I. No tocante aos fundamentos de resolução e/ou de denúncia dos contratos de arrendamento para fins não habitacionais, de duração ilimitada e celebrados antes do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de Setembro, não se impõe a aplicabilidade imediata e retroativa do novo regime do NRAU, designadamente das normas transitórias constantes dos artigos. 26º a 28º da Lei nº 6/2006, de 27 de fevereiro, importando conjugar a norma do artigo 59º, nº1 desta mesma lei com as regras sobre a aplicação da lei no tempo consagradas no artigo 12º do Código Civil.
II. Daí que, nesta matéria, se imponha distinguir os fundamentos resolutivos ocorridos e completados no domínio de vigência da lei anterior (RAU), que continuarão a ser regidos por ela, nos termos do disposto no artigo 12º, nº1 do Código Civil, dos que, mesmo iniciados durante esse âmbito de aplicação, se prolonguem para o império da lei nova ou ainda daqueles que se verificaram já no domínio da vigência da nova lei, aos quais são aplicáveis as normas do NRAU, aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27.02, designadamente as normas transitórias constantes dos seus artigos 26º a 28º, conforme o disposto no artigo 59º, nº1 desta mesma lei.
III. O direito de denúncia do contrato de arrendamento para fim não habitacional consagrado no artigo 26º, nº 6, al b) da Lei nº 26/2006, de 27.02, depende da verificação cumulativa de dois requisitos:
i) ser a arrendatária uma sociedade;
ii) ocorrer na sociedade arrendatária, após a entrada em vigor do NRAU, uma alteração de mais de 50% da titularidade da posição ou posições sociais relativamente à situação social existente àquela data, por força de um ato de transmissão inter vivos dessas mesmas posições.
IV. A norma transitória do artigo 26º, nº 6, alínea b) da Lei nº 26/2006, de 27 de fevereiro, deve ser interpretada no sentido da sua aplicação a todas as situações em que se verifique uma alteração de mais de 50% da titularidade do capital social da sociedade inquilina, resultante de transmissão inter vivos, mesmo não tendo havido entrada de novos sócios.
V. A unificação das quotas e a transformação formal de uma sociedade comercial por quotas em sociedade unipessoal por quotas, por não implicar a alteração do montante nominal das participações dos sócios ou da sua proporção no capital social, nem envolver a criação de uma nova sociedade, não integra a previsão do artigo 26º , nº 6, al. b) da Lei nº6/2006, de 27 de fevereiro, não constituindo, por isso, fundamento da denúncia imotivada prevista no efetuar a denúncia imotivada prevista no art. 1101º, al. c) , ex vi art. 1108º, ambos do Código Civil.
E também não se enquadra na previsão do artigo 1038º, al. g) do Código Civil, pelo que, não estando a sociedade arrendatária obrigada a comunicar tal unificação e transformação ao senhorio, a falta de comunicação destas alterações societárias não constitui fundamento de resolução do contrato de arrendamento nos termos do artigo 1083º, nºs 1 e 2, al e) do Código Civil.
1. “AA– Imóveis, S. A.” intentou ação declarativa de condenação sob a forma sumária de processo contra “BB – , Lda.”, pedindo que seja:
a) declarada a resolução do contrato de arrendamento comercial celebrado com a ré;
b) a ré condenada a entregar-lhe, livre e desocupada, a loja objeto deste contrato de arrendamento.
Em alternativa, para o caso de não se reconhecer que existe fundamento legal para resolução, que seja:
a) reconhecido que a autora tem fundamento para denunciar o dito contrato de arrendamento
b) reconhecido que a citação para a ação equivale à comunicação da denúncia do referido contrato de arrendamento, fixando-se a data para a produção dos efeitos da denúncia e cessação do arrendamento no prazo de cinco anos a contar da citação.
Alegou, para tanto e em síntese, que os anteriores donos do prédio urbano de que é atual proprietária, deram de arrendamento, para comércio, à sociedade “BB, Lda.” a loja deste mesmo prédio, sita no o n.º ...............
Em 2005 e 2008, foi, respetivamente, alterada a participação societária da arrendatária e transformada a mesma em sociedade unipessoal, sem que disso a ré lhe tivesse dado conhecimento e porque só teve conhecimento daquelas alterações societárias em junho de 2013, ficou impedida de denunciar, oportunamente, o referido contrato de arrendamento.
2. A Ré contestou, invocando a exceção peremptória de caducidade e sustentando a inadmissibilidade da resolução e a denúncia do contrato.
Deduziu reconvenção, pedindo, no caso de a ação vir a ser julgada procedente, a condenação da autora no pagamento da quantia de € 36.000,00, correspondente ao valor das benfeitorias úteis e necessárias realizadas no locado, no pagamento das custas e procuradoria condigna, em valor não inferior a €6.000,00, bem como a ressarci-la dos prejuízos correspondentes à inviabilização do negócio tendo por objeto o trespasse do estabelecimento da Ré existente no locado denominado “Restaurante ......”, valor a apurar em liquidação de sentença.
3. A Autora/Reconvinte contestou a reconvenção, invocando a ineptidão do pedido reconvencional e pugnando pela sua absolvição deste pedido.
4. Realizada audiência prévia, nela foi proferido despacho a admitir o pedido reconvencional bem como a sua ampliação. Foi ainda proferido despacho saneador, fixando-se, se seguida, o objeto do litígio e os temas de prova.
5. Realizado o julgamento, foi proferida sentença que:
a) Julgou a ação improcedente, absolvendo a Ré dos pedidos formulados pela Autora;
b) Julgou prejudicado o conhecimento da parte do pedido reconvencional formulado a título de benfeitorias;
c) Absolveu a Reconvinda da parte restante do pedido reconvencional formulado pela Reconvinte;
d) Condenou a Autora Autora/Reconvinda e a Ré/Reconvinte no pagamento das custas, na proporção de ¾ a primeira e de ¼ a segunda.
6. Inconformada com esta decisão, dela apelou a autora para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão proferido em 10 de maio de 2018, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diversa, julgou improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.
7. Inconformada, de novo, com esta decisão, a autora dela interpôs recurso de revista excecional para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:
« Foi analisado Acórdão Fundamento sobre a interpretação do artigo 26º, nº 3, al. b), da Lei nº 6/2006 (NRAU);
1. O Acórdão Fundamento considera que o artigo 26º, nº 3, al. b), da Lei nº 6/2006 (NRAU) deve ser interpretado no sentido da sua aplicação a todas as situações em que se verifique uma alteração de mais de 50% da titularidade do capital social da sociedade inquilina, resultante da transmissão inter vivos, mesmo não tendo havido entrada de sócios.
2. No Acórdão Recorrido entende-se que aquela norma não se aplica quando a sociedade arrendatária, Recorrida, manteve a sua identidade societária e em 2008 apenas ocorreu a formalização dessa situação, ou seja, quanto a sócia titular de duas quotas de € 2.500, registadas em 2005, as unifica e transforma a sociedade em 2008, numa sociedade unipessoal;
4. As alterações ao contrato de sociedade da Recorrida mostram-se inscritas no
respectivo registo comercial pela Apresentação 30, de 22 de Outubro de 2008;
5. A Recorrente só tomou conhecimento das referidas alterações societárias em
Junho de 2013;
6. A Recorrida nunca comunicou à Recorrente a cessão de quotas realizada em
2005 e a alteração da sociedade por quotas em unipessoal realizada em 2008;
7. Era obrigação da Recorrida comunicar à senhoria/Recorrente as alterações societárias que realizou;
8. A Recorrida ao não comunicar as alterações societárias realizadas em 2005 e 2008 violou o disposto nas alíneas f ) e g ), do artigo 1038º, do Código Civil, o que constitui fundamento para resolução do contrato de arrendamento nos termos do nºs l e 2, do artigo 1083º, do C.C.;
9. Não tendo a Recorrida, em 2008, comunicado a alteração de sociedade por quotas para sociedade unipessoal, a Recorrente ficou impedida de exercer o seu direito de denúncia do contrato de arrendamento não habitacional, nos termos do artigo 1101º, al. c), do Código Civil, conjugado com o disposto nos artigos 28º e 26º, nº 6, da Lei 6/2012, a partir de, pelo menos, o dia da apresentação do registo AP00000000000
10. Na constituição da sociedade a cada sócio apenas fica a pertencer uma quota, que corresponde à sua entrada;
11. A medida dos direitos e obrigações inerentes a cada quota determina-se segundo a proporção entre o valor nominal desta e o do capital;
12. Antes da unificação das quotas, a sócia da arrendatária detinha duas quotas no
valor de € 2.500,00, na proporção de 50% do capital social da sociedade cada
uma;
13. Após a unificação das quotas e alteração da sociedade por quotas para unipessoal, a sócia da sociedade arrendatária passou a deter uma única quota de € 5.000,00, correspondente a 100% do capital social da sociedade, o que constitui uma alteração da titularidade da Recorrida em face ao existente antes vigência da Lei nº 6/2006;
14. A unificação de quotas e a alteração de sociedade por quotas em sociedade unipessoal merecem o mesmo tratamento jurídico do que a alteração de sociedade arrendatária por via de aumento de capital subscrito na totalidade pelo único sócio da sociedade, ou no caso de alteração dos sócios que têm o domínio da sociedade;
15. Está, assim, demonstrado o preenchimento do facto índice previsto no artigo 28, nº 3, al. b), anteriormente 26º, nº 6, al. b), do NRAU, pelo que a Recorrente tem direito a denunciar o contrato de arrendamento, nos termos do artigo 1101º, nº l, al. c), do Código Civil;
16. A decisão em crise violou o disposto nos artigos 1038º, al. f) e g), 1083º, nº l e 2, 1084º, 1101º, al. c), todos do Código Civil, artigo 219º do Código das Sociedades Comerciais e artigo 28º, nº 3, al. b), da Lei 31/12, de 14 de Agosto,
17. anteriormente artigo 26º, nº 6, da Lei nº 6/2012;
18. Deve, por isso, a decisão em crise ser revogada por outra que: i) declare resolvido
o contrato de arrendamento comercial, lavrado por escritura pública de
5.7.1971, no 8º Cartório Notarial de Lisboa, referente à loja com o número ......, que faz parte do prédio urbano situado na Rua da .... números .... a .., tornejando para a ....., .... a ... descrito na 4ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o número ..., a fls...., do livro B - um, e inscrito na matriz predial da freguesia da Encarnação sob o artigo 569; ii ) condene a Recorrida a entregar livre e desocupada a loja com o número 31 de polícia para a Travessa da ....., que faz parte do identificado prédio urbano;
19. Em alternativa, caso se considere não existir fundamento para a resolução do contrato, ser reconhecido que a Recorrente tem fundamento para denunciar o contrato de arrendamento lavrado por escritura pública de 5.7.1971, no 8º Cartório Notarial de Lisboa, referente à loja com o número 31 de polícia para a Travessa da ....., que faz parte do identificado prédio urbano, nos termos do artigo 1101, al. c) do C.C., por remissão do artigo 28, nº 3, al. b), da Lei 31/12, 14 de Agosto, considerando que a citação para a presente acção equivale à comunicação da denúncia do referido contrato arrendamento, fixando-se a data para a produção da denúncia e cessação do arrendamento em 5 anos após a recepção da citação para presente acção».
8. A ré não contra alegou.
9. A Formação de Juízes a que alude o art. 672º, nº 3 do CPC, considerando preenchido o pressuposto da alínea a) do nº1 art. 672º do CPC, admitiu a revista excecional.
10. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II. Delimitação do objeto do recurso
Como é sabido, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa[1].
Assim, a esta luz, a única questão a decidir consiste em saber se assiste à autora o direito de resolução ou de denúncia do contrato de arrendamento ao abrigo do disposto no art. 26º, nº 6, al. b) da lei nº 6/2006, de 27 de fevereiro.
III. Fundamentação
3.1. Fundamentação de facto
1. A Autora é dona e legítima proprietária do prédio urbano sito na Rua da ...., nºs ..., ..., ...., ....e .., Travessa ......, nºs .., .., .., .. e .., e Rua da ..., nºs ..., ..., ... e .... composto por....., ...., descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º ... da freguesia da Encarnação, anteriormente n.º ... do livro n.º ..., e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo .. da mesma freguesia.
2. Por escritura pública datada de 4 de Junho de 1971, lavrada no ....º Cartório Notarial de Lisboa, os anteriores proprietários do mesmo prédio deram de arrendamento à sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada “BB, Limitada”, a loja com o n.º ... de polícia para a Travessa ..., pelo prazo de três meses, que se iniciou no dia um de Abril do mesmo ano, considerando-se prorrogado por iguais e sucessivos períodos de tempo nos termos legais.
3. A loja arrendada destina-se ao comércio de cervejaria e de bar, bem como ao comércio de qualquer ramo da indústria hoteleira e seus componentes ou similares.
4. No artigo quarto da referida escritura de arrendamento consta:
“Quarto: A inquilina não poderá fazer quaisquer obras sem prévia licença escrita dos senhorios, nem alegar retenção ou pedir indemnização por quaisquer benfeitorias que execute, nomeadamente nas instalações eléctricas ou de águas ou esgotos que não pode levantar, pois serão consideradas partes integrantes do prédio à medida que forem feitas.
Parágrafo Único: Ficam desde já autorizadas as limpezas, pinturas, colocar mosaicos no chão e azulejos nas paredes, renovar a instalação eléctrica e fazer mais uma casa de banho além da que tem, bem como abrir um roço na parede externa do prédio visando a instalação de um tubo para estabelecer a respiração na cozinha, isto na hipótese de ser autorizado pelos bombeiros e pela Câmara Municipal.”.
5. Actualmente a renda do referido locado é de €106,00 (cento e seis euros).
6. A sociedade por quotas “BB, Lda.”, à data da celebração da escritura pública de arrendamento comercial, bem como até 5 de Abril de 2005, tinha como seus únicos sócios CC.e DD, cada um com uma quota de €2.500,00.
7. Por escritura pública de 5 de Abril de 2005, lavrada no Cartório Notarial de EE denominada de cessão de quota e alteração parcial de contrato de sociedade, o sócio CC cedeu à sócia DD, pelo valor de €2.500,00, livre de quaisquer ónus ou encargos, e com todos os direitos e obrigações inerentes, a sua quota na sociedade “BB, Lda.”.
8. Por força da referida cessão de quotas e alteração parcial do contrato de sociedade, a sócia DD passou a deter na sociedade duas quotas no valor de €2.500,00 e a ser a única gerente, com poderes para obrigar a sociedade.
9. A alteração da posição societária nunca foi comunicada à Autora pela sociedade “BB, Lda.”.
10. Por buscas realizadas em Junho de 2013 a Autora tomou conhecimento da factualidade descrita em 6 e que por deliberação de assembleia geral de 8 de Outubro de 2008, a única sócia de “BB, Lda.”, deliberou:
i) A unificação das quotas de que ficou titular;
ii) A transformação da sociedade em sociedade unipessoal por quotas;
iii) A alteração do objecto social para a restauração de bebidas, actividades hoteleiras e similares;
iv) A alteração do pacto social.
11. As referidas alterações ao contrato de sociedade da Ré mostram-se inscritas no respectivo registo comercial pela Apresentação 30, de 22 de Outubro de 2008.
12. A alteração para sociedade unipessoal por quotas nunca foi comunicada à Autora pela Ré.
13. A Ré recebeu da Câmara Municipal de Lisboa a notificação datada de 5 de Dezembro e constante de fls. 131 a 133, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
***
3.2. Fundamentação de direito
Conforme já se deixou dito, no presente recurso está, essencialmente, em causa saber se as alterações ao contrato social da ré preenchem a previsão do art. 26º, nº 6, al. b) da lei nº 6/2006, de 27 de fevereiro, o que nos remete para a necessidade de determinar o sentido a dar à expressão « alteração da titularidade em mais de 50% ».
3.2.1. Estando, porém, em causa um contrato de arrendamento para fim não habitacional, celebrado em 4 de junho de 1971, de duração indeterminada ( outorgado pelo prazo de três meses, prorrogável por iguais e sucessivos períodos de tempo) e cuja resolução ou denúncia a autora pretende ver operada através da presente ação instaurada em julho de 2013 e, por isso, já no domínio da vigência da Lei nº 6/2006, de 27 de fevereiro[2], que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano ( NRAU) e cujo art. 60º revogou o RAU,
importa determinar o regime aplicável.
E a este respeito, não podemos deixar de ter presente o art. 59º desta mesma lei, que dispõe genericamente, no seu nº1, que « O NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias».
Julgamos, todavia, que esta norma não pode deixar de ser conjugada com as regras sobre a aplicação da lei no tempo consagradas no art. 12º do C. Civil, que preceitua, no seu nº1, que, ainda que à nova lei seja atribuída eficácia retroativa « ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular » e estabelece, no seu nº 2, que, quando a lei dispõe sobre os efeitos de quaisquer factos « entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhe deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor ».
Ora, se é certo reportarem-se as condições de exercício do direito de resolução ou de denúncia ao conteúdo da relação jurídica existente, certo é também que as mesmas não podem ser abstraídas do contrato de arrendamento que está na sua génese, pelo que, afastada a regra estabelecida nº 2 do citado art. 12º, impõe-se, quanto a elas, observar o disposto no nº1 deste mesmo artigo, ressalvando-se, por isso, os efeitos já produzidos.
Quer tudo isto dizer que, no tocante aos fundamentos de resolução e/ou de denúncia dos contratos de arrendamento para fins não habitacionais, de duração ilimitada e celebrados antes do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de Setembro, não se impõe a aplicabilidade imediata e retroativa do novo regime do NRAU, designadamente das normas transitórias constantes dos seus arts. 26º a 28º, havendo que ponderar a relevância dos factos apontados como causa da pretendida resolução ou da denúncia do contrato por parte do senhorio à luz das normas vigentes à data em que os mesmos ocorreram.
Dito de outro modo e nas palavras de Pinto Furtado[3], importa distinguir os fundamentos resolutivos ocorridos e completados no domínio de vigência da lei anterior (RAU), que continuarão a ser regidos por ela, dos que, mesmo iniciados durante esse âmbito de aplicação, se prolonguem para o império da lei nova ou ainda daqueles que se verificaram já no domínio da vigência da nova lei, aos quais é aplicável a nova lei (NRAU), sem prejuízo das normas transitórias constantes dos arts. 26º e 27º ( citado art. 59º, nº1 da Lei nº 6/2006) .
Assim, aplicando estes ensinamentos ao primeiro núcleo de factos em que a autora funda a resolução e/ou a denúncia do contrato de arrendamento, ou seja, a cessão de quotas e alteração parcial do contrato de sociedade da ré arrendatária, datada de 5 de Abril de 2005, diremos que, tendo a mesma se consumado no período da vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Dec-Lei 321-B/90 de 15 de Outubro, são-lhe são aplicáveis as disposições deste diploma que regulam o direito à resolução e à denúncia do contrato por parte do senhorio e do Código Civil, na versão vigente àquela data.
Mas, quanto aos demais factos em que a autora funda o seu direito à denúncia do contrato de arrendamento, ou seja, à alteração do contrato social da ré ocorrida pela deliberação da sua assembleia geral de 8 de Outubro de 2008, já serão aplicáveis o NRAU e o Código Civil, na versão dele resultante.
Norteados por estas coordenadas, vejamos, então, se à autora, assiste, ou não, o direito de resolver ou de denunciar o contrato de arrendamento celebrado com a ré.
3.2.1.1. Neste contexto, começaremos por analisar os requisitos tendentes à resolução do contrato de arrendamento com fundamento na falta de comunicação à autora da cessão de quotas e alteração parcial do contrato de sociedade, formalizada na escritura pública lavrada em 5 de Abril de 2005 e por via da qual o sócio CC cedeu à sócia DD, pelo valor de € 2.500,00, livre de quaisquer ónus ou encargos, e com todos os direitos e obrigações inerentes, a sua quota na sociedade “BB, Lda.”, passando aquela a deter, nesta sociedade, duas quotas no valor de € 2.500,00 e a ser a única gerente, com poderes para obrigar a sociedade.
E a este respeito, diremos, desde logo e em consonância com o afirmado no acórdão recorrido, resultar claro do disposto no art. 1038º do C. Civil que, à data dos factos, a única obrigação de comunicação que impendia sobre a arrendatária era a prevista na al. g) do seu nº1, ou seja, a obrigação de comunicar ao locador, dentro de 15 dias, a cedência do gozo da coisa por meio de cessão onerosa ou gratuita da sua posição jurídica, sublocação ou comodato, constituindo o incumprimento desta obrigação fundamento de resolução do contrato pelo senhorio, nos termos do disposto no art. 64º, nº1, al. f) do RAU.
Ora, consabido que as sociedades gozam de personalidade jurídica - art. 5.° do Cód. das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Dec.-Lei n.° 262/86, de 2 de Setembro -, representando, por isso, uma individualidade jurídica distinta da dos seus sócios e com um património separado dos patrimónios destes, que apenas são titulares de um direito complexo que se consubstancia na propriedade da quota, é bom de ver que a cessão de quotas, na medida em que não envolve qualquer “cedência do gozo da coisa”, não tem de ser comunicada ao senhorio[4].
Daí não se verificar o fundamento de resolução do contrato previsto no citado art. 64º, nº1, al. f) do RAU.
E o mesmo vale dizer quanto à denúncia, quer porque a aludida falta de comunicação não constitui fundamento de denúncia do contrato pelo senhorio, apenas consentida, nos termos do art. 68º, nº 2 do RAU, nos casos estipulados no art. 69º deste mesmo diploma, quer porque, pelas razões acima expostas, afastada ficou a aplicação do disposto no art. 26º, nº6, al. b) da Lei nº 6/2006, de 27 de fevereiro à factualidade em causa.
3.2.1.2 Mas porque a autora invoca ainda como fundamento do direito à denúncia do contrato de arrendamento em causa as alterações ao contrato social da ré, ocorridas em 2008, e, portanto, já no âmbito da vigência da Lei nº 6/2006, de 27 de fevereiro, importa, agora, decidir se tais alterações integram a previsão do art. 26º, nº 6, al. b) ( aplicável ex vi art. 28º) da citada lei.
É que, tratando-se de um contrato de arrendamento para fim não habitacional, de duração ilimitada e celebrado antes do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de Setembro, permite esta norma que o senhorio possa efetuar a denúncia imotivada prevista no art. 1101º, al. c)[5] , ex vi art. 1108º, ambos do Código Civil, mediante comunicação ao arrendatário com a antecedência não inferior a cinco anos sobre a data em que pretenda a cessação quando, « Sendo o arrendatário uma sociedade, ocorra transmissão inter vivos de posição ou posições sociais que determine a alteração da titularidade em mais de 50% face à situação existente aquando da entrada em vigor da presente lei ».
Neste capítulo ficou provado que por deliberação de assembleia geral de 8 de Outubro de 2008, a única sócia de “BB, Lda.”, deliberou: i) a unificação das quotas de que ficou titular; ii) a transformação da sociedade em sociedade unipessoal por quotas; iii) a alteração do objeto social para a restauração de bebidas, atividades hoteleiras e similares; iv) a alteração do pacto social.
Mais se provou que a alteração para sociedade unipessoal por quotas nunca foi comunicada à Autora pela Ré.
Perante este quadro factual, considerou o acórdão recorrido, acompanhando a interpretação « não restritiva do conceito transmissão inter vivos de posições sociais ínsito na alínea b) do nº 6 do artigo 26º do NRAU» acolhida no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17.05.2016 ( processo nº 1218/14.4TVLSB.L1 ) [6], que, a partir de 2005, a situação societária da ré « mais não era do que uma sociedade unipessoal por quotas, à luz dos artºs 270-A a 270-G do CSC. Por isso, foi sentida a necessidade de formalizar o que já “ acontecia de facto”, outorgando a escritura de 8 de Outubro de 2008.
Significa isto que, a partir de 2005 esta sociedade manteve a mesma identidade intrínseca: o mesmo capital social, a mesma gerente, a mesma titularidade dos poderes para obrigar a sociedade, o mesmo objecto social. O que mudou foi apenas a formalização legal da mesma situação de facto.
Por isso, à luz do art.º 26 nº 6 al b) da Lei nº 6/2006 ( redacção primitiva ) entendemos que esta transformação da sociedade por quotas em sociedade unipessoal por quotas não pode ser pressuposto para a denúncia do arrendamento: a identidade societária foi criada, de facto, em 2005. Em 2008 apenas ocorreu a formalização».
Diferentemente, sustenta a recorrente que « a unificação de quotas e a alteração de sociedade por quotas em sociedade unipessoal merecem o mesmo tratamento jurídico do que a alteração de sociedade arrendatária por via de aumento de capital subscrito na totalidade pelo único sócio da sociedade, ou no caso de alteração dos sócios que têm o domínio da sociedade, pelo que está demonstrado o preenchimento do facto índice previsto no artigo 28, nº 3, al. b), anteriormente 26º, nº 6, al. b), do NRAU», assistindo-lhe, por isso, o direito a denunciar o contrato de arrendamento, nos termos do artigo 1101º, nº l, al. c), do Código Civil.
Vejamos de que lado está a razão, importando, para tanto, clarificar o sentido da expressão « transmissão inter vivos de posição ou posições sociais que determine da alteração da titularidade em mais de 50% », contida no citado art. 26º, nº 6, al. b).
De referir que, nesta matéria, não poderemos deixar de perfilhar o entendimento seguido na doutrina[7] e na jurisprudência[8], de que o sentido a dar a esta expressão não pode ser dissociado da ratio da referida norma, que visa afastar o regime protecionista atribuído à posição do arrendatário quer nas situações que envolvam mudança do primitivo arrendatário, quer nas situações em que, apesar de permanecer inalterável a sociedade arrendatária, por força da mudança efetuada no respetivo capital, ocorra uma modificação significativa na sua identidade intrínseca, o que acontece sempre que o domínio da sociedade se altere em mais de 50%.
E daí também entender-se, em conformidade com o afirmado no Acórdão 01.03.2012 ( processo nº 399/11.3TVLSB.L1) [9], que a alínea b) do nº 6 do art. 26º da Lei nº 6/2006, de 27 de fevereiro deve ser interpretada « no sentido da sua aplicação a todas as situações em que se verifique uma alteração de mais de 50% da titularidade do capital social da sociedade inquilina, resultante de transmissão inter vivos, mesmo não tendo havido entrada de novos sócios ».
Esclarecido o sentido a dar à expressão “alteração da titularidade em mais de 50%”, e cuidando, agora, de verificar se a unificação das quotas de que a sócia de “BB, Lda” ficou titular e a transformação da sociedade inquilina, “BB, Lda.”, em sociedade unipessoal por quotas, por força da deliberação da assembleia geral de 8 de Outubro de 2008, integra-se na referida norma, constituindo fundamento para a denúncia do contrato de arrendamento prevista no art. 1101º, al. c)[10] , ex vi art. 1108º, ambos do Código Civil, diremos, desde logo, que a resposta a esta questão não pode deixar de ser negativa.
Desde logo, porque, tal como se sublinha no acórdão recorrido, foi em virtude da escritura pública celebrada em 5 de Abril de 2005, que o sócio CC, pelo valor de €2.500,00, cedeu a sua quota na sociedade “BB, Lda.” à sócia DD, que passou a ser titular das duas únicas quotas representativas da totalidade do capital social desta sociedade e a única gerente, com poderes para obrigar a sociedade, alterando-se, em consequência disso, o contrato de sociedade da ré arrendatária, quanto à titularidade e nova distribuição do capital social e à forma de obrigar esta sociedade ( cfr. certidão junta a fls. 39 a 43).
Porque, mesmo admitindo ser esta transmissão de quotas, em princípio, suscetível de integrar a previsão da norma do art. 26º, nº 6, al. b) da Lei nº 6/2006, de 27 de fevereiro, na medida em que traduz uma alteração de mais de 50% da titularidade do capital social da sociedade inquilina, certo é que, tendo a mesma ocorrido e se consumado no período da vigência do RAU, não lhe é aplicável, pelas razões que deixamos expostas no ponto 3.2.1., o citado art. 26º, nº 6, al. b).
E ainda porque, também em nosso entender, a unificação das quotas de que a sócia de “BB, Lda” ficou titular e a transformação desta sociedade inquilina, em sociedade unipessoal por quotas, ocorrida por força da deliberação da assembleia geral de 8 de Outubro de 2008, não pode ser enquadrada na previsão do artigo 26º , nº 6, al. b) da Lei nº6/2006, de 27 de fevereiro, não constituindo, por isso, fundamento da denúncia imotivada prevista no efetuar a denúncia imotivada prevista no art. 1101º, al. c) , ex vi art. 1108º, ambos do Código Civil.
Com efeito, basta atentar no disposto no art. 130º do Código das Sociedades Comerciais para facilmente se concluir que, não tendo sido deliberada a dissolução da sociedade “BB, Lda”, uma tal unificação e transformação, por não implicar alteração do montante nominal das participações dos sócios, nem da sua proporção no capital social, em nada afeta a relação arrendatícia de que a sociedade era titular.
Como assinala Fernando Gravato Morais[11], está aqui em causa apenas e tão só a mudança de um tipo de sociedade para outro, que não envolve a extinção da personalidade jurídica anterior.
Dito de outro modo e, nas palavras de Raúl Ventura[12] , estamos, no caso perante uma transformação formal, que não importa a dissolução da sociedade nem afeta a personalidade da sociedade , que continua a ser a mesma, antes e depois da sociedade.
« A sociedade mantém todas as relações jurídicas de que é titular activo ou passivo e mantém-nas por não ter havido mudança de titular (..) tudo era da sociedade e dela continua».
No mesmo sentido afirma Miguel Pupo Correia[13] que « o acto de transformação se processa sem que se altere a plena identidade da sociedade e, designadamente, sem que ocorra a dissolução dela, constituindo tal acto uma emanação do princípio geral da liberdade dos sócios de alterarem o pacto social».
E porque assim é, ou seja, porque a unificação das quotas e a transformação de uma sociedade comercial por quotas em sociedade unipessoal por quotas não implica a criação de uma nova sociedade nem a cedência do gozo da coisa locada a terceiros, não está também a sociedade arrendatária sujeita à observância do disposto no art. 1038º, al. g) do C. Civil, não constituindo, por isso, a falta da comunicação dessas alterações societárias fundamento de resolução do contrato de arrendamento nos termos do artigo 1083º, nºs 1 e 2, al e) do Código Civil.
Daí inexistir fundamento para a resolução ou denúncia do contrato de arrendamento em causa, não merecendo qualquer censura o acórdão recorrido, que, por isso, será de manter.
III – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.
As custas da ação e dos recursos ficam a cargo da recorrente.
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[1] Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respetivamente.
[2] Entrada em vigor em 27.06.2006, conforme o disposto no seu 65º, nº 2.
[3] In, “Manual de Arrendamento Urbano”, Vol. II, 4ª ed. atualizada, pág. 1014. No mesmo sentido, cfr. Laurinda Gemas, in, “Revista do CEJ, 2º semestre 2006, nº5, pág. 76.
[4] Cfr., entre muitos outros, o Acórdão do STJ, de 26.06.2007 ( processo nº 07A1274), acessível in www dgsi. pt/stj.
[5] Aditado pelo art. 3º da Lei nº 6/2006, de 27.02 e, por isso, na redação anterior à introduzida pela Lei nº 31/2012, de 14.08.
[6] Acessível in www dgsi. pt/stj.
[7] Cfr., Fernando Gravato de Morais, in artigo publicado na Revista “Julgar”, nº3, 2007, pág. 212; António Pinto Monteiro em colaboração com Pedro Maia, n, RLJ, ano 138º, págs 3 e segs; Laurinda Gemas/Albertina Pedroso/João Caldeira Jorge, in, “ Arrendamento Urbano”, 3ª ed., Lisboa, Quid Juris, 2009, pág. 90; Francisco de Castro Fraga, in, “ Leis do Arrendamento Urbano Anotadas ( coordenação: António Menezes Cordeiro), Coimbra, Almedina, 2014, pág. 476 e Maria Olinda Garcia, in, “Arrendamento Urbano Anotado - regime substantivo e processual”, 3ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2014, pág. 132.
[8] Cfr., entre outros, os Acórdãos do STJ, de 11.09.12012 ( processo nº 399/11.3TVLSB.L1.S1) e de 31.01.2017 (processo nº 1219/14.2TVLSB.L1.S1); os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 01.03.2012 ( processo nº 399/11.3TVLSB.L1); de 17.05.2016 ( processo nº 1218/14,4TVLSB.L1)e de 09.06.2016 ( processo nº 1219/14.2TVLSB.L1), todos acessíveis in www.dgsi.pt.
[9] Acessível in www dgsi. pt/stj.
[10] Aditado pelo art. 3º da Lei nº 6/2006, de 27.02 e, por isso, na redação anterior à introduzida pela Lei nº 31/2012, de 14.08.
[11] In “ Novo Regime de Arrendamento Comercial”, Almedina 2011, 3ª ed., págs 63 e 64.
[12] In, “Comentário ao Código das Sociedades Comerciais – Fusão, Cisão, Transformação de Sociedades”, Coimbra- 1990, Almedina, págs. 448 a 451.
[13] In, “Direito Comercial - Direito da Empresa”, com a colaboração de António José Tomás e Octávio Castelo Paulo, 13º edição revista e atualizada, Setembro /2016, pág 302.