ACIDENTE DE TRABALHO
MÉDICO
CONTRATO DE TRABALHO EM FUNÇÕES PÚBLICAS
HOSPITAL EPE
TRANSFERÊNCIA DE RESPONSABILIDADE POR ACIDENTES DE TRABALHO PARA SEGURADORA
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
Sumário

I - A competência para conhecer de acidente de trabalho por médico com contrato de trabalho em funções públicas a prestar serviço em Hospital EPE, encontra-se deferida aos Tribunais Administrativos.
II - A isso não obsta o facto de tal entidade ter transferido a responsabilidade infortunística por acidentes de trabalho de tal funcionário para uma seguradora.

Texto Integral

Processo n.º 8.833/17.2T8PRT.P1

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
B…, residente na Rua …, nº .., …, Aveiro, pós infrutífera tentativa de conciliação, representado pelo Ministério Público, veio intentar a presente acção especial emergente de acidente de trabalho contra a Companhia de Seguros – C…, S.A., com sede no Largo …, .., em Lisboa, e o Instituto Português de Oncologia D…, EPE, com sede na Rua …, no Porto.
Pede, tendo em conta o vencimento de €2.240,19 x 14 mais €4,27 x22 x11 mais €1.339,065 x12, os períodos de incapacidade temporária atribuídos pela seguradora e pelo perito do INML, a IPP de 7,4100%, devem as rés ser condenadas a pagar ao autor:
1 - A pensão anual e vitalícia de €2.513,87 a partir da alta em 17/04/2017;
2 - As quantias de €2.768,32 a título de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária, além das quantias pagas pela ré seguradora;
3 - A quantia de €19,50 gasta em transportes;
4 - Juros de mora à taxa legal desde o vencimento até efectivo pagamento, sendo os vencidos até á presente data.
Alega, em síntese: O autor vem prestado trabalho desde 2000, como médico com o grau de Assistente Graduado de Urologia, sob as ordens, direcção e fiscalização da ré patronal; No dia 18 de outubro de 2016, cerca das 14h30m, quando saia do seu local de trabalho, ao acelerar o passo, escorregou e fracturou o maléolo externo; A ré seguradora prestou assistência médica ao autor, dando alta em 17/04/2017; A ré seguradora atribuiu os seguintes períodos de incapacidade temporária: ITA de 19/10/2016 a 02/12/2016, ITP 50% de 03/12/2016 a 03/03/2017 e ITP de 10% de 04/03/2017 a 17/04/2017; Como consequência do acidente, o autor apresenta as sequelas descritas no auto de exame médico realizado no INML, que lhe atribuiu a IPP de 7,4100%, aplicando o fator 1,5 da TNI, fixando a alta em 17-04-2017; Na data do acidente a entidade patronal tinha a responsabilidade por acidentes de trabalho transferida para a ré seguradora; Na data do acidente o autor auferia o vencimento mensal de €2.240,19 x 14 mais €4,27 x22x11 de subsídio de alimentação e a quantia média mensal de €1339,065 x 12 de remuneração, por intervenções cirúrgicas fora do horário normal de trabalho; O autor gastou a quantia de €19,50 em transportes; A seguradora aceitou o acidente como de trabalho, o nexo de causalidade entre as lesões e o acidente, as sequelas referidas no seu boletim clinico e a transferência da responsabilidade pelo vencimento mensal de €2.240,19x 14 mais €4,27 x 22 x11 mais €404,23 x 12 de outras remunerações; A ré seguradora não aceita a IPP atribuída pelo perito médico do INML, atribuindo a IPP de 4,465%, não aplicando o fator 1.5; A ré patronal aceita a caracterização do acidente como de trabalho, não tomou posição quanto á classificação como remuneração das quantias auferidas pelo sinistrado além do vencimento base e subsídio de refeição.
A seguradora veio contestar alegando, em síntese: o A. encontra-se curado com uma IPP de 4,465%, a retribuição declarada e transferida pela R. Patronal à contestante foi apenas de €2.240,19 x 14 (de retribuição base) acrescida de 4,27 x 22 x 11 (de subsídio de alimentação) e de €404,23 x 12 meses (de outras prestações) num total anual de €37.246,76. Solicitou exame ao sinistrado por Junta Médica.
O Instituto Português de Oncologia D…, EPE, veio contestar invocando a incompetência material do tribunal, alegando que: o autor é um trabalhador em funções públicas, vinculado à aqui ré – ela própria uma entidade pública empresarial, situada no perímetro da Administração indirecta do Ministério da Saúde – vinculação essa desde o ano 2000, subscritor da CGA e beneficiário da ADSE, sendo que a norma do artigo 12º da LGTFP, em harmonia com a do artigo 4º/4 do ETAF, estabelece que «são da competência dos tribunais administrativos e fiscais os litígios emergentes do vínculo de emprego público».
Impugnando alega, resumidamente que: não aceita que os pagamentos realizados ao autor em contrapartida das prestações deste no domínio do SIGIC (Sistema de Gestão de Inscritos para Cirurgia) sejam legalmente abrangidos pela cobertura inerente à responsabilidade emergente de acidente de trabalho; ao longo dos períodos de ITA e de ITP que o autor invoca a aqui ré abonou sempre o autor como se não houvesse incapacidade alguma, impondo-se que esse montantes indevidamente abonados sejam reembolsados à aqui ré.
Deduziu pedido reconvencional pedindo a condenação do sinistrado “a reembolsar a ré entidade empregadora das quantias abonadas no montante a liquidar em execução de sentença e no mínimo de €2.768,87”.
O Ministério Público respondeu à matéria da excepção e da reconvenção alegando, em síntese: o próprio diploma que regula o trabalho em funções públicas afasta expressamente a sua aplicação às entidades públicas empresariais, categoria em que se enquadra a ré patronal; durante o período de incapacidade temporária o autor prestou trabalho, cumprindo o horário de trabalho, desempenhando as suas funções integralmente, pelo que, não tendo diminuído a carga horária e as tarefas, temos de concluir que há trabalho prestado pelo autor que não é remunerado.
Foi proferido despacho saneador no qual se julgou procedente a invocada excepção de incompetência absoluta do Tribunal, absolvendo da instância “a entidade responsável”.
Inconformado interpôs o Ministério Público o presente recurso de apelação,
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O recorrido Instituto Português de Oncologia D…, EPE, alegou,
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O Ministério Público teve vista nos autos, não tendo emitido parecer, atento o patrocínio do sinistrado.
Admitido o recurso e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Como se sabe, o âmbito objectivo dos recursos é definido pelas conclusões do recorrente (artigos 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do CPC, por remissão do art. 87º, nº 1, do CPT), importando assim decidir quais as questões naquelas colocadas.
A única questão a resolver prende-se com a competência (ou incompetência) do Juízo do Trabalho para conhecer o presente litígio.
II - Factos provados:
Os factos relevantes para a decisão são os que constam do relatório.
III - O Direito
É o seguinte o teor do despacho sob recurso:
Conforme se extrai da petição inicial que deu origem à fase contenciosa dos presentes autos, o aqui sinistrado, B…, é médico do Instituto Português D…, E.P.E., efetuando descontos para a Caixa Geral de Aposentações, facto este que é corroborado pelo teor do documento junto aos autos a fls. 37.
Sendo assim, ao acidente em presença é aplicável, não o Regime de Reparação de Acidente de Trabalho e de Doenças Profissionais aprovado pela Lei nº 98/2009, de 4 de setembro, mas antes o regime legal aprovado pelo Decreto-lei nº 503/99, de 20 de novembro (cfr. o art. 2º nº 2 deste último).
Por seu turno, o art. 48º nº 1 do Decreto-lei nº 503/99, de 20 de novembro, estabelece que o interessado pode intentar, no prazo de um ano, nos tribunais administrativos, ação para reconhecimento do direito ou interesse legalmente protegido contra os atos ou omissões relativos à aplicação do presente diploma, que segue os termos previstos na lei de processo nos tribunais administrativos e tem carácter de urgência.
Do exposto resulta que a participação do presente sinistro deve ser feita à Caixa Geral de Aposentações, que é a entidade com competência para a fase administrativa do processo. Caso nessa fase não seja viável conciliação, o sinistrado poderá recorrer, não às Secções do Trabalho, mas antes aos Tribunais Administrativos, os únicos com competência material para conhecer da lide.
A incompetência em razão da matéria configura uma exceção dilatória, que implica a absolvição do R. da instância, devendo ser oficiosamente suscitada pelo tribunal enquanto não houver sentença com trânsito em julgado (arts. 96º a), 97º nº 1, 99º nº 1, 577º a) e 578º, todos do C. P. Civil).
Em face do exposto, julgo verificada a exceção dilatória da incompetência absoluta, em razão da matéria, deste tribunal e, em consequência, absolvo da instância a entidade responsável.
Sem custas, por delas estar isento o sinistrado.
Insurge-se o recorrente, alegando:
O M.º Juiz na fundamentação do seu douto despacho refere o art. 2º nº 2 do Decreto – Lei nº 503/99 de 20 de novembro que estabelece que: (...)
No entanto, o nº 4 do mesmo art. 2 do Decreto-Lei nº 503/99 vem excluir a aplicação deste diploma ás entidades públicas empresariais: (...)
A entidade patronal é uma entidade pública empresarial, assumiu-se como tal nos presentes autos e apresentou documentos comprovativos dessa sua caracterização legal.
A entidade patronal transferiu a responsabilidade para a Companhia de Seguros, tal como estava legalmente obrigada a fazer e uma vez ocorrido o acidente participou o mesmo á seguradora que assumiu a responsabilidade pela reparação dos danos sofridos pelo sinistrado. A seguradora, como resulta do auto de conciliação, assumiu a responsabilidade de acordo com o contrato efectuado com a entidade patronal, sendo que a reparação será efectuada de acordo com a LAT.
O nº 4 do art. 2º do Decreto-Lei nº 503/99 de 20 de novembro, para efeito de aplicação do diploma, não distingue entre trabalhadores que prestem funções para entidades públicas empresariais, seja qual for o vínculo, utilizando a expressão “trabalhadores que exerçam funções para entidades públicas empresariais”. O regime desse diploma não é aplicável a todos os trabalhadores, independentemente do vínculo, que exerçam funções ao serviço dessas entidades.
(...)
A responsabilidade pela reparação do acidente de trabalho sofrido pelo autor encontra-se transferida para a seguradora, sendo a responsabilidade da entidade patronal meramente subsidiária, sendo a reparação efectuada de acordo com a Lei nº 98/2009 de 4 de Setembro.
A competência para dirimir o litígio emergente desta relação jurídica cabe ao Tribunal de Trabalho e não ao Tribunal Administrativo.
(...)
A própria lei afasta a aplicação do contrato de trabalho em funções públicas às entidades públicas empresariais.
No caso dos presentes autos não está em causa um litígio emergente de relações administrativas, ou uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo, mas apenas um litígio no âmbito do regime de acidentes de trabalho, previsto no Código do Trabalho e na Lei nº 98/2009 de 4 de Setembro.
Respondeu o recorrido Instituto Português de Oncologia D…, EPE, sustentando o despacho sob recurso.
Nos termos do disposto no art. 126º, nº 1, al. c), da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto, Lei da Organização do Sistema Judiciário, compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível, das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais.
Estabelece, por seu lado, o art. 4º, nº 1, al. a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas à tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais. Porém, nos termos do nº 4, al. b), do mesmo preceito, estão excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público.
No que respeita aos acidentes de trabalho dos trabalhadores da Função Pública, ou acidentes em serviço, segundo a definição do art. 3º, al. b), do Dec. Lei nº 503/99, de 20 de Novembro, aplica-se este diploma, estipula-se no art. 2º deste diploma: 1 - O disposto no presente decreto-lei é aplicável a todos os trabalhadores que exercem funções públicas, nas modalidades de nomeação ou de contrato de trabalho em funções públicas, nos serviços da administração directa e indirecta do Estado. 2 - O disposto no presente decreto-lei é também aplicável aos trabalhadores que exercem funções públicas nos serviços das administrações regionais e autárquicas e nos órgãos e serviços de apoio do Presidente da República, da Assembleia da República, dos tribunais e do Ministério Público e respectivos órgãos de gestão e de outros órgãos independentes. 3 - O disposto no presente decreto-lei é ainda aplicável aos membros dos gabinetes de apoio quer dos membros do Governo quer dos titulares dos órgãos referidos no número anterior. 4 - Aos trabalhadores que exerçam funções em entidades públicas empresariais ou noutras entidades não abrangidas pelo disposto nos números anteriores é aplicável o regime de acidentes de trabalho previsto no Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, devendo as respectivas entidades empregadoras transferir a responsabilidade pela reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho nos termos previstos naquele Código.
A questão da competência material para conhecer dos acidentes de trabalho de funcionários com contrato de trabalho em funções públicas, a trabalhar em EPE, não se tem apresentado pacífica na jurisprudência.
No sentido defendido pelo recorrente pronunciou-se este Tribunal da Relação do Porto em acórdão de 2 de Maio de 2016, processo 31/14.3T8PNF.P1, acessível em www.dgsi.pt, no qual se considerou: “Se o próprio DL 503/99 estabelece a distinção, expressamente, entre empregadores, digamos assim, integrados na administração indirecta do Estado e entidades públicas empresariais – confronto do nº 1 com o nº 4 do artigo 2º ora transcrito – se o objectivo da criação de entidades públicas empresariais, convertendo anteriores hospitais públicos, é a gestão racionalizada e se esta inclui ou envolve a aplicação do regime regra do contrato de trabalho, se é o próprio diploma que cria o Réu que estabelece a aplicação deste regime, então não é possível, salvo melhor opinião e com o devido respeito, sob pena de frustração dos intuitos do legislador, entender que os Centros Hospitalares integram a administração indirecta do Estado para o efeito de, no tocante à definição legal da protecção infortunística, se subsumirem ao nº 1 do citado artigo 2º do DL 503/99 e não ao nº 4 do mesmo preceito, que expressamente os prevê. Ou, melhor dizendo, ainda que teoricamente tais Centros integrem a administração indirecta do Estado, ainda que a relação seja de emprego público, a verdade é que, havendo previsão expressa – referido nº 4 – há-de obedecer-se a ela, e portanto entender que os acidentes sofridos por trabalhadores ao serviço de entidades públicas empresariais, estão sujeitos à protecção infortunística laboral. Conclui-se pois, pela pertinência da invocação, pela Autora, da ocorrência de acidente de trabalho, e pela aplicação do artigo 126º nº 1 al. c) da Lei 62/2013 de 26 de Agosto (LOSJ), segundo a qual compete às secções do trabalho conhecer, em matéria cível, das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais, razão pela qual se impõe revogar a decisão recorrida e ordenar o normal prosseguimento dos autos no Tribunal do Trabalho recorrido.”
Igualmente se decidiu no mesmo sentido no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11 de Fevereiro de 2016, processo 137/15.1T8BJA-A.E1, acessível em bdjur.almedina.net e em www.dgsi.pt, invocado pelo recorrente, no qual se expendeu: “Decorre, pois e de uma forma clara, do que se estabelece no n.º 4 deste preceito legal que aos trabalhadores que exerçam funções em entidades públicas empresariais e que, porventura, sejam vítimas de acidente de trabalho – como tudo indica tenha sido o caso dos autos – é aplicável o regime jurídico dos acidentes de trabalho previsto no Código do Trabalho aprovado pela Lei n.º 99/2003 de 27-08 (e, desde 17 de fevereiro de 2009, o mesmo Código na versão aprovada pela Lei n.º 7/2009 de 12-02), devendo as respetivas entidades empregadoras transferir a sua responsabilidade pela reparação de danos emergentes de acidentes de trabalho nos termos previstos nesse mesmo Código. Ora, a propósito da aplicação do estipulado no art. 2º do referido Decreto-Lei n.º 503/99 de 20-, escreveu-se no douto Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul de 23-08-2012 e que foi proferido no processo n.º 09001/12, Aresto publicado em www.dgsi.pt, que, «… da leitura e interpretação deste preceito é possível descortinar que o legislador procedeu a uma distinção de entre os titulares de contrato de trabalho em funções públicas, no tocante ao regime legal aplicável em matéria de acidentes de trabalho, consoante a natureza da entidade onde as funções são exercidas ou, por outras palavras, que é claro o propósito do legislador em conferir aos trabalhadores que exerçam funções em entidades públicas empresariais, regime diferente do demais previsto. Ao passo que para os trabalhadores das entidades a que se referem os nºs 1, 2 e 3 do artº 2º do D.L. nº 503/99, de 20/11, se aplica o regime jurídico dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais, previsto e regulado nesse diploma, para os trabalhadores que exerçam funções em entidades públicas empresariais ou noutras entidades não abrangidas pelo disposto nos números anteriores é aplicável o regime de acidentes de trabalho previsto no Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de agosto. Isso significa que quanto às entidades públicas empresariais ou outras entidades não abrangidas pelo disposto nos números anteriores (os nºs 1, 2 e 3 do artº 2º do D.L. nº 503/99, de 20/11), é indiferente que os seus trabalhadores exerçam ou não funções públicas, pois em quaisquer dos casos é-lhes aplicável o regime de acidentes de trabalho previsto no Código do Trabalho.”
Não tem sido, esse, porém, o entendimento do STJ.
Desde logo, conforme expresso no acórdão do STJ de 17 de Novembro de 2016, processo 31/14.3T8PNF.P1.S1, ainda acessível em www.dgsi.pt, que revogou o mencionado acórdão deste Tribunal de 2 de Maio de 2016, no qual se refere, nomeadamente:
“Da análise da nova redação deste artigo resulta evidente que o regime estabelecido é aplicável relativamente aos trabalhadores que exercem funções com vínculo de natureza pública, nos serviços da administração direta ou indireta do Estado.
“No que se refere aos trabalhadores que exercem funções em EPEs, ou noutras entidades públicas não abrangid[o]s pelos números anteriores, de acordo com o disposto no n.º 4, «é aplicável o regime de acidentes de trabalho previsto no Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de agosto, devendo as respetivas entidades empregadoras transferir a responsabilidade pela reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho nos termos previstos naquele Código».
“Esta norma está claramente direcionada para os trabalhadores das EPE em regime de contrato de trabalho de direito privado, em relação aos quais o regime de proteção relativo a acidentes em serviço é o que resulta do Código do Trabalho, hoje o Código de Trabalho de 2009, e da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro.
“A norma daquele n.º 4 não pode ser interpretada no sentido de retirar os trabalhadores das EPE da saúde com relação jurídica de emprego público, do regime da proteção dos acidentes em serviço, que é parte integrante do seu estatuto, conforme acima se referiu.
“Na verdade tal interpretação colide diretamente com o teor do n.º1 deste artigo e com o facto de as entidades empresariais em causa integrarem a administração indireta do Estado, mas acima de tudo, com as normas específicas das EPE da saúde acima referidas e que garantiram àqueles trabalhadores a manutenção integral do respetivo estatuto.
“A norma daquele n.º 4 do artigo 2.º do Decreto-lei n.º 503/99, de 20 de novembro, não poderá ser lida fora do contexto do regime jurídico concreto que enquadra os trabalhadores que desempenham funções públicas, nomeadamente, no âmbito das entidades públicas empresariais, uma vez que é parte integrante da unidade de sistema que caracteriza o regime jurídico de prestação de trabalho destes trabalhadores.
“Tal interpretação colidiria com os princípios em termos de hermenêutica jurídica, violando, claramente, o disposto no n.º 1 do artigo 9.º do Código Civil, que impõe que «a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico» conduzindo ao absurdo de impor a trabalhadores que têm um relação de trabalho de natureza pública um regime de proteção de acidentes em serviço de direito privado.
“Acresce que a atribuição do estatuto de EPE aos hospitais, conforme bem se considerou no acórdão do Tribunal de Conflitos acima referido, não retirou os hospitais do âmbito da administração indireta do Estado e não pôs em causa a sua natureza de pessoas coletivas públicas, pelo que os trabalhadores ao serviço destes, com vínculo de natureza pública, sempre serão abrangidos pelo n.º 1 do referido artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro.”
Neste sentido já se pronunciara o Tribunal de Conflitos no acórdão de 7 de Junho de 2016, processo 04/16, ainda acessível em www.dgsi.pt, seguido no anterior, do qual consta:
“(...) por força do disposto no nº 6 artigo 1º, a LTFP é aplicável a outros trabalhadores com contrato de trabalho em funções públicas que não exerçam funções nas entidades referidas nos números 1 a 5 do mesmo artigo 1º.
“E pese embora a redacção, a previsão do nº 6 do artigo 1º da LTFP, corresponde ao que já se previa no artigo 2º da LVCR, nos termos do qual, a referida Lei de Vínculos, Carreiras e Remunerações já era aplicável aos trabalhadores em funções públicas (independentemente da modalidade de vinculação e de constituição da relação jurídica de emprego público), que exercessem funções públicas em entidades excluídas do seu âmbito de aplicação objetivo, como era o caso das entidades públicas empresariais (cfr. nº 5 do artigo 3º da LVCR).
“Resulta do exposto que a LTFP é aplicável aos trabalhadores que exercem funções públicas nas entidades públicas empresariais, e que, nos termos do disposto nos respectivos Estatutos, hajam mantido o estatuto jurídico da função pública (cfr. nº 1 do artigo 13º do Decreto-Lei nº 183/2008, de 4 de Setembro, que aprovou os Estatutos da E…, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 12/2015, de 26 de Janeiro) e que não tenham optado pelo regime do contrato de trabalho (cfr. nº 5 do artigo 13º do mesmo decreto-lei), como é o caso do trabalhador [em funções públicas] sinistrado/autor nos presentes autos.
“Cremos, pois, que nesta nova redacção, o legislador pretendeu submeter as matérias de acidentes de trabalho e doenças profissionais dos trabalhadores em funções públicas, das entidades públicas empresariais, ao regime abrangido na Lei dos Acidentes de Trabalho – Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro –, regulamentado por força do disposto no artigo 284º do Código do Trabalho (aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12 de Fevereiro com as alterações subsequentes).
“Concomitantemente, nos termos do disposto no artigo 12º da LTFP, sob a epígrafe «Jurisdição competente», “(s)ão da competência dos tribunais administrativos e fiscais os litígios emergentes do vínculo de emprego público”, como é o caso.
“Resulta desta forma, expressamente, que a competência para dirimir litígios respeitantes à reparação de acidentes de trabalho e doenças profissionais dos trabalhadores em funções públicas pertence aos Tribunais Administrativos.
“Com efeito, o facto de ao acidente de trabalho configurado e sofrido pelo autor ser aplicável não o DL nº 503/99 de 20/11, mas sim o regime de acidentes de trabalho estabelecido no Código do Trabalho, por força do disposto no nº 4 do artº 2º do DL nº 503/99 e do artº 5º da Lei nº 35/2014 de 20/06 que aprovou a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, não significa que por esse motivo seja o Tribunal de Trabalho o competente para decidir a acção sub judice, pois a questão da aplicabilidade do DL nº 503/99 defendida pelo autor, é aqui irrelevante para aferir da competência do tribunal em razão da matéria – cfr. neste sentido o Acórdão do Tribunal de Conflitos proferido em 06/02/2014, in proc. nº 024/12, que se pronúncia sobre questão idêntica.”
No mesmo sentido o acórdão do Tribunal de Conflitos de 6 de Fevereiro de 2014, processo nº 24/12-70, publicado no Diário da República, Apêndice, de 7 de Maio de 2015.
Nomeadamente atenta a função uniformizadora da jurisprudência do Tribunal Supremo, entendemos dever seguir este entendimento, que se mostra o mais ajustado a uma interpretação sistemática da norma em questão.
A circunstância de a responsabilidade infortunística estar transferida para a seguradora não afecta este entendimento. Conforme referido no acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 16 de Janeiro de 2006, processo 0515414, ainda acessível em www.dgsi.pt, “a transferência da responsabilidade – a qual deve obedecer ao disposto no art. 45º nºs. 4, 5, 6 – apenas conduz ao seguinte resultado: o pagamento das prestações a que o sinistrado tenha direito, por força do acidente em serviço, tanto podem ser da responsabilidade do serviço a que o funcionário pertence e da CGA – arts. 5º nº2 e 3 e 34º nº4 – como também da Seguradora – art.45º. Por isso, a competência do Tribunal do Trabalho, em razão da matéria, há-de resultar do estabelecido na LOFTJ, mais precisamente do disposto no art. 85º al. c) da Lei 3/99 de 13.1. Ora, a citada disposição legal refere que os Tribunais de Trabalho são competentes para conhecer das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais, nada referindo quanto aos acidentes de serviço.”
Assim, improcede a apelação.
IV. Decisão
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Sem custas.
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Porto, 18 de Fevereiro de 2019
Rui Penha
Jerónimo Freitas
Nelson Fernandes