TRÁFICO DE INFLUÊNCIA
ELEMENTOS TÍPICOS DO ILÍCITO
CONSUMAÇÃO
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL
PERDA DE QUANTIA A FAVOR DO ESTADO
ARTº 335º DO CP E 358º
Nº 3 DO CPP
Sumário


I - Sendo o nosso processo penal de estrutura basicamente acusatória, constitucionalmente imposta (art. 32º, n.º 5, da CRP), só ao acusador cabe a iniciativa da definição do objecto da acusação e do processo, não podendo ser “ajudado” nessa tarefa pelo julgador, sob pena de violação do modelo acusatório, estruturante do processo penal português, e do perigo de desvio da imparcialidade do juiz, a que também alude o art. 6º da CEDH.

II - Contudo, trata-se de um sistema acusatório mitigado, uma vez que é integrado por um princípio da investigação (art. 340º, n.º1 do CPP), de modo a proporcionar, nos limites do possível, a averiguação da verdade material e a boa decisão da causa, podendo suceder que nem todos os factos ou circunstâncias factuais relativas ao crime imputado constem, desde logo, da acusação, poderá o juiz intervir excepcionalmente na narrativa dos factos da acusação/pronúncia, reformulando-os ou mesmo acrescentando os factos novos que emergirem durante a discussão da causa, o mesmo podendo ocorrer com outras questões, uns e outras submetidos à disciplina do preceituado nos arts. 358º e 359º do CPP, que tratam da alteração dos factos e que possibilitam a prossecução das finalidades do processo penal, garantindo simultaneamente os direitos de defesa do arguido e o processo justo.

III - Nos casos de alteração não substancial dos factos, equiparada a alteração da qualificação jurídica (art. 358º, n.º 3, do CPP), o juiz comunica ao arguido a alteração e concede-lhe, se o requerer, um prazo para preparação da sua defesa, no sentido de garantir que este não venha a ser condenado por factos distintos dos que figuram na acusação ou pronúncia, com os quais não pôde contar e dos quais não lhe foi permitido defender-se oportunamente, em respeito pelo princípio da vinculação temática consubstanciado na acusação.

IV - Porém, em relação aos factos que vêm descritos na acusação/pronúncia, apenas integra uma alteração não substancial de factos – entendidos estes como acontecimentos históricos ou eventos naturalísticos –, a que apresente relevância para a decisão da causa e que tenha implicações nos direitos de defesa do arguido, designadamente, em função da estratégia de defesa delineada. Tal não ocorre quando apenas existam alterações de factos relativos a aspectos não essenciais, manifestamente irrelevantes para a verificação da factualidade típica ou da ocorrência de circunstâncias agravantes.

V - No caso, a substituição, aliás desnecessária, de um conceito fáctico-conclusivo por outro – a referência à “autonomia intencional do Estado” pela expressão “imagem de igualdade, imparcialidade e transparência” – não colmatou qualquer insuficiência da acusação, não se traduziu na agravação da defesa do arguido nem teve como efeito a imputação ao mesmo de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, pelo que, não modificando o quadro factual da acusação, foi irrelevante para a qualificação ou para a determinação da moldura penal.

VI - A consagração legislativa do crime de tráfico de influências, actualmente p. e p. pelo art. 335º do C. Penal, teve implícita a necessidade de reforçar os mecanismos legais de combate à corrupção e aos actos a ela conducentes, pelo descrédito que os mesmos provocam na sociedade sobre o modo de funcionamento da Administração Pública.

VII - Na versão que veio a ficar plasmada no C. Penal de 1995 sobre o tipo de tráfico de influência cortou-se o cordão umbilical unindo os tipos antecessores deste e o de burla, pois dela não constava a incriminação do pacto realizado por aparente detentor de influência, ou seja, da conduta do agente que, ostentando a terceiro um poder por ele não detido sobre o intraneus, alcançasse, por assim mentir, uma vantagem ou a sua promessa.

VIII - Contudo, a redacção posteriormente conferida ao preceito pela Lei 65/98 pretendeu torná-lo mais abrangente incluindo na sua previsão (i) a interposição de pessoas, (ii) a possibilidade da influência traficada ser real ou ser meramente suposta, bem como (iii) a hipótese de a vantagem solicitada ou prometida ter carácter patrimonial ou não patrimonial. E, através da Lei 108/2001, com que se procurou adaptar o direito interno à Convenção Penal sobre a Corrupção do Conselho da Europa (de 30-04-1999), o legislador alterou de novo aquela redacção, que passou a enquadrar (iv) também a conduta de quem compra uma influência junto de uma entidade pública, (v) deixou de ter uma enumeração exemplificativa dos actos para cuja obtenção é traficada a influência e (vi) alargou a punição à venda de influência para obtenção de uma decisão lícita.

IX - Com o referenciado tipo de crime está em causa o próprio prestígio da Administração e, concomitantemente, a transparência da sua actuação na prossecução dos interesses que lhe estão adstritos e não, propriamente, a salvaguarda da autonomia intencional do Estado: assim, o bem jurídico que se pretende tutelar está associado à imagem de transparência e imparcialidade da Administração, em todos os procedimentos de tomada de decisões, garantindo a igualdade de tratamento de todos os cidadãos e a confiança que se ambiciona que os mesmos tenham na Administração Pública, nos termos estabelecidos na Constituição da República.

X - Como crime de perigo abstracto, em qualquer das suas modalidades, o seu desiderato é atingir os comportamentos prévios ao acto de corrupção, antecipando a tutela penal para o acordo [acto do negócio] sobre o poder de influenciar o decisor, sendo igualmente suficiente a mera solicitação de uma vantagem patrimonial ou não patrimonial a troco do exercício de uma influência, ainda que suposta, junto de um decisor público para se ter por violado o bem jurídico em causa, sem que, com isso, se tripudiem os princípios da necessidade e da mínima intervenção do direito penal consagrados pela Constituição

XI - Através deste tipo-de ilícito visa-se evitar que o agente (traficante), contra a promessa ou entrega de uma vantagem, abuse da sua influência junto de um decisor público, por forma a obter dele uma decisão, criando, desse modo, o perigo de que a influência abusiva venha a ser exercida e que, em consequência, o decisor venha a colocar os seus poderes funcionais ao serviço de interesses diversos do interesse público, sendo, pois, irrelevante para o seu preenchimento que o traficante, ao solicitar ou aceitar a vantagem, tenha, ou não, a intenção de efectivamente abusar da sua influência junto da entidade pública ou que venha, ou não, a fazê-lo.

XII - Trata-se, também, de um crime comum, passível de ser cometido por qualquer pessoa – não se exigindo que o próprio agente (traficante) seja funcionário público ou detenha certas qualidades –, que vende a sua influência, por si ou por interposta pessoa, sobre o funcionário público competente para decidir.

XIII - A influência do traficante sobre o decisor, a entidade cuja actividade se rege essencialmente pela prossecução do interesse público, incluindo a dos agentes ao seu serviço, pode ser de qualquer tipo e ser real ou suposta, pois também a compra da influência suposta produz a aparência de que a decisão a tomar é determinável ou induzível pelo traficante e, por isso, gera a descrença na honestidade, isenção, imparcialidade e correcção que devem presidir ao exercício das funções públicas e, portanto, a crença da corruptibilidade do Estado, que provoca, inevitavelmente, o descrédito das instituições públicas, afectando a credibilidade e confiança dos cidadãos no Estado.

XIV - O crime consuma-se com o acordo entre o traficante e o comprador, ou seja, com a solicitação ou aceitação da vantagem pelo traficante de influência, mesmo que tenha havido reserva mental por parte deste, uma vez que é irrelevante que a influência venha ou não a ser efectivamente exercida, desde que a celebração do acordo preceda a tomada de decisão da entidade pública e tenha como subjacente vantagem (patrimonial ou não patrimonial) ou a respectiva promessa.

XV - Por isso, estão excluídas do tipo as “gratificações”, denominação que tem em vista as condutas de aceitação de vantagem (ou da sua promessa) sem acordo prévio à tomada a decisão, bem como as condutas de tráfico desinteressado de influência, ou seja, sem vantagem (patrimonial ou não patrimonial) ou sem a sua promessa.

XVI - O tráfico de influência é punido independentemente da licitude ou ilicitude da decisão cuja obtenção seja tida em vista, aferindo-se a ilicitude pela prática ou omissão de acto em violação aos deveres do cargo.

XVII - Por fim, do ponto de vista subjectivo, o ilícito reveste natureza dolosa, sendo compatível com qualquer das modalidades do dolo, nos termos previstos pelo art. 14º do C. Penal.

XVIII – A decisão não enferma de nulidade por falta de fundamentação se, apesar do seu sincretismo, patenteia os respectivos fundamentos.

XIX - Deve ser declarada perdida a favor do Estado a quantia aprendida que foi utilizada na infracção penal cometida, por corresponder a contrapartida do favor que o agente traficante, ainda que supostamente, iria prestar ao comprador da influência, ou seja, da contraprestação estipulada em negócio celebrado entre ambos que constitui crime.

Texto Integral


Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

No processo comum colectivo n.º 3212/18.7T8BRG, do Juízo Central Criminal de B., do Tribunal Judicial da mesma Comarca, por acórdão proferido e depositado a 02.10.2018, foi o arguido A. H. julgado e condenado, pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de influência, p. e p. pelo art. 335º, n.º 1, al. a) do C. Penal, na pena de 2 [dois] anos de prisão, suspensa na sua execução, por igual período de tempo, e com subordinação do mesmo ao dever de proceder à entrega da importância de € 3.000 [três mil euros] à Amnistia Internacional [AMI], a realizar em 3 [três] prestações, no valor de € 1.000 [mil euros] cada uma, vencendo-se a primeira no prazo de 8 [oito] meses, contado do trânsito em julgado da decisão, e as restantes em iguais períodos subsequentes.

Inconformado com essa decisão, o arguido interpôs recurso cujo objecto delimitou com as conclusões que a seguir se transcrevem:

«(…) Artigo 4 O arguido encontrava-se acusado pelo crime de tráfico de influência p. e p. art. 335º do CP, com 18 factos, descritos na acusação; os quais se acham transcritos nas alíneas a) a r), item 12) das motivações.
Artigo 5 Perante tal facticidade que se encontrava vertida na acusação, o arguido confessou a quase integralidade dos factos (só não se tratou de uma confissão integral e sem reservas, porque entendíamos - e entendemos - que, os factos supra descritos, relativamente ao tipo de crime cometido, subsumiam-se na previsão normativa do crime de burla simples - e não - no tipo de crime tráfico de influências).
Artigo 6º A Senhora Procuradora, no exercício da sua Magistratura, prescindiu de parte da produção probatória e, em sede de alegações orais, referiu mesmo que o arguido havia confessado os factos, na sua essência e, solicitou que tal confissão fosse relevada na medida da pena.
Artigo 7º Entretanto, no dia 02 de Outubro de 2018, conforme resulta da acta com a ref. 160041737, procedeu-se à leitura do acórdão não sem antes o tribunal a quo ter sentido a necessidade de, nos termos do art. 358º, n.º 1 do CPP, introduzir nova materialidade factual, que qualificou como alteração não substancial de factos quando, na verdade, estamos perante - uma verdadeira e própria - alteração substancial de factos.
Artigo 8º Os factos novos introduzidos, pelo tribunal recorrido, ao abrigo do art. 358º, n.º 1 do CPP são os que se acham descritos, supra nas motivações, no item 17).
Artigo 9º Concretamente, o facto introduzido que provocou uma alteração substancial de factos, nos termos do art. 1º, al. f) do CPP é o facto supra enumerado no item 5 que, dada a importância, voltamos a colocar em evidência: 5. A legalidade da actuação da administração pública que o arguido não desconhecia estar a por em causa foi a imagem de igualdade, imparcialidade e transparência pressuposta nos respectivos processos de decisão.
Artigo 10º Tal facto não se encontrava no rol da facticidade que sustentou a acusação e foi introduzido adrede, em sede de audiência de julgamento, como alteração não substancial de factos quando, na verdade, a introdução de tal facto implica uma alteração substancial de factos.
Artigo 11º Nos termos do art. 1º, n.º 1, al. f) do CPP, alteração substancial de factos é aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Artigo 12º Claro está que o tribunal a quo não condenou o arguido por crime diverso daquele que ele vinha acusado.
Artigo 13º Não podemos fazer uma leitura tão simplista - e meramente literal - do que seja alteração substancial de factos (ou não seja alteração substancial de factos) pois, a interpretação deste artigo implica, muito mais, do que uma simples leitura literal do mesmo.
Artigo 14º Em primeiro lugar, é necessário que se trate de uma alteração de factos. E, na circunstância, verificou-se uma alteração de factos e, na perspectiva do arguido, a introdução do facto novo, descrito no item 5 do art. 18º das presentes motivações, configura uma alteração substancial de factos.
Artigo 15º Não se pense que - pela simples razão de manter a mesma qualificação jurídica - se poderá alterar factos, para sustentar o tipo de crime pelo qual o arguido se acha acusado.
Artigo 16º Se tal sucedesse - como sucedeu nos autos (com a introdução do referido facto) - tal circunstância configuraria uma inversão do silogismo judiciário.
Artigo 17º Conclui-se que o arguido vem acusado pelo crime de tráfico de influências e, também se conclui que os factos que constam no rol da acusação eram - e são - insuficientes, para condenar o arguido pelo crime de tráfico de influências então, para que a condenação subsistisse, implicaria que se introduzisse um novo facto, para sustentar o tipo legal de crime no qual assentava a acusação.
Artigo 18º Foi o que sucedeu nos autos, ao introduzir-se o facto descrito no item 5 do art. 18º da presente motivação o qual configura uma verdadeira alteração substancial de factos, nos termos do art. 1º, n.º 1, al. f) do CPP.
Artigo 19º Com a introdução deste facto, agravou-se substancialmente a defesa do arguido, porquanto ele havia-se preparado para se defender do crime de burla simples (apesar de se achar acusado por tráfico de influências, pois os factos descritos na acusação eram insuficientes para o preenchimento do tipo do art. 335º do CP).
Artigo 20º Na sequência deste novo facto introduzido, em sede de julgamento, o arguido acabou condenado pelo crime de tráfico de influência, cujo regime jurídico é mais gravoso, do que o crime de burla simples.
Artigo 21º O crime de burla simples (e seria, sempre, simples, porque o valor em questão nos autos era de 5.000,00) é um crime semi-público, porque depende de queixa (e por isso admite a desistência) a pena abstracta é a de prisão até 3 anos (ao passo que no tipo do art. 335º é até 5 anos) e, sobretudo, nos termos do art. 217º, n.º 4, é correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 206º e 207º do CP o que permitiria, ao arguido, a extinção do procedimento criminal.
Artigo 22º Se o tribunal a quo houvesse subsumido os factos constantes da acusação na previsão de burla simples (como - segundo nos parece - se impunha) e, não tivesse acrescentado o sobredito facto n.º 5 o estatuto de defesa do arguido era, substancialmente, diferente - porque mais benéfico - na medida em que, a introdução de tal facto, no rol dos factos assentes, configura uma alteração substancial de factos, conforme é definida pelo art. 1º, n.º 1, al. f) do CP.
Artigo 23º Nesta conformidade, somos forçados a concluir pela aplicação ao caso concreto do art. 359º do CPP, segundo o qual uma alteração substancial dos factos descritos na acusação não pode ser tomada em conta pelo tribunal, para efeito de condenação no processo em curso.
Artigo 24º Já supra defendemos que o facto n.º 5, aditado na acta de leitura do acórdão, com a ref. 160041737, não poderá ser levado em consideração na condenação por se tratar de uma alteração substancial de factos, conforme melhor se acha expendido no capítulo anterior o que implica - como consequência jurídica - a estatuição do art. 359º do CPP: não pode ser tomada em conta pelo tribunal para efeitos de condenação.
Artigo 25º De todo o modo, tal facto não pode resultar provado, porquanto verifica-se erro notório no julgamento da questão de facto posto que o arguido confessou quase a integralidade dos factos vertidos na acusação e, apenas, houve divergências quanto a quem tomou a iniciativa de pedir a quem (se foi o arguido que impulsionou o acto criminoso ou se, ao invés, foi a testemunha A. D. [co-arguido neste processo que se iniciou como sendo de corrupção - sendo este corruptor activo - e terminou qualificado como crime de tráfico de influências] que só pôde depor como testemunha porquanto, aceitou a suspensão provisória do processo, em relação à sua pessoa pois, caso contrário, seria co-arguido, em parceria, com o aqui recorrente!...
Artigo 26º As versões factuais apresentadas pelo arguido recorrente e pela testemunha (outrora co-arguida) A. D. são quase coincidentes apenas, divergem quanto ao sujeito que iniciou o processo criminógeno.
Artigo 27º Os depoimentos relevantes para se extrair a conclusão que não se poderá julgar provado o facto nº 5, aditado na Acta de Leitura do Acórdão, com a ref. 160041737, acham-se transcritos nos itens 46) a 56) da motivação - os quais, para todos os efeitos, se devem considerar ínsitos nas presentes conclusões e que aqui se não repetem para não tornar demasiado extensas as conclusões que se pretendem serem a síntese das alegações.
Artigo 28º Perante os depoimentos - e até as afirmações conclusivas expressas pela Sra. Juiz Presidente - o tribunal a quo não poderia ter concluído, como facto assente, o aludido facto n.º 5 acrescentado na sobredita acta de leitura de audiência, o qual consiste no seguinte: 5. A legalidade da actuação da administração pública que o arguido não desconhecia estar a por em causa foi a imagem de igualdade, imparcialidade e transparência pressuposta nos respectivos processos de decisão.
Artigo 29º Portanto, o arguido pugna para que tal facto não seja dado como provado quer por que constitui uma alteração substancial de factos (art. 359º do CPP) quer por que, dos depoimentos supra transcritos - e atrevemo-nos a dizer, do convencimento do tribunal (pelo menos da Sra. Juiz Presidente) - o arguido utilizou a figura do Eng. V. B. como ardil e para compor o estado de convencimento do Sr. V. B(nas palavras da Excelentíssima Juiz Presidente).
Artigo 30º Na verdade, o arguido não contactou - nem poderia contactar, por si ou por interposta pessoa - o júri de concurso logo, a protecção da legalidade e imparcialidade da administração pública não foi colocada em causa e verificou-se sempre a protecção da autonomia intencional do Estado.
Artigo 31º Por isso é que, pugnamos por expurgar dos factos tidos por assentes que a legalidade da administração pública e a imagem da igualdade, imparcialidade e transparência tenha sido posta em causa.
Artigo 32º De toda a facticidade supra transcrita, e cônscios que estamos que - actualmente - não vigora o principio da prova directa sendo permitido a utilização de prova indirecta, através do artigo 127º do C.PP. mesmo utilizando a interpretação mais lata deste artigo, da prova produzida em julgamento (e avaliada segundo o principio da imediação) não permite julgar como provado o item nº 5, aditado na Acta de leitura do Acórdão e supra referido no artigo 18, destas motivações.
Artigo 33º E, aí, a consideração do princípio da presunção da inocência, através, principalmente de uma das suas manifestações, o princípio in dúbio pro reo era fundamental precisamente porque o papel do Tribunal a quo era partir da consideração de inocência do Arguido, aqui Recorrente, (apesar dele ter confessado factos susceptíveis de serem enquadrados no crime de burla) para o exame da panóplia de meios probatórios ao dispor, e não, como fez, partir da sua pré culpabilidade, para, eventualmente, recolher indícios que contrariassem tal principio constitucional. Como veio a acontecer com a introdução do referido facto 5º relatado no supra artigo 18.
Artigo 34º Parece propugnar o Tribunal a quo uma interpretação normativa dos artigos 203.º do CP e artigos 125.º e 127.º do CPP segundo a qual o preenchimento do tipo objectivo e subjetivo do crime de trafico de influências, se poderá fazer por remissão exclusiva a prova indirecta, sem necessidade de concretização do modo concreto como : 5. A legalidade da actuação da administração pública que o arguido não desconhecia estar a por em causa foi a imagem de igualdade, imparcialidade e transparência pressuposta nos respectivos processos de decisão, em clara violação dos princípios de distribuição do ónus da prova, princípio in dúbio pro reo, in dúbio pro libertate, prerrogativas constitucionais de natureza garantística consignadas no artigo 32.º, número 2, 1.ª parte da Constituição da República Portuguesa.
Artigo 35º Baseado (e, com todo o respeito, limitado) pela interpretação normativa supra veiculada, isto é, que a conjugação dos artigos 125.º e 127.º do CPP e números 1 do artigo 203.º do CP, consagra apenas uma aceitação de um patamar de produção de prova indirecta, para eventual preenchimento do tipo objectivo e subjectivo do crime em causa, o Tribunal de 1.º instância não fez, como devia, um esforço complementar de investigação que lhe permitisse estabelecer as pontes lógicas normativas entre aquele patamar de prova indirecta existente e os factos imputados ao Arguido, e que lhe permitisse sobretudo, a final, justificar o iter decisório percorrido.
Artigo 36º Sendo certo que, existe uma diferença subtil, mas essencial, entre os tipos de crime burla e tráfico de influências, por eventual necessidade, num patamar de consideração de prova indirecta, e, sublinhe-se, por escolha e comodismo, num patamar de consideração de prova meramente presuntivo: i.e., sem consideração dos tipos basilares do crime em causa, sem densificação complementar necessária.
Artigo 37º Mais perverso, tal interpretação repercute-se, assim, numa fattispecie de desconsideração da necessidade de produção de prova adequada para comprovar a atuação contra legem do agente, numa subversão dos mais elementares princípios conformadores do processo penal - uma autêntica inversão do silogismo judiciário.
Artigo 38º Veja-se, a este propósito, o Tribunal de 1.ª Instância desconsiderou o apport de informação trazido pelo Arguido (através da confissão quase integral), aqui Recorrente, e que não se subsumiam, necessariamente, no crime de tráfico de influências mas sim, no crime de burla simples.
Artigo 39º Ao julgar aplicável tal interpretação normativa o Acórdão em crise sempre iria necessariamente ofender o núcleo essencial das garantias de defesa do arguido em processo penal que assegura a existência e corolário dos princípios in dúbio pro reo e in dúbio pro libertate, constitucionalmente consagrados pelo número 2, 1.ª parte, do artigo 32.º da CRP
Artigo 40º Salvo o devido respeito - que é muito e sincero - tal interpretação constitui um sacrifício injustificado das garantias de defesa constitucionalmente consagradas, acabando por propugnar um pernicioso modelo automático de consideração deste tipo de crimes, em que em vez de se partir da consideração de inocência do Arguido para o exame dos meios probatórios ao seu dispor, parte-se, isso sim, da sua pré-culpabilidade, para, eventualmente, recolher indícios que a contrariem na circunstância, o aditamento do referido facto nº 5, na Acta de Leitura da Audiência, supra melhor descrito.
Artigo 41º Os tipos descritivos dos crimes de burla e de tráfico de influência são muito diferente muito embora, por vezes a realidade da vida seja tão rica que propicia recortes factuais muito parecidos o que por virtude de tais circunstancias por vezes, implicam que os julgamentos sejam menos conseguidos na medida em que, a subsunção dos factos é inadequada aos bens jurídicos protegidos por cada um dos crimes.
Artigo 42º Defendemos, em alegações orais, junto do tribunal a quo, que o crime cometido pelo arguido, teria sido o crime de burla simples, porque o valor em questão não ultrapassa os € 5.100.
Artigo 43º Ao contrário, o tribunal recorrido julgou tratar-se de um crime de tráfico de influências.
Artigo 44º Para que tal sucedesse, necessário seria que os factos praticados pelo arguido se subsumissem no tipo objectivo do crime em questão isto é, nos termos do art. 335º do CP pois, pratica este tipo de crime quem, por si ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, para abusar da sua influência, real o suposta, junto de qualquer entidade pública.
Artigo 45º Implica em primeira mão que saibamos o conceito de entidade pública.
Artigo 46º Por entidade pública compreende-se qualquer pessoa individual ou coletiva que exerce funções estatais, sejam essas funções de natureza política, administrativa, governamentais, empresariais ou jurisdicionais. Engloba-se, pois, no conceito, todos os agentes que tenham uma relação profissional com a Administração Pública, que exerçam serviços para o Estado e que, por esse facto, estão sob um dever especial de fidelidade.
Artigo 47º No caso dos autos, a entidade pública seria o júri constituído para a avaliação dos curriculae, e demais pressupostos, com vista à contratação de mais de 700 enfermeiros a nível nacional.
Artigo 48º O crime de tráfico de influências revelava-se - e revela-se - impossível, porque o bem jurídico protegido por este tipo de crime (segundo Pedro Caeiro, in Comentário Conimbricense) é a protecção da legalidade e imparcialidade da administração pública. é, ao fim e ao resto, a protecção da autonomia intencional do Estado a qual nunca esteve em causa, na situação factual descrita nos autos.
Artigo 49º O júri sempre teve autonomia para decidir como bem quis e segundo as regras da legalidade e imparcialidade, porque, sobre si, não foi utilizada qualquer influência.
Artigo 50º Acresce que, da descrição do tipo do art. 335º, é referido que o traficante abuse da influência (real ou suposta) então, necessário é que o agente tenha influência, para dela poder abusar.
Artigo 51º Só pode abusar quem pode usar.
Artigo 52º No caso concreto, entendemos que a subsunção dos factos provados (com exclusão do facto nº 5 aditado - e que deve ser expurgado pelas razões supra expendidas - da Acta da Leitura do Acórdão), dever-se-á encaixar na hipótese legal de crime de burla simples.
Artigo 53º Preceitua o art. 217º, no seu nº 1, que: Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
Artigo 54º No que concerne aos elementos objectivos, dúvidas não existem de que à burla integra um delito de execução vinculada, em que à lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento. Traduz-se ela na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, à leva a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou para terceiros. Contudo, para que se esteja perante um crime de burla, não basta o simples emprego de um meio enganoso: torna-se necessário que ele consubstancie a causa efetiva da situação de erro em que se encontra o indivíduo.

Por outro lado, também não se mostra suficiente a simples verificação do estado de erro: requer-se ainda que nesse engano resida a causa prática, pelo burlado, dos actos de que decorrem os prejuízos patrimoniais. Pelo exposto, a consumação do crime de burla passa por um duplo nexo de imputação objectiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de actos tendentes a uma diminuição do património e, depois, entre os últimos e a efectiva verificação do prejuízo patrimonial in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial Tomo II, pág. 293.
Artigo 55º Procedendo à análise do caso concreto, somos forçados a concluir que o comportamento criminógeno do arguido, subsume-se na previsão normativa da burla pois, efectivamente, o arguido logo que perscrutou a possibilidade de ludibriar o Sr. A. D., praticou os seguintes actos:

- procurou descobrir o número de telemóvel do Sr. A. D.
- não tendo descoberto tal número, socorreu-se de terceira pessoa (no caso, a sogra) para o convocar para uma reunião, a realizar no Centro de Saúde X
- o Sr. A. D., ansioso - porque pensava tratar-se de uma questão de saúde - deslocou-se rapidamente à reunião aprazada pelo arguido
- uma vez lá, o arguido disse-lhe, mais ou menos isto: eu resolvo o assunto da tua filha, mas eles querem 5000 euros 2500 euros de imediato, e 2500 euros no final quando ela estiver a trabalhar no concelho de ...
- repare-se que faz referência ao concelho de ... para, nas palavras da Juiz Presidente: compor o estado de convencimento do Sr. A. D.
- e utiliza a figura do Eng. V. B. (que não tinha, nem tem, qualquer influência junto do júri) para - também nas palavras da Sra. Juiz Presidente a quo - dentro do contexto do convencimento dele (A. D.)
- e enquanto não recebeu a primeira tranche de 2.500 euros, insistia todos os dias para o telefone do Sr. A. D., para que se concretizasse a entrega
Artigo 56º Concluímos: todos os factos supra resumidos revelam o ardil e a artimanha que o arguido utilizou para induzir em erro o Sr. A. D. e convencê-lo a entregar a referida primeira quantia de 2.500 euros.
Artigo 57º A tipologia do crime que aqui está em causa, começou por ser investigada como crime de corrupção, cujo corruptor activo aceitou que lhe fossem impostas medidas de suspensão provisória do processo e, em relação a si, a instância terminou.
Artigo 58º Entretanto, com a facticidade constante no item 12 da presente motivação, a Magistratura do Ministério Público entendeu que deveria acusar o arguido pelo crime de tráfico de influências.
Artigo 59º Tendo em consideração que os factos se revelavam insuficientes para a condenação do arguido por tal crime, o tribunal recorrido acrescentou - invertendo o silogismo judiciário - o facto n.º 5, melhor descrito no item 18 da presente motivação e, com a introdução de tal facto, conseguiu subsumir a facticidade à previsão normativa do art. 335º.
Artigo 60º Porém, tal facto aditado consubstancia uma alteração substancial de factos e, além disso, da prova produzida em sede de audiência - mesmo recorrendo às regras de experiência comum do art. 127º do CPP - não é possível (de forma alguma) concluir-se que houve a violação do bem jurídico protegido pelo crime de tráfico de influências isto é, nem se influenciou entidade pública nem o arguido abusou daquilo que não podia usar não se colocou em causa a legalidade ou imparcialidade no processo decisório do júri e, muito menos, se colocou em crise a imagem da administração pública.
Artigo 61º O que aconteceu foi que o arguido utilizou o seu estatuto para, de forma ardilosa e habilidosa, lograr obter o convencimento do Sr. A. D., ludibriando-o, ao ponto de este lhe ter entregado 2.500 Euros. Concluímos, portanto, que foi cometido - de forma inequívoca - o crime de burla simples.
Artigo 62º Ao julgar-se doutro modo, o tribunal a quo violou o princípio da tipicidade e legalidade, consignado no art. 29º, n.º 1 da CRP.
Artigo 63º A primeira razão radica no facto de os factos logrados provados (excluindo o n.º 5 aditado erroneamente, conforme supra demonstramos) não permitem a subsunção à previsão normativo do crime p. e p. art. 335º do CP, sob pena de violação do princípio da tipicidade e da legalidade.
Artigo 64º A segunda razão assenta no facto de a vítima, Sr. A. D., não ter deduzido queixa, dentro do prazo de 6 meses o que implica, como é consabido, a extinção do procedimento criminal.
Artigo 65º Deste modo, o arguido seria absolvido - como se impõe - por extinção do procedimento criminal quer por inexistência de queixa (sendo o crime de burla simples, semi-público) quer pela restituição ao ofendido do valor de 2.500 Euros, nos termos do art. 206º, ex vi 217º, n.º 4 do CP.
Artigo 66º A medida da pena excede a medida da culpa e, por consequência, verifica-se a violação do princípio da proporcionalidade, consagrado no art. 18º, n.º 2 da CRP.
Artigo 67º Subsidiariamente, a medida da pena terá de ser substancialmente inferior. Aliás, julgamos que bastaria a pena de multa, e não a pena de prisão suspensa.
Artigo 68º A melhor doutrina acerca desta questão acha-se expendida no Direito Penal Português de Jorge Figueiredo Dias, págs. 291 e seguintes: Estabelecida a moldura penal do crime, o tribunal fixará a pena dentro dos limites e encontrará, em função das exigências gerais de culpa e de prevenção, e tendo em consideração os factos e a personalidade do agente sendo certo que insistimos: a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa e, no caso concreto, a pena aplicada é muito superior à medida da culpa.
Artigo 69º Acresce que, verificam-se as seguintes circunstâncias atenuantes: i) o arguido é primário ii) o arguido confessou iii) o arguido devolveu a quantia em questão iv) o arguido revelou verdadeiramente um estado de arrependimento.
Artigo 70º Em face do que acabamos de expender, somos forçados a concluir pela violação do princípio da proporcionalidade ou também conhecido como princípio da proibição do excesso, consignado no art. 18º, n.º 2 da CRP.
Artigo 71º O princípio da proibição do excesso ou da proporcionalidade clássica é considerado por muitos o mais importante princípio do Direito Constitucional gerado pelas perspectivas pós-positivistas do direito e o centro da dogmática dos direitos fundamentais. A sua universalidade tem-se acentuado, sendo visto como um dos pilares do vocabulário comum de um constitucionalismo global. Em Portugal, a Constituição consagra-o, tendo sido, aliás, um dos primeiros textos constitucionais a referir-se-lhe expressamente. O Tribunal Constitucional, afastada alguma relutância inicial e diluídas - mas não superadas - algumas inconsistências, aplica-o com regularidade. O presente estudo demonstra que o princípio da proibição do excesso tem conteúdo, estrutura e metódica aplicativa variáveis consoante seja encarado como norma de acção dirigida ao legislador ou como parâmetro de controlo ao dispor do juiz constitucional. (Cfr. tese de doutoramento de Vitalino Canas O princípio da proibição do excesso: em especial, na conformação e no controlo de actos legislativos).
Artigo 72º E não podemos olvidar que o primeiro aplicador dos dispositivos constitucionais - na circunstância, o princípio da defesa dos direitos, liberdades e garantias - é o julgador a quo no caso concreto, o tribunal colectivo que procedeu ao julgamento na instância recorrida.
Artigo 73º O Acórdão recorrido violou - entre outros (sendo certo que, contamos sempre com o Superior Suprimento de Vossas Excelências, Senhores Desembargadores) - os seguintes dispositivos legais: artigo 1º, nº 1, al. f) do C.P.P. artigo 359º do C.P. artigo 29º, nº 1 da C.R.P. (principio da legalidade e tipicidade) os artigos 335º, nº 1, al. a) do C.P. e 217º, nº 1, do C.P. artigo 410º, nº 2, al. c) do C.P.P. artigo 125º a 127º do C.P.P. artigo 32º, nº 2 da C.R.P. (violação do principio in dúbio pro reo) artigo 206º do C.P. ex vi 217º, nº4, do mesmo diploma artigo 18º, nº 2 da C.R.P. (principio da proporcionalidade) artigo 71º do C.P..

Termos em que, sempre com o Mui Douto Suprimento de Vossas Excelências, Senhores Desembargadores, pugnamos pela absolvição do arguido/recorrente, por errenoa subsunção dos factos à previsão normativa do tipo de crime sendo certo que, o crime cometido pelo arguido foi o crime de burla simples, perante cujas circunstâncias o procedimento criminal encontra-se extinto subsidiariamente, entendemos que a pena aplicada é extremamente severa impondo-se, portanto, a revogação do Acordão proferido pelo Tribunal a quo pois só assim se concretizará a almejada JUSTIÇA!...».

A. D., na qualidade de interessado, e por discordar da decisão na parte em que declarou perdida a favor do Estado a quantia apreendida, vem também interpor recurso formulando as conclusões que seguidamente se transcrevem:

«A. O presente recurso interposto limitar-se-á a uma parte da Decisão, por forma a tornar possível uma apreciação e uma decisão autónoma, nomeadamente quanto à matéria de direito.
B. Razão pela qual, nos termos da parte final da alínea d) do nº 1 do artigo 401º do CPP, tem o Recorrente legitimidade para interpor o presente recurso para defender um direito afectado pela decisão.
C. O aqui Recorrente é um terceiro, que tem que defender o seu direito sobre a quantia perdida a favor do Estado de 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), pertença sua - possuindo legitimidade para a apresentação do presente recurso.

IMPUGNAÇÃO DO ACÓRDÃO PROFERIDO, - por erro de julgamento da matéria de facto, por insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do preceituado no artigo 410º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal, por os factos provados não permitirem que a quantia apreendida (€ 2.500,00) seja declarada perdida a favor do Estado, por ser propriedade de terceiro.
D. Através de Douto Acórdão, foi decidido que: Encontra-se nos presentes autos apreendida a quantia de € 2.500,00, correspondente com o montante cuja entrega o arguido obteve, em decorrência do comportamento ilícito que prosseguiu. Mostrando-se a sobredita quantia abrangida pela previsão do artº 110º, nºs 1, al. b) e 2 do Cód. Penal, por constituir vantagem de facto ilícito típico, impõe-se declarar a respectiva perda a favor do Estado.
E. Ao declarar a perda a favor do Estado, a quantia referenciada, que legitimamente pertence ao Recorrente, fere os mais elementares princípios de justiça e segurança jurídica.
F. Decidindo como decidiu, o Tribunal recorrido fez errada interpretação dos factos e inadequada aplicação do direito aos mesmos, salvo devido respeito por opinião contrária.
G. A Decisão sobre a perda dos instrumentos e objectos relacionados com a prática de um crime deve ser fundamentada, por imposição dos arts. 205º, n.º 1 [As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma previstas na lei] da C.R.P. e 97º, n.º 5 [Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão] do C.P. Penal.
H. Impõe-se, em regra, que os objectos apreendidos sejam restituídos, como se diz no texto legal, a quem de direito, ou seja, à pessoa que tiver direito a eles - entendimento este, que já remonta a Luís Osório, como se pode ver no seu Comentário ao C.P.P. Português (1934), Pág. 224.
I. In casu, trata-se de uma quantia pertença do Recorrente, razão pela qual não podia, à partida, decretar-se a mesmo [quantia] perdida a favor do Estado, tal como se fez na Decisão recorrida.
J. Na verdade, resulta da prova produzida em julgamento e na qual o Tribunal a quo sustentou a sua motivação, tinha o Tribunal conhecimento que a quantia não pertencia ao arguido, e assim não podia ter declarada [a quantia] perdida a favor do Estado.
K. Além disso, a sua restituição não consubstancia qualquer perigo para que volte novamente a ser utilizado para a prática de ilícitos criminais. Tanto mais, que a decisão de perda a favor do Estado foi tomada sem uma apreciação concreta do tribunal dos respectivos pressupostos.
L. O Acórdão ofende as normas atrás citadas e o direito de propriedade do aqui recorrente.
M. De facto, existe o vício previsto no al. a) do nº 2 do art. 410.º do CPP, quando a factualidade dada como provada no Acórdão é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão do final.
N. Por outro lado, a sobredita quantia apreendida, não poderá ser abrangida pela previsão do art. 110º, nºs 1, al. b) e 2 do Código Penal, mas deveria ser abrangida pelo disposto enunciado no art. 111º do Código Penal, com a epigrafe: Instrumentos, produtos ou vantagens pertencentes a terceiro
O. Dir-se-á que NÃO FOI DADO COMO PROVADO no Douto Acórdão que, o aqui Recorrente/terceiro concorreu, de forma censurável, para a sua utilização ou produção, ou do facto tiver retirado benefícios.
P. Pelo que, deverá ser restituído ao Recorrente a quantia de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros).
Q. O Douto Acórdão recorrido ao declarar o perdimento a favor do Estado da quantia pertencente ao Recorrente, violou os arts. 62.º da Constituição da República, 109.º, 110.º e 111.º do Código Penal e, ainda, o art. 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal e o art. 358.º do Código Civil, entre outros preceitos legais.

SEM PREJUÍZO, CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA, DA NULIDADE DO ACÓRDÃO, exclusivamente quanto à quantia apreendida a favor do Estado.

R. Assim, verifica-se uma nulidade do Acórdão nos termos do artigo 379º, nº 1 c) uma vez que o tribunal deixa de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar e conhece questões de que não podia tomar conhecimento. Da nulidade da sentença proferida nos termos do disposto nos artigos 374º, nº 2, e, 379º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal, por falta de fundamentação da decisão da matéria de facto.
S. Analisada a decisão recorrida verifica-se que da mesma constam os factos provados e não provados, segue-se a exposição detalhada da motivação da decisão de facto, com o exame crítico das provas que fundamentaram tal convicção.
T. Contudo na parte final da sentença, consta um acto decisório (3. Da Declaração de Perda a Favor do Estado), sem que em todo o Acórdão conste a competente fundamentação de facto e de direito, para o mesmo, com clara violação do disposto no artigo 97º, nº 5, do Código de Processo Penal.
U. Assim, foi decidido pelo Tribunal a quo, [2] declarar nos termos do disposto no artº 110º, nºs 1, al. b) e 2 do Cód. Penal, perdida a favor do Estado a quantia de € 2.500,00 [dois mil e quinhentos euros] apreendida à ordem dos autos.
V. Contudo da Decisão recorrida, não consta como provado qualquer facto sobre se a quantia apreendida e declarada perdida a favor do Estado, era predominantemente ou exclusivamente utilizada para a prática do crime de tráfico de influência, logo, inexiste falta de fundamentação fáctica para a decisão de perdimento da mesma a favor do Estado.
W. Por outro lado, resulta do disposto no artigo 109º, 110º e 111º, do Código Penal, também não existe fundamento fáctico para a declaração de perdimento a favor do Estado, pois não resulta que a quantia que serviu para a prática do facto ilícito típico, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, oferecem sério risco de serem utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, ou, caso pertençam comprovadamente a terceiro, este concorreu de forma censurável, para a sua utilização, porque tinha consciência e conhecimento da sua utilização na prática do facto ilícito típico.
X. De qualquer das formas resulta evidente a falta de fundamentação, de facto e de direito, do acto decisório de declarar perdida a favor do Estado a quantia de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros).
Y. A norma do artigo 374º do Código de Processo Penal corporiza exigência consagrada no artigo 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa - dever de fundamentação das decisões dos Tribunais que não sejam de mero expediente.
Z. Da conjugação dos mencionados preceitos legais decorre que a sentença deve ser fundamentada e que a sentença que não seja fundamentada é nula.
AA. A matéria de facto provada não permite responder à questão relativa à perda da quantia a favor do Estado e, por ser omissa quanto a estes aspectos, deve o Acórdão ser declarado nulo, quanto a esta parte.
BB. A omissão de fundamentação de facto e de direito, relativamente à perda da quantia, pertença do aqui Recorrente, a favor do Estado, implica a nulidade da sentença recorrida, face ao disposto nos artigos 374º, nº 2, e 379º, nº 1, alínea a) e c), do Código de Processo Penal.
CC. Foram violadas as disposições legais dos artigos 110º nº 1 e 111º do Código Penal, e o direito constitucionalmente consagrado no artigo 62º da Constituição da República Portuguesa, o direito de propriedade do aqui Recorrente.
DD. Daí que procedam os fundamentos do presente recurso, devendo revogar-se a decisão recorrida, na parte que declara perdida a quantia de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) a favor do Estado substituindo-a por outra que não lese o direito de propriedade do aqui Recorrente.

Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente e provado, e, em consequência:

A) Deve o presente recurso ser recebido, devendo revogar-se a decisão recorrida, na parte que declara perdida a quantia de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) a favor do Estado, substituindo-a por outra que não lese o direito de propriedade do aqui Recorrente, e que a mesma quantia seja devolvida ao mesmo
B) Sem prejuízo, caso assim não se entenda, e subsidiariamente, ser declarada a nulidade do Acórdão quanto à omissão de fundamentação de facto e de direito, relativamente à perda da quantia, pertença do aqui Recorrente, a favor do Estado, face ao disposto nos artigos 374º, nº 2, e 379º, nº 1, alínea a) e c), do Código de Processo Penal.».

Os recursos foram regularmente admitidos por despacho proferido a fls. 598.

O Ministério Público, em 1ª instância, apresentou resposta aos recursos deduzidos, pugnando pela sua total improcedência, por entender, no que respeita ao recurso do arguido, que a matéria aditada não constitui facto capaz de ditar a imputação ao mesmo de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, tratando-se apenas de uma explicitação dos factos já elencados na acusação deduzida e, nessa medida, traduz-se apenas numa alteração não substancial dos factos, a tratar nos termos definidos pelo art. 358.º do C. do Processo Penal. Também aduz, que do texto da decisão recorrida não se descortina a existência de qualquer juízo incoerente e desajustado da realidade, não enfermando a mesma de erro notório, sendo que os factos considerados provados traduzem um comportamento do agente consubstanciado na circunstância de ter solicitado e obtido uma vantagem para abusar da sua suposta influência sobre uma entidade pública, preenchendo o tipo de ilícito p. e p. pelo art. 335.º e não o p. e p. pelo art. 217.º do C. Penal e que, no limite, existiria entre os citados ilícitos uma relação de concurso aparente, prevalecendo o preenchimento do crime de tráfico de influência p. e p. pelo art. 335.º

E no que concerne ao recurso de A. D. assevera que decisão recorrida se mostra devidamente fundamentada, quer em termos de facto, quer de direito, contendo todos os factos tendentes à determinação da perda a favor do Estado da quantia de € 2.500, que consistiu na vantagem obtida com a prática do crime, e as razões jurídicas que determinaram tal perda.

E, neste Tribunal, também a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta pugnou pela improcedência de ambos os recursos, convocando a argumentação do Ministério Público de primeira instância, a que adicionou considerações pertinentes.

Cumprido o art. 417º, n.º 2, do CPP, foi efectuado exame preliminar e, colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, nos termos do art. 419º, n.º 3, al. c), do CPP.

*
II – Fundamentação

Na medida em que o âmbito dos recursos se delimita pelas respectivas conclusões (art. 412º, n.º 1, do CPP), sem prejuízo de questões que importe conhecer oficiosamente, por obstarem à apreciação do seu mérito, nos recursos suscitam-se as seguintes questões (apreciadas segundo a ordem da respectiva prejudicialidade):

- A nulidade do acórdão por alteração substancial de factos;
- A impugnação da matéria de facto;
- O enquadramento jurídico dos factos;
- A pena (medida e sua substituição).
- A declaração de perda da quantia apreendida.
*
Importa decidir, para o que deve considerar-se como pertinentes os factos considerados provados e não provados, bem como a motivação da respectiva decisão (sic):

«a) O Agrupamento de Centros de Saúde ... é um serviço desconcentrado da Administração Regional de Saúde, I.P., instituto público integrado na administração indirecta do Estado, dotado de autonomia administrativa e financeira e de património próprio.---
b) O arguido A. H. é médico e titular, nessa qualidade, da cédula profissional com o número M ..., tendo exercido, no período temporal compreendido entre os dias 25 de Fevereiro de 2000 e 31 de Dezembro de 2016, funções, com a categoria de Clínico Geral, no Agrupamento de Centros de Saúde ... – Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados de ....---
c) Por sua vez, A. D. é progenitor de T. D., licenciada em enfermagem, apresentando-se a mesma, à data dos factos infra descritos, sem colocação profissional na sua área de formação.---
d) No dia 8 de Outubro de 2015, no decurso de uma consulta médica, o arguido, sendo conhecedor de que aquela T. D. era licenciada em enfermagem e tendo tomado conhecimento de que a mesma se encontrava, ainda, na condição de desempregada e que tal situação preocupava A. D., questionou este sobre se a sua filha havia apresentado candidatura ao concurso para preenchimento de 774 postos de trabalho dos mapas de pessoal das diversas Administrações Regionais de Saúde, na categoria de enfermeiro, da carreira especial de enfermagem, em regime de contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado, publicado através do Aviso n.º 10946-A/2015, no 1.º Suplemento, Série II, do Diário da República n.º 188/2015, de 25.09.2015.---
e) Como A. D. não estivesse, na ocasião, em poder de tal informação, o arguido forneceu-lhe o seu endereço de correio electrónico, …@gmail.com, para que o mesmo lha fizesse chegar, assim como, no caso de T. D. se ter apresentado ao referido concurso, para que lhe fosse fornecido o respectivo número de candidatura.---
f) Assim, e ainda naquele dia 8 de Outubro de 2015, pelas 13h48m, após isso lhe ter sido determinado pelo seu progenitor, T. D. informou o arguido, por mensagem tendo como destino o endereço electrónico mencionado em e), do número 09262911041522975318, correspondente ao que fora atribuído à sua candidatura ao referido concurso.---
g) No dia 3 de Novembro de 2015, no interior do Centro de Saúde X, o arguido disse a A. D. que pessoa que identificou como tratando-se do “engenheiro V. B.” era uma das responsáveis pela contratação da ARS Norte e que, estando em condições de, em detrimento dos demais candidatos, favorecer T. D. no identificado concurso, obtendo para esta a almejada colocação profissional, se dispunha a fazê-lo mediante a entrega da quantia de € 5.000,00 [cinco mil euros] em dinheiro, paga em duas prestações de igual montante, a primeira delas de imediato e a segunda depois da saída dos resultados.---
h) No dia 5 de Novembro de 2015, a hora não concretamente determinada, mas localizada entre as 12h00m e as 14h00m, junto à denominada Rotunda …, em ..., A. D., tendo em vista o fim mencionado em g), entregou ao arguido a quantia de € 2.500,00 [dois mil e quinhentos euros], distribuída por notas e acondicionada num envelope fechado.-
i) Na oportunidade de tal entrega, o arguido disse a A. D. que, no máximo até ao dia 15 de Janeiro de 2016, a sua filha T. D. estaria a trabalhar em unidade de saúde situada no concelho de ....---
j) Na mesma ocasião, o arguido exibiu, ainda, a A. D. um registo de chamada no seu telemóvel, proveniente de contacto com a designação “Eng. V. B.”, dizendo-lhe, falsamente, que a pessoa em causa já lhe tinha telefonado a perguntar pela entrega do dinheiro.---
l) Decorridos, porém, largos meses sem que a prometida colocação profissional se concretizasse e em face da ausência de notícias sobre os resultados do aludido concurso, A. D., no curso dos meses de Outubro e de Novembro de 2016, demandou, por diversas vezes, do arguido, através de SMS enviados para o número de telefone ... por este utilizado, a devolução da quantia de € 2.500,00 [dois mil e quinhentos euros] que lhe entregara, sob o anúncio de que, se o mesmo não o fizesse, o denunciaria criminalmente.---
m) Na sequência disso, o arguido, no dia 10 de Janeiro de 2017, pelas 10h40m, junto ao denominado “...”, em ..., local até ao qual se deslocou na condução do veículo de marca e modelo Mercedes CLK 270, com a matrícula ..., restituiu a A. D. a referida quantia de € 2.500,00 [dois e quinhentos euros].---
n) A pessoa referenciada pelo arguido como tratando-se do “Engenheiro V. B.” é V. B., que nunca exerceu funções na ARS Norte nem qualquer outra função relacionada com a selecção de candidatos, em concursos públicos para a contratação de profissionais de enfermagem para exercerem funções em estabelecimentos de saúde ou outros.---
o) Ao proceder pelo modo descrito, actuou o arguido de forma livre e consciente, com o propósito, logrado alcançar, de fazer crer a A. D. que podia, através de terceira pessoa e mediante o pagamento de vantagem patrimonial indevida, exercer influência junto de elemento decisor do concurso público mencionado em d), em ordem a favorecer, em detrimento dos demais candidatos, a colocação profissional de T. D., não ignorando que, por essa via, punha em causa a legalidade da actuação da administração pública, reflectida na imagem de igualdade, imparcialidade e transparência pressuposta nos respectivos processos de decisão.---
p) Agiu, ainda, sob o desígnio, logrado alcançar também, de fazer sua aquela vantagem, que sabia não lhe ser devida.---
q) Sabia, ainda, o arguido ser o seu comportamento proibido e punido por lei penal.---

[Factos relativos à personalidade e condições pessoais do arguido]

r) Não são conhecidos ao arguido antecedentes criminais.---
s) O arguido provém de agregado familiar de classe média e funcionalmente organizado que lhe proporcionou um processo de crescimento e socialização normativo.---
t) Entre os 3 e os 15 anos, o arguido viveu com os respectivos progenitores em Angola, regressando a Portugal após o 25 de Abril de 1974, tendo o respectivo agregado fixado residência no Seixal.---
u) Os encargos do agregado familiar eram suportados com o provento das actividades profissionais desenvolvidas pelos seus progenitores, funcionários da administração pública.---
v) O arguido licenciou-se em medicina em 1984, pela Universidade de Coimbra, a que se seguiu o exercício da profissão no concelho de ..., em consultório particular que conciliou com o ingresso, nesse mesmo ano, na carreira da função pública de Medicina Geral.--
x) Enquanto funcionário público, exerceu, ainda, funções de perito médico avençado do
Sistema de Verificação de Incapacidades (SVI) do Centro Distrital da Segurança Social de B., integrando as Comissões de Recurso de Incapacidade Permanente (CRIP), no período compreendido entre Dezembro de 1988 e 10.01.2010, pelas quais era remunerado na quantia mensal de cerca de € 1.000,00.---
z) Acumulou a referida actividade com o exercício de clínica privada e desportiva, no Óquei Clube de ..., tendo, ainda, exercido cargos de dirigente, enquanto vogal do Conselho de Administração da Clínica de Santa Cruz em ..., entre 1990 e 2008, como vice-presidente e director clínico da Clínica Particular de ..., entre 1998 e 2006, da qual era sócio maioritário e cuja cota de participação entretanto vendeu, e como director do Centro de Saúde X, entre 2004 e 2007, tendo, no âmbito do exercício destas últimas funções, suspendido o cargo de administrador que desempenhava em clínica privada.---
aa) Entre 1987 e 2009/2010 deteve, em conjunto com o cônjuge do seu sogro, uma imobiliária em B., tendo, ainda, explorado a sociedade “N. S.”, de comércio de medicamentos e produtos dietéticos para países de África e para Venezuela, actualmente sem actividade.---
bb) Foi casado entre 1982 e 2016, relação de que nasceram dois descendentes, ambos maiores de idade, o mais velho já autonomizado e o mais novo estudante do ensino superior particular na cidade do Porto.---
cc) No período a que se reportam os factos sob julgamento, o arguido vivia, como continua a viver, com o seu ex-cônjuge, advogada de profissão, e com o filho mais novo do casal, caracterizando-se o relacionamento do agregado familiar pela harmonia e a união entre os seus elementos.---
dd) Reside em casa própria, uma moradia unifamiliar em banda situada em meio urbano, sobre a qual incide encargo bancário, mantendo relação de proximidade com os elementos do meio vicinal.---
ee) O arguido deixou de exercer clínica geral no Centro de Saúde em Dezembro de 2016, na sequência de licença sem vencimento que requereu por três anos, motivada pela pretensão de gerir e pela necessidade de salvaguardar os investimentos realizados na sua empresa mais recente, a “Y, Ldª.”, situada na freguesia de ..., concelho de ..., e a funcionar desde há cerca de três anos.---
ff) Exerce, actualmente, o cargo remunerado de Presidente de Administração da referida sociedade, que concilia com o funcionamento do seu consultório médico particular e, ainda, com serviços que presta numa outra clínica particular.---
gg) Goza de situação económica confortável, dispondo, conjuntamente com o seu ex-cônjuge, de vários imóveis e de um rendimento médio mensal não inferior a € 5.800,00, valor que engloba a remuneração das funções de Administrador da “Y, Lda.”, a prática de medicina em consultórios particulares e os rendimentos auferidos pelo seu ex-cônjuge, que exerce profissão liberal.---
hh) O agregado suporta a despesa mensal fixa de cerca de € 500,00, relativa à amortização de empréstimo bancário que onera a habitação onde os seus elementos residem, a que acrescem as despesas de quotidiano, a incluir o pagamento de bens e serviços, no montante mensal de cerca de € 1.000,00, e, ainda, a importância mensal de cerca de € 780,00, relativa ao pagamento de propinas e ao alojamento no Porto do filho mais novo do casal.---
ii) Dedica os seus tempos livres, circunscritos aos períodos de fins-de-semana, ao convívio com familiares e amigos do casal, bem como à realização de viagens com os elementos do seu agregado, mantendo, ainda, hábitos regulares de leitura e a presença em congressos médicos.
jj) O arguido mantém relação de especial proximidade com os elementos do seu agregado constituído e, ainda, com a sua família de origem, que reside no Algarve e com a qual mantém contactos regulares.---
ll) É-lhe atribuído temperamento sociável, hábitos de trabalho e empreendedorismo.---
mm) A pendência dos autos não teve qualquer repercussão nas condições de vida do arguido, beneficiando o mesmo da confiança e do apoio da respectiva família.---
nn) Ao nível sociocomunitário, o arguido projecta uma imagem normativa, sendo referenciado como pessoa acessível e disponível.

Factualidade não provada:

1. Haja sido na oportunidade da consulta mencionada na al. g) da materialidade dada como demonstrada que o arguido forneceu a A. D. o número de telefone ..., para posteriores contactos.---
2. A ocorrência descrita na al. h) da materialidade dada como demonstrada haja tido lugar, rigorosamente, pelas 13h09m do dia aí mencionado.---
3. A unidade de saúde referida na al. i) da materialidade dada como demonstrada fosse, concretamente, o Centro de Saúde X.---
4. O registo de telemóvel que, na ocasião mencionada na al. j) da materialidade dada como demonstrada, o arguido exibiu a A. D. apresentasse, a anteceder a designação “Eng. V. B.”, os vocábulos “ARS Norte”.

Motivação:

O Tribunal formou a sua convicção, para a determinação da matéria de facto dada como demonstrada, na análise crítica e conjugada da globalidade da prova produzida.---

Desse modo, no que, em especial, concerne ao que se ordenou sob as als. a), b), c), d) e f) [as três últimas, na parte relativa, respectivamente, à relação de parentesco entre A. D. e T. D., à formação académica desta, ao concurso público designado e ao número que coube à candidatura que a mesma apresentou], atendeu-se ao teor da documentação constante de fls. 127 a 130 - Dec. L. nº 35/2012, de 15.02, que aprovou a orgânica da Administração Central do Sistema de Saúde, IP [ACSS, IP] -; de fls. 137 – informação prestada pela ARS Norte relativamente à condição profissional do arguido e aos cargos que exerceu -; de fls. 83 a 85 [245 a 247] – Aviso n.º 10946-A/2015 relativo ao procedimento concursal em causa, publicado no DR, 2.ª Série, n.º 188, de 25.09.2015 - e de fls. 140 a 152 – informação prestada pela ACSS, IP, com relação ao procedimento concursal já referido e, em particular, à candidatura apresentada por T. D., a que foi atribuído o número …, a incluir a documentação que a acompanhou, entre a qual se conta a de fls. 144, que constitui cópia do CC daquela T. D..---

No tocante à demais materialidade constante das als. c) a q) – não abrangida pela documentação mencionada no antecedente parágrafo -, atendeu-se ao teor das declarações prestadas, em sede de audiência de julgamento, pelo arguido e, bem assim, ao teor dos depoimentos prestados, na mesma sede, por A. D. e V. B., em conjugação com o teor da documentação/informação constantes de fls. 109 a 111 [271 a 274], 173, 174, 178 [224], 284, 289 a 359 e, bem assim, com o teor dos autos de vigilância, de apreensão e com o relatório fotográfico constantes de fls. 39 a 41 [219 a 223 e 228], tendo-se atendido, ainda, ao teor da perícia constante do apenso e aos autos de exame e de transcrição de comunicações telefónicas que se acham a fls. 199 a 211.---

Com efeito, o arguido, nas declarações que, em audiência de julgamento, se dispôs a prestar, assumiu que os factos constantes da acusação tiveram, nos seus aspectos estruturantes, efectiva correspondência com a realidade. Ressalvou, porém, as datas exactas dos eventos ocorridos, aspecto, segundo o mais que disse, de que não guardou memória precisa, para além de ter negado que tivesse sido de sua iniciativa qualquer proposta para exercer influência, ou suposta influência, junto de elemento da entidade decisora do procedimento concursal em causa. Nesse apontado contexto, relatou que foi, na verdade, A. D. que, na oportunidade de consulta em que o atendeu, o abordou, dizendo-lhe que a filha, licenciada em enfermagem e já conhecida dele, arguido, por ter estagiado no Centro de Saúde X, se apresentara ao concurso em causa, tendo-lhe, então, pedido que intercedesse para que a mesma viesse a obter colocação profissional. Mais adiantou ter sido o referido A. D. que logo se propôs pagar compensação pela influência a exercer e que, não obstante não estivesse ao seu efectivo alcance agir conforme lhe era proposto, acabou por anuir e por receber daquele a importância de € 2.500,00 de um valor global de € 5.000,00 que lhe comunicou ser o necessário para alcançar o objectivo pretendido. Contextualizou a sua conduta, alegando que, na data em questão, se debatia com algumas dificuldades económicas, assumindo, ainda, que tinha como perspectiva vir a receber os restantes € 2.500,00, acaso T. D. viesse a obter a colocação profissional almejada, aproveitando-se da eventualidade de isso vir a ocorrer naturalmente. Sabia que, de contrário, poderia vir a ter que restituir a importância que recebera, como veio a suceder, admitindo que o fez em resultado das pressões que, a partir de determinado momento, A. D. exerceu nesse sentido e pelo receio de que o mesmo viesse a concretizar o anúncio que lhe dirigiu de vir a expor a situação junto das autoridades judiciárias competentes. Pois bem.---

No que respeita aquilo que, em correspondência com a materialidade que lhe vinha imputada, o arguido assumiu como verdadeiro, nenhuma dúvida se suscitou a este Tribunal a respeito da genuinidade das correspondentes declarações. É que tais declarações apresentaram-se, desde logo, na condição de convergentes com as conclusões consentidas pela demais prova documental e pericial constante dos autos e a que acima, expressamente, se fez alusão, com especial destaque, sem prejuízo do mais, para as comunicações de fls. 174, trocadas entre o arguido e T. D., para o levantamento, documentado a fls. 173, da importância de € 2.500,00 da conta bancária titulada pela mesma, para o teor das comunicações de fls. 199 a 211, trocadas entre o arguido e A. D. e realizadas pelo primeiro a partir de número de contacto móvel formalmente registado em nome do seu cônjuge e de que o mesmo faria, como continuará a fazer, uso – cfr. contacto fornecido pelo arguido, aquando da prestação do TIR de fls. 375 -, bem como para as verificações realizadas pelo OPC encarregue da investigação na data em que veio a ocorrer a devolução e a subsequente apreensão daquela quantia, nos termos que constam de fls. 39 a 41 [219 a 223 e 228].--

Para além disso, a testemunha A. D., por via do depoimento que, em audiência de julgamento, lhe foi tomado, confirmou a narrativa do arguido, no que a mesma se apresentou convergente com a materialidade que lhe vinha imputada, tendo, ainda, o seu depoimento permitido, na conjugação com os elementos de prova documental constantes dos autos, precisar as datas em que os factos ocorreram.---

De registar, porém, que o depoimento prestado pela indicada testemunha não convergiu num ponto em particular com o relato do arguido. Com efeito, A. D. afirmou que foi o arguido que, na oportunidade da consulta que se realizou no dia 08.10.2015, lhe perguntou se a filha dele, depoente, se havia candidatado ao procedimento concursal em causa, o que veio a motivar, ainda no mesmo dia, a troca de comunicações constante de fls. 174. Afirmou, ainda, que, depois da descrita ocorrência, foi o arguido que, semanas mais tarde, tomou a iniciativa de o contactar novamente, para o que se socorreu de familiares dele, depoente, posto que não tivesse o seu novo número de telefone, provocando o encontro que veio a ter lugar no dia 03.11.2015 no Centro de Saúde X. Foi nesse momento, de acordo com o mais que disse, que o arguido se propôs exercer influência junto de pessoa, que declarou tratar-se do “engenheiro V. B.” e que seria uma das responsáveis pelas contratações da ARS Norte, para, mediante o pagamento à mesma da importância global de € 5.000,00, favorecer, em detrimento dos demais candidatos, T. D. no já referido procedimento concursal. Disse, ainda, que o pagamento ao referido “engenheiro V. B.” seria realizado, de acordo com o que lhe foi transmitido pelo arguido, em dois momentos, o primeiro deles de imediato e o segundo após a saída dos resultados. Adiantou ter sido nesse contexto que obteve de familiar o empréstimo da quantia de € 2.500,00, que veio a ser transferida para a conta bancária constante do documento de fls. 173 e da qual realizou o levantamento em numerário que possibilitou a entrega ocorrida no dia 5 de Novembro de 2015. Disse, por fim, com relevância para a matéria que nos toma, que, na data de tal entrega, o arguido lhe exibiu um registo de chamada telefónica de contacto com o nome atribuído de “engenheiro V. B.”, comportamento que fez acompanhar da menção de que a pessoa em causa já o contactara tendo em vista obter a entrega da correspondente importância.---

Aqui chegados, e sendo ponto assente, que, no tocante à autoria da iniciativa de que veio a resultar a ocorrência dos factos, as versões do arguido e da testemunha A. D. se apresentaram em contradição, certo é que não resultou, para este Tribunal, qualquer dúvida a respeito da veracidade com que, no particular que nos toma, depôs a indicada testemunha.---

Com efeito, mal se compreende que, tendo a iniciativa partido, segundo declarou o arguido, de A. D., aquele haja assumido, ao longo de todas as ocorrências, comportamento de manifesta pro-actividade, a incluir, e desde logo, a solicitação que, depois de lhe ter sido fornecido o número de candidatura de T. D., dirigiu a esta para que entrasse, directamente e com urgência, em contacto consigo, para o que forneceu à mesma o seu número de telefone, tal como resulta documentado a fls. 174. Outrotanto se diga relativamente ao empenho que, posteriormente a isso, exteriorizou, provocando novo encontro no Centro de Saúde, que viria a culminar, dias mais tarde, com a entrega da quantia de € 2.500,00.---

Para além disso, não explicou o arguido que razão poderia ter motivado a testemunha A. D., utente do centro de saúde, a convencer-se, sem mais, de que estaria ao seu alcance exercer qualquer tipo de influência, de modo que se apresente como justificado que a iniciativa tivesse partido dela. Apresenta-se, porém, já credível o relato da testemunha em causa de que o arguido a teria envolvido em diálogo, que a levou a manifestar o seu descontentamento relativamente a outros procedimentos concursais anteriores em que a sua filha teria sido alegadamente preterida de forma injusta e desigual. É contexto, há que reconhecer, em que estavam criadas as condições para que o arguido haja tomado a resolução de aproveitar-se, como admitiu ter feito, daquele A. D., locupletando-se à sua custa. De resto, o próprio arguido afirmou, nas declarações que prestou em audiência de julgamento e tal como acima se deixou já dito, que, no período em causa, se debatia com algumas dificuldades financeiras, o que, no confronto entre as versões apresentadas relativamente à identidade de quem partiu a iniciativa dos factos, fornece arrimo ao relato de A. D., a reforçar, nesses precisos termos, a convicção do Tribunal.---

Dito isto, e no que respeita, concretamente, à materialidade que se fez constar da al. n), o arguido, nas declarações que, em audiência de julgamento, lhe foram tomadas, reconheceu que a pessoa que, perante A. D., declarou estar em condições de materializar o processo de influência a que se propôs – ou a que, na sua versão dos factos, anuiu, sob proposta daquele A. D. -, era a testemunha V. B.. Reconheceu, também, que a pessoa em causa não tinha nem nunca teve, do que era do seu conhecimento, quaisquer atribuições no domínio do procedimento concursal em causa, ou, para todos os efeitos, de qualquer outro em matéria de contratação para carreiras no domínio da prestação pública de cuidados de saúde. Foi, de resto, em idêntico sentido que depôs, também, a testemunha V. B. e sentido em que convergiram, igualmente, os dados da respectiva nota curricular que constituem anexo à Resolução nº 8/2016, por via da qual foi investido nas funções que actualmente exerce e que se encontra disponível para consulta “in” DR, 2ª Série, nº 61, de 29 de Março de 2016. De registar, ainda, que a testemunha V. B. declarou, no depoimento que lhe foi tomado em audiência de julgamento, que tinha o número de telefone do arguido, assim como este tinha o seu, em decorrência de o mesmo ter sido médico do seu falecido pai e de o ser ainda da sua mãe, pelo que a troca desses elementos ocorreu pela necessidade de marcação de consultas e de resolução de questões atinentes ao acompanhamento médico dos seus progenitores.---

Aqui chegados, resta, derradeiramente, dizer, no que concerne ao que, em especial, se articulou sob as als. o) a q), que, para além daquilo que o arguido, em sede de audiência de julgamento, assumiu relativamente intencionalidade das suas condutas e à consciência do respectivo desvalor jurídico-penal, nunca a materialidade objectiva que, nos termos supra expostos, veio a resultar demonstrada permitiria outra conclusão, se não a de que agiu de forma intencionalmente direccionada, consciente e com pleno conhecimento da proibição e punibilidade do seu comportamento.---

Por fim, no que respeita à materialidade relativa à personalidade e condições pessoais do arguido, globalmente ordenada sob as als. r) a nn), louvou-se o Tribunal no teor do CRC constante de fls. 489 e, bem assim, no teor do relatório social para julgamento constante de fls. 492 a 494. De registar, porém, que, nas declarações que, em audiência de julgamento, o arguido se dispôs a prestar, esclareceu que, para além do que constava já daquele relatório, exerce, ainda, medicina privada numa clínica pertença de outrem e que o rendimento global do seu agregado, pelo somatório das parcelas que revelou, ascende a quantia mensal não inferior a € 5.800,00.---
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O Tribunal louvou-se, para a determinação da matéria de facto dada como não demonstrada, na ausência de prova da sua realidade e/ou verificação.---

Desse modo, no que respeita ao que se alinhou sob o ponto 1., o arguido, nas declarações que, em audiência de julgamento, lhe foram tomadas, afirmou que A. D. tinha, desde data anterior à aí designada, o seu número de contacto telefónico. Foi sentido em que convergiu o teor do depoimento prestado por A. D., razão pela qual resultou a indemonstração do facto em causa. De registar, de todo o modo e acrescidamente, que o conteúdo de uma das comunicações constantes de fls. 174, em que o arguido fornece o seu número de contacto telefónico móvel, em nada altera o que se deixa dito, posto que a conversação em causa decorreu entre ele e T. D. e não com o progenitor desta.---

No que concerne à materialidade que se ordenou sob o ponto 2., o arguido, assumindo, embora, a veracidade da entrega descrita na al. h) da materialidade dada como demonstrada, não foi capaz de precisar o dia e hora dessa ocorrência. E, tendo a insuficiência do seu relato, no tocante à data, sido colmatada pelo teor do depoimento prestado pela testemunha A. D., não foi esta capaz de indicar, com precisão, a hora em que se deu tal evento, senão por referência ao intervalo de tempo que mediou entre as 12h00m e as 14h00m.---

Relativamente ao que se fez constar do ponto 3., o arguido, nas declarações que, em audiência de julgamento, lhe foram tomadas afirmou não se recordar já se, na oportunidade em causa, disse à testemunha A. D. que a colocação profissional da sua filha iria ter lugar no Centro de Saúde X. Já a referida testemunha o que disse foi que o arguido lhe garantiu que a colocação de T. D. teria lugar em unidade de saúde situada no concelho de ..., sem poder precisar se se trataria, em concreto, do Centro de Saúde daquela localidade.---

Por fim, quanto ao facto ordenado sob o ponto 4., o arguido, nas declarações que, em audiência de julgamento, prestou, veio a afirmar que, tendo, embora, na sua lista de contactos o nome da testemunha V. B., pessoa de quem recebera o registo de chamada que exibiu, a designação da pessoa em causa não estava, na sua agenda, associada a qualquer referência à “ARS Norte”. Por seu turno, a testemunha A. D. não confirmou que a identificação do chamador do contacto que lhe foi exibido trouxesse associada a menção em causa.».
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III- O Direito.

1. A nulidade do acórdão por alteração substancial de factos art. 359º do CPP.

O arguido insurge-se quanto à contemplação, no ponto 5 dos factos provados, de nova materialidade factual, que, segundo aduz, o tribunal recorrido qualificou como alteração não substancial de factos, quando, na verdade, se está perante uma verdadeira e própria alteração substancial de factos.

Nos termos do art. 379º, n.º 1, alínea b), do CPP, é nula a sentença «Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º».

Como se sabe o objecto do processo é o objecto da acusação, no sentido de que é esta que fixa os limites da actividade cognitiva e decisória do tribunal, ou, seja, o thema probandum e o thema decidendum. O objecto do processo penal é, assim, constituído pelos factos alegados na acusação e a pretensão nela também formulada.

Se é a acusação que delimita o objecto do processo, são os factos dela constantes e imputados a um concreto arguido que fixam o campo delimitador dentro do qual se tem de mover a investigação do tribunal, a sua actividade cognitiva e decisória. Essa vinculação temática do tribunal consubstancia os princípios da identidade – segundo o qual o objecto do processo (os factos) deve manter-se o mesmo, desde a acusação ao trânsito em julgado da sentença –, da unidade ou indivisibilidade – os factos devem ser conhecidos e julgados na sua totalidade, unitária e indivisivelmente – e da consunção do objecto do processo penal – mesmo quando o objecto não tenha sido conhecido na sua totalidade deve considerar-se irrepetivelmente decidido, e, portanto, não pode renascer noutro processo) (1).

Sendo o nosso processo penal de estrutura basicamente acusatória, constitucionalmente imposta (art. 32º, n.º 5, da CRP), impende sobre o acusador a narração total dos factos que imputa ao arguido: é ao acusador, e só a ele, que cabe a iniciativa da definição do objecto da acusação e do processo. Nessa tarefa, não pode o Ministério Público ser “ajudado” pelo julgador, sob pena de violação do modelo acusatório, estruturante do processo penal português, e do perigo de desvio do juiz do seu lugar de terceiro imparcial e supra-partes. É a esta imparcialidade que também alude o art. 6º da CEDH.

Contudo, trata-se de um sistema acusatório impuro ou mitigado uma vez que é integrado por um princípio da investigação (art. 340º, n.º1 do CPP), de modo a proporcionar, nos limites do possível, a averiguação da verdade material e a boa decisão da causa. Assim, podendo suceder que nem todos os factos ou circunstâncias factuais relativas ao crime imputado constem, desde logo, da acusação, poderá o juiz intervir excepcionalmente na narrativa dos factos das acusações/pronúncias, reformulando-os ou mesmo acrescentando os factos novos que emergirem durante a discussão da causa, o mesmo podendo ocorrer com outras questões, uns e outras submetidos à disciplina do preceituado nos arts. 358º e 359º do CPP, que tratam da alteração dos factos e que possibilitam a prossecução das finalidades do processo penal, garantindo simultaneamente os direitos de defesa do arguido e o processo justo (2).

Efectivamente, tanto a alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou pronúncia como a substancial – «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis» [art. 1º, al. f) do CPP] – redundam em incidentes ocorridos na marcha processual, na fase da audiência de discussão e julgamento, sendo conferida ao juiz a possibilidade de aditar, mesmo oficiosamente, novos factos só nessa fase conhecidos.

Nos casos de alteração não substancial dos factos, equiparada a alteração da qualificação jurídica (art. 358º, n.º 3, do CPP), o juiz, oficiosamente ou a requerimento, comunica ao arguido a alteração e concede-lhe, se o requerer, um prazo para preparação da sua defesa, no sentido de garantir que este não venha a ser condenado por factos distintos dos que figuram na acusação ou pronúncia, com os quais não pôde contar e dos quais não lhe foi permitido defender-se oportunamente, em respeito pelo princípio da vinculação temática consubstanciado na acusação.

Mas o que é o facto? E em que situação se deve considerar que há alteração de factos, relevante, para efeitos de ser exigido que se proceda à respectiva comunicação, nos termos do disposto no artigo 358º, n.º 1, do CPP?

Alterar significa mudar, modificar, introduzir, neste âmbito, factos.

Não é, porém, toda e qualquer modificação de factos a que se proceda na sentença, em relação aos que vêm descritos na acusação ou na pronúncia, que integra uma alteração não substancial de factos, mas apenas aquela que apresente relevância para a decisão da causa e que tenha implicações nos direitos de defesa do arguido, designadamente, em função da estratégia de defesa delineada (3).

A posição que vem sendo maioritariamente acolhida na doutrina e na jurisprudência, é o de que, neste domínio, o facto deve ser entendido como um acontecimento histórico, um evento naturalístico, um «pedaço de vida» a ser analisado no processo (4).

O que a lei pretende é que o arguido «não venha a ser julgado e condenado por factos diferentes daqueles por que foi acusado ou pronunciado, por factos que não lhe foram dados a conhecer oportunamente, ou seja, venha a ser censurado jurídico-criminalmente com violação do princípio do acusatório, sem que haja tido a possibilidade de adequadamente se defender.» (5)

E como tem sido entendido jurisprudencialmente, a alteração, para ser processualmente considerada, tem de assumir relevo para a decisão da causa. Na verdade, perfilha-se o entendimento firmado no acórdão da RC de 26/02/2003 (proc. 3840/2002), do qual se transcreve parte do respectivo sumário: «a alteração só se verifica quando tenha relevo para a decisão e só tem lugar quando se mostre que o arguido tem necessidade de alegar algo que antes não tenha previsto e alegado, isto é, de preparar nova defesa». Ou no acórdão da RP de 18/04/2007 (proc. 0711082), quando assinala que a comunicação prevista no art. 358º do CPP apenas tem lugar quando se tratar de uma alteração não substancial relevante, o que sucede quando essa modificação divirja do que se encontra descrito na acusação ou na pronúncia e a subsequente comunicação se mostre útil à defesa.

Tal não ocorre quando apenas existam alterações de factos relativos a aspectos não essenciais, manifestamente irrelevantes para a verificação da factualidade típica ou da ocorrência de circunstâncias agravantes.

Já o art. 359º do CPP contempla a alteração dos factos em razão do acrescentamento ou amputação de um elemento do facto que implique que o facto novo resultante da alteração constitui um outro tipo legal de crime, a descoberta de um outro evento, ou a violação de uma outra norma incriminadora e ainda a descoberta de uma nova circunstância que agrave a pena aplicável ou a descoberta de um crime inteiramente distinto.

Segundo Germano Marques da Silva (6), o preceito correspondente do Código italiano prevê três hipóteses: - alteração de facto descrito na acusação; - revelação de um crime conexo cometido pela mesma acção ou omissão ou por outra acção ou omissão cometido em unidade de tempo e lugar ou revelação de uma circunstância agravante; - ou revelação de um facto novo. E o art. 359º, n.º 1, abrange todas estas previsões do Código italiano.

O acento tónico reside, pois, na imputação ao arguido de crime diverso do acusado ou na agravação dos limites máximos das penas aplicáveis por reporte ao art. 1º, al. f) do CPP.

Por sua vez, a alínea a) do mesmo normativo define «crime» como o conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais. O crime que para este efeito releva, é o crime diverso, entendido, não como diferente tipo legal, em sentido substantivo, mas no sentido de facto diferente, situado para além dos limites do «pedaço da vida» que constitui o objecto do processo e portanto, um crime novo. A autonomia dos critérios estabelecidos no art. 1º, al. f) do CPP determina que não deixa de ser crime diverso o que, face à alteração dos factos, passa a ser punido com sanção menos grave.
Como também refere Frederico Isasca (7), “o acontecimento da vida que ganha uma dimensão jurídico-processual-penal terá de ser encarado não só do ponto de vista meramente objectivo, mas também no seu aspecto subjectivo. Por isso, o facto, enquanto base essencial da decisão tem de ser apreciado na sua relação com o sujeito actuante.”.

Este aspecto de que o facto penalmente relevante é tanto o facto objectivo como o subjectivo, encaminha-nos no sentido de concluir que tanto ocorre alteração substancial quando diverso é o contexto objectivo do seu cometimento, como quando diverso é o contexto do seu cometimento subjectivo, mormente a intenção quando ela faz parte do tipo de crime.

Concluindo, dir-se-á, acompanhando o acórdão do STJ de 21 de Março de 2007 (8):

«A alteração substancial dos factos significa uma modificação estrutural dos factos descritos na acusação, de modo a que a matéria de facto provada seja diversa, com elementos essenciais de divergência que agravem a posição processual do arguido, ou a tornem não sustentável, fazendo integrar consequências que se não continham na descrição da acusação, constituindo uma surpresa com a qual o arguido não poderia contar, e relativamente às quais não pode preparar a sua defesa.

A alteração substancial dos factos pressupõe, pois, uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refira aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, e que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis

A explanação acabada de fazer permite tomar posição perante a questão decidenda.

Recorde-se que ao arguido era feita a imputação da prática de um crime de tráfico de influências, previsto e punido pelo art. 335º, n.º 1, al. a) do C. Penal, estribada num conjunto de factos que apontavam para que o mesmo, de forma consciente e com pleno conhecimento do desvalor jurídico-penal da sua conduta, tinha agido com vontade intencionalmente direccionada a solicitar vantagem, que em parte logrou conseguir, para exercer influência suposta junto de entidade pública, tendo em vista a obtenção de fim contrário a deveres de cargo, traduzido no indevido favorecimento de pessoa determinada em concurso público.

Para esse efeito, e na parte que ora releva, constava da acusação pública (ponto q): «Agiu o arguido com o desiderato conseguido de obter vantagem patrimonial que não lhe era devida, em detrimento dos deveres funcionais que sobre este recaiam, bem sabendo que esta quantia não lhe era devida, e que, desta forma, punha em causa a legalidade da actuação dos agentes públicos e a autonomia intencional do Estado».

Na alteração que lhe foi comunicada consignou-se que a «legalidade da actuação da administração pública que o arguido não desconhecia estar a por em causa foi a imagem de igualdade, imparcialidade e transparência pressuposta nos respectivos processos de decisão», conteúdo que ficou a constar do acórdão recorrido (item o) (9).

Traduzirá tal modificação uma alteração substancial de factos como sustenta o recorrente?

A resposta tem que ser obviamente negativa.

Na realidade, a modificação inserida apenas consistiu na substituição da referência à “autonomia intencional do Estado” pela expressão “imagem de igualdade, imparcialidade e transparência pressuposta nos respectivos processos de decisão”, acolhendo, porventura, como indicia a fundamentação jurídica do acórdão, o entendimento dos Srs. Juízes quanto à violação do bem jurídico protegido pela norma incriminadora.

A modificação concretizada, para além de não ter introduzido qualquer facto novo, nem sequer se pode dizer que tenha tido a virtualidade de ultrapassar a formulação de cariz patentemente fáctico-conclusiva, reportada ao conceito “autonomia intencional do Estado” encerrado na expressão que já constava do ponto q): os Srs. Juízes, sem necessidade, limitaram-se a reformar esse juízo fáctico-conclusivo, substituindo-o por outro, afinal, de igual índole conclusiva e, por isso, extraível da matéria factual assente.

Dito de outro modo, a mencionada substituição da redacção do ponto q) é inócua e não teve como efeito a imputação ao recorrente de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, não modificando o quadro factual da acusação, sendo, pois, irrelevante para a qualificação ou para a determinação da moldura penal.

Contrariamente ao alegado pelo recorrente, a introdução da nova redacção acolhida no acórdão não teve como efeito colmatar qualquer insuficiência da acusação (10) – apenas substituiu, desnecessariamente, um conceito fáctico-conclusivo por outro – nem se traduziu na agravação da defesa do arguido, sendo até descabida a sua argumentação de que apenas se preparou para se defender de um crime de que não vinha acusado, o de burla simples.
Por tais razões e sem mais considerandos, é de afastar, liminarmente, a possibilidade de estarmos perante alteração substancial dos factos descritos na acusação.

2. A impugnação da matéria de facto.

O arguido insurge-se também contra a decisão recorrida dizendo, numa apertada síntese, que os meios de prova produzidos não sustentam o facto que foi inserido [ponto 5] e que ficou a constar da matéria de facto provada, sobressaindo das conclusões de recurso que o tribunal de 1ª instância valorou indevidamente tais meios de prova – as suas declarações confessórias e o depoimento da testemunha A. D. –, que foram quase coincidentes, apenas, divergiram quanto ao sujeito que iniciou o processo criminógeno.

No apontado contexto, assevera que houve erro notório na apreciação da prova e violação do princípio in dubio pro reo.

2. 1. O erro notório.

Na concretização da sua pretensão e no que respeita a este vício, o recorrente, em sede de motivação, apenas invoca que «[d]e todo o modo, tal facto não pode resultar provado, porquanto verifica-se erro notório no julgamento da questão de facto; posto que o arguido “confessou” quase a integralidade dos factos vertidos na acusação; e, apenas, houve divergências quanto a quem tomou a iniciativa de pedir a quem (se foi o arguido que impulsionou o acto criminoso; ou se, ao invés, foi a testemunha A. D.».

Vejamos.

Como vem sendo unanimemente defendido na jurisprudência a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: através do âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no art. 410º, n.º 2, do CPP ou mediante a impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o art. 412º, n.ºs 3, 4 e 6, do mesmo código.

No ponto em análise, seria suposto que a impugnação deduzida pelo recorrente incidisse, não no eventual erro (de julgamento) na apreciação da prova, mas apenas nos vícios apontados naquela primeira vertente, os quais, apreciados nessa perspectiva, visam o erro na construção do silogismo judiciário, não o chamado erro de julgamento, a injustiça ou a desadequação da decisão proferida ou a sua não conformidade com o direito substantivo aplicável (11).

Por conseguinte, tratar-se-ia de saber se na decisão recorrida se reconhece uma errónea construção de silogismo judiciário, no caso, erro notório, um dos vícios a que alude o art. 410º, n.º 2, do CPP, necessariamente resultantes do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

O que significa que só assumem tal natureza os erros constatáveis pela simples leitura do teor da própria decisão sobre a matéria de facto, não sendo admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para os fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (12). Apenas será de admitir a conveniência ou a cautela de, ainda assim, sindicar a fundamentação que haja sido feita sobre os factos provados e não provados, para se fazer uma avaliação correcta e poder concluir se, afinal, para um facto em aparente contradição com a lógica mais elementar e as regras da experiência comum, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, não foi fornecida naquela fundamentação um qualquer esclarecimento que torne compreensível o julgamento efectuado: por exemplo, se um facto dado como provado (ou não provado) contraria o senso comum, ou seja, a normal e corrente compreensão e interpretação das situações da vida, só a clara explicitação do percurso trilhado para a formação da respectiva convicção e a razoabilidade desta poderão legitimar a sua aquisição processual.

A jurisprudência tem considerado o vício contemplado na al. c) de tal preceito apenas como o dos erros que, ponderados os factos provados e não provados, advêm de o tribunal ter retirado uma conclusão ilógica ou arbitrária, à margem duma análise racional ou em violação das regras de experiência comum, e que, por isso, não escapa à análise do homem médio (13). Assim, apenas existe o vício do erro notório na apreciação da prova quando, de acordo com o texto da sentença, o tribunal a valorou contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente (14). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, traduzido, basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido (15) ou dar-se como não provado o que não pode ter deixado de ter acontecido.

Ora, no caso em apreço, não se constata pela simples leitura do teor da decisão recorrida o vício (formal) que o recorrente lhe assaca, com os mencionados contornos que a lei lhes oferece, aliás, incompatíveis com os próprios termos do arrazoado recursivo.

Efectivamente, não se descortina que o tribunal recorrido tivesse dado como provado qualquer facto (incluindo o colocado em questão), quando deveria ter retirado uma conclusão contrária, por força de qualquer incongruência lógica ou por contrariar princípios gerais da experiência comum ou por ter postergado um princípio ou regra fundamental em matéria de prova.

A prova a considerar neste âmbito, é apenas aquela em que assentou a convicção do tribunal recorrido para, a partir daí e em conjugação com a matéria factual assente, ver se tal prova não poderia suportar os factos que foram dados provados e vice-versa.

Com efeito e em suma, o que está verdadeira e unicamente em causa é que o recorrente não se conforma com a circunstância de a sua posição sobre a matéria de facto – e que, bem vistas as coisas, tem mais a ver com a matéria de direito – não ter sido acolhida no julgamento proferido pela 1ª instância, aí fazendo radicar o aludido vício que aponta à decisão recorrida e que expressamente apoda de erro notório na apreciação da prova.

Destarte, é forçoso concluir, face à concreta argumentação expendida nas conclusões de recurso, complementadas com a respectiva motivação, que o recorrente invoca a existência deste vício fora das analisadas condições legais, pois que se limita a extrair as ilações que tem por pertinentes da prova produzida, que contrapõem às dos julgadores, sem que logre demonstrar, através da análise estribada apenas na leitura do próprio texto da decisão recorrida, a existência de uma conclusão contrária à lógica das coisas, ao alcance, pela sua evidência, do homem comum.

Na verdade, e como se assinalou, contrariamente ao que seria suposto, o recorrente para sustentar o vício fá-lo por referência às suas próprias declarações confessórias e ao depoimento prestado pela testemunha A. D., afirmando que o tribunal recorrido valorou indevidamente a prova produzida, atribuindo maior credibilidade ao depoimento prestado pela primeira das referidas testemunhas, em clara violação dos princípios da livre apreciação da prova e do princípio in dubio pro reo.

Mesmo a aceitar-se que a verdadeira pretensão do arguido se prende com a impugnação da matéria de facto, por erro de julgamento, embora não tenha observando o ónus de especificação previsto nas alíneas do n.º 3 do art. 412º, a sua ambição sempre estaria voltada ao insucesso atendendo aos pressupostos em que assentou, como se irá demonstrar, ainda que muito sinteticamente.

Argumenta o recorrente que das suas declarações confessórias e dos restantes depoimentos produzidos, se pode concluir que, em momento algum colocou em crise o bem jurídico da protecção da legalidade e imparcialidade da Administração Pública, rematando a dizer que nunca esteve em causa a protecção da autonomia intencional do Estado.

Que dizer?

Constituem objecto da prova, todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não do respectivo agente e a determinação da pena ou da medida de segurança a aplicar (art. 124º, n.º 1, do CPP), aqui se incluindo, naturalmente, os factos relevantes alegados pela acusação e pela defesa bem como os resultantes da discussão da causa, e ainda, os factos dos quais podem ser inferidos aqueles outros.

Com efeito, para que se possa atribuir a alguém a responsabilidade de um acto com relevância penal, tal circunstância está dependente da demonstração da sua participação no acontecimento através da produção da prova. E nos termos do art. 341º C. Civil “as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos”.
Como é consabido, a confissão representa a obtenção da prova sobre os factos imputados ao arguido na acusação e/ou na pronúncia através das suas declarações. Contudo, entende-se que a confissão não abrange a qualificação jurídica, já que «a aceitação dos factos não importa a aceitação da incriminação imputada» (16).
Existem duas modalidades de confissão do arguido: a confissão integral e sem reservas e a confissão parcial ou com reservas.

De acordo com Maia Gonçalves, a confissão integral é «aquela que abrange todos os factos imputados», ao passo que a confissão sem reservas pressupõe que o arguido não acrescente factos novos susceptíveis de dar aos factos imputados um tratamento diferente do pretendido» (17).

No caso, como se retira da fundamentação do acórdão, o arguido, assumiu que os factos constantes da acusação tiveram, nos seus aspectos estruturantes, efectiva correspondência com a realidade, ressalvando, porém, as datas exactas dos eventos ocorridos, para além de ter negado que tivesse sido de sua iniciativa qualquer proposta para exercer influência, ou suposta influência, junto de elemento da entidade decisora do procedimento concursal em causa.

A testemunha A. D. confirmou a narrativa do arguido, no que a mesma se apresentou convergente com a materialidade que lhe vinha imputada, e do depoimento da testemunha V. B. inferiu-se que não tinha, nem nunca teve, quaisquer atribuições no domínio do procedimento concursal em causa, ou, para todos os efeitos, de qualquer outro em matéria de contratação para carreiras no domínio da prestação pública de cuidados de saúde, facto este reconhecido pelo próprio arguido.

Assim, não há dúvida que é impertinente a conclusão acima exposta pelo recorrente concernente à violação do bem jurídico protegido pela incriminação que lhe era imputada e integrante do elemento subjectivo. Embora não tenha resultado directamente das suas declarações, mais uma vez, o Tribunal teve que fazer uso das regras da experiência comum. Assim, em face dos apurados condicionalismos pessoais do recorrente, os particulares contornos da sua conduta têm um significado óbvio: mais do que a probabilidade séria daquele elemento subjectivo, a certeza da sua verificação, posto que manifestamente preenchido o conhecimento da totalidade dos elementos típicos, com o que é evidente a vontade da prática dos factos

Na verdade, não se verifica qualquer erro na apreciação da prova ou a omissão da sua motivação: é lícito aos juízes, na formação da sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, utilizar a experiência da vida, inferindo de um facto conhecido outro ou outros factos desconhecidos, convencendo sobejamente as explicações vertidas na decisão recorrida.

É certo, por outro lado, que, no âmbito penal, o princípio in dubio pro reo estabelece a imposição de uma pronúncia favorável ao arguido quando o tribunal não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Neste conspecto, esse princípio constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova, na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre os factos. Porém, como resulta do exposto, a violação desse princípio só se pode verificar quando o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido, não obstante a carência de prova de que os factos a este imputados foram por ele protagonizados ou de que se verificou qualquer circunstância que a lei faz depender a punibilidade do mesmo.

Se a prova não pressupõe uma certeza absoluta também não se pode quedar na mera probabilidade de verificação de um facto. Assenta no alto grau de probabilidade do facto suficiente para as necessidades práticas da vida (18). Trata-se de uma liberdade de decidir segundo o bom senso e a experiência da vida, temperados pela capacidade crítica de distanciamento e ponderação, ou no dizer de Castanheira Neves da «liberdade para a objectividade» (19).

É por isso que nos casos em que o julgador não logra decidir com segurança com base nas mesmas e permanecendo uma dúvida consistente e razoável não pode desfavorecer a posição do arguido, só lhe restando concluir pela absolvição do mesmo por apelo do princípio in dubio pro reo (20), pois convém não esquecer que «o arguido beneficia da presunção de inocência: a prova para condenação tem de ser plena (...). Desde que a prova suscite (…) a possibilidade de diferente hipótese que não pode ser afastada, prevalece, por força da lei, a presunção de inocência».

Assim é, porque «a condenação de um inocente afecta muito mais gravemente a justiça, e por isso também o próprio interesse social, do que a não punição de um culpado» (21).

E, como é evidente, é segundo esta perspectiva que hão-de ser apreciados os factos provados e a fundamentação que o tribunal recorrido levou a efeito para sustentar a sua convicção acerca deles, ou seja, o processo avaliativo que o tribunal levou a cabo de modo a que se possa dizer com segurança se houve ou não uma errada apreciação da prova produzida.

É ponto assente na doutrina e na jurisprudência que na fundamentação da matéria de facto se hão-de indicar as razões porque se atribui credibilidade a certos meios de prova, incluindo naturalmente os depoimentos prestados, e a explicação das razões porque se não confere essa credibilidade a outras provas que hajam sido produzidas e que apontem em sinal contrário. O que implica, claro está, que todos os meios de prova sejam escrutinados quanto ao seu interesse e ao seu valor. Sabendo-se que as provas são, em princípio, apreciadas segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (art. 127º CPP) é necessário que o processo de formação dessa convicção seja explicado, esclarecendo-se nomeadamente porque se entende que ele se encontra em conformidade com as regras da experiência. Isto significa que não basta afirmar que certo depoimento, onde se abordaram determinados pontos está de acordo com as regras da experiência e, por isso, é credível; é preciso esclarecer de forma raciocinada a compatibilidade do seu teor com as tais regras da experiência, tanto mais detalhadamente quanto a decisão esteja em aparente desconformidade com essas regras.

Como é evidente, tais princípios não comportam apreciação arbitrária nem meras impressões subjectivas incontroláveis, antes têm, sempre, de nos remeter, objectiva e fundadamente, ao exame em audiência, com critérios da experiência comum e da lógica do homem médio supostos pela ordem jurídica, das provas aí validamente produzidas, visando a descoberta da verdade prático-jurídica e não a verdade transcendente, inalcançável, fruto de especulação projectada para fora do domínio da racionalidade prática, sem suporte em concretos argumentos e elementos de prova objectivos (22).

Por fim, dir-se-á que é certo que, se existisse a possibilidade razoável de uma solução alternativa ou de uma explicação racional e plausível diferente, dever-se-ia assentar a decisão na que se mostrasse mais favorável ao arguido, de acordo com o aludido princípio in dubio pro reo. Contudo, o apelo a este princípio, fundamentalmente como corolário da apreciação que o recorrente fez da prova, não colhe no caso em apreço, porquanto não se demonstra que o Tribunal de 1ª instância se tivesse defrontado com qualquer dúvida na formação da convicção, contra ele resolvida.

Efectivamente, atentando na motivação da decisão de facto, logo se constata que os Srs. Juízes não ficaram em estado de dúvida: fica-se a conhecer, cristalinamente, o processo de formação da sua convicção, através do enunciado sobre o exame crítico da prova, com a justificação das razões pelas quais foram valorados e tidos em consideração as declarações do arguido, em conjugação com os demais meios de prova produzidos, como acima se deixou explicito.

Por conseguinte, improcede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

3. O enquadramento jurídico dos factos.

O recurso interposto pelo arguido, para além de ter visado a decisão sobre a matéria de facto, tem ainda como escopo o reexame da matéria de direito. O arguido discorda do enquadramento jurídico com que o tribunal entendeu qualificar a sua conduta, dizendo que esta não preenche todos os elementos típicos do crime de tráfico de influências, p. e p. pelo art. 335º, n.º 1, al. a) do C. Penal, que lhe é assacado, antes se subsume à previsão do crime de burla simples, p. e p. pelo art. 217º do mesmo código.

Para esse efeito, invoca: logo que perscrutou a possibilidade de “ludibriar” o Sr. A. D., procurou descobrir o seu número de telemóvel; não o tendo conseguido, socorreu-se de terceira pessoa (no caso, a sogra) para o convocar para uma reunião, a realizar no Centro de Saúde X; uma vez lá, o arguido disse-lhe «eu resolvo o assunto da tua filha, mas eles querem 5.000 euros, 2.500 euros de imediato e 2.500 euros no final, quando ela estiver a trabalhar no Concelho de ...», fazendo referência ao Concelho de ... para “compor o estado de convencimento do Sr. A. D.” e utilizando a figura do Eng. V. B. (que não tinha, nem tem, qualquer influência junto do júri), “dentro do contexto do convencimento dele” (A. D.); enquanto não recebeu a primeira “tranche” de 2.500 euros, insistia todos os dias para o telefone do Sr. A. D., para que se concretizasse a entrega.

Ora, na decisão recorrida concluiu-se pela condenação do arguido pelo crime de tráfico de influência, por se ter entendido que existe uma relação de concurso aparente (consunção) entre tal crime e o do burla, se o agente de qualquer das condutas descritas no n.º 1 do citado art. 335º não tiver qualquer influência sobre o decisor e usar de artifício para convencer do contrário o comprador da influência.

Essa decisão tem uma sólida e proficiente fundamentação quanto à qualificação jurídica dos factos apurados, para a qual remetemos, por merecer a nossa inteira adesão, com umas breves ponderações complementares.

Vejamos.

Como lucidamente escreveu Margarida Silva Pereira (23), o preceito em questão, quer pela sua proveniência, quer pela sua fisionomia normativa, merece atenta ponderação, já que levanta grandes dificuldades interpretativas, sendo a sua origem muito singular no contexto da Reforma de 95. Nasceu na Assembleia da República, fruto de acordo dos partidos com assento parlamentar, mas o Governo deu-lhe uma diferente versão final, restringindo o seu alcance.

Essa Autora lembrou (24) que a memória do cordão umbilical unindo os tipos antecessores do tráfico de influência e de burla é muito forte no Direito Português e assim se explicava o comando gizado no Parlamento, com o qual se entendia dever chamar a depor o deste último na determinação do primeiro, tipificando-se então o acordo, mesmo quando a influência fosse suposta, podendo uma mesma conduta preencher os tipos de tráfico de influência e de burla.

Todavia, esse cordão umbilical cortou-se quando o legislador, na versão final do C. Penal de 1995, eliminou do tipo de tráfico de influência a incriminação do pacto realizado por aparente detentor de influência, ou seja, da conduta do agente que, ostentando a terceiro um poder por ele não detido sobre o intraneus, alcançasse, por assim mentir, uma vantagem ou a sua promessa.

Era a mentira sobre qualidades do sujeito que podia potenciar que a burla assomasse com alguma facilidade, desde que revestida da astúcia produtora do engano, enquanto elemento do tipo de que o art. 217º não prescinde. E, por outro lado, era necessário que o enriquecimento do jactante se concretizasse e, do mesmo modo, se concretizasse a correspectiva perda patrimonial do burlado.

A redacção posterior que lhe foi conferida pela Lei n.º 65/98 pretendeu torná-lo mais abrangente incluindo na sua previsão (i) a interposição de pessoas, (ii) a possibilidade da influência traficada ser real ou ser meramente suposta, bem como (iii) a hipótese de a vantagem solicitada ou prometida ter carácter patrimonial ou não patrimonial.

Em 2001, num esforço de adaptar o direito interno à Convenção Penal sobre a Corrupção do Conselho da Europa, assinada em 30 de Abril de 1999, através da Lei n.º 108/2001, foi alterada de novo a sua redacção, passando a enquadrar não apenas a conduta de quem trafica e vende uma influência junto de uma entidade pública, mas também a de quem compra essa influência. Deixou também de ter uma enumeração exemplificativa dos actos para cuja obtenção é traficada a influência, pois essa enumeração representava uma restrição da incriminação aos casos de decisões ilegais. E foi igualmente alargada a punição à venda de influência para obtenção de uma decisão lícita.

A alteração posterior introduzida pela Lei n.º 30/2015, de 22.04, apenas teve como efeito um agravamento da moldura das penas abstractamente aplicáveis, tendo passado as situações previstas pela al. a) do n.º 1 a ser punidas com pena de prisão de 1 a 5 anos e as previstas pela al. b) do mesmo número com pena de prisão até 3 anos e mantendo-se ressalvada, para qualquer das hipóteses, a aplicação de pena mais grave que ao caso haja de caber, por força de outra disposição legal.

Maia Gonçalves (25) sustenta que «[a] introdução deste crime destinou-se a colmatar eventuais lacunas na incriminação de condutas manifestamente censuráveis e que, sem ele, poderiam escapar à punição por impossibilidade de subsunção a tipos afins ou conexos, designadamente ao de corrupção, de burla, e de abuso de autoridade por funcionário».

Também nós temos como certo que a consagração legislativa deste crime teve implícita a necessidade de reforçar os mecanismos legais de combate à corrupção e aos actos a ela conducentes, pelo descrédito que os mesmos provocam na sociedade sobre o modo de funcionamento da Administração Pública, perante cidadãos também cada vez mais conscientes dos direitos sociais.

A inserção que lhe foi oferecida no Título V (relativo aos Crimes contra o Estado) e dentro dele na secção II (atinente aos crimes contra a realização do Estado de direito) não foi isenta de críticas por parte de alguma doutrina, fundadas na maior aproximação que o crime de tráfico de influência apresentaria com os crimes cometidos no exercício de funções públicas, entre os quais se inclui o de corrupção, o que reclamaria que o legislador tivesse optado por outra sua sistematização (26).

A tais críticas subjaz a visão da doutrina tradicional sobre o bem jurídico tutelado pela incriminação em causa, sustentando que a punição do tráfico de influência se dirige à protecção da autonomia intencional do Estado, ou, dito de outra forma, à integridade do exercício das funções públicas pelo funcionário.

Diferentemente, a doutrina mais recente vai no sentido de que não é a salvaguarda da autonomia intencional do Estado que está em causa e que merece aqui uma tutela autónoma, mas, sim, o próprio prestígio da Administração, bem como a transparência de actuação e «dignidade do Estado, como pressupostos da sua eficácia ou operacionalidade na prossecução legítima dos interesses que lhe estão adstritos», como anota Ana Canto Noronha (27).

Seguindo esse trilho, Carlota Rocha Figueiredo (28) considera que a norma protege vários bens jurídicos, como sejam «a autonomia intencional do Estado, que se relaciona com a imparcialidade, a transparência e a legalidade no exercício de funções públicas, protegendo igualmente a honra e o prestígio da Administração, preservando ainda o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei». E conclui dizendo que «o bem jurídico protegido é o interesse e autonomia intencional do Estado, nomeadamente a protecção da imparcialidade, da confiança e do bom funcionamento no exercício das funções Administrativas, que se esperam realizadas com idoneidade e justiça.»

Paulo Pinto de Albuquerque (29) e Sofia Sobreira Calado convergem nesta orientação, que também foi defendida na decisão recorrida, pelo modo seguinte:

«A verdade é, porém, que, em nosso entender, o bem jurídico protegido pela norma incriminadora não constitui, propriamente, a autonomia intencional do Estado. Ele identifica-se, isso sim, com a preservação do Estado de Direito, tal como o mesmo se encontra estabelecido na CRP […]. Desse modo, aquilo que visa proteger-se com a incriminação é o prestígio, a honra e a imagem da administração. Essa protecção reside, em último reduto, como refere Sofia Sobreira Calado [“in” O Crime de Tráfico de Influência – a Questão da Influência Suposta, Dissertação, 2016, p. 21, disponível in https://repositorio.ucp.pt], “(…) em preservar a confiança que os cidadãos devem ter na actuação das instituições, na manutenção da credibilidade e da dignidade das entidades públicas perante a comunidade. A certeza de cada cidadão que a Administração se regerá, na sua actuação, pelo princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei. Na verdade, são bases invioláveis do Estado de Direito os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança. (…) existe efectivamente um bem jurídico que se pretende tutelar associado à imagem de imparcialidade da Administração, à transparência que deve imperar durante o procedimento tendente à tomada de decisões de órgãos públicos, garantindo-se a igualdade de tratamento dos cidadãos e, consequentemente, a confiança que se deseja que os cidadãos tenham na Administração. No fundo, a certeza, por parte da comunidade, que a Administração não é maleável a movimentações de influência, preservando a sua imagem de instituição credível e digna de confiança.”

A ameaça da corrupção, mais precisamente no âmbito do crime de tráfico de influência, como escreve, igualmente, Tiago Alexandre Faustino de Miranda [“in” O Crime de Tráfico de Influência: Os Distintos Momentos de Consumação do Crime, Universidade Católica, Lisboa, Março de 2017, p. 15, disponível in https://repositorio.ucp.pt], além de afectar a igualdade de oportunidades entre cidadãos, postergando o princípio previsto pelo artº 13º da CRP, põe em causa, quer a influência seja efectivamente exercida quer seja simplesmente alardeada, a confiança no exercício imparcial da administração pública, bem como a legalidade e a transparência da sua actuação.

Porque o bem jurídico protegido é, nas supra referidas vertentes, a defesa do Estado de Direito, consideramos correcta a opção do legislador em nortear, em função desse critério, a inserção sistemática do delito, ao invés de ter elegido como critério decisivo a existência de alguma similitude na descrição das condutas típicas com os crimes cometidos no exercício de funções públicas [neste sentido, também, Sofia Sobreira Calado “in” Ob. Cit., p. 22].».

A nível da jurisprudência, apenas conhecemos dois acórdãos publicitados [da RE de 27/04/2010 (p. 31/08.2TAEVR.E1-Maria José Nogueira) e da RC de 28/09/2011 (p. 169/03.2JACBR.C1-Belmiro Andrade)], acolhendo ambos a posição clássica, no sentido de que o bem jurídico protegido no crime de tráfico de influência é a autonomia intencional do Estado. Expendeu-se no último deles que se procura evitar que o agente, contra a entrega ou promessa de uma vantagem, abuse da sua influência junto de um decisor público, de forma a obter dele uma decisão, criando assim o perigo de que a influência abusiva venha a ser exercida e, consequentemente, de que o decisor venha a colocar os seus poderes funcionais ao serviço de interesses diversos do interesse público.

Ora, contrariamente ao pretendido pelo arguido, sufragamos, tal como o acórdão recorrido, o entendimento de que o bem jurídico que se pretende tutelar está associado à imagem de transparência e imparcialidade da Administração, em todos os procedimentos de tomada de decisões, garantindo a igualdade de tratamento de todos os cidadãos e a confiança que se ambiciona que os mesmos tenham na Administração Pública, nos termos estabelecidos na Constituição da República.

Dito por outras palavras, não é salvaguarda da autonomia intencional do Estado que está em causa, mas o próprio prestígio da Administração e, concomitantemente, a transparência da sua actuação na prossecução dos interesses que lhe estão adstritos.

É esta a perspectiva que sobressai dos movimentos internacionais e que resulta, claramente, do preâmbulo da aludida Convenção Penal sobre a Corrupção, do Conselho da Europa, onde se evidencia a necessidade de prosseguir uma política penal comum que «vise a protecção da sociedade contra a corrupção» e se salienta que «a corrupção constitui uma ameaça para o Estado de direito, a democracia e os direitos do homem, mina os princípios de boa administração, de equidade e de justiça social (…) e faz perigar a estabilidade das instituições democráticas e os fundamentos morais da sociedade.».

Como crime de perigo abstracto, em qualquer das suas modalidades, o seu desiderato é atingir os comportamentos prévios ao acto de corrupção, antecipando a tutela penal para o acordo [acto do negócio] sobre o poder de influenciar o decisor, entendendo-se igualmente que é suficiente a mera solicitação de uma vantagem patrimonial ou não patrimonial a troco do exercício de uma influência, ainda que suposta, junto de um decisor público para se ter por violado o bem jurídico em causa, sem que, com isso, se tripudiem os princípios da necessidade e da mínima intervenção do direito penal consagrados pela Constituição (30).

Neste contexto, é absolutamente irrelevante para o preenchimento deste tipo-de ilícito que o traficante, ao solicitar ou aceitar a vantagem, tenha, ou não, a intenção de efectivamente abusar da sua influência junto da entidade pública ou que venha, ou não, a fazê-lo.

Através da tipificação visa-se evitar que o agente (traficante), contra a promessa ou entrega de uma vantagem, abuse da sua influência junto de um decisor público, por forma a obter dele uma decisão, criando, desse modo, o perigo de que a influência abusiva venha a ser exercida e que, em consequência, o decisor venha a colocar os seus poderes funcionais ao serviço de interesses diversos do interesse público.

Identicamente, acompanhamos as ponderações expendidas na decisão recorrida, por se considerar que se está perante um crime comum, passível de ser cometido por qualquer pessoa, não se exigindo que o agente detenha certas qualidades ou relações especiais, assim dissentindo do entendimento de Pedro Caeiro de que o segmento de norma “para abusar da sua influência” apontaria no sentido que imporia um círculo natural de agentes, apenas integrado, numa interpretação restritiva da incriminação, por aqueles que, por efeito de uma qualidade ou relação profissional especiais perante a Administração Pública, sejam, ou estejam, efectivamente capazes – ainda que, porventura, o não venham a fazer – de se aproveitar de circunstâncias que lhe confiram superioridade [ou a possibilidade] para influenciar o decisor.

Realmente, na linha do defendido por Paulo Pinto de Albuquerque (31), o traficante de influência pode ser uma pessoa comum ou um funcionário público, que vende a sua influência sobre outro funcionário público competente para decidir, sendo que a influência sobre a entidade pública pode resultar de qualquer tipo de ascendente do traficante de influência sobre o decisor, seja de natureza familiar , profissional, religiosa, afectiva, creditícia ou outra, mas essa influência pode ser real ou suposta, como explicitamente resulta do normativo em causa.

E também seguimos o mesmo Autor quando sustenta que o crime se consuma com a solicitação ou aceitação da vantagem pelo traficante de influência, sendo irrelevante que o traficante de influência efectivamente venha a exercê-la junto do decisor. Pressuposto é que a celebração do acordo preceda uma tomada de decisão da entidade pública e tenha como subjacente vantagem (patrimonial ou não patrimonial) ou a respectiva promessa, estando, pois, excluídas as “gratificações”, denominação que tem em vista as condutas de aceitação de vantagem (ou da sua promessa) sem acordo prévio à tomada a decisão, bem como as condutas de tráfico desinteressado de influência, ou seja, sem vantagem (patrimonial ou não patrimonial) ou sem a sua promessa.

Pedro Caeiro (32) vai no mesmo sentido, acrescentando que a consumação dá-se com o acordo entre o traficante e o comprador, mesmo que tenha havido reserva mental por parte do primeiro, sendo irrelevante que a influência venha ou não a ser exercida.

Acresce que o acordo para o tráfico de influência deve ser exercido, ainda que por interposta pessoa, sobre uma entidade pública, como tal se entendendo todas aquelas cuja actividade se rege essencialmente pela prossecução do interesse público, incluindo a dos seus agentes quando ao respectivo serviço. Estão, por conseguinte, abrangidas todas as pessoas físicas ou colectivas que exerçam funções estaduais, designadamente, políticas, governativas ou administrativas (33).

No mesmo sentido, Carlota Rocha Figueiredo (34) afirma que «não estão em causa apenas relações profissionais», pois que «existe uma verdadeira influência quando esta é exercida por alguém que detém relações pessoais com o decisor, atingindo do mesmo modo o bem jurídico protegido pelo tipo… (…) Ora, não se compreende como não se podem considerar abrangidos os familiares, amigos, parceiros de negócios, entre outros, pois estes têm a mesma capacidade (ou até maior) de influenciar o decisor, agindo este com a mesma venalidade, cedendo à pressão da influência exercida.»

O tráfico de influência é punido independentemente da licitude ou ilicitude da decisão cuja obtenção seja tida em vista, aferindo-se a ilicitude pela prática ou omissão de acto em violação aos deveres do cargo.

Por fim, do ponto de vista subjectivo, o ilícito reveste natureza dolosa, sendo compatível com qualquer das modalidades do dolo, nos termos previstos pelo art. 14º do C. Penal.

Em face das considerações acabadas de expor, a pretensão do arguido invocada no recurso não tem qualquer viabilidade, na medida em que a posição por ele sustentada assentaria no pressuposto, que já arredámos, da injustificada restrição do bem jurídico protegido pela norma à autonomia intencional do Estado e, por consequência, da contração das necessidades de incriminação.

Ademais, nesta vertente, o preceito não só não visa proteger o património do comprador da influência como a influência suposta – a que se supõe existir e na qual o homem médio, colocado perante a situação, acreditaria – ou a alardeada – apresentada como real – já ofende significativamente o bem jurídico que aquele visa proteger, nos termos em que foi enunciado, designadamente quanto à preservação da confiança dos cidadãos na honestidade, isenção, imparcialidade e correcção que devem presidir ao exercício das funções públicas e cujo abalo provoca, inevitavelmente, o descrédito das instituições públicas.

A compra da influência suposta produz a aparência de que a decisão a tomar é determinável ou induzível pelo traficante e, por isso, gera a crença da corruptibilidade do Estado, afectando a credibilidade e confiança dos cidadãos no Estado.

Perante tudo o expendido, mostram-se, pois, reunidos na factualidade assente todos os elementos típicos do crime pelo qual o recorrente foi condenado pela decisão recorrida, que, por isso, acompanhamos, e improcede o argumentado no recurso, designadamente, a violação de qualquer princípio constitucional.

4. A medida da pena e sua substituição.

4.1. O recorrente suscita a questão da (in)adequação da medida da pena que lhe foi imposta, alegando que a mesma excede a medida da culpa e, por consequência, verifica-se a violação do princípio da proporcionalidade, consagrado no art. 18º, n.º 2 da CRP. Subsidiariamente, diz que bastaria a pena de multa, perante a atenuação imposta pelas circunstâncias de o arguido (i) ser primário, (ii) ter confessado os factos, (iii) ter devolvido a quantia em questão e (iv) ter revelado um verdadeiro estado de arrependimento.

Impõe-se, pois, que nos debrucemos sobre a medida concreta da pena.

Nos termos do disposto no art. 40º do C. Penal, as finalidades das penas reconduzem-se à protecção de bens jurídicos (prevenção geral) e a reintegração do agente na sociedade (prevenção especial), não podendo a pena em caso algum ultrapassar a medida da culpa. Este preceito indica-nos que o escopo que subjaz à aplicação da pena é, por um lado, o reforço da confiança da comunidade na norma violada e, por outro lado, a ressocialização do delinquente.

Atendendo ao tipo de tais crimes, impõe-se a salvaguarda das expectativas comunitárias na sua repreensão, pois que a objectividade, o rigor e a transparência são fundamentais para a confiança dos cidadãos nas entidades públicas, designadamente os funcionários e dirigentes das empresas que integram o sector empresarial do Estado. E quem desempenha funções ao nível da administração ou chefia tem responsabilidades acrescidas, não podendo a sua conduta justificar quaisquer dúvidas sobre ligações a outros interesses que não o público para o qual foi nomeado ou designado.

Em consonância com o estipulado no n.º 1 do art. 71º, do mesmo diploma legal, a medida da pena é determinada, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

Na determinação concreta da pena há, assim, que atender às circunstâncias do facto, que deponham a favor ou contra o agente, nomeadamente ao grau de ilicitude, e a outros factores ligados à execução do crime, à intensidade do dolo, aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e aos fins e motivos que o determinaram, às condições pessoais do agente, à sua conduta anterior e posterior ao crime (art. 71º, n.º 2, do C. Penal).

Dito por outras palavras, na graduação da pena deve olhar-se para as funções de prevenção, quer de ordem geral – com o objectivo de confirmar os bens jurídicos violados –, quer de ordem especial – tendo em vista gerar condições para a readaptação do agente do crime, de modo a evitar que este volte a violar tais bens –, mas sem se perder de vista a culpa do agente – com atendimento das circunstâncias estranhas à tipicidade –, que a medida da pena tem como base e limite.

Como se disse, a finalidade essencial da aplicação da pena, para além da prevenção especial – encarada como a necessidade de socialização do agente, no sentido de o preparar para no futuro não cometer outros crimes – reside na prevenção geral, o que significa «que a pena deve ser medida basicamente de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto … alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada...». «É, pois, o próprio conceito de prevenção geral de que se parte que justifica que se fale aqui de uma “moldura” de pena. Esta terá certamente um limite definido pela medida de pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade. Mas, abaixo desta medida de pena, outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas – até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral; definido, pois, em concreto, pelo absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral e que pode entender-se sob a forma de defesa da ordem jurídica» (35). «Resta acrescentar que, também aqui, é chamada a intervir a culpa a desempenhar o papel de limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas...» (36). «Sendo a pena efectivamente medida pela prevenção geral, ela deve respeitar o limite da culpa e, assim, preservar a dignidade humana do condenado» (37).

Em suma, a pena concreta será limitada, no seu máximo, pela culpa do arguido. O princípio da culpa dispõe que «não há pena sem culpa e a medida da pena não pode, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa» ( art. 40º, n.º 2, do C. Penal).

O arguido praticou os factos com a exacerbada gravidade já salientada, para mais no âmbito do exercício das suas atribuições de natureza pública: à data dos factos, exercia as funções de médico num Centro de Saúde e não se coibiu de se aproveitar do contexto por elas permitido, que lhe possibilitaram conhecer o desespero do progenitor de T. D. – que chegara a estagiar naquele centro de saúde – por esta não ter, ainda, logrado obter colocação profissional, para desencadear o contacto que manteve com ele, seu doente, e, nessa oportunidade, o abordar e propor-lhe a venda, pelo montante global de € 5.000, de influência suposta no processo de candidatura da filha a concurso público, favorecendo-a em detrimento dos demais candidatos.

Além disso, não pode olvidar-se que, para o desempenho de tais atribuições, o arguido fora dotado de uma formação académica superior pela sociedade que lha conferiu e que, legitimamente, relaciona tal habilitação a uma especial censura da violação do dever-ser jurídico-penal de um Estado de Direito, pelo nível de exigibilidade de adequação comportamental que a mesma propicia mas também suscita.

O incontroverso desvalor da conduta que o arguido prosseguiu ainda medrou quando o mesmo não se coibiu de receber, efectivamente, do referido A. D. a importância de € 2.500, que fez coisa sua e que apenas viria a devolver mais de um ano depois e na sequência do anúncio de eventual perseguição criminal.

Por outro lado, o arguido encontra-se integrado em termos sociais e familiares, o que, aliás, é habitual neste tipo de crimes.

Assim, há a ponderar, tal como na decisão recorrida, o grau de ilicitude dos factos, de intensidade assinalável, não só do ponto de vista do desvalor da acção, como, também, do resultado, e, ainda, a intensidade do dolo com que actuou, que revestiu a modalidade de directo, a corresponder, por conseguinte, com o patamar mais elevado da intencionalidade criminosa.

Ora, tendo em conta as prementes exigências de prevenção geral que, no caso, se fazem sentir e reforçam a necessidade de tutela das expectativas comunitárias na validade dos valores violados pelo crime de tráfico de influência – que continua a grassar na nossa sociedade, afectando, de forma especialmente relevante, a credibilidade do Estado, a sua imagem de imparcialidade e isenção no tratamento igualitário dos cidadãos –, a par das exigências de prevenção especial impostas, pela atitude e personalidade do arguido – com fraca capacidade de autocrítica, como se retira da posição assumida no recurso –, mas sopesando, também, a circunstância de não ter antecedentes criminais, concluímos que só a imposição da pena de 2 anos de prisão assegura adequadamente tais necessidades, sem exceder a culpa do arguido.

Aliás, nesta sede, temos entendido que o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de actuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do acto de julgar. Foi o que também já se sustentou, p. ex., no acórdão da RE de 22/04/2014 (38): «A sindicabilidade da pena em via de recurso situa-se, pois, na detecção de um desrespeito dos princípios que norteiam a pena e das operações de determinação impostas por lei. E esta sindicância não abrange a determinação/fiscalização do quantum exacto de pena que, decorrendo duma correta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada.».

Assim, uma vez que o tribunal recorrido beneficiou da imediação e oralidade, este tribunal de recurso apenas deveria intervir na pena, modificando-a, se detectasse incorrecções ou distorções no processo de determinação por aquele da medida pena, nomeadamente na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que a regem. Ora, não se observa qualquer distorção na determinação da medida da pena feita pelo tribunal recorrido, antes foram correctamente acatados todos os parâmetros estabelecidos na lei.

4.2 Defende o arguido, subsidiariamente, a aplicação da uma pena de multa, pelas já aludidas circunstâncias atenuantes que invocou (primo-delinquência, confissão, arrependimento e devolução da quantia em questão).

Pensamos que tal linha recursiva se deve a um patente equívoco.

Desde logo, reitera-se o especial melindre dos bens jurídicos envolvidos no tipo de crime cometido pelo arguido. Ademais, efectivamente, a doutrina tem vindo a defender que relativamente a delitos penais económicos a aplicação de pena de prisão, ainda que curta, assume uma particular eficácia preventiva (39), entendimento que partilhamos inteiramente.

Assim, em face do tipo de ilícito em causa e da gravidade da conduta, sendo particularmente acentuadas as necessidades de prevenção geral, consideramos que só a pena de prisão assegura, de forma adequada, as referidas finalidades.

Aliás, o ilícito pelo qual o arguido vai condenado não permite a aplicação de pena de multa, estando apenas prevista, como sanção, a pena de prisão entre um a cinco anos.

Por conseguinte, também neste conspecto, o recurso improcede.

5. A declaração de perda.

A. D., invocando a parte final da alínea d) do n.º 1 do art. 401º do CPP e justificando a sua actuação na defesa do direito que pensa deter sobre a quantia de € 2.500 declarada perdida a favor do Estado, vem insurgir-se contra a decisão recorrida, sustentando que os factos provados não permitem tal declaração, tendo o tribunal feito uma errada interpretação dos factos e inadequada aplicação do direito, para além de a não fundamentar devidamente, como impõe o art. 205º, n.º 1 da C.R.P. e 97º, n.º 5 do CPP.

Vejamos se a razão está do seu lado.

A fundamentação da sentença, princípio com assento constitucional em que se inscreve a legitimidade do exercício do poder judicial (art. 205º da CRP), traduz-se na obrigatoriedade de o tribunal especificar os motivos de facto e de direito da decisão, cominando a lei a sua omissão ou grave deficiência com a nulidade (40). Por isso, todas as decisões proferidas no processo – que não sejam de mero expediente, isto é, que decidam qualquer questão que se suscite ou seja controvertida – devem ser sempre fundamentadas (41) e o seu alcance deve ser perceptível para os respectivos destinatários e demais cidadãos (42). A garantia de fundamentação é, assim, indispensável para que se assegure o real respeito pelo princípio da legalidade da decisão judicial, o dever de o juiz respeitar e aplicar correctamente a lei seria afectado se fosse deixado à consciência individual e insindicável do próprio juiz.

A fundamentação adequada da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projecção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinaram a decisão; em outra perspectiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos – para reapreciar uma decisão o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão para, sobre tais fundamentos, formular o seu próprio juízo.

E é compreensível que a lei determine, taxativamente, os requisitos gerais a que, especialmente, a sentença se encontra sujeita, por ser o acto decisório por excelência, o que conhece, a final, do objecto do processo e, por isso, se reveste de crucial importância porque é através dele que, particularmente, o arguido, mas também os demais sujeitos processuais, ficam a saber se foi proferida uma decisão absolutória ou condenatória e, neste caso, qual a medida concreta da pena.

Assim é que o art. 374º, sobre a epígrafe “Requisitos da sentença”, estabelece a estrutura a que deve obedecer a sentença – relatório, fundamentação e dispositivo – e o seu nº 2, quanto à respectiva fundamentação, especifica o seu concreto conteúdo, impondo que dele conste «uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».

Mas, por outro lado, se, como se assinalou, todas as decisões devem ser sempre fundamentadas, também é consensual que, contra o sustentado pelo recorrente, só importa o esgrimido vício a ausência completa de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, não a sua motivação deficiente, medíocre ou errada (43). É evidente que de nada releva, para este efeito, que se repute uma fundamentação de indigente ou, até, medíocre, a justificar merecida censura no plano da técnica jurídica minimamente exigível na fundamentação das decisões judiciais.

Ora, analisando a fundamentação da decisão questionada, esse vício da nulidade não afecta a decisão recorrida, pois apesar do seu sincretismo, é patente que, sem margem para dúvidas, na mesma constam, explicitamente, os respectivos fundamentos para a declaração de perda a favor do Estado, cumprindo com o que é legalmente exigido.

Com efeito, afirmou-se na decisão colocada em crise que se encontrava apreendida nos autos a quantia de € 2.500, correspondente ao montante cuja entrega o arguido obteve, em decorrência do comportamento ilícito que prosseguiu e mostrando-se a sobredita quantia abrangida pela previsão do art. 110º, n.ºs 1, al. b) e 2 do C. Penal, por constituir vantagem de facto ilícito típico, impondo-se declarar a respectiva perda a favor do Estado.

Portanto, tal decisão não sofre, manifestamente, de falta ou, sequer, de insuficiência de fundamentação, antes esclarece perfeitamente as razões pelas quais foi declarada a respectiva perda.

Questão diferente e que agora cumpre apreciar é a de saber se se verificam os pressupostos necessários para a declaração de perda, sustentando o recorrente, como se disse, que os factos provados não permitem tal declaração.

O C. Penal, com a reforma levada a cabo pela Lei n.º 48/95, de 15 de Março, passou a regular nos artigos 109º a 112º a «[p]erda de instrumentos, produtos e vantagens», tendo a Lei n.º 32/2010, de 2 de Setembro, alterado o n.º 2 do art.111º do mesmo diploma, eliminando o advérbio “directamente”.

Posteriormente, tais normativos foram objecto de alteração pela Lei n.º 30/2017, de 30 de Maio, que transpôs a Directiva 2014/42/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de Abril de 2014, sobre o congelamento e a perda dos instrumentos e produtos do crime na União Europeia.

Considerando a data da prática dos factos [ano de 2015] a redacção que devemos observar é aquela que resulta das Leis n.ºs 48/95, de 15 de Março, e 32/2010, de 2 de Setembro.

A perda de instrumentos ou produtos do crime (instrumenta ou produta sceleris) pressupõe deverem ser declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou que estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico (instrumentos do crime) ou por este forem produzidos (produtos do crime) (44).

Assim, de acordo com regime fixado em tais normas, há que distinguir, por um lado, a perda de instrumentos e produtos, a que aludem os artigos 109º e 110º e, do outro, a perda de vantagens decorrentes do crime, a aludem os artigos 111.º e 112.º.

E quanto à perda de “vantagens”, estabelece o artigo 111.º

“1 - Toda a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, para eles ou para outrem, é perdida a favor do Estado.
2 - São também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos do ofendido ou de terceiro de boa fé, as coisas, direitos ou vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido adquiridos, para si ou para outrem, pelos agentes e representem uma vantagem patrimonial de qualquer espécie.
3 - O disposto nos números anteriores aplica-se às coisas ou aos direitos obtidos mediante transacção ou troca com as coisas ou direitos directamente conseguidos por meio do facto ilícito típico.
4 - Se a recompensa, os direitos, coisas ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor.”

Embora estejam em causa todas as formas de aquisição ilícita, ou seja, aquelas que têm na sua base um facto ilícito típico, a linha de fronteira entre as recompensas e as vantagens da prática de um crime nem sempre é clara e fácil de traçar.

Como escreve João Conde Correia em Anotação ao Acórdão desta Relação de 01-12-2014, proferido no processo 218/11.0GACBC.G1: «Recompensas são todos os benefícios económicos dados ou prometidos para a prática de um crime (v.g. o prémio pago por um homicídio; na correta fórmula do acórdão «os casos em que o mandante do crime dá ou promete ao autor material alguma recompensa com valor económico»); vantagens patrimoniais são, por seu turno, todos os benefícios decorrentes da prática do crime (v.g. o enriquecimento ilícito obtido com uma burla). Mesmo assim, nalgumas situações (v.g. suborno) o ato tanto pode ser encarado como uma recompensa como como uma vantagem.»
A noção de vantagem patrimonial também nos é dada pelo Prof. Figueiredo Dias (45), como sendo «todo e qualquer benefício patrimonial que resulte do crime ou através dele tenha sido alcançado».

Acrescentando que «A perda das “vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido directamente adquirido[a]sentença”, prevista no artigo 111.º, n.º 2, do Código Penal, encontra o seu essencial fundamento político-criminal numa ideia de que “o crime não compensa”. Em vista do cumprimento desta funcionalidade político-criminal, ela abrange por isso todo e qualquer benefício patrimonial que resulte directamente do crime ou através dele tenha sido directamente alcançado, podendo essa vantagem traduzir-se na obtenção de coisas, de direitos ou até de simples benefícios de uso, ou mesmo, apenas, no de evitação de dispêndios.

Trata-se de uma medida sancionatória em que «o que está em causa primariamente é um propósito de prevenção da criminalidade em globo», «ideia que se deseja reafirmar tanto sobre o concreto agente do ilícito típico (prevenção especial ou individual), como nos seus reflexos sobre a sociedade no seu todo (prevenção geral), mas sem que neste último aspecto deixe de caber o reflexo da providência ao nível do reforço da vigência da norma (prevenção geral positiva ou de integração)».

Por isso, como diz o mesmo autor, «ela deve ser considerada não uma pena acessória mas uma providência sancionatória de natureza análoga à da medida de segurança. Análoga, pelo menos, no sentido em que é sua finalidade prevenir a prática de futuros crimes, mostrando ao agente e à generalidade que, em caso de prática de facto ilícito, é sempre e em qualquer caso instaurada uma ordenação dos bens adequada ao direito; e que, por isso mesmo, esta instauração se verifica com inteira independência de o agente ter ou não actuado com culpa» (46).

Também Paulo Pinto de Albuquerque (47) «defende que a perda de vantagens (fruta scleris) é exclusivamente determinada por necessidades de prevenção. Não se trata de uma pena acessória, porque não tem relação com a culpa do agente, nem de um efeito da condenação. Trata-se de uma medida sancionatória análoga à medida de segurança, pois baseia-se na necessidade de prevenção do perigo da prática de crimes, mostrando ao agente e á generalidade que, em caso de prática de um facto ilícito-típico, é sempre em qualquer caso instaurada uma ordenação dos bens adequada ao direito decorrente do objecto.»

Damião da Cunha distancia-se desta posição, sustentando que a perda de vantagens constitui uma pena acessória dependente da aplicação da pena principal (48).

Anote-se, ainda, que há autores, como é o caso de Pedro Caeiro, que criticam qualquer umas destas posições, argumentando que o confisco não depende da perigosidade das recompensas ou vantagens do crime e por esse motivo não parece ser análogo à medida de segurança, defendendo, assim, um tertium genus (49).

De todo o modo, podemos assentar que existe uma vincada preocupação em eliminar os benefícios do crime na esfera do arguido, através da restituição do seu património à situação anterior à prática do crime, caso contrário aquele poderia ser induzido a futuras práticas ilícitas e, mais ainda, contribuiria para gerar na sociedade um sentimento de impunidade (50).

É, pois, com base nestes pressupostos que importa apreciar a declaração de perdimento a favor do Estado da quantia de € 2.500, proferida na decisão recorrida.

Como resulta dos factos provados esta quantia, corresponde a metade do valor do preço que o recorrente (enquanto comprador da influência) se obrigou a entregar ao arguido (agente traficante), para este abusar da sua influência junto de um decisor público, para que este colocasse os seus poderes funcionais ao serviço de interesses diversos do interesse público.

Dito de outro modo, a quantia apreendida, corresponde ao montante/preço reclamado pelo arguido como contrapartida do favor que iria prestar ao recorrente, ou seja, é a contraprestação de negócio celebrado entre ambos e que teve por base um crime.

Assim, dúvidas não há, que a transacção entre ambos celebrada, traduz um verdadeiro sinalagma, representando uma recompensa ou vantagem patrimonial para o arguido A. H..

Ademais, não podemos olvidar a forma altamente censurável como o comprador da influência concorreu para a utilização dessa quantia na infracção penal, tendo inclusive sido responsabilizado criminalmente por este facto, como ressalta dos autos.

O novo regime de perda de vantagens introduzido no C. Penal pela Lei n.º 30/2017, de 30 de Maio, não se nos afigura ser concretamente mais favorável ao arguido, pelo que se opta pelo regime vigente à data dos factos.

Por conseguinte, o recurso improcede, também nesta vertente.
*
Decisão:

Nos termos expostos, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedentes os recursos interpostos pelo arguido A. H. e por A. D. e em confirmar a decisão recorrida.

Custas a cargo do arguido e recorrente, fixando-se a taxa de justiça para cada um deles, em quatro UC´s.
Guimarães, 11/03/2019

Ausenda Gonçalves
Fátima Furtado
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1 Cf. Figueiredo Dias (“Direito Processual Penal”, Coimbra Editora, 1974, pág. 145), Ac. do STJ de 13-10-2011 (proc.141/06.0JALRA.C1.S1-Rodrigues da Costa) e Desembargador Cruz Bucho (no estudo “Alteração Substancial dos Factos em Processo Penal”, que apresentou, nomeadamente, numa comunicação feita no Tribunal da Relação de Guimarães, no dia 2 de Abril de 2009).
2 Por razões de economia processual, mas também no próprio interesse do da paz do arguido, a lei admite geralmente que o tribunal atenda a factos ou circunstâncias que não foram objecto da acusação, desde que daí não resulte insuportavelmente afectada a defesa, enquanto o núcleo essencial da acusação se mantém o mesmo (Germano Marques da Silva, in Direito processual Penal Português, Vol. 3, p. 254). Ou como diz Maia Gonçalves, em anotação ao artº 358º (no seu CPP Anotado), «neste artigo e no seguinte condensam-se os ensinamentos da doutrina mais autorizada sobre esta matéria, de modo a harmonizar, dentro do possível, a celeridade processual e o aproveitamento do processado com os imperativos legais do princípio contraditório e de uma defesa eficaz e em tempo útil por parte do arguido».
3 Cf. Ac. da RC de 28/09/2011 (proc. 47/09.1GATND.C1.
4 Cfr., entre outros, Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, Almedina, 2ª edição, pág. 93 e Ac. da RP de 06/10/2010 (proc. 403/04.1GAMCN-A.P1) e Ac. da RC de 11/09/2013 (proc. 339/11.0JALRA.C1).
5 Cons. Oliveira Mendes, in Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2016 – 2ª edição, pág. 1083.
6 Idem obra citada, p. 261.
7 Idem obra citada, p. 242.
8 Processo 07P024, www.dgsi.pt:
9 «(…) não ignorando que, por essa via, punha em causa a legalidade da actuação da administração pública, reflectida na imagem de igualdade, imparcialidade e transparência pressuposta nos respectivos processos de decisão».
10 Os factos que desta constavam, desde, obviamente, se tivessem como provados, seriam bastantes para fazer incorrer o arguido pela pática do crime de tráfico de influências que lhe era imputado.
11 Nada tem a ver com qualquer destes vícios a adequação aos princípios jurídicos aplicáveis da fundamentação utilizada para julgar o objecto em apreço. Poder-se-á discordar da decisão, como, aliás, o recorrente também demonstra ser o caso, mas não são razões de fundo as que subjazem aos vícios imputados. A arguição de tais vícios não procede quando fundada em divergências com o decidido, sendo distintos do erro de julgamento.
12 Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2.ª ed., p. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 8ª Edição, pp. 73 e ss.
13 Cfr. v. g., o Ac. STJ de 2/2/2011 (p. 308/08.7ECLSB.S1 - Maia Costa): «O erro notório na apreciação da prova, vício da decisão previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Porém, o vício, terá de constar do teor da própria decisão de facto, não da motivação dessa decisão, ou da fundamentação de direito».
14 Cfr. Germano Marques da Silva, loc. e p. cit..
15 Cfr. Simas Santos e Leal Henriques, loc. cit., p. p. 80.
16 Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª ed., 2009, p. 863.
17 Manuel Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 17ª ed., 2009, p. 789.
18 Como dizia Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, p. 191.
19 Rev. Min. Pub. 19º, 40.
20 Com efeito, como ensina Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Vol. I, Verbo, 1993, pág. 41, «a dúvida sobre a responsabilidade é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final, malgrado todo o esforço para a superar. Em tal situação, o princípio político-jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado». Neste sentido se pronuncia, também, a generalidade da jurisprudência dos nossos tribunais superiores, como o atestam, v.g., o Ac. da RP, de 21/04/2004, in www.dgsi.pt, no qual se refere: «O princípio “in dubio pro reo” é uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Ou seja, e dito de outro modo, quando o juiz não consiga ultrapassar a dúvida razoável de modo a considerar o facto como provado, com a certeza que se exige para tal, e porque não pode haver um “non liquet”, tem de valorar o facto a favor do arguido. a favor do arguido é consequente do princípio da presunção de inocência».
21 Cfr. Manuel Cavaleiro de Ferreira, in “Curso de Processo Penal”, vol. 2º, 1986, Editora Danúbio, pág. 259.
22 A óbvia vinculação dessa liberdade às regras fundamentais de um estado-de-direito democrático, sobretudo as vertidas na lei fundamental e na do processo penal, não obsta à busca da verdade material. Por ser condição da realização da justiça e da sua própria subsistência, não pode a concretização dessa tarefa, embora exercida com exigência e rigor, tropeçar em exagero ou comodismos, travestidos de juízos matematicamente infalíveis ou de argumentos especulativos e transcendentes, sob pena de essencialmente deixar de o ser e de o julgamento passar à margem da verdadeira, fundamental e íntima convicção dos juízes, com o risco indesejável de, assim, o tribunal abdicar da sua soberana função de julgar em nome da comunidade (cfr. Ac. STJ de 15/6/2000, in CJ(S), 2º/228, sobre a questão da livre convicção).
Mas, ainda a propósito da livre apreciação da prova, convém lembrar o que refere o Prof. F. Dias: «(…) o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida». E acrescenta que tal discricionaridade tem limites inultrapassáveis: «a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» – , de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo». E continua: «a «livre» ou «íntima» convicção do juiz ... não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável». Embora não se busque o conhecimento ou apreensão absolutos de um acontecimento, nem por isso o caminho há-de ser o da pura convicção subjectiva. E «Se a verdade que se procura é...uma verdade prático-jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença (maxime da penal) é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v. g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais – mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impôr-se aos outros». E conclui: «Uma tal convicção existirá quando e só quando ... o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável», isto é, «quando o tribunal ... tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse» - Direito Proc. Penal, 1º. Vol., pp. 203/205.
23 Debruçando-se sobre a versão inicial do C.Penal de 1995, in Jornadas sobre a revisão do C. Penal AAFDL 1998, p. 253.
24 Ibidem, p. 334.
25 M. Maia Gonçalves, Código Penal Português, Anotado e comentado, Legislação complementar, 18.ª Ed., Almedina, p.1030.
26 Nesse sentido, Margarida Silva Pereira, ob. cit., p. 315 e Pedro Caeiro, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, pag. 276 e 277.
27 in O Crime de Tráfico de Influência – O Problema da influência Suposta, dissertação elaborada no âmbito de mestrado forense.
28 In, “Tráfico de Influência: Análise Crítica da Incriminação”, dissertação elaborada no âmbito de mestrado forense, p. 17.
29 In Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2008, p. 810, e in O Crime de Tráfico de Influência – a Questão da Influência Suposta, Dissertação, 2016, p. 21, disponível in https://repositorio.ucp.pt.
30 Ver Paulo Pinto de Albuquerque, in ob. cit. p. 1085 e Almeida Costa, in ob. cit., p.146.Em sentido contrário, Margarida Silva Pereira e Pedro Caeiro, obras citadas.
31 Local e obra citada na nota anterior. Sobre o tema do abuso, José Mouraz Lopes sublinha que «abusar dessa influência será prevalecer-se desse facto - relação pessoal, familiar, profissional ou outra - para a obtenção de uma vantagem que, de outro modo, não seria possível obter.» Revista do Ministério Público, nº 64, Ano 16, p.64.
32 Obra citada, p. 282 e 283
33 Margarida Silva Pereira opina que estariam excluídas as funções inerentes à magistratura.
34 Obra citada, p. 32
35 Anabela Miranda Rodrigues, “A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade”, Coimbra Editora, p. 570 e s.
36 Ibidem, p. 575.
37 Ibidem, p. 558.
38 Proc. nº 291/13.7GEPTM.E1, relatado por Ana Barata Brito
39 Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, p. 266, anotação 2, fazendo ainda menção às posições de Eduardo Correia, Faria Costa, Costa Andrade e Silva Dias.
40 cfr. art. 379º, nºs 1, al) a) e 2: «É nula a sentença que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º».
41 Cfr. art. 97º nº 5 do CPP.
42 Segundo o Ac. do STJ de 17-09-2014 (1015/07.3PULSB.L4.S1 - Armindo Monteiro), a «A fundamentação das sentenças judiciais é a forma que o legislador se serve para a sua explicação aos sujeitos processuais e aos cidadãos: através dela o julgador presta conta a ambos, proclama as razões de facto e de direito, por que optou por certa solução, ao fixar os factos e ao assentar neles o direito». Também Perfecto Ibañez, no estudo “Sobre a formação racional da convicção judicial”, publicado na Revista do CEJ, 1.º semestre, 2008, p. 167, citado no Ac. do STJ de 8-01-2014 (7/10.0TELSB.L1.S1 - Armindo Monteiro), considera que «motivar uma decisão é justificar a decisão por que se optou para que possa ser controlada tanto pelos seus destinatários directos como pelos demais cidadãos, apresentar de forma inteligível, lógica, coerente e racional, o “iter“ seguido no tratamento valorativo da prova». No mesmo sentido salienta Germano Marques da Silva, In Curso de Processo Penal, III Vol, pág. 289, “As decisões judiciais, com efeito, não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz”. Também no ac. do Trib. Constitucional de 2-12-98 DR IIª Série de 5-3-99, se escreveu “A sentença deve explanar os critérios lógicos que constituíram o substrato racional da decisão”.
43 Nada tem a ver com esse vício a adequação aos princípios jurídicos aplicáveis da fundamentação utilizada, pois não são razões de fundo as que lhe subjazem, sendo coisas distintas a nulidade da sentença e o erro de julgamento, que se traduz numa apreciação da questão em desconformidade com a lei.
44 João Conde Correia, Da proibição do Confisco à perda Alargada (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, S.A.,2012) p. 67
45 Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, p. 632
46 Ob. cit., p. 638
47 In Comentário do C. Penal , pag 460, nota 2.
48 José Manuel Damião da Cunha, Da Perda de Objectos Relacionados com o Crime. Apontamentos policopiados para a disciplina de Direito Penal II (Porto:Universidade Católica Portuguesa, 1999, p. 7.
49 Pedro Caeiro, «Sentido e Função do Instituto da Perda de Vantagens Relacionadas com o crime no Confronto com Outros Meios de Prevenção da Criminalidade Redeticia (em especial, os Procedimentos de Confisco In Rem e a Criminalização do Enriquecimento Ilícito», In Revista Portuguesa de Ciência Criminal, n2 (junho de 2011): 307-9.
50 F. Dias, Obra e página citada na nota nº 44.