicação que produziu juros de cerca de USD 19K, seria não ordenar a junção dos extratos bancários mas, outrossim, perguntar ao Banco que juros tinham produzido os 400.000,00 aplicados, cabendo ao banco reportar se os USD 19.045,28 de juros estavam corretamente indicados.
DD. Parece-nos, portanto, que o despacho recorrido enferma de erro sobre os seus pressupostos de facto, erro na sua fundamentação, e violação do regime do artigo 411º do CPC, por não ser necessário ao apuramento da verdade, em especial da verdade que se discute no apenso em que a prova foi decidida, a exibição dos extratos bancários da conta pessoal do Cabeça de Casal.
EE. E o que dizer da questão do próprio sigilo bancário ? A decisão recorrida revela-se totalmente errónea e ao arrepio de toda a jurisprudência nesta matéria.
FF. A exibição dos extratos bancários contende com a reserva da vida pessoal do Recorrente. É uma evidência que assim é, como é hoje jurisprudencialmente aceite. Basta citar o Ac. Uniformizador de Jurisprudência de 13-02-2008, disponível em www.dgsi.pt. 
GG. A decisão recorrida viola também o regime do nº 1 e 4 do artigo 417º do CPC e artº 78º/2 do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras.
HH. O dever de cooperação para a descoberta da verdade tem por limites o respeito pelos direitos fundamentais, imposto pela Constituição e pela Lei, e o respeito pelo direito ou dever de sigilo, sendo este outro limitado pela ponderação dos valores em conflito, a fim de concluir quais os que, no caso concreto, deverão prevalecer.
II. Decorre deste regime que, para que efetiva colisão de valores e direitos se verifique para que possa ser primeiro ponderada e depois decidida qualquer quebra do sigilo bancário, que essa possível quebra e a correlativa restrição do direito por este protegido se revelem indispensáveis ao exercício do direito por parte da Requerente da prova, coisa que nos autos não aconteceu.
JJ. E não aconteceu desde logo porque a Requerente da prova não alegou, sequer, que o seu único meio de prova disponível para o efeito seria exatamente o recurso à quebra do sigilo bancário. Ou que apenas com a quebra desse sigilo bancário poderia alcançar a prova a que pretendia deitar mão. E se não o alegou, evidentemente, também não o demonstrou, não podendo o Tribunal, sem violação do princípio do dispositivo, suprir essa mesma deficiência.
KK. Aliás, já atrás demos nota de vários outros meios probatórios à disposição da Recorrida, a que esta não soube, ou não quis, deitar mão para demonstrar a realidade que pretendia, tendo justamente feito tábua rasa do regime jurídico do sigilo bancário e do pressuposto de indispensabilidade que o mesmo acarreta e que no caso nem sequer se verifica.
LL. A jurisprudência desta Relação tem entendido de forma constante que se terá de estar ante um elemento de prova indispensável ou fundamental para a descoberta de verdade para que o dever de sigilo bancário possa ser levantado. No caso dos autos nem sequer a Recorrida alegou essa indispensabilidade ou relevância fundamental, que, aliás, inexiste, ante a panóplia de outros meios probatórios ao seu dispor. 
Termos em que, com o douto suprimento, deve o presente recurso ser julgado procedente, com as legais consequências. Assim se fazendo justiça.»

A recorrida contra-alegou, pugnando pela confirmação do despacho e concluindo:
«A. O Cabeça de Casal em Requerimento de Prestação de Contas de 12.12.2003 apurou os valores que alegou serem os rendimentos provenientes de rendas dos imóveis que constituem o acervo hereditário, sem juntar qualquer comprovativo do recebimento das rendas, ou extratos de conta bancária aberta em nome da Herança que pudessem refletir os depósitos das rendas;
B. A Recorrida na contestação às contas apresentadas fez notar que o Recorrente não apresentou quaisquer documentos justificativos das contas apresentadas,  e alegou que o Cabeça de Casal abriu novas contas bancárias pessoais onde depositava, pelo menos os rendimentos dos imóveis da herança;
C. Desde então, o Recorrente não apresentou qualquer elemento de prova do recebimento das receitas geradas pelos bens da herança, nem voltou mais a informar o processo dos valores recebidos a título de rendas.
D. O Cabeça-de-Casal nunca esclareceu como recebia as rendas, mas o Cabeça-de-Casal vem indicando há anos, a inquilinos dos imóveis que fazem parte da herança, bem como a inquilinos de imóveis titulados pela sociedade cujas participações sociais são parte da herança, que o depósito das rendas deve ser feito em conta por si titulada;
E. No Requerimento de 06.09.2017 o Cabeça de Casal admitiu, ter transferido USD 450.000 para uma conta pessoal noutra Instituição de Crédito, tendo aplicado USD 400.000,00 e mantido USD 50.000,00 em depósito à ordem para fazer face a despesas da herança;
F. A opção de utilização de conta pessoal do Cabeça de Casal para depositar bens que pertencem à herança não é aceitável, mas torna legítimo que os seus co-herdeiros tenham acesso de forma transparente á posição de tais contas. 
G. O acesso à informação sobre os movimentos das suas contas bancárias pessoais, será a única forma de confirmar os valores foram transferidos para contas pessoais e qual o destino de tais valores.
H. O valor que compõe a verba 1 da Relação de Bens da Herança, foi sendo, ao longo dos anos transferido de conta para conta, em Bancos e países diferentes, sempre contas tituladas em nome pessoal do Cabeça-de-Casal. 
I. O Cabeça-de-Casal utiliza desde o início do exercício das suas funções, contas bancárias pessoais e porque o faz por opção sua, não pode agora vir recusar partilhar informação sobre os depósitos existentes nas suas contas;
J. Não existe, pois, qualquer motivo ou justificação para impedir a junção dos elementos bancários relativos à conta pessoal do cabeça de casal afigura-se que tais elementos são essenciais para a descoberta da verdade;
K. A decisão do Tribunal a quo é válida, devendo improceder o presente recurso.
L. Quanto ao efeito suspensivo requerido, o mesmo deve ser indeferido, uma vez que o Recorrente não concretiza e muito menos demonstra o prejuízo considerável que a execução da decisão pudesse acarretar. 
M. Se o efeito suspensivo fosse de deferir contra a prestação de caução, o valor da caução a prestar não poderá ser inferior ao valor pedido a que o Cabeça de Casal seja condenado a pagar; 
N. O eventual deferimento do efeito suspensivo do presente recurso, que apenas se admite por cautela de patrocínio, terá de depender pois, da prestação de caução por parte do Recorrente não inferior a € 3.972.942,00.»

Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.

Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (arts. 635, 637, n.º 2, e 639, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, a questão que se coloca é a de saber se o cabeça-de-casal pode ser compelido a juntar os extratos bancários relativos à sua conta pessoal.

II. Fundamentação de facto
Os factos relevantes são os que constam do relatório.

III. Apreciação do mérito do recurso
Pelo despacho recorrido foi ordenado que o  cabeça-de-casal juntasse aos autos documentos referentes a várias contas bancárias. No recurso está apenas em causa o segmento que lhe determinou a junção dos elementos bancários relativos à sua conta pessoal.
O tribunal a quo justificou a ingerência na esfera de privacidade do cabeça-de-casal com a seguinte frase: «afigura-se que tais elementos são essenciais para a descoberta da verdade, uma vez que uma das questões centrais quer dos presentes autos, quer do Apenso K, quer dos autos principais é o eventual desvio de valores das contas da herança para contas pessoais».
Na primeira frase do mesmo despacho é dito que a verba 1 é a única em discussão nos autos. Compulsados os autos, isso mesmo se constata. Estes reportam-se apenas às verbas relacionadas pelo cabeça-de-casal como verbas 1 e 1-A que, lembramos, consistem nos seguintes saldos de contas bancárias:
- Union Bancaire Privée de Genève, n.º …, saldo em 31/03/2017 de USD 59.837;
- KBL Mónaco, n.º …, saldo USD 3.267.355,85;
- Conta pessoal do recorrente, USD 400.000,00 + USD 19.045,28 de juros;
- Outros valores aplicados fora da UBP e do KLB: USD 106.000 e USD 5.238,20 (levantamentos ATM), tudo no TOTAL USD 3.907.476,33 (EUR 3.286.355,20 ao câmbio de 06/09/2017).
Basta a ponderação dos elementos acabados de mencionar para se concluir que a divulgação no processo dos movimentos da conta privada do cabeça-de-casal não é necessária para se saber se o cabeça-de-casal se apropriou de valores da herança. A tê-lo feito, esses valores teriam como proveniência qualquer das outras contas bancárias que descreveu – notamos, mais uma vez, que apenas se discute nos autos os valores ou instrumentos depositados nessas identificadas contas e não outros eventuais bens geradores de rendimentos –, pelo que a desejada prova pode ser feita a partir do conhecimento dos movimentos das contas da herança, sem necessidade de exposição dos extratos da conta particular do cabeça-de-casal.
No requerimento através do qual prestou contas, em 06/09/2017, o cabeça-da-casal identificou várias contas bancárias da herança, descrevendo minuciosamente os seus movimentos até ao encerramento da maioria delas, com transferência dos respetivos saldos para a duas que subsistem. No mesmo requerimento, descreveu os destinos dos vários débitos, indicando que as tranches de USD 400.000, debitada em setembro de 2012 da conta do Barclays Bank Mónaco, e de USD 50.000, debitada em abril de 2013 da mesma conta, foram depositadas em conta pessoal sua. Mais indicou o valor dos frutos dos USD 400.000. Relativamente aos USD 50.000 afirmou tê-los mantido em depósito à ordem para fazer face a despesas da herança a acertar a final.
A recorrida não alega qualquer concreta quantia que tenha sido retirada indevidamente das contas da herança. De todo o modo, caso após efetiva e completa documentação das contas bancárias da herança, que ainda se aguarda nos autos, se verifique algum débito inexplicado, recairá sobre o cabeça-de-casal o ónus de justificar o destino do valor.
Pode considerar-se unânime o entendimento segundo o qual os valores protegidos pelo sigilo bancário são, por um lado, o regular funcionamento da atividade bancária, baseado na confiança e segurança das relações entre os bancos e os seus clientes e, por outro, o direito à reserva da vida privada desses clientes. Leia-se a propósito, exemplificativamente, o Ac. do TC n.º 278/95, de 31/05/1995, o Ac. TRL de 09/02/2017, proc. 19498/16.9T8LSB-A.L1-2, e Maria Eduarda Azevedo, «O segredo bancário e a fiscalidade na ordem jurídica portuguesa», Lusíada - Direito, Lisboa, n.º 10 (2012) pp. 213-236, disponível no Repositório da Universidade Lusíada, em http://hdl.handle.net/11067/978.
Casos há em que o direito à reserva da vida privada poderá ter de ser comprimido para descoberta da verdade em caso judicial, mas o caso dos autos, porquanto dissemos, não é um deles. Não há, portanto, motivo válido para pôr a descoberto os movimentos da conta pessoal do cabeça-de-casal.
Há, outrossim, motivos ponderosos e incontornáveis para não o fazer.
Nos termos do disposto no artigo 417 do CPC (de igual teor ao velho art. 519 do CPC de 1961), todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados, sob pena de condenação em multa e da implementação dos meios coercitivos que forem possíveis. Caso o recusante seja parte na ação, o tribunal apreciará livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova, se verificados os requisitos previstos no n.º 2 do artigo 344 do Código Civil.
Porém, diz o n.º 3, al. b), do mesmo artigo e diploma, a recusa é legítima se a obediência importar intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.
É notório que a observação dos movimentos de uma conta bancária põe a nu muito da vida privada do seu titular, revelando por onde viajou, quando o fez, que estabelecimentos (restaurantes, supermercados, lojas, hotéis, ginásio) frequentou ou frequenta habitualmente, quando foi ao médico ou fez exames complementares de diagnóstico, quanto gasta em farmácia, etc. Assim sendo, o cabeça-de-casal pode legitimamente recusar-se a facultar no processo os extratos integrais da sua conta bancária pessoal. E caso se recuse, não há qualquer incidente de que se possa lançar mão para o forçar a revelar os dados em causa.
Poderá, em tal caso, o tribunal pedir os mesmos elementos à instituição bancária. Porém, na falta de autorização do cliente, um tal pedido está votado ao insucesso. Com efeito, nos termos do disposto no art. 78 do Regime geral das instituições de crédito e sociedades financeiras (RGICSF – DL 298/92, de 31 de dezembro, com várias alterações, sendo a mais recente a da Lei 15/2019, de 12 de fevereiro), os membros dos órgãos de administração ou fiscalização das instituições de crédito, os seus colaboradores, mandatários, comissários e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar factos ou elementos respeitantes às relações da instituição com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, estando, designadamente, sujeitas a segredo as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias.
Os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição podem ser revelados mediante autorização do cliente (art. 79, n.º 1, do RGICSF). Sem tal autorização, no âmbito de um processo cível, a instituição de crédito só poderá ser compelida a revelar o conteúdo de conta bancária do cliente após levantamento do segredo a efetuar no processo especial para esse fim destinado.
Com efeito, o n.º 2 do art. 79 do RGICSF afirma que, fora do caso previsto no número anterior (autorização do cliente), os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados nas seguintes situações:
a) Ao Banco de Portugal, no âmbito das suas atribuições;
b) À Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, no âmbito das suas atribuições;
c) À Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, no âmbito das suas atribuições;
d) Ao Fundo de Garantia de Depósitos, ao Sistema de Indemnização aos Investidores e ao Fundo de Resolução, no âmbito das respetivas atribuições;
e) Às autoridades judiciárias, no âmbito de um processo penal;
f) Às comissões parlamentares de inquérito da Assembleia da República, no estritamente necessário ao cumprimento do respetivo objeto, o qual inclua especificamente a investigação ou exame das ações das autoridades responsáveis pela supervisão das instituições de crédito ou pela legislação relativa a essa supervisão;
g) À administração tributária, no âmbito das suas atribuições;
h) Quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo.
A revelação ao tribunal no âmbito de um processo cível (ou de um processo de qualquer outra natureza, além da penal e da tributária) não se reconduz a qualquer dos casos listados. Apenas por via da cláusula aberta constante da al. h), que remete para outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo, se poderá alcançar esse desiderato.
Para tanto, há que voltar a olhar para o art. 417 do CPC, desta feita para o seu n.º 3, al. c), e para o n.º 4, para o qual aquela alínea remete. Nos termos da al. c) do n.º 3, a recusa é legítima se a obediência importar a violação do sigilo profissional, sem prejuízo do disposto no n.º 4. Este n.º 4 estabelece que, deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.
Nos termos do artigo 182 do Código de Processo Penal, os membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo apresentam à autoridade judiciária, quando esta o ordenar, os documentos ou quaisquer objetos que tiverem na sua posse e devam ser apreendidos, salvo se invocarem, por escrito, segredo profissional. Fazendo-o, é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 135 do mesmo CPP sobre a escusa de depoimento.
De acordo com o disposto no n.º 2 do art. 135 do CPP, havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento. Continua o n.º 3, determinando que o tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos; a intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
Adaptando o exposto a um pedido de documentos bancários em processo civil, o juiz do processo que solicita os documentos, e a quem os mesmos são recusados pela entidade bancária, se tiver dúvidas fundadas sobre a legitimidade da recusa, procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da recusa, ordena a junção dos documentos. Persistindo a recusa, a parte a quem interesse a junção dos documentos, ou o próprio tribunal, impulsiona incidente de levantamento de sigilo, por apenso, que, após instruído, será remetido ao Tribunal da Relação, para decisão.
Tal procedimento não foi realizado.
Impõe-se julgar o recurso totalmente procedente, com a consequente revogação do segmento do despacho recorrido, em crise nesta apelação.

IV. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando o despacho recorrido na parte objeto de recurso.
Custas pela recorrida.
Lisboa, 12/03/2019

Higina Castelo
José Capacete
Carlos Oliveira