EXAME MÉDICO-LEGAL
ASSESSOR TÉCNICO NOMEADO PELA PARTE
INTERVENÇÃO NO EXAME
Sumário

Decorre da lei que o examinado pode fazer-se acompanhar por pessoa da sua confiança no exame médico-legal, mas tal não obsta a que qualquer das partes se possa fazer assistir na perícia por médico, como assessor técnico, salvo se a perícia for susceptível de ofender o pudor ou implicar quebra de qualquer sigilo que o tribunal entenda merecer protecção.

Texto Integral

Procº nº 961/18.3T8VFR-A.P1
Relator: Madeira Pinto
Adjuntos: Carlos Portela
Joaquim Correia Gomes

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SUMÁRIO:
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I - Relatório:
Na presente acção declarativa comum em que é autor B… e ré C… - Companhia de Seguros, SA, foi determinada a realização de perícia médico-legal, a realizar pelo Gabinete Médico Legal D… do Instituto de Medicina Legal, para verificação de danos corporais doa autor.
Mediante requerimento com a referência Citius 30411077, a Ré solicitou que nesse exame pericial estivesse presente um assessor técnico, clínico por si indicado.
Em 14.11.2018 o senhor juiz a quo proferiu o seguinte despacho:
A ré pretende que na perícia médica determinada esteja presente um assessor técnico por si indicado, estribando a sua pretensão nos termos do art.º 480.º, n.º 3, do CPC que, genericamente, permite à parte assistir à diligência e fazer-se assistir assessor técnico, salvaguardando os casos em que se possa ofender o pudor ou quebrar algum sigilo.
Dispõe o art.º 3.º, n.º 1, da Lei nº 45/2004, de 19 de agosto, que “as perícias médico-legais solicitadas por autoridade judiciária ou judicial são ordenadas por despacho da mesma, nos termos da lei de processo, não sendo, todavia, aplicáveis às efetuadas nas delegações do Instituto ou nos gabinetes médico-legais as disposições contidas nos artigos 154.º e 155.º do Código de Processo Penal”.
Estas disposições do processo penal relacionam-se com o consultor técnico, não sendo, assim, possível, a assistência da parte por consultor (assistente técnico).
O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a questão de saber se a referida norma da Lei 45/2004 violava os direitos de defesa e o exercício do contraditório, respondendo negativamente. Na verdade, lê-se no Acórdão do TC nº 133/2007, de 27-02-2007 (Cons. Pamplona de Oliveira):
«(…) Não pode inferir-se directamente da Constituição a existência de um direito dos participantes processuais a acompanharem os exames médico-legais, realizados no âmbito do próprio Instituto Nacional de Medicina Legal, por si ou através dos consultores técnicos que os coadjuvem nas matérias técnico-científicas envolvidas na prova pericial. Ocorre, porém, perguntar se a Constituição consente ao legislador liberdade para moldar um regime específico quanto àquelas perícias que devem ocorrer no Instituto Nacional de Medicinal Legal, regime que é mais restritivo quanto ao direito de acompanhar a diligência que é conferido aos intervenientes processuais e, portanto, também ao arguido. Mas a análise da evolução legislativa que esta matéria sofreu revela que não tem verdadeiro fundamento a alegação do recorrente quanto à não existência de "justificação razoável – técnica, científica ou processual – para essa limitação", omissão que, em seu entender, seria demonstrativa da natureza "desproporcionada e desnecessária" da solução legal. É, pelo contrário, manifesto que a norma impugnada, ao introduzir uma distinção quanto às perícias médicas realizadas no Instituto Nacional de Medicina Legal, teve comprovadamente em conta que esta é uma instituição com natureza judiciária, cujos peritos, para além de abrangidos pelo segredo de justiça (como os demais), estão vinculados ao dever de sigilo profissional, e gozam de total autonomia técnico-científica, garantindo um elevado padrão de qualidade científica.
Ora, o Tribunal tem entendido que a proibição constitucional do arbítrio não afasta a possibilidade de a lei permitir distinções, desde que não se apresentem como desrazoáveis ou injustificadas (cfr. Acórdão n.º 189/2001, Ac.TC n.º 50 p. 285; Acórdão n.º 31/91 in DR II série, 25 de Junho de 1991), como é manifestamente o presente caso. (…) Decorre claramente do que já se observou que o direito de nomear um consultor técnico permitido pelo artigo 155º do Código de Processo Penal, não é um direito conferido especificamente a título de "garantia de defesa", no seu sentido mais estrito: no decurso da prova pericial não impende sobre o arguido qualquer ónus de contradizer ou afirmar qualquer facto; não é atribuída qualquer eficácia ao acordo expresso ou tácito sobre factos não contraditados. O que aqui vale, seguramente, é a busca da verdade material e da realização da justiça, do dever de investigação judicial autónoma da verdade, com independência e imparcialidade, embora sem excluir o auxílio das partes – artigo 340º n.º 1 do Código de Processo Penal – objectivo que representa uma das finalidades do processo penal. À autoridade judiciária incumbe rodear a produção de prova pericial das condições necessárias a que dela se retire a verdade material, processualmente válida. Ora, na decorrência desse grande objectivo do processo penal, o sistema português adoptou um regime de perícia oficial – não contraditória – essencialmente disciplinado pelos artigos 152º n.º 1 e 154º n.º 1 do citado Código, no domínio da qual o perito é um perito do Tribunal, sujeito ao mesmo dever de imparcialidade e de busca da verdade material que oneram a actividade judiciária.
Esclarecida a verdadeira natureza da actuação dos participantes processuais neste âmbito, é mais fácil compreender que o direito do arguido de acompanhar a perícia através de um consultor técnico não constitui uma imperiosa exigência do princípio do contraditório. Com efeito, o princípio do contraditório, na sua caracterização mais rigorosa, corresponde a uma concepção próxima do direito de audiência e da oportunidade processual de influenciar, através da sua audição pelo Tribunal, o resultado do processo. Ora o exercício deste contraditório para os intervenientes processuais – e, portanto, também para o arguido –, resulta aqui do direito que a lei lhes confere de pedir esclarecimentos aos peritos, e até de requerer ao tribunal que determine a realização de nova perícia, ou a renovação da anterior.
Note-se que a lei exige que os peritos apresentem um relatório no qual mencionem e descrevam as suas respostas e conclusões "devidamente fundamentadas". É assim claro que, através dos pedidos de esclarecimento, o arguido pode verificar o método utilizado na recolha da prova e controlar as conclusões que dela os peritos retiraram; assim como lhe permite discutir o valor probatório que há-de ser atribuído, no julgamento, às conclusões encontradas, como aliás, sucede em relação à generalidade dos meios de prova.
É certo que não pode nomear um consultor técnico para acompanhar a perícia médico- legal, no caso de esta se realizar no Instituto Nacional de Medicina Legal, diver samente do que sucede nos casos disciplinados pelo aludido artigo 155º do Código de Processo Penal. Todavia, as garantias acrescidas de qualidade técnica que são conferidas, somadas aos poderes que a lei garante ao arguido e que acabaram de se descrever, permitem concluir que este regime respeita as exigências do princípio do contraditório aplicado às provas (…)»
Poder-se-ia argumentar que a mencionada restrição à assistência por assessor técnico vale apenas para o processo penal, já que o art.º 3.º, n.º 1, da Lei em apreço apenas exclui, relativamente às perícias realizadas nas delegações do Instituto ou nos gabinetes médico-legais as disposições contidas nos artigos 154.º e 155.º do Código de Processo Penal, sendo omisso quanto às normas do processo civil, mormente o art.º 480º, nº 3, do CPC.
Porém, nenhuma razão se vê para distinguir os dois tipos de processo, sendo certo que as apontadas razões pelo Tribunal Constitucional para a existência da norma em apreço são igualmente válidas em sede de processo civil. Não há motivos para se distinguir o que, substancialmente, não tem destrinça.
Permitir o contrário seria susceptível de subverter as normas do sistema: num caso em que estivéssemos perante factos que integrariam também a prática do crime, a parte, querendo deduzir pedido de indemnização e fazer-se assistir por assessor no ato, tudo faria para que a pretensão indemnizatória não fosse apreciada no processo-crime (tendo presente que até existe o princípio da adesão), socorrendo-se de remessas do pedido indemnizatório para os meios civis para, aí, poder fazer uso do art.º 480.º, nº 3, do CPC. Tal não parece ser admissível nem se vê qualquer justificação que permita conceber dois procedimentos diferentes consoante o tipo de processo.
Consequentemente, na ponderação do supra enunciado, entende-se que a referida exclusão da assessoria técnica, vertida no art.º 3.º, n.º 1, da Lei nº 45/2004 de 19-08, aplica-se também ao processo civil e afasta, quanto às perícias médico-legais, o regime do art.º 480.º, n.º 3, do CPC.
Destarte, decidindo, indefere-se a pretendida assessoria técnica em sede da perícia a efetuar no Gabinete Médico-Legal”.
Deste despacho vem interposto o presente recurso pela ré, que apresenta as seguintes conclusões:
1. O douto despacho recorrido, salvo o devido respeito, não decidiu corretamente, não podendo a recorrente concordar com tal entendimento.
2. Para prova das lesões sofridas pelo autor em virtude do acidente de viação em causa, a ré requereu que a perícia médica se realizasse em moldes colegiais, nos termos do disposto no artigo 468º, nº 1, alínea b), do C.P.C., tendo nomeado, desde logo, o seu perito médico.
3. Tendo sido indeferida a realização da perícia em moldes colegiais, a R., conformando-se com o decidido, requereu a nomeação de assessor técnico para assistir à diligência a realizar no Gabinete Médico-Legal de D….
4. O douto despacho ora posto em crise indeferiu a assessoria técnica, por entender também ser aplicável o disposto no artigo 3.º, n.º 1, da Lei 45/2004, de 19 de agosto, às perícias realizadas em processo civil.
5. Entende a recorrente que esta disposição só é aplicável às perícias médico-legais realizadas em processo penal, tal como resulta da letra da lei.
6. Inexistindo qualquer fundamento que permita excecionar o regime previsto no artigo 480.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, para o assessor técnico nas perícias realizadas em processo civil.
7. O regime de produção de prova pericial em processo penal e em processo civil é diferente, bem como é distinto o papel do consultor técnico (artigo 155.º do Código de Processo Penal) e do assessor técnico (artigos 480.º, n.º 3 e artigo 50.º, do Código de Processo Civil).
8. Em processo penal a prova pericial apenas terá lugar em moldes colegiais se se revelar de especial complexidade ou exigir conhecimentos de matérias distintas, hipótese em que pode ser deferida a vários peritos.
9. Em processo civil a prova pericial será em moldes colegiais se uma das partes o requerer, sendo o colégio de peritos composto por peritos nomeados por cada uma das partes e pelo tribunal.
10. «(…) A função do consultor técnico é a de fiscalização, que exerce assistindo à realização da perícia, com a possibilidade de intervir nos termos do artigo 155.º, n.º 2 e de ser ouvido em audiência (art. 350.º) (…)» Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 133/2007, de 27 de fevereiro, citado na decisão sob recurso.
11. Tal como se extrai do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 133/2007, de 27 de fevereiro, que serviu de fundamento à decisão posta em crise, a realização de uma perícia por delegação do INML é garantia acrescida de competência do perito a quem é deferida a sua realização, ficando assim sem sentido a necessidade de fiscalização a realizar pelo consultor técnico.
12. No que concerne às perícias realizadas em processo civil, a possibilidade de as partes nomearem um perito para compor o colégio de peritos que levará a cabo a diligência, também torna diferente o papel do assessor técnico em comparação com o do consultor técnico.
13. A especificidade da perícia realizada no Instituto Nacional de Medicina Legal reflete-se, quando a diligência é requerida em processo civil, na impossibilidade de a parte requerer a sua realização em moldes colegiais, nomeando o seu perito, tal resulta do nº 3, do artigo 21.º, da Lei n.º 45/2004, de 19 de agosto e do artigo 467.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
14. Inexistindo analogia no que concerne à posição do consultor técnico em processo penal e do assessor técnico em processo civil, falece o fundamento que permitiu aplicar a exceção previsto no n.º 1, do artigo 3.º, da Lei n.º 45/2004, de 19 de agosto, à situação regra descrita no artigo 480.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
15. O disposto no artigo 480.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, aplica-se a todas as perícias efetuadas, incluindo, naturalmente, as perícias médico-legais, com as especificidades decorrentes da Lei n.º 45/2004, de 19 de agosto (Acórdão do tribunal da relação do Porto de 3 de novembro de 2014, processo 1326/13.9TTPRT-A.P1, sendo relator RUI PINHA).
16. O Mº Juiz “a quo”, ao proferir o douto despacho recorrido, indeferindo a assessoria técnica à perícia médico-legal a realizar nos autos, violou o disposto nos artigos 480.º, n.º 3 e 50.º, do Código de Processo Civil e fez errada interpretação e aplicação do artigo 3.º, n.º 1, da Lei 45/2004, de 19 de agosto.
Termos em que, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o douto despacho recorrido e substituindo-se por outro que nomeie o assessor técnico indicado pela R. que assistirá por si à diligência da perícia a realizar nos autos.
Não houve contra alegações do autor.
Recebido o recurso e dispensados os vistos legais, atenta a simplicidade da questão e a concordância dos senhores desembargadores adjuntos, cumpre decidir.
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II - Do Recurso:
Os factos a considerar são os expostos no relatório que antecede.
A única questão a conhecer é a legalidade do despacho recorrido.
Dispõe o artº 467º do Novo Código de Processo Civil, no que ora interessa considerar, o seguinte:
“1 - A perícia, requerida por qualquer das partes ou determinada oficiosamente pelo juiz, é requisitada pelo tribunal a estabelecimento, laboratório ou serviço oficial apropriado ou, quando tal não seja possível ou conveniente, realizada por um único perito, nomeado pelo juiz de entre pessoas de reconhecida idoneidade e competência na matéria em causa, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte.
2-(…)
3 - As perícias médico-legais são realizadas pelos serviços médico-legais ou pelos peritos médicos contratados, nos termos previstos no diploma que as regulamenta.
4 - As restantes perícias podem ser realizadas por entidade contratada pelo estabelecimento, laboratório ou serviço oficial, desde que não tenha qualquer interesse em relação ao objecto da causa nem ligação com as partes”.
Estabelece, por seu turno, o artº 468º NCPC:
“1 - A perícia é realizada por mais de um perito, até ao número de três, funcionando em moldes colegiais ou interdisciplinares:
a) Quando o juiz oficiosamente o determine, por entender que a perícia reveste especial complexidade ou exige conhecimento de matérias distintas;
b) Quando alguma das partes, nos requerimentos previstos no artigo 475º e no nº 1 do artigo 476º, requerer a realização de perícia colegial.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, se as partes acordarem logo na nomeação dos peritos, é aplicável o disposto na segunda parte do nº 2 do artigo anterior; não havendo acordo, cada parte escolhe um dos peritos e o juiz nomeia o terceiro.
3 - As partes que pretendam usar a faculdade prevista na alínea b) do nº 1 devem indicar logo os respectivos peritos, salvo se, alegando dificuldade justificada, pedirem a prorrogação do prazo para a indicação.
4 - Se houver mais de um autor ou mais de um réu e ocorrer divergência entre eles na escolha do respectivo perito, prevalece a designação da maioria; não chegando a formar-se maioria, a nomeação devolve-se ao juiz”.
Perante o teor das citadas normas, impõe-se concluir que, em conformidade com o disposto no artº 467º, nº 1, NCPC, a perícia deverá ser, em princípio e sempre que possível, requisitada pelo tribunal a estabelecimento, laboratório ou serviço oficial apropriado.
Quando isso não seja possível ou conveniente, a perícia será efectuada por um perito nomeado pelo juiz ou, nas situações mencionadas no artº 468º, nº 1, NCPC, por três peritos (nomeados e escolhidos nos termos que se encontram estabelecidos nos nºs 2 a 4 do citado artº 468º).
Com efeito, a expressão “…sem prejuízo do disposto no artigo seguinte” que consta na parte final do nº 1 do artº 467º, não se reporta a tudo o que está disposto no nº 1, mas apenas à 2ª parte (aquela onde se refere que a perícia é efectuada por um único perito nomeado pelo juiz). Ou seja, a perícia colegial a que alude o artº 468º apenas é possível nos casos em que a perícia não deva ser requisitada a estabelecimento, laboratório ou serviço oficial, já que, sendo este o caso, o tribunal limita-se a requisitar a sua realização sem qualquer interferência no que diz respeito aos concretos peritos que a vão realizar e que, naturalmente, serão designados de acordo com as regras legais ou regulamentares do estabelecimento, laboratório ou serviço a quem a perícia foi requisitada.
Assim, temos como certo que, sendo a perícia requisitada a estabelecimento, laboratório ou serviço oficial, o juiz e as partes não têm a possibilidade de indicar peritos para a sua realização e, por conseguinte, não tem aplicação o disposto no artº 468º NCPC.
Uma vez requisitada a estabelecimento, laboratório ou serviço oficial, a perícia é feita por peritos do próprio estabelecimento ou serviço ou é feita por entidades que, para o efeito, sejam contratadas pelo estabelecimento ou serviço a quem a perícia foi requisitada (artº 467º, nº 4 NCPC), sem que o juiz ou as partes tenham a faculdade de indicar os peritos concretos que a deverão realizar.
Conclui-se, deste modo, que o disposto no artº 468º NCPC não é aplicável às perícias que devam ser requisitadas a estabelecimento, laboratório ou serviço oficial, ficando a sua aplicação reservada para as perícias que, não devendo ser requisitadas naqueles termos, são efectuadas por um perito nomeado pelo juiz (regra estabelecida na 2ª parte do nº 1 do artº 467º NCPC) ou em moldes colegiais, nos termos previstos no citado artº 468º.
Todavia, como se referiu e resulta do disposto no artº 467º, nº 1, NCPC, a perícia só deverá ser efectuada nesses termos se não for possível ou conveniente a sua requisição a estabelecimento, laboratório ou serviço oficial apropriado.
Tratando-se de uma perícia médico-legal - como é o caso dos autos - é evidente que é possível e conveniente a sua requisição ao serviço oficial apropriado, dispondo expressamente o nº 3 do citado artº 467º NCPC, que tais perícias são realizadas pelos serviços médico-legais ou pelos peritos médicos contratados, nos termos previstos no diploma que as regulamenta.
O diploma que regulamenta as perícias médico-legais é a Lei nº 45/2004 de 19/08.
De facto, esse diploma legal estabelece o regime jurídico da realização das perícias médico-legais e forenses (cfr. artº 1º) que, naturalmente, podem ter lugar em processo civil ou em processo penal, pois, não se prevendo a sua aplicação exclusiva ao processo criminal, resulta, com alguma evidência, do artº 21º, nº 4, que o diploma em causa é aplicável às perícias médico-legais no âmbito do processo civil.
Dispõe o artigo 21.º desta Lei que:
“1 - Os exames e perícias de clínica médico-legal e forense são realizados por um médico perito.
2 - Os exames de vítimas de agressão sexual podem ser realizados, sempre que necessário, por dois médicos peritos ou por um médico perito auxiliado por um profissional de enfermagem.
3 - O disposto no n.º 1 não se aplica aos exames em que outros normativos legais determinem disposição diferente.
4 - Dado o grau de especialização dos médicos peritos e a organização das delegações e gabinetes médico-legais do Instituto, deverá ser dada primazia, nestes serviços, aos exames singulares, ficando as perícias colegiais previstas no Código de Processo Civil reservadas para os casos em que o juiz, na falta de alternativa, o determine de forma fundamentada”.
Assim, de acordo com o disposto no artº 21º, nºs 1 e 4, desta Lei, as perícias são, em princípio, singulares, sendo que as perícias colegiais previstas no Código de Processo Civil ficam reservadas para os casos em que o juiz, na falta de alternativa, o determine de forma fundamentada. Importa referir que, mesmo quando admissíveis, as perícias colegiais, no âmbito da clínica médico-legal e forense, nunca serão efectuadas por peritos indicados ou nomeados, nos termos do artº 468 do NCPC, já que tais perícias são efectuadas por médicos do quadro do Instituto ou contratados nos termos da referida lei (artº 27º, nº 1) ou, eventualmente, por docentes ou investigadores do ensino superior no âmbito de protocolos para o efeito celebrados pelo Instituto com instituições de ensino públicas ou privadas (nº 2 do artº 27º). Neste sentido se pronunciaram, os acórdãos deste Tribunal de 7/1/2010 e 4/2/2010 e de 13.12.2013, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Isto posto, nos presentes autos foi ordenada a realização de exame médico-legal e forense ao autor a realizar pelo IML nos termos da Lei 45/2004, de 19.8, para verificação e avaliação de danos corporais em virtude do acidente de viação que se discute na acção.
A ré seguradora veio requerer que ao exame pericial a realizar no âmbito da perícia médico-legal ordenada pudesse assistir, como assessor técnico, o sr Dr. Pedro Lima, médico de profissão.
Ignora-se se o autor foi ou não ouvido sobre esse requerimento e, na afirmativa, se deduziu alguma oposição.
Sem invocar que oposição tivesse havido e em que moldes, o despacho recorrido indeferiu a assistência técnica requerida pela ré.
Cremos que tal despacho não deve ser mantido por não ter fundamento legal.
Ordenado que foi o exame médico-legal, o autor está obrigada a comparecer para a realização dos exames médico-legais necessários para a instrução nesta acção, sendo certo que não invocou recusa, nomeadamente com base na violação da sua integridade física- artº 417º, nºs 1 e 3, al. A), NCPC.
Também resulta da Lei nº 45/2004, de 19.08 a obrigação da autora se submeter ao exame médico-legal determinado judicialmente. Com efeito, prescreve o artigo 6.º desta Lei que:
“Obrigatoriedade de sujeição a exames
1 - Ninguém pode eximir-se a ser submetido a qualquer exame médico-legal quando este se mostrar necessário ao inquérito ou à instrução de qualquer processo e desde que ordenado pela autoridade judiciária competente, nos termos da lei.
2 - Qualquer pessoa devidamente notificada ou convocada pelo director de delegação do Instituto ou pelo coordenador de gabinete médico-legal para a realização de uma perícia deve comparecer no dia, hora e local designados, sendo a falta comunicada, para os devidos efeitos, à autoridade judiciária competente.
3 - O examinado pode, nos termos do disposto no artigo 155.º do Código de Processo Penal, com as necessárias adaptações, fazer-se acompanhar por pessoa da sua confiança para a realização do exame pericial.
4 - A autoridade judiciária competente pode assistir à realização dos exames periciais”.
Embora o nº 3 deste artº 6º da Lei nº 45/2004, de 19.08 refira apenas o direito de o examinado se poder fazer acompanhar por pessoa da sua confiança no exame pericial médico-legal, tal não obsta a que qualquer das partes se possa fazer assistir na perícia por assessor técnico.
Com efeito, preceitua o número 3 do artigo 480.° CPC que: “as partes podem assistir à diligência e fazer-se assistir por assessor técnico, nos termos previstos no artigo 50º, salvo se a perícia for susceptível de ofender o pudor ou implicar quebra de qualquer sigilo que o tribunal entenda merecer protecção".
Deste modo, o despacho em crise sempre deveria fundamentar o indeferimento num dos dois motivos vindos de citar (salvo se a perícia for susceptível de ofender o pudor ou implicar quebra de qualquer sigilo que o tribunal entenda merecer protecção).
Ora, o despacho recorrido para rejeitar o pedido da ré de se fazer assistir na perícia médico-legal por um médico, como assessor técnico, fundamenta-se na recusa da autora em ter que estar na presença perante mais um médico para além do perito médico legal, dado que o exame pericial em causa contende com a sua intimidade física.
Ora, não está demonstrado nos autos que o exame médico legal a que o autor tem que se submeter ofenda a sua intimidade física, nem que o autor tivesse invocado esse motivo para recusar submeter-se ao exame médico legal, de acordo com o disposto no artº 417º, nº 3, al. a) NCPC.
Está, por isso, obrigado a submeter-se ao exame ordenado- artº 6º nº 1 da Lei nº 45/2004, de 19.08 e artº 417º, nº 1, NCPC.
Por outro lado o assesssor técnico indicado pela ré para assistir à perícia médico-legal ordenada é também ele médico e sujeito pois aos deveres do respectivo código deontológico, nomeadamente o dever de sigilo profissional.
O facto de o exame médico-legal e apenas este e não os actos complementares e elaboração do respectivo relatório pericial, poder ser assistido por um médico especialista em nada descredibiliza ou por alguma forma põe em causa a eficácia e a imparcialidade de tal exame ou o trabalho dos peritos médicos do Instituto Nacional de Medicina Legal (INML).
Trata-se do exercício de um direito que é conferido às partes – para que, em momento posterior, possam tomar a devida posição sobre o relatório pericial que se produzirá, por um lado; e, por outro, de se encontrarem representadas por quem tenha a competência e formação técnica necessárias que permita avaliar os termos e os resultados de tal perícia médica.
Além disso, se ao examinando/autor é permitido fazer-se acompanhar de pessoa da sua confiança para a realização do exame pericial (ao abrigo do artigo 6° n.° 3 da Lei n,° 45/2004, de 19 de Agosto), não se impondo em tal normativo sequer que essa pessoa seja médico, em razão de ser respeitado o princípio do contraditório, não deve igualmente ser possibilitada a assistência (por médico) por parte da Ré?
Cremos, pois, que não merece acolhimento o argumento de que a norma do artº 480º, nº 3, NCPC não é aplicável às perícias médico-legais, dado que não resulta do conteúdo da Lei 45/2004 de 19.08 qualquer disposição que derrogue aquela norma genérica.
Assim, o despacho recorrido violou o disposto no artigo 480º, nº 3, do CPC.
Esta é também a interpretação compatível com o princípio da igualdade das partes consagrado no art. 4º do NCPC, nos termos do qual o tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa, na aplicação de cominações ou de sanções processuais[1].
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III - Decisão:
Nestes termos, acordam os juízes nesta Relação em julgar procedente a apelação e revogar o despacho recorrido, deferindo-se o pedido da ré apelante de se fazer assistir pelo médico por si indicado no exame médico- legal ao autor ordenado nos autos.
Custas pela parte vencida a final.
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Porto, 21.02.2019
Madeira Pinto
Carlos Portela
Joaquim Correia Gomes
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[1] No sentido deste acórdão proferimos idêntico no Proc. Nº 515/15.6T8VLG-A.P1, e foi também esta a interpretação contida no acórdão do TRC, de 28.11.2018 (Maria Teresa Albuquerque), in www.dgsi.pt.