VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
IN DUBIO PRO REO
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
MEDIDA DA PENA
Sumário

– Ao tribunal superior cumpre verificar a existência da prova e controlar a legalidade da respectiva produção, nomeadamente no que respeita à observância dos princípios da igualdade, oralidade, imediação, contraditório (…) verificando, outrossim, a adequação lógica da decisão relativamente às provas existentes. Assim, só em caso de existência de provas, para se decidir em determinado sentido, ou de violação das normas de direito probatório (nelas incluindo as regras da experiência comum ou da lógica) cometida na respectiva valoração feita na decisão de primeira instância, esta pode ser modificada, nos termos do art.º 431º do CPP.

– O tribunal só lança mão do princípio in dubio pro reo – corolário do princípio constitucional da presunção da inocência (art.º 32º nº 2 da CRP) – se a prova produzida, depois de avaliada segundo as regras da experiência e da liberdade de apreciação (art.º 127º CPP), tivesse conduzido à subsistência, no espírito do julgador, de uma dúvida positiva invencível sobre a verificação ou inexistência de um facto relevante para a descoberta da verdade.

– O bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica é plural e complexo, visando essencialmente a defesa da integridade pessoal, nas suas vertentes física, psíquica e mental, e a protecção da dignidade humana no âmbito de uma particular relação interpessoal e embora o tipo legal abranja acções típicas que já encontram previsão noutros tipos legais, o seu fundamento deve ser encontrado na protecção de quem, no âmbito de uma concreta relação interpessoal, vê a sua integridade pessoal, liberdade e segurança ameaçadas com tais condutas, sendo, pois, o enfoque colocado na situação relacional existente entre agressor e vítima.

– O verdadeiro traço distintivo deste crime relativamente aos demais, onde igualmente se protege a integridade física, a honra ou a liberdade sexual, reside no facto de o tipo legal prever e punir condutas perpetradas por quem afirme e actue, dos mais diversos modos, um domínio, uma subjugação, sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade e que a reconduz a uma vivência de medo, de tensão, de subjugação.

– No caso dos autos, a caracterização de uma posição de dominação e de prevalência do arguido sobre a vítima, com a consequente subjugação desta, resulta suficientemente caracterizada em face da reiteração de violências e maus tratos físicos e psíquicos, traduzidos em sofrimento moral, derivado das múltiplas agressões físicas, violência sexual, injúrias e ameaças de morte, com foros de seriedade, tendo-se demonstrado que a ofendida, para além do terror, pânico, vexame, humilhação e constante sobressalto sofridos, ficou amedrontada, intimidada, insegura e intranquila, a ponto de ver prejudicada a sua liberdade de decisão e de acção, por recear que o arguido concretizasse as ameaças e atentasse conta a sua vida e integridade física, assim como dos seus familiares.

– Considerada a moldura penal abstracta aplicável, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos de prisão, não militando a favor do arguido qualquer atenuante, como a mera confissão ou o simples arrependimento, e tendo sido condenado um ano antes dos factos por crimes de violência doméstica perpetrados em 2015 e 2016, voltando o arguido a cometer no crime de violência doméstica entre Março e Abril de 2018, e considerados os concretos actos praticados, de violência sexual, agressões físicas e psíquicas, ameaças de morte com foros de seriedade, infundindo terror e pânico na vítima, a pena concreta fixada de três anos e nove meses encontra-se ponderada de acordo com os atinentes critérios legais e jurisprudenciais, não merecendo censura nem reparo, sendo por isso insusceptível de redução.

Texto Integral

Acordam em conferência os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.



1.– No Processo Comum (Tribunal Singular) nº 202/18.3PALSB do Juízo Local Criminal de Lisboa (Juiz 5) do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, no qual é arguido M., preso preventivamente à ordem dos presentes autos desde 16 de Abril de 2018, no Estabelecimento Prisional de Caxias, por sentença, proferida a 12 de Novembro de 2018, foi decidido o seguinte:

“Face ao exposto, o Tribunal julga a acusação, parcialmente, procedente, por provada, e, em consequência, decide:
a)- Condenar o arguido M., pela prática, a título de dolo directo, como autor material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152°, n°s 1, a) e c) e 2 do Código Penal, na pena parcelar de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão;
b)- Condenar o arguido M., na pena acessória de proibição de contactos com SP. e de frequentar a sua residência sita na R. , pelo período 3 (três) anos e 9 (nove) meses, ao abrigo do disposto no artigo 152°, n°s 4 e 5 do Código Penal, (devendo ser colhidos os consentimentos dos sujeitos processuais para controlo à distância — cfr. artigos 35° e 36°, ambos da Lei n.° 112/2009 de 16 de Setembro). Sem prejuízo tal medida deverá salvaguardar a possibilidade de realização de todos os contactos que se afigurem necessários no âmbito do exercício das responsabilidades parentais relativamente aos filhos menores de ambos;
c)- Condenar o arguido M., no pagamento das custas do processo fixando a taxa de justiça em 3 (três) UC. — cfr. artigos 513°, n.° 1, 514°, n.° 1, todos do Código de Processo Penal, e artigo 8°, n.°5 e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais, ex vi artigo 524° do Código de Processo Penal, sem prejuízo do apoio judiciário se aplicável;

d)- Ordenar que, após o trânsito em julgado do presente acto decisório se:
d.1)– Envie o boletim aos serviços de registo criminal (cfr. artigo 374°, n.°3, d) do Código de Processo Penal);
d.2)– Remeta certidão da decisão proferida nos presentes autos ao processo n.° 945/15.3P8LSB do Juízo Local Criminal de Lisboa — J10 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa referido em 39.1) , para os fins tidos por convenientes;
d.3)– Proceda à oportuna comunicação do teor da presente decisão, nos termos do disposto no artigo 37°, n.°1 da Lei n.° 112/2009, de 16 de Setembro (e sucessivas alterações);
d.4)– Remeta certidão da sentença proferida ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 191°, a) da Lei n.'23/07 de 4 de Julho;
d.5)– Oficie o Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária, para que diligencie pelas necessárias diligências com vista a recolha de amostra de ADN ao arguido M., nos termos do disposto nos artigos 1°, n°s 1 e 2, e 8°, n.° 2, da Lei 5/2008, de 12 de Fevereiro.
Antes da recolha, deve o arguido ser informado, por escrito, do que consta no artigo 9', a), desse diploma, devendo ainda os respectivos perfis ser incluídos na base de dados de perfis de ADN, nos termos do artigo 18°, n.° 3, do mesmo diploma legal.
Na comunicação a efectuar deve informar-se o Instituto Nacional de Medicina Legal da pena aplicada ao arguido, bem como, da respectiva localização;

e)- Consignar, para os devidos efeitos que, a documentação junta aos autos a fls. 2 a 5 e 6 do apenso por linha com o n.° 3539/18.8T9LSB a e que se reportam sinalização dos menores filhos do arguido para efeitos de instauração de eventual promoção e protecção a favor dos menores tem carácter reservado atento o disposto no artigo 88° da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo e, por essa razão, só poderão ser consultadas com autorização judicial;
f)- Consignar, para os devidos efeitos que, após o trânsito em julgado da presente sentença, as medidas de coacção de termo de identidade e residência, de prisão preventiva e coacção de proibição de contactos a que o arguido se encontra sujeito mantêm-se, em face do reexame dos pressupostos que determinaram a sua aplicação que se fará em seguida nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 213°, n° 1, b) do Código de Processo Penal.

Compulsados os autos, verifica-se que o arguido encontra-se sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, fundando-se a aplicação da mesma no perigo identificado, em razão da natureza, circunstâncias do crime ou personalidade do agente, de continuação da actividade criminosa ou perturbação grave da ordem e tranquilidade pública.

Atento o juízo formulado da sentença condenatória que antecede e tendo a prova produzida precipitado a confirmação dos indícios que vinham sendo identificados ao longo da regular tramitação dos autos, considera o Tribunal que, em razão da natureza do crime praticado, do circunstancialismo anterior e posterior ao facto e da personalidade do agente revelada no facto, se prognostica a existência de um manifesto perigo de continuação da actividade criminosa por parte do arguido, especialmente em razão da sentença condenatória proferida e dos meios probatórios onde a mesma assentou.

Deste modo, atentos os sensíveis perigos identificados, considera o Tribunal que não existe qualquer alternativa que permita acautelar convenientemente todos os bens e interesses em causa que não seja determinar a continuação do arguido sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, a qual se revela necessária, adequada e proporcional ao perigo identificado que se pretende acautelar, não considerando o Tribunal como possível mitigar o aludido perigo, de modo eficaz e menos restritivo, mediante recurso a outra medida de coacção.

No que respeita à medida de coacção de proibição de contactos, pelas razões acima expostas, permanecem igualmente patentes os perigos que conduziram à sua determinação, porquanto entende o Tribunal ser de manter a sua vigência.

Assim, não se verificando os pressupostos a que alude o artigo 214° do Código de Processo Penal, determina-se que o arguido M. aguarde os ulteriores termos do processo, para além de sujeito ao termo de identidade e residência prestado, às medidas de coacção de prisão preventiva e de proibição de contactar a ofendida, SP., nos termos determinados ao abrigo do disposto nos artigos 191°, 192°, 193°, 194°, 195°, 196°, 200°, n.° 1, d), 202°, n.°1 b), 204°, al. c), 213°, n.°1, b) e 2, 3, 215°, n.°1, d) e 2 todos do Código de Processo Penal.

Consigna-se, ao artigo 215.°, n.° 1, d), n.° 2 e artigo 1.°, j) do Código de Processo Penal, que o prazo máximo da medida de coacção de prisão preventiva é de dois anos. Comunique ao Estabelecimento Prisional de Caxias.

Transitada em julgado a presente sentença, mantendo-se a decisão de cumprimento de pena de prisão efectiva por parte do arguido M., emitam-se os mandados de condução do condenado ao competente Estabelecimento Prisional, a fim de iniciar o cumprimento da pena de prisão efectiva que lhe foi aplicada nos presentes autos e abra vista ao Ministério Público para efeitos de contagem da pena (cfr. artigo 479° do Código de Processo Penal).”

2.– Não se conformando com esta decisão o arguido dela interpôs recurso apresentando motivação da qual extrai as seguintes conclusões:

“I.– O Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa condenou o Arguido, pela prática, a título de dolo directo, como autor material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152°, n°s 1, a) e C) e 2 do Código Penal, na pena parcelar de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão, bem como na pena acessória de proibição de contactos com SP. pelo mesmo período.
II.– O Arguido não devia ter sido condenado porquanto não se logrou provar a prática do crime de que vinha acusado.
III.– A acusação não logrou demonstrar que o arguido, “agrediu, injuriou, amedrontou a ofendida, em diversos circunstancialismos temporais e espaciais, incluindo em casa, e isto com um carácter de regularidade (tipo-de-ilícito objectivo), e, bem assim, que agiu mediante dolo directo (tipo-de-ilícito subjectivo).
IV.– No facto provado 4, o Tribunal a quo considerou que “em data indeterminada, o arguido M.  manteve relação sexual com SP., contra a vontade desta, a qual lhe provocou e sofrimento psíquico.”, a este propósito, perguntar-se-á qual a prova produzida que levou o Tribunal a quo a considerar provado o facto acima descrito.
V.– Tal factualidade não resulta do depoimento de nenhum sujeito processual.
VI.– A este propósito, o tribunal a quo entra em contradição na Sentença ora em crise, porquanto na alínea c) e d) dos factos não provados, refere que, “ o arguido, M.  tivesse mantido relações sexuais com SP., contra a sua vontade e praticadas com violência(..) e lhe (à ofendida) tivessem causado lesões e hematomas na zona genital, bem como sofrimento físico e psicológico” .
VII.– O teor do relatório médico a fls. 303 e 304 refere claramente a ausência de lesões na Ofendida.
VIII.– O Tribunal a quo não pode dar um facto como provado de forma generalista e considerar também esse mesmo facto constante da acusação como não provado.
IX.– No facto n° 5 da Matéria de Facto Provada, o tribunal a quo dá como provado que “o arguido M. discutiu várias vezes com a SP., por qualquer motivo, culpabilizando a mesma de todas as situações, assumindo uma postura agressiva que lhe causava mal estar”.
X.– Com excepção da Ofendida e apenas em sede de declarações para memória futura, a mesma refere de forma generalista a existência de discussões entre o casal.
XI.– Não existe qualquer outra prova, sendo este facto geral e abstracto, logo inadmissível em processo penal, tão só como corolário do princípio do in dubio pro reo.
XII.– No facto n° 6, 7 e 8 da Matéria de Facto Provada, foi dado como provado que “No dia 31.03.2018, no interior da casa onde residiam na R... O..., Nº... – ....º Esq., em Lisboa, e quando ambos se encontravam no quarto SP. questionou o arguido M. sobre a sua relação com outra mulher e o arguido iniciou uma discussão com a ofendida e na sequência dessa discussão apertou-lhe o pescoço para evitar que fizesse barulho e desferiu um pontapé que a atingiu no peito enquanto a ameaçava de morte (...).”
XIII.– Mais uma vez, apenas a ofendida (!) sustentou em declarações para memória futura e de forma pouco clarividente e confusa a tese da acusação.
XIV.– Em sede de julgamento, a ofendida negou que alguma vez, o arguido lhe tenha desferido um pontapé.
XV.– A Ofendida não tinha qualquer lesão (Cfr. relatório médico de fls. 303 e 304).
XVI.– Nenhuma das testemunhas inquiridas assistiu ao facto em causa, pelo que não se compreende que o Tribunal a quo o tenha considerado como provado apenas com base no depoimento da ofendida que posteriormente foi negado pela própria em sede de audiência e julgamento.
XVII.–   Não se compreende que, tendo sido vítima de agressão, a ofendida não tenha procurado tratamento hospitalar, sendo estranho este comportamento da ofendida.
XVIII.–  A ofendida explicou em audiência de julgamento que à data das declarações para memória futura estava baralhada quanto à data dos factos e com mais relevância, estava revoltada com o arguido pois tinha descoberto que o mesmo alegadamente tinha uma relação extraconjugal.
XIX.– A ofendida referiu que em sede de declarações para memória futura estava nervosa e queria vingar-se do Arguido, utilizando factos anteriores pelos quais o arguido já tinha sido julgado no processo n.° 945/15.3P8LSB.
XX.– Em sede de audiência e julgamento, já de forma mais calma e ponderada, negou todos os factos, explicando a razão das declarações anteriores.
XXI.– Nos factos n°s 9 e 10 da Matéria de Facto Provada, o tribunal considerou provado que no “no dia 02.04.2018, na R. AT... em Lisboa, o arguido M.  discutiu com SP., culpando-a de ele ainda não ter recebido os seus documentos de autorização de residência e disse-lhe que a matava, assim como toda a sua família, caso não recebesse a autorização de residência (...).”
XXII.– Este facto não foi presenciado por nenhuma das testemunhas inquiridas.
XXIII.–  Em sede de declarações para memória futura a arguida fala deste facto de forma generalista, sendo que em audiência e julgamento, a ofendida já refere de forma clara e inequívoca que, “nunca houve nenhuma discussão sobre isso”.
XXIV.– O tribunal a quo, não consegue estabelecer na Sentença ora recorrida uma concretização efectiva deste facto provado em termos espaciais e temporais.
XXV.–  Nos factos nºs 11 e 12 da Matéria de Facto Provada, o Tribunal a quo considerou, também, provado que “Após SP. ter efectuado denúncia na polícia em 04.04.2018, o arguido M., pediu para mesma retirar a denúncia. e que a partir dessa data, os pais do arguido M.  têm feito chamadas de voz para pressionar SP. para retirar a queixa.”.
XXVI.– O tribunal a quo entra novamente em contradição na Sentença ora em crise, com o referido na alínea K) dos factos não provados.
XXVII.– Igualmente esta factualidade não é subsumível ao tipo criminal de “violência doméstica”, p. e p., no artigo 152.º do CP.
XXVIII.– A prova tem de ultrapassar – sempre – a dúvida razoável, sob pena de se condenarem pessoas inocentes.
XXIX.– Nenhuma das testemunhas apresentadas pela acusação sustentou os factos constantes da acusação, nem tão-pouco as testemunhas presenciaram quaisquer agressões, verbais ou físicas perpetradas pelo Arguido à ofendida.
XXX.–  Na verdade, estão em causa depoimentos indirectos ou de “ouvir dizer”, os quais constituem prova nula nos termos do artigo 129.º do CPP – nulidade esta que expressamente se invoca.
XXXI.– O princípio "in dubio pro reo" estabelece que, na decisão de factos incertos, a dúvida favorece o Arguido, ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 6 de Janeiro de 2010, proferido no âmbito do P. n.º 583/07, disponível em www.dgsi.pt.
XXXII.– In casu, a dúvida gerada pelos depoimentos contraditórios da ofendida em sede de audiência de julgamento por comparação com o depoimento anterior em sede de declarações para memória futura, é muito superior à dúvida razoável.
XXXIII.– Encontrando-se o Tribunal perante um estado de dúvida insanável, não poderia ter escolhido a tese desfavorável ao Arguido, mas, deveria o tribunal a quo ter-se socorrido do princípio "in dubio pro reo" e, assim, ter absolvido integralmente o Arguido.
XXXIV.– A douta Decisão recorrida fundamentou a condenação do Recorrente essencialmente por considerar mais credíveis as declarações da Ofendida em sede de declarações para memória futura por comparação com as declarações proferidas em sede de audiência e julgamento.
XXXV.– Ora, estabelece o art.º 349.º do Código Civil que “Presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.”
XXXVI.– Como se sabe, o recurso a presunções judiciais pelos Tribunais não pode ser feito de forma injustificada e sem limites sob pena de constituir fundamento autónomo de recurso nos termos do disposto no art.º 410.º, n.º 2, al. a) e c) do Código de Processo Penal.
XXXVII.– Esta limitação legal é, tão só, um corolário do princípio do in dubio pro reo.
XXXVIII.– A prova produzida em Audiência de Julgamento e a prova documental constante dos autos é manifestamente insuficiente para as presunções operadas pelo Tribunal a quo.
XXXIX.– O Tribunal a quo presume sem mais que o arguido praticou os factos ilícitos em causa apenas com o depoimento da ofendida em sede de declarações para memória futura (contraditado pela própria em sede de audiência e julgamento).
XL.– Assim e ao contrário da presunção judicial sustentada na Decisão a quo, seria mais natural inferir que pelo menos existe a dúvida se o arguido praticou ou não lesões no corpo e na saúde da ofendida, criando-lhe um clima de constante ansiedade.
XLI.– Com efeito, age de forma incorrecta o Tribunal a quo ao determinar a condenação do Arguido quanto à prática do crime em causa.
XLII.– A medida da pena será dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos in casu, tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada (prevenção geral positiva ou de reintegração) - temperada pela necessidade de reintegração social do agente, com o limite inultrapassável da medida da culpa.
XLIII.–  A medida da pena concretamente determinada mostra-se manifestamente desproporcionada, quer face às exigências de prevenção geral e especial, quer quanto à culpa do arguido, aqui Recorrente. Vide Acórdão da Relação de Coimbra, de 06.05.2009, proferido no âmbito do P. n.º 601/08.9, disponível em www.dgsi.pt
XLIV.–  O Recorrente é empresário, tendo uma loja de comércio alimentar própria de onde aufere um rendimento de €2.500,00 mensal (facto provado 13 da Decisão e aqui se dá por integralmente reproduzido) e encontra-se laboralmente activo.
XLV.– O Recorrente é uma pessoa socialmente integrada, cumprindo pontualmente com as suas obrigações sociais e de cidadania, sendo pai de 3 filhos que se encontram actualmente com necessidades de apoio financeiro e emocional do arguido, do qual está dependente o seu bem-estar a todos os níveis.
XLVI.– O Recorrente não tem registo disciplinar no estabelecimento prisional e tem comportamento adequado e conforme as regras (facto provado 27 da Douta Decisão e aqui se dá por integralmente reproduzido) e encontra-se em prisão preventiva desde 16.04.2018, ou seja, há cerca de 8 meses, o que já constitui forte punição para os comportamentos ilícitos que lhe são imputados e porque veio a ser condenado pelo Tribunal a quo.
XLVII.– Igualmente o facto de o Arguido estar privado da liberdade, tem certamente um efeito futuro de afastamento do mesmo da prática de qualquer tipo de crime.
XLVIII.– Assim, nem que seja pela prisão preventiva do Recorrente, é possível fazer um juízo de prognose positivo quanto à sua reincidência.
XLIX.–  A permanência na prisão do Recorrente, nesta fase da sua vida, tendo o mesmo 41 anos de idade, terá graves reflexos no seu futuro profissional e só irá prejudicar o seu processo de ressocialização, bem como da sua família, mormente os seus filhos menores.
L.– Destarte, estão no presente caso reunidos os pressupostos que permitem que venha a ser suspensa a execução da pena aplicada ao Arguido em respeito do mais básico princípio que norteia o Direito Penal Português, ou seja a ressocialização dos Agentes.

Nestes termos, e nos mais de Direito cujo douto suprimento de V. Exas. se espera e invoca, deverá ser dado provimento ao presente Recurso e, em consequência:
a)- Ser a sentença proferida revogada, por não se encontrar provada a prática do crime de violência doméstica por parte do arguido, ora Recorrente e, em consequência, ser o mesmo absolvido;
b)- Caso assim não se entenda, deverá a medida concreta da pena ser diminuída de acordo com os princípios da proporcionalidade e da determinação da medida da pena; e
c)- Deverá ser revogado o Acórdão recorrido, que deverá ser substituído por outro que tenha em conta todas as circunstâncias que depõem a favor do Recorrente, permitindo-se que venha a ser suspensa a execução da pena aplicada ao Recorrente.”

3.– Admitido o recurso com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo o MºPº respondeu, pugnando pela improcedência do recurso, nos seguintes termos:

“1.– Da análise das conclusões do recurso interposto pelo arguido M.  retira-se que este impugna a decisão sobre a matéria de facto, considerando, contraditório o ponto 4 dos factos dados como provados, com as alíneas a) e d) dos factos não provados.
2.– Na verdade, não existe aqui verdadeira contradição, na medida em que os factos dados como não provados dizem respeito à prática de várias relações sexuais contra a vontade e com dores, lesões e hematomas, enquanto que o facto julgado provado resulta da circunstância de o Tribunal a quo ter ficado suficientemente convencido da prática de uma relação sexual com SP., contra a vontade desta, a qual lhe provocou dor e sofrimento psíquico.
3.– O recorrente enuncia como incorrectamente julgada a factualidade constante dos pontos 11 e 12 dos factos dados como provados, uma vez que considera que os mesmos estão em contradição com a alínea k) dos factos não provados.
4.– Também aqui não se vislumbra qualquer contradição, na medida em que se apurou que os contactos foram feitos pelos progenitores do arguido, nos termos do facto 12 dos factos provados, considerando as declarações prestadas pela ofendida aquando das declarações para memória futura que, o Tribunal a quo decidiu valorar pelos motivos infra expostos e para os quais remetemos.
5.– O recorrente enuncia também como incorrectamente julgada a factualidade constante dos pontos 5, 6, 7, 8, 9 e 10 dos factos provados, essencialmente, porque apenas em sede de declarações para memória futura e de forma pouco clara, a ofendida prestou declarações no sentido dos factos acima dados como provados e que, por esse motivo, não devem ser dados como provados.
6.– Ora, nos presentes autos, a tarefa que se impôs ao Tribunal a quo em face das declarações contraditórias que a ofendida prestou em julgamento e em sede declarações para memória futura, foi, essencialmente de apurar, com base nos restantes elementos de prova, em que momento a mesma falou com verdade.
7.– Para o efeito, apreciou o Tribunal a quo as declarações prestadas pelo arguido, que não se revelaram susceptíveis de gerar a dúvida razoável sobre a realidade ocorrida, quando criticamente apreciadas as versões em confronto – veja-se que a sua versão não se mostra respaldada em qualquer outro meio probatório e é directamente contraditada pelo relato apresentado por SP. em declarações para memória futura (a qual, como se viu, transmite garantias adicionais de crédito) e também não é, igualmente, consentânea com a versão apresentada pela ofendida em audiência de julgamento.
8.– Quanto à testemunha SP... , em sede de declarações para memória futura, relatou, com detalhe e tranquilidade: as circunstâncias em que a declarante e o agregado familiar viviam, dependentes do arguido; o que arguido lhe disse responsabilizando-a por não ter recebido a autorização de residência e as ameaças que lhe foram dirigidas em consequência desse facto; as circunstâncias de tempo, lugar, modo e as razões pelas quais discutiram em casa; as agressões físicas de que foi alvo nesse circunstancialismo (um pontapé no peito e aperto de pescoço para que esta não fizesse barulho durante a contenda); as circunstâncias de tempo, lugar, modo e as razões da discussão na loja do arguido, bem como, as ameaças ali proferidas; os efeitos que isso provocou na declarante; a situação em que se viu forçada a manter contra a sua vontade relação sexual com o arguido e as consequências daí advenientes (referiu a toma de medicação para as dores); as discussões que mantinham diariamente sobre a autorização de residência.
9.– Já em sede de audiência de julgamento, a testemunha relatou, de modo muito empenhado, nervoso e contraditório, que aquando da prestação de declarações para memória futura, se encontrava perturbada pela ideia de o arguido se encontrar num relacionamento com outra mulher e que, por essa razão, declarou anteriormente que os factos tinham ocorrido com o intuito de o prejudicar.
10.– Do exposto, resulta pois estarmos perante versões contraditórias apresentadas pela ofendida, tendo o Tribunal a quo considerado plenamente credíveis as declarações prestadas em sede de memória futura na medida em que, contrapondo ambas as prestações da testemunha, as mesmas foram prestadas de modo espontâneo e genuíno em momento temporalmente mais próximo da factualidade, encontrando particular sustento na prova documental, nomeadamente nos relatórios de apreciação de risco a fls. 88 a 89, 186 a 188, 190 a 192, 217 a 219, 547 a 552, 554 a 559, da colaboração para protecção via teleassistência e respectivo consentimento (fls. 10 a 12, 102 a 106, 221 a 225, 365 a 366, 389 a 391 e 455 a 457), auto de cópia de mensagens SMS de telemóvel, a fls. 306 e respectivo suporte de gravação a fls. 307, acompanhado de transcrição de fls. 670 a ss, salientando-se ainda com particular acuidade que, contrariamente ao ocorrido em sede de julgamento, as declarações prestadas pela testemunha em memória futura encontram-se secundadas pelo relato trazido a juízo pela testemunha CG., que relatou de modo consistente e coerente os factos relatados pela ofendida, que se coadunam com a primeira versão dos factos e não com o relatado em sede de julgamento.
11.– Pese embora a testemunha tenha procurado, em audiência de julgamento, confundir os dois blocos de factualidade (de 2015, apreciado no processo n.º 945/15.3P8LSB, e de 2018), a verdade é que o seu relato não adere à realidade, na exacta medida em que, nos presentes autos, relatou espontaneamente que o arguido lhe apertou o pescoço e lhe desferiu um pontapé pela ocasião de uma discussão ocorrida pela meia-noite, enquanto dos factos provados do sobredito processo resulta a existência de agressões físicas no período da tarde e nunca nocturno, o que gera ao Tribunal reservas em considerar verídica a existência de uma confusão ao relatar factos que já tinham ocorrido.
12.– O Tribunal a quo não olvidou a circunstância da testemunha e do seu agregado familiar se encontrarem na dependência económica do arguido, como causa justificativa do súbito comportamento protectivo do arguido.
13.– Concluiu o Tribunal a quo que as declarações prestadas pela testemunha SP. em sede de declarações para memória futura, eram credíveis, porquanto prestadas de modo genuíno, em detrimento das por si prestadas em sede de julgamento.
14.– Atendeu, ainda, às declarações da testemunha CG.  e da testemunha IC..
15.– Após confrontar as declarações à com toda a prova documental dos autos, em concreto, fls. 3 a 6, 10 a 12, 22, 23, 80 a 89, 102 a 106, 110 a 114, 152 a 160, 186-188, 190 a 192, 217 a 219, 230 a 235, 272, 547 a 552, 554 a 559, 592 a 594, 596 a 598 e 599 a 601, 613, 651 a 666 e fls. 2 a 5 e 6 a 7, do apenso com o n.º 3539/18.8T9LSB, o Tribunal a quo concluiu acertadamente pela prova dos factos acima referidos, não merecendo qualquer censura.
16.– Invoca o recorrente que o Tribunal a quo valorou erradamente depoimentos indirectos das testemunhas de acusação e que, por isso, a prova é nula.
17.– Em concreto e quanto ao depoimento da testemunha CG., estamos perante um testemunho indirecto de uma assistente social, que foi prestado em audiência de julgamento, em que a mesma prestou declarações sobre o que ouviu dizer à própria ofendida (mulher do arguido) que prestou declarações e, ainda, foram refutadas pelo arguido que prestou declarações negando a prática dos factos.
18.– Tendo deposto a pessoa a quem se ouviu dizer, desaparece a proibição de prova de valoração do depoimento de ouvir dizer, pelo que nenhum impedimento se forma para que o tribunal valore o “depoimento indirecto” no processo de formação da sua convicção, nos termos do art.º 127.º do CPP.
19.– Ademais, o conhecimento indirecto da testemunha ouvida em audiência neste caso constitui, nos seus termos, parcialmente, um depoimento directo (pois teve contacto com a ofendida dias após os episódios descritos, tendo constatado o seu estado de espírito, as alterações comportamentais em consequência dos mesmos, cuja genuinidade atestou em confronto com o conhecimento prévio que detinha dos hábitos e rotinas daquele agregado familiar, por via das visitas domiciliárias efectuadas no âmbito das suas funções), constatando-se que esses factos foram percepcionados pelos próprios sentidos da depoente, sem qualquer mediação.
20.– Nestes termos, deve improcede a alegada proibição de valoração da prova.
21.– Alega o recorrente que foi violado o princípio in dubio pro reo.
22.– Para que da violação desse princípio se pudesse falar, seria necessário que o Tribunal a quo tivesse ficado numa situação de dúvida razoável e insanável sobre a prática dos factos imputados ao arguido, o que, não foi o caso dos autos.
23.– Por esta via, o que se verificou não foi a violação do princípio in dubio pro reo, pois que o Tribunal a quo não ficou numa situação de dúvida quanto à prática dos factos por banda do arguido. O que está aqui em causa é uma mera discordância do recorrente em relação à avaliação da prova efectuada pelo Tribunal a quo, limitando-se, a contrapor à convicção alcançada pelo tribunal – expressa nos factos provados – a sua própria, resultante de uma muito pessoal e parcelar análise dos meios de prova.
24.– Deverá, assim, também nesta parte, improceder o recurso.
25.– Entende o recorrente que os factos não se subsumem ao tipo de crime de violência doméstica.
26.– No entanto, em face dos factos dados como provados, é inegável que os mesmos consubstanciam a prática de mau trato psicológico e físico, estando, por essa via, verificados os elementos do tipo objectivo do crime em causa. 
27.– Estando também preenchido o elemento subjectivo do crime em causa pois o arguido actuou motivado pela sua própria vontade e consciente do alcance da sua conduta e das suas consequências.
28.– Entende o recorrente que a medida da pena é manifestamente desproporcionada, face às exigências de prevenção geral e especial e à culpa do arguido, entendendo que estão reunidos os pressupostos para a suspensão da execução da pena de prisão.
29.– Como resulta dos factos provados, à data da sua condenação nos presentes autos o recorrente havia já sido condenado pela prática de um crime de violência doméstica, com a mesma vítima, em pena de prisão suspensa na execução, tendo os presentes factos sido praticados durante o período da suspensão da execução da pena de prisão anteriormente aplicada.
30.– Para a medida concreta da pena, o Tribunal a quo valorou – e bem: o grau de ilicitude dos factos (que configurou como elevado); a intensidade do dolo (directo); os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do arguido e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e posterior a este e os antecedentes criminais.
31.– Foi neste quadro que o Tribunal a quo determinou a medida concreta da pena, mostrando-se a mesma correctamente doseada, nos termos e para o efeito do art.º 71.º do Código Penal.
32.– Finalmente pretende o recorrente que a pena aplicada seja suspensa na sua execução.
33.– Face à medida concreta da pena imposta ao recorrente, é manifesto que se encontra preenchido o pressuposto formal da aplicação do instituto da suspensão da execução da pena de prisão.
34.– No entanto, atendendo à conduta anterior do recorrente – traduzida na condenação pela prática do mesmo crime contra a mesma e a prática dos factos no período da suspensão: o arguido praticou os factos em apreço nestes autos durante o período de suspensão da execução da pena de prisão aplicada no processo n.º 945/15.3P8LSB, – não suporta a formulação de um juízo de prognose favorável sobre o seu comportamento futuro, já anteriormente formulado e notoriamente frustrado.
35.– Acresce que o comportamento do recorrente, avaliado na sua globalidade, traduz uma personalidade manifestamente desajustada das normas jurídicas, desrespeitadora, em especial, dos bens jurídicos integridade física, liberdade de autodeterminação, e, no limite, vida, da vítima denotando uma atitude por parte do arguido demarcada por um sentimento de domínio e desrespeito, de posse e de necessidade de controlo da vítima.
36.– Em face do exposto, não é possível formular sobre o arguido um juízo de prognose favorável, à luz de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização.
37.– Assim, impõe-se concluir que, no caso concreto, a simples censura do facto e a ameaça da prisão não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Termos em que, e, em suma, deve o recurso a que ora se responde ser julgado totalmente improcedente e, em consequência, manter-se a decisão proferida.”

4.– Neste Tribunal da Relação o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso.

5.– Foram colhidos os vistos e realizada a competente conferência.
      
6.– Suscita-se a apreciação das seguintes questões:
- Da impugnação da matéria de facto, do erro notório na apreciação da prova, da contradição insanável entre a matéria provada e não provada, da valoração da prova das declarações da ofendida em audiência e para memória futura, das declarações de “ouvir dizer”, e da violação do princípio in dubio pro reo;
- Do tipo penal do crime de violência doméstica;
- Da medida da pena e da suspensão da execução da pena de prisão.

7.1.– Assim reza a sentença recorrida:

“O Ministério Público acusou, para julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular o arguido:
M., filho de MH. e de MB., natural do Bangladesh, nascido em 20.08.1977, casado, empregado comercial de balcão, residente na Rua AT... Lisboa, em situação de prisão preventiva no Estabelecimento Prisional de Caxias desde 16.04.2018.

Imputando-lhe a prática, como autor material, na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152°, n.° 1, a) e c), 2, do Código Penal, em função dos factos descritos na acusação de fls. 310 a 316 que aqui se dá por integralmente reproduzida.

Pugna pela aplicação de uma pena acessória de proibição de contactos com SP. (artigo 152°, n°s 4 e 5 do Código Penal) e, ainda, pelo arbitramento de uma indemnização por parte do arguido à ofendida, nos termos do artigo 82°-A do Código de Processo Penal e 21° da Lei n.° 112/2009 de 16 de Setembro.

A acusação foi recebida por despacho judicial de fls, 501 e 502 que designou data para a realização da audiência de discussão e julgamento, nos termos do disposto nos artigos 311° e 312º, ambos do Código de Processo Penal.

O arguido M., regularmente notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 315° do Código de Processo Penal, não contestou nem arrolou testemunhas.

Procedeu-se a julgamento, com obediência de todas as formalidades legais„ sendo que no decurso do mesmo foi, desde logo, determinada a comunicação ao arguido de uma alteração não substancial de factos, em obediência ao disposto no artigo 358°, n° 1, do Código de Processo Penal, para que, querendo, exercesse o seu direito de defesa, sob pena de nulidade da sentença por força do artigo 379°, n° 1 b) do Código de Processo Penal, cujo conhecimento é oficioso — artigo 379°, n° 2 do mesmo diploma legal, nos termos e com os fundamentos da acta que antecede. O arguido, devidamente notificado prescindiu de prazo para defesa.

III—Fundamentação.

Factos provados:
Da produção da prova e da discussão da causa o Tribunal considerou provados os seguintes factos:
1)– O arguido M. é casado com SP., há cerca de dez anos, tendo nascido desse casamento três filhos: MS., no dia 04.09.2009, HP., no dia 13.12.2012, e SM. , no dia 11.04.2016;
2)– O arguido M. e SP. residem em Portugal desde 2011, tendo fixado residência, primeiro na zona da Ameixoeira, em Lisboa, e desde 2012 na Rua…, em Lisboa;
3)– Por sentença proferida no processo melhor identificado em 39.1), foi o arguido M. condenado pela prática, nos anos de 2015 e 2016 e na pessoa de SP., de, além do mais, um crime de violência doméstica;
4)– Em data indeterminada, o arguido M. manteve relação sexual com SP., contra a vontade desta, a qual lhe provocou e sofrimento psíquico;
5)– O arguido M. discutiu várias vezes com SP., por qualquer motivo, culpabilizando a mesma de todas situações, assumindo uma postura agressiva que lhe causava mal-estar;
6)– No dia 31.03.2018, no interior da casa onde residiam na R. esquerdo, em Lisboa, e quando ambos se encontravam no quarto SP. questionou o arguido M. sobre a sua relação com outra mulher e o arguido iniciou uma discussão com a ofendida e na sequência dessa discussão apertou-lhe o pescoço para evitar que fizesse barulho e desferiu um pontapé que a atingiu no peito enquanto a ameaçava de morte;
7)– Tal conduta provocou fortes dores a SP. ;
8)– O comportamento do arguido M. provocou em SP. um constante estado de pânico e terror que a faz temer pela sua vida e integridade física e tendo por isso manifestado o desejo de se divorciar, situação que o mesmo não aceitou;
9)– No dia 02.04.2018, na Rua AT... em Lisboa, o arguido M.  discutiu com SP., culpando-a de ele ainda não ter recebido os seus documentos de autorização de residência e disse-lhe que a matava, assim como toda a sua família, caso não recebesse a autorização de residência;
10)– O arguido M. acabou por abandonar a residência;
11)– Após SP. ter efectuado denúncia na polícia em 04.04.2018, o arguido M., pediu para a mesma retirar a denúncia;
12)– A partir desta data, os pais do arguido M. têm feito chamadas de voz para pressionar SP. para retirar a queixa;
13)– SP. teve medo de sair à rua e deixou de levar os seus filhos à escola, por sentir medo que o arguido M. pudesse atentar contra a sua integridade física, ou à dos seus filhos;
14)– O arguido M., com as condutas descritas, quis ofender SP. na sua honra e dignidade, na sua integridade física e psicológica e, na sua liberdade pessoal para que esta se sentisse lesada na sua dignidade enquanto ser humano e sua esposa, o que igualmente conseguiu;
15)– O arguido M.  quis atingir e lesar o corpo e a saúde de SP., sabendo que dessa forma lhe causaria dores e lesões;
16)– O arguido M., ao ameaçar SP., fê-lo com o propósito de, com o anúncio daquele mal, provocar, directa e necessariamente medo naquela, o que conseguiu criando-lhe um clima constante de ansiedade que a tem impedido de viver uma vida normal, actuando sem qualquer apreço ou respeito pela pessoa de SP., sua cônjuge;
17)– Agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que as suas condutas são proibidas e punidas por lei penal e, não obstando não se coibiu de as praticar;

Ficou ainda provado para efeitos da situação pessoal do arguido que:
18)– M. é natural de C., Bangladesh, onde residiu com os progenitores até aos trinta e dois anos de idade;
19)– É o segundo mais novo de uma fratria de três irmãos;
20)–Expressa-se em língua inglesa e bangla, possuindo conhecimentos rudimentares de português;
21)– A família do Arguido (progenitores e irmãs) reside no Bangladesh;
22)– Cresceu num ambiente familiar estruturado, sem dificuldades económicas, pautado pela afectividade entre os membros do agregado;
23)– Concluiu o 4° ano de faculdade e frequentou um ano de mestrado em marketing;
24)– Em 2009, viveu em Londres com o objectivo de concluir uma pós-graduação em gestão de empresas;
25)– Em 2011, mudou-se para Portugal com a sua família, vivendo, desde 2012, na zona do Martim Moniz;
26)– Encontra-se detido no Estabelecimento Prisional de Caxias desde 16.04.2018, em cumprimento da medida de coacção de prisão preventiva decretada nos presentes autos;
27)– Não tem registo de infracções disciplinares em meio prisional e revela comportado adequado;
28)– Anteriormente à situação de reclusão, encontrava-se a pernoitar sozinho na sua loja, sita na Rua AT..., em Lisboa;
29)– Estava separado da sua família, a qual habita na Rua..., Lisboa;
30)– Tem um rendimento mensal de cerca de €2.500 (dois mil e quinhentos euros) da exploração da sua loja;
31)– É o único elemento do agregado familiar que se encontra profissionalmente activo, dependendo o seu agregado do rendimento por si obtido;
32)– Aufere, ainda, um subsídio pago pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa de cerca de €300,00 (trezentos euros) mensais;
33)– O agregado familiar tem como despesas mensais cerca de €500,00 (quinhentos euros) pela renda da loja e €300,00 (trezentos euros) pela renda da habitação sita na Rua O...;
34)– O filho mais velho frequenta uma escola particular em Palmela, cuja mensalidade é de cerca de €230,00 (duzentos e trinta euros), a qual é paga pelo cunhado e para a qual contribui ocasionalmente;
35)– O seu agregado familiar é economicamente ajudado pelos seus progenitores;
36)– Antes da separação referida em 29), o agregado familiar era composto pelo próprio, o cônjuge SP., e os três filhos (dois filhos, de idades de nove e dois anos e uma filha com seis anos de idade);
37)– À data da detenção, habitavam com o seu agregado familiar, há cerca de dois anos, a sua cunhada, o cunhado e o filho destes, os quais pagavam mensalmente cerca de €150,00 (cento e cinquenta euros) a título de renda;
38)– O cunhado e a cunhada trabalham num restaurante, contribuindo para as despesas domésticas.

39)– M.  tem os seguintes antecedentes criminais:
39.1)- Uma condenação no âmbito do processo n.° 945/15.3P8LSB, que correu termos no J10 da Local Criminal do Tribunal de Lisboa de 10.05.2017, transitada em julgado a 09.06.2017, pela prática, em 2015 e 2016, de um crime de violência doméstica, p. e p. artigo 152º, n° 1, al. a) e n° 2 do Código Penal, na pena parcial, de três anos e oito meses de prisão, e de dois crimes de ameaça agravada, p.p. artigo 151°, n° 1 e 155°, n° 1, al. a) do Código Penal, na pena parcial de dez meses de prisão para cada crime, tendo sido determinado, em cúmulo jurídico, a aplicação da pena única de quatro anos e oito meses de prisão, suspensa na execução por igual período e sujeita ao cumprimento de regime de prova e à condição do Arguido frequentar programa para agressores em espaço doméstico, adequado às suas barreiras linguísticas.

III.2–Factos não provados:
Não resultaram provados os seguintes factos com interesse para a boa decisão da causa:
a)- Que durante o relacionamento, o arguido M.  tivesse agredido várias vezes com socos, bofetadas e apelidado SP. de "vaca", "cadela", "puta", "estúpida" e o pai de 'cão' e de `má pessoa
b)- Que SP. acedesse à prática de relações sexuais com o arguido M.  com medo de ser agredida;
c)- Que, por diversas vezes, em datas indeterminadas, mas após 09.06.2017, o arguido M. tivesse mantido relações sexuais com SP. , contra a sua vontade e praticadas com violência, pedindo SP. a M.  para praticar o acto sexual mais devagar ou parar porque a magoava, o que o arguido não respeitava;
d)- Que as práticas sexuais realizadas pelo arguido M. com SP. e referidas em c) lhe tivessem causado lesões e hematomas na zona genital desta, bem como, sofrimento físico e psicológico;
e)- Que o arguido M. tivesse passado a contactar com outras mulheres dizendo que era divorciado;
f)- Que o arguido M. dissesse às pessoas com quem contactava que SP. era má pessoa, que não prestava e que tinha outros homens;
g)- Que na situação descrita em 6), o arguido M. tivesse desferido várias bofetadas com as costas da mão, que a atingiram nas faces;
h)- Que o arguido M.  não tivesse aceite o divórcio por ser contrário à sua cultura, educação e religião;
i)- Que a situação descrita em 10), tivesse ocorrido porque a irmã de SP. e o cunhado foram viver com a mulher do arguido;
j)- Que a situação descrita em 11) tivesse sido praticada pelo arguido M.  após deslocar-se à residência do casal aos gritos, tendo dito que se SP. não o fizesse o que pediu, matava toda a sua família, e que, em seguida, se suicidava;
k)- Que os contactos referidos em 12) tivessem sido realizados pelos números 0088..........81 e 088.........79 (ambos do Bangladesh) e pela aplicação Facebook Messenger.
Os demais parágrafos constantes nas peças processuais em apreço e não descritos nos factos provados e não provados integram matéria meramente conclusiva, de Direito, manifesta redundância ou repetição dos factos já elencados, razão pela qual foram expurgados da presente decisão.

111.3–Motivação da decisão de facto:
Para apurar a factualidade assente, não basta enumerar os meios de prova, antes se impondo a "explicitação do processo de formação da convicção do tribunal' — acórdão da Relação de Coimbra n.° 680/98, de 02 de Dezembro, por forma a permitir uma compreensão "do porquê da decisão e do processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo decisório" ¬acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.° 406/99 3AS de 12 de Maio, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.

Esse processo de convicção do Tribunal formar-se-á, não só com os "[...] dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, mas também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das ratões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de vos (im)parcialidade, serenidade, [...] "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos" — acórdão da Relação de Coimbra de 10.01.2005, disponível in www.dgsi.pt.

Tendo em conta as considerações que se acaba de tecer, consigna-se que, na formação da sua convicção, o Tribunal fundou-a com base na apreciação crítica da prova feita em audiência de julgamento, designadamente, as declarações prestadas pelo arguido M.  em sede de primeiro interrogatório judicial e em sede de audiência de discussão e julgamento; nas declarações prestadas para memória futura pela testemunha SP., bem como, nas prestadas na audiência de discussão e julgamento; no depoimento das testemunhas CG.  e IC., as quais foram criticamente conjugados com a seguinte prova documental:
– Auto de denúncia da Polícia de Segurança Pública, de 04.04.2018, NPP 160818/2018, a fls. 3 a 6 e 80 a 83;
– Proposta para sinalização para teleassistência, de 06.04.2018, a fls. 10 a 12 e 102 a 106;
– Proposta de atribuição de estatuto de vítima, de 04.04.2018, a fls. 22 a 23 e 84 a 85;
– Certidão de sentença proferida no processo n.° 945/15.3P8LSB do J10 da Local Criminal do Tribunal de Lisboa, com menção da data de trânsito em julgado, a fls. 651 a 666;
– Ficha de avaliação de risco para situações de violência doméstica, de 04.04.2018, 06.04.2018, 12.04.2018, 24.04.2018, 28.08.2018, 10.09.2018, a fls. 88 a 89, 186 a 188, 190 a 192, 217 a 219, 547- a 552, 554 a 559;
– Relatório escolar de M., da Escola …, de fls. 110 a 113
– Print do sistema de registo de armas, de 06.04.2018, a fls. 114;
– Auto de primeiro interrogatório judicial e respectivo suporte de gravação de 16.04.2018 (cfr. artigo 141°, n.°4, b) do Código de Processo Penal), a fls. 152 a 160;
– Certidão de assento de nascimento de SM.  e HP., de fls. 198 a 199;
– Termo de responsabilidade de teleassistência, de 28.04.2018, a fls. 221 a 225;
– Auto de declarações para memória futura, de 15.05.2018 (cfr. artigo 21°, n.1, d) e 24° do Estatuto de Vítima Especialmente Vulnerável, artigo 33° da Lei n.° 112/2009de 16 de Setembro, e artigo 271° do Código de Processo Penal), a fls. 230 a 235;
– Informação do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, de 15.05.2018, a fls. 272;
- Consentimento para utilização de meios de vigilância electrónica para fiscalização à distância, de 28.06.2018, a fls. 365 a 366, 389 a 391 e 455 a 457;
– Informação sobre o arguido de violência doméstica e fiscalização da proibição de contactos, de 13.07.2018, de fls. 367 a 369, 384 a 388 e 450 a 454;
– Certificado de registo criminal a fls. 541 e 667;
– Relatório social elaborado pela Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais de 03.10.2018, de fls. 592 a 594, 596 a 598 e 599 a 601;
– Guia de recluso de 01.102018, a fls. 613;
– Auto de cópia de mensagens SMS de telemóvel, de 29.05.2018, a fls. 306 e respectivo suporte de gravação a fls. 307, acompanhado de transcrição de fls. 670 e ss, cuja tradução foi efectuada em audiência conforme resulta da acta que antecede;
Do apenso com o n.° 3539/18.8T9LSB:
– Relatório da Associação PP de 16.04.2018 referente a acompanhamento dos menores filhos do arguido em sede de sinalização para processo de promoção e protecção, a fls. 2 a 5 e 6 a 7.
O Tribunal conjugou ainda a referida prova com a seguinte prova pericial:
– Relatório da perícia de avaliação do dano corporal em Direito Penal do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, LP n.° MLPN1 de 05.04.2018, a fls. 303 a 304.

Do elenco das provas enunciadas e da análise crítica das mesmas, no confronto das testemunhas e dos documentos juntos aos autos, concretizemos, embora de forma sucinta, em que precisos termos se formou a convicção do Tribunal relativamente aos factos submetidos a julgamento.

O arguido M.  prestou declarações em sede de audiência de discussão e julgamento no que respeita à sua condição de casado e aos filhos, bem como, no que respeita à sua situação pessoal, factos que não foram contraditados por qualquer outro meio probatório e nessa medida lograram convencer o Tribunal da sua veracidade (de resto, consonantes com o declarado em sede de primeiro interrogatório judicial (cfr. fls. 152 a 160 - meio probatório valorável nos termos do artigo 141.°, n.°4, b) do Código de Processo Penal).

No mais, o arguido prestou declarações negando a prática da totalidade dos factos de que vem acusado, bem como, o circunstancialismo relatado na acusação, referindo expressamente nunca ter agredido física ou verbalmente a ofendida, desde logo, face ao facto de ter sido condenado em processo anterior por prática de ilícito da mesma natureza o que lhe demandava especiais cautelas nas relações que mantinha com a ofendida.

Assim, justificou a sua saída de casa em dia 26.03.2018 com uma discussão que manteve com SP. porque se encontrava com problemas na relação dado que discutiam frequentemente "por causa das compras de casa” (sic) como forma de evitar o conflito, que só soube da existência da queixa após se encontrar recluso, referindo, por fim, que não pediu demência nas cartas manuscritas remetidas aos autos, mas antes justiça na apreciação do seu caso.

Por fim, e de modo a contextualizar a actuação do cônjuge, o arguido caracterizou ainda SP. como uma pessoa desintegrada social e profissionalmente, declarando que a considera "triste" (sic), o que associa às condições financeiras do agregado familiar.
Entrecruzando a factualidade relatada pelo arguido com a prova existente nos autos, o Tribunal considera que a versão apresentada não se mostra credível porquanto se encontra directamente contraditada por outros elementos probatórios e pelas regras da experiência comum, nos termos que adiante melhor se demonstrarão.

Vejamos:

Quanto à testemunha SP., cônjuge do arguido e ofendida nos autos, a mesma prestou declarações em sede de audiência de discussão e julgamento e aquando da tomada de declarações para memória futura, nos termos do artigo 33° da Lei n.° 112/2009 e 271° do Código de Processo Penal (atendíveis como meio probatório nos termos dos artigos 355.°, n.°1 e 2 e 356.°, n.°2, al. a) do Código de Processo Penal, não sendo legalmente exigível a sua reprodução em sede de audiência de discussão e julgamento para que sejam valoradas como prova — cfr. acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.° 8/2017, de 11.10.2017, disponível in www.dgsi.pt).

Neste particular, a testemunha SP. prestou depoimentos contraditórios entre si e no essencial, nos seguintes termos:
Em sede de declarações para memória futura, relatou, com detalhe e tranquilidade (ainda que pontualmente tenha revelado dificuldades inerentes à necessidade de tradução do que lhe questionado, circunstância que não afastou a sua credibilidade no momento mas determinou a explicitação em pormenor das perguntas que eram dirigidas): as circunstâncias em que a declarante e o agregado familiar viviam, dependentes do arguido; o que arguido lhe disse responsabilizando-a por não ter recebido a autorização de residência e as ameaças que lhe foram dirigidas em consequência desse facto; as circunstâncias de tempo, lugar, modo e as razões pelas quais discutiram em casa; as agressões físicas de que foi alvo nesse circunstancialismo (um pontapé no peito e aperto de pescoço para que esta não fizesse barulho durante a contenda); as circunstâncias de tempo, lugar, modo e as razões da discussão na loja do arguido, bem como, as ameaças ali proferidas; os efeitos que isso provocou na declarante; a situação em que se viu forçada a manter contra a sua vontade relação sexual com o arguido e as consequências daí advenientes (referiu a toma de medicação para as dores); as discussões que mantinham diariamente sobre a autorização de residência.

Já em sede de audiência de julgamento, a testemunha relatou, de modo muito empenhado, nervoso e contraditório, que aquando da prestação de declarações para memória futura, se encontrava perturbada pela ideia do arguido se encontrar num relacionamento com outra mulher e que, por essa razão, declarou à data factos que não tinham ocorrido com o intuito de o prejudicar. De facto, ao longo do seu depoimento, referiu, por diversas vezes, que pretendia que o marido fosse libertado e regressasse a casa, tendo negado, quase em bloco, os factos descritos na acusação e por si referidos em sede de declarações para memória futura.

Assim, ao ser instada, negou peremptoriamente que o arguido a tivesse agredido nas situações descritas na acusação (tendo, neste particular referido que o pontapé que a atingiu no peito e a ameaça de morte ocorreram antes da condenação que já sofreu por factos anteriores, ou seja, em 2016); a ocorrência de relações sexuais sem consentimento (disse que apenas ficava pensativa por achar que o marido tinha uma amante); a existência de lesões sofridas em consequência desses actos; a ocorrência de discussões em que o arguido a ameaçou de morte ou qualquer outro acto consubstanciador de mau-trato físico e psicológico praticado pelo arguido contra a sua pessoa (referiu que a apenas a empurrou numa única situação por causa do seu telemóvel) e manteve tal relato mesmo após ter sido confrontada - inicialmente - com a possibilidade de se sentir desconfortável pelo facto de estar a prestar declarações na presença do marido, o que negou, tendo referido espontaneamente que nada tinha a esconder ou a recear, e - posteriormente - com o teor do que disse em sede de declarações para memória futura, embora nunca tenha reconhecido aquelas declarações como inverdades e mentiras quando confrontada com essa possibilidade.

Ora, conforme resulta à saciedade, ambas as versões apresentadas pela testemunha SP. são contraditórias, tendo a declarante relatado em Tribunal um facto e o seu contrário em momentos distintos, ou seja, aquando da prestação de declarações para memória futura, cerca de um mês após a data da ocorrência dos factos, a testemunha relatou ter sido alvo de factualidade susceptível de integrar o crime de que o arguido vem acusado, sendo que em sede de audiência de discussão e julgamento, a testemunha declarou que os factos que constam da acusação não correspondem à verdade, mas fê-lo em moldes pouco credíveis pois a sua versão, agora em sede de audiência, revela fracos alicerces e nenhuma sustentabilidade.

A este propósito, impõe-se, tecer algumas considerações sobre a prova obtida por via das declarações para memória futura e qual a sua valoração.

A respeito da valoração desta prova, importa porém, tecer algumas considerações. Por força do artigo 124°, n.°1 do Código de Processo Penal: "constituem objecto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime".

Por outro lado, nos termos do artigo 125° daquele diploma: "são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei".

Nos termos do artigo 127° do mesmo Código, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.

Ora, a recolha de declarações para memória futura corresponde a uma excepção ao princípio da imediação da produção de prova em sede de audiência de discussão e julgamento, o qual corresponde a um princípio basilar do processo penal português artigo 355.°, n.°1 e 2 do Código de Processo Penal - destinando-se, simultaneamente, a vincular o Tribunal a decidir de acordo com a prova produzida em julgamento, assim como, a garantir que toda a prova considerada e valorada pelo Tribunal passe pelo crivo da contradita de todos os intervenientes processuais. Aliás, é exactamente nesse sentido que a Convenção Europeia dos Direitos do Homem consagra o direito do acusado a "interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e obter a convocação e o interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições que as testemunhas de acusação" — art.º 6.°, n° 3, al. d) da Convenção.

Neste seguimento, tem sido entendimento pacífico do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que, de modo a permitir a existência de um processo equitativo, as provas devam ser, preferencialmente, produzidas em audiência pública, perante o acusado e procurando-se a sua produção em ambiente contraditório — cfr., CRUZ BUCHO, in `Declarações para memória futura', 2002, disponível in haps: / /www.trg.pt/ ficheiros/estudos/declaracoes_para_memoria_futura.pdf, 155.

Não obstante a mencionada regra geral, tem o referido Tribunal entendido como admissível, em circunstâncias particulares, que o Tribunal de julgamento considere como meio de prova elementos probatórios produzidos fora da audiência de julgamento: "[...] inicialmente pensado pelo legislador como meio preventivo de recolha de prova susceptível de perder-se ou inviabilizar-se antes do julgamento, o âmbito da recolha das declarações para memória futura foi posteriormente ampliado, já não para prevenir o perigo de perda da prova, mas para protecção das vítimas, especialmente dos menores [...)", sendo que, no caso do regime particular da violência doméstica, busca-se, pelo regime, impedir que seja colocada em risco a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar, caso em que, caso seja possível a prestação de declarações, esta poderá ser convocada a prestá-las (artigos 21°, n.1, d) e 24° do Estatuto de Vítima Especialmente Vulnerável, e artigo 33.°, n.°7 da Lei n.° 112/2009 supra citada). — cfr., neste sentido, HENRIQUES GASPAR, ANTÓNIO e OUTROS in 'Código de Processo Penal Comentado', Almedina, 2014, pg.963 e ss.

Aqui chegados e analisado conjuntamente o regime jurídico previsto nos artigos 271°, 355° e 356° do Código de Processo Penal, artigos 21°, n.1, d) e 24° do Estatuto de Vítima Especialmente Vulnerável, e artigo 33° da Lei n.° 112/2009 supra citada, ainda que seja clara a preferência do legislador pela prova produzida em sede de julgamento, atenta a produção de prova com imediação de grau superior, não resulta, de modo algum, a exclusão da valoração das declarações prestadas a título de memória futura quando, em momento posterior, o declarante preste depoimento em sede de julgamento, especialmente se se tiver em atenção o fim primeiro dessas declarações — evitar a perda da prova que, se mais próxima dos factos terá de ser, necessariamente, mais fidedigna. Deste modo, na posse de ambos os elementos, deve o julgador valorar livremente a prova produzida, atento o seu contexto e a bondade dos elementos que lhe atribuam credibilidade, sem prejuízo do dever de fundamentação que impede sobre o julgador na apreciação da prova, nos termos já enunciados — cfr. artigo 127.° do Código de Processo Penal.

Revertendo às declarações prestadas pela testemunha SP., impõe-se consignar que, considerando o modo como as declarações foram prestadas e registadas — através de sistema áudio e vídeo conforme fls. 230 a 235, com a presença do Ilustre Defensor do arguido, o qual teve a oportunidade que contraditar in loco as declarações prestadas, e as quais se encontraram permanentemente ao dispor dos intervenientes processuais -, considera o Tribunal que se encontra obviada qualquer quebra no princípio da imediação que limitasse a apreciação daquele meio probatório e que, prima fade, pudesse conduzir a uma maior credibilização da prova produzida perante o Tribunal. Dito isto, resta atender ao teor e ao contexto.

Ingressando directamente no que interessa, considera o Tribunal que são merecedoras de plena credibilidade as declarações prestadas por SP. em sede de memória futura na medida em que, contrapondo ambas as prestações da testemunha, as mesmas foram prestadas de modo espontâneo e genuíno em momento temporalmente mais próximo da factualidade relatada, encontrando particular arrimo na prova documental constante dos autos que sobeja, nomeadamente nos relatórios de apreciação de risco a fls. 88 a 89, 186 a 188, 190 a 192, 217 a 219, 547 a 552, 554 a 559, da colaboração para protecção via teleassistência e respectivo consentimento (fls. 10 a 12, 102 a 106, 221 a 225, 365 a 366, 389 a 391 e 455 a 457), auto de cópia de mensagens SMS de telemóvel, a fls. 306 e respectivo suporte de gravação a fls. 307, acompanhado de transcrição de fls. 670 a ss, cuja tradução foi efectuada em audiência conforme resulta da acta que antecede, salientando-se ainda com particular acuidade que, contrariamente ao ocorrido em sede de julgamento, as declarações prestadas pela testemunha em memória futura encontram-se secundadas pelo relato trazido a juízo pela testemunha CG., que relatou de modo consistente e coerente os factos relatados pela ofendida, que se coadunam com a primeira versão dos factos e não com o relatado em sede de julgamento, donde se afasta liminarmente, porque refutado, o argumento de que a testemunha se encontrava perturbada aquando daquelas declarações, na exacta medida em que esse estado de "perturbação" perdurou no tempo e em contexto diverso, sendo consentâneo com as regras da experiência comum e de razoabilidade que a testemunha tenha declarado então os factos como efectivamente ocorreram e que, agora, pretenda inverter o sentido declarativo de modo permitir a concretização do expressado desejo de colocação do arguido em liberdade e regresso do mesmo a casa porque, como referiu, 'tem saudades do mesmo e tem os filhos muito pequenos em casa que sentem a falta do pai' (sic).

Quanto a este último aspecto, faz notar o Tribunal que, considerando a natureza do ilícito, procurou dar cumprimento aos artigos 20°, n.°2 e 22.° da Lei n.° 112/2009, de 16 de Setembro, bem como, ao artigo 352.", n.°1, al. a) do Código de Processo Penal, tendo a declarante manifestado espontaneamente a sua vontade em prestar declarações na presença do arguido, conforme já se referiu, não obstante o Tribunal tenha diligenciado em sentido diverso.

Aliás, não pode o Tribunal deixar de notar como inverosímil a existência de um efectivo estado de confusão na declarante na exacta medida em que a testemunha, ao prestar declarações, não se furtou de se socorrer espontaneamente de detalhes que não lhe houveram sido questionados pelo Tribunal, tendo ainda corrigido o seu próprio discurso quando encontrou lapsos (ao relatar um facto ocorrido em 2015), salientando-se ainda, ao longo do discurso, o cuidado da declarante ao intervir na tradução realizada pela intérprete quando considerava que não correspondia aquilo que queria dizer (recorde-se que a declarante percebe a língua portuguesa de modo limitado), bem como, ao abordar directamente o tribunal em língua inglesa. De igual modo, importa fazer notar que, pese embora a testemunha tenha procurado, em audiência de julgamento, confundir os dois blocos de factualidade (de 2015, apreciado no processo n.° 945/15.3P8LSB, e de 2018), a verdade é que o seu relato não adere à realidade, na exacta medida em que, nos presentes autos, relatou espontaneamente que o arguido lhe apertou o pescoço e lhe desferiu um pontapé pela ocasião de uma discussão ocorrida pela meia-noite, enquanto dos factos provados do sobredito processo resulta a existência de agressões físicas no período da tarde e nunca nocturno, o que gera ao Tribunal reservas em considerar verídica a existência de uma confusão ao relatar factos que já tinham ocorrido.

Não pode, igualmente, o Tribunal olvidar na apreciação crítica efectuada a circunstância da testemunha e do seu agregado familiar, conforme resultou apurado na factualidade, se encontram na dependência económica do arguido porquanto a subsistência do agregado encontra-se fortemente subordinada à reintegração do mesmo no agregado, o que pode explicar e justificar este súbito comportamento protectivo do arguido.

Em contraposição, a versão apresentada pela testemunha em julgamento não se apresenta fundada em qualquer outro elemento probatório, sendo certo que a única pessoa que presenciou parte da factualidade, para além do arguido e da testemunha, optou por não prestar depoimento nos termos legalmente vigentes (por ser familiar do arguido — cunhada), não existindo qualquer meio probatório que conduza o Tribunal para juízo diverso que não a credibilização das declarações prestadas pela testemunha SP. em sede de declarações para memória futura na exacta medida em que se mostrem asseverados por outros meios de prova e que, por outro lado, se coadunem, após juízo crítico, com as regras da experiência comum e condições de normalidade.

Concluindo, considera o Tribunal como globalmente credíveis as declarações prestadas pela testemunha SP. em sede de declarações para memória futura, porquanto prestadas de modo genuíno.

A testemunha CG., assistente social e anteriormente técnica gestora da associação PP., relatou em juízo, de modo isento, espontâneo, detalhado e genuíno, tendo por isso merecido a plena credibilização por parte do Tribunal, a circunstância do acompanhamento realizado do agregado familiar do arguido durante os anos de 2017 e 2018, os sentimentos e convicções transmitidas por esta entre Maio de 2017 e Junho de 2018 e a mudança de percepção de SP., bem como, as mudanças de comportamento percepcionadas, que se deviam ao medo que SP. lhe foi transmitindo que sentia de que o arguido concretizasse as ameaças. A testemunha referiu especialmente que, em Abril de 2018, SP. lhe revelou, de forma emocionada (chorando nervosamente, o que foi percepcionado como comportamento genuíno pela declarante) que tinha sido alvo de agressões por parte do arguido, originadas por uma discussão relativa à atribuição de autorização de residência a SP. e aos filhos, bem como, da existência de ameaças de morte da própria e dos familiares, e de uma tentativa de contacto sexual contra a sua vontade, tendo ainda afirmado que 'andava a fugir do arguido com os meninos porque que tinha medo que lá aparecesse' (sic), justificação que apresentou para o facto de não se encontrar na habitação nas datas em que ocorreram as tentativas de contacto pela associação com a mesma. Segundo referido pela testemunha, a ofendida asseverou a quebra da relação e a vontade de se divorciar do arguido e seguir com a sua vida pois o marido tinha-lhe dito 'que não precisava da mulher nem dos filhos' (sic).

A testemunha relatou ainda, com detalhe suficiente para merecer a credibilização do Tribunal, que em momento posterior a Abril de 2018 constatou uma mudança de atitude de SP. que subitamente se tornou mais complacente com o comportamento do arguido dando mostras de que pretendia que o mesmo regressasse ao lar, o que a testemunha associou às dificuldades identificadas na mesma em suprir sozinha as necessidades do seu agregado familiar.

O relato formulado pela testemunha, cuja credibilidade intrínseca resulta do modo sereno como o depoimento foi prestado, é externamente corroborado pelas declarações prestadas por SP. em sede de declarações para memória futura e que, se analisadas criticamente perante as versões oferecidas em confronto, permite a valorização positiva das declarações para memória futura e do declarado pela testemunha CS., conjugadamente com os elementos documentais existentes nos autos (mormente, relatório a fls. 2 a 5 e 6 a 7 do apenso por linha e, de entre outros, consentimento para utilização de meios de vigilância electrónica para fiscalização à distância, a fls. 365 a 366, 389 a 391 e 455- a 457).
Quanto à valoração do seu testemunho importa referir o regime do depoimento indirecto.

Vejamos:

O artigo 128°, n°1 do Código de Processo Penal dispõe que, "a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto da prova".

Por sua vez, o artigo 129º, n°1 daquele diploma, sob a epígrafe de 'depoimento indirecto' dispõe que, "se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas". O que se pretende com tal proibição é que o Tribunal não acolha como prova um depoimento que se limita a reproduzir o que se ouviu dizer a outra pessoa que é possível ouvir directamente.

Este entendimento tem subjacente, conforme esclarece a jurisprudência e a doutrina, a ideia de que a utilização e valoração dos testemunhos de ouvir dizer é incompatível com um processo de estrutura acusatória, por ser contrária aos princípios da imediação e de contra interrogatório em julgamento já supra mencionados a propósito das declarações para memória futura para onde se remete, sendo certo que o artigo 32°, n.°5 da Constituição da República Portuguesa dispõe que o processo penal tem estrutura acusatória, sendo por isso incompatíveis com aquela e inderrogavelmente excluídos, os testemunhos de ouvir dizer. — cfr. PROFESSOR COSTA ANDRADE citado por MAIA GONÇALVES in "Código de Processo Penal Anotado", Almedina, 15' edição, pg. 322; acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 06.05.1999, in CJ S, 207; da Relação do Porto de 25.06.2008 e de 29.03.2006, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.

Assim, tem defendido parte da jurisprudência que, da conjugação dos supra citados artigos resulta, pois, que embora o testemunho directo seja a regra, o depoimento indirecto não é, em absoluto, proibido.

A lei processual penal tem em vista as garantias de defesa do arguido, com destaque para o direito ao contraditório: ter conhecimento directo de um facto, ocorre quando dele se teve percepção através dos sentidos, isto é, quando se apreende o facto por contacto imediato com ele por intermédio de qualquer dos órgãos sensoriais.

Diversamente, no depoimento indirecto a testemunha refere meios de prova; aquilo de que se apercebeu foi de outros meios de prova relativos aos factos (o relato de um facto com base num conhecimento que se obteve através de outrem - testemunho de ouvir dizer - ou por elementos informativos que não se colheu de forma imediata).

Ou seja, para alguns, não existe, na lei nacional, uma proibição absoluta do testemunho de ouvir dizer (hearsqy evidence rule). O princípio hearsay is no evidence (ouvir dizer não constitui prova) sofre, assim, limitações. E, com isso, o processo penal continua a assegurar todas as garantias de defesa. Continua a ser a due process of law, pois a disciplina contida no referido artigo 129°, n° 1 do Código de Processo Penal não viola o princípio da estrutura acusatória do processo, nem o da imediação, nem a regra do contraditório se o Tribunal ao mesmo tempo que admite o testemunho de ouvir dizer, impõe que as pessoas referenciadas nesse depoimento sejam, elas próprias, chamadas a depor. Garantida a imediação e possibilitada a cross-examination, fica plenamente garantido o contraditório, o que é garantia de melhor apreciação da prova.

Assim, sendo a audiência de julgamento o local de produção da prova e o interrogatório do arguido o momento adequado para este contar a sua versão dos factos, infirmar versão contrária ou prejudicial à sua defesa ou apresentar argumentos que permitam afastar a sua veracidade, deve o Tribunal dar ao arguido para, querendo, designadamente, refutar o teor daquelas declarações.

Como é óbvio, o silêncio do arguido jamais pode significar uma confissão tácita ou uma presunção de culpa, não obstante, também não traduz uma demonstração de inocência. Será antes um 'nada, pois significa apenas que aquele não toma posição ou não apresenta uma versão sobre os factos em apreço.

Não suscitará dúvidas a valoração do depoimento da testemunha de ouvir-dizer —qualquer que seja o seu resultado probatório na formação da convicção do julgador —desde que este (arguido) preste declarações e, maxime, corrobore a versão daquela, mesmo não significando uma confissão integral e sem reservas. De igual modo, mesmo que a confirmação do arguido não seja completa, mas significativa, não deixará de conferir relevância probatória ao testemunho indirecto. Assim, não parece defensável proibir a valoração do depoimento indirecto quando o arguido - confrontado com o mesmo — presta declarações, mas contraria as afirmações, não subsistindo qualquer dúvida de que, tratando-se de prova testemunhal directa, o silêncio do arguido não preclude a produção nem a valoração desta nem a de qualquer outro meio de prova.

Na verdade, como bem explica, a este respeito, CARLOS ADÉRITO TEIXEIRA, PROCURADOR DA REPÚBLICA, porque o arguido é interessado no desfecho do 'caso, contrariamente à testemunha que, por definição, não o é, pode, por conseguinte, gerir as contingências da prova — falando ou calando-se — consoante a tendência da prova sem, tão pouco, se lhe pedir a coerência da versão, lealdade ou descoberta dever de descoberta da verdade. Sabendo o arguido que está inocente e desejando, por isso mesmo, que se alcance a verdade, humanamente é difícil conceber uma hipótese em que aquele 'deixe correr o marfim, sem intervir, sem procurar esclarecer o tribunal da desfaçatez da imputação... Mais frequente a situação de o arguido, sabendo da sua responsabilidade criminal (e é inequívoco que ele é que verdadeiramente sabe), é natural que a sua postura e interesse sejam opostos à prossecução da verdade e, bem assim, à produção da 'melhor prova disponível'. E como a melhor prova disponível seria a sua audição, enquanto pessoa fonte' de declarações pretensamente incriminatórias que algum dia ter ele proferido, manda o seu interesse que não fale e, assim, o seu silêncio teria por virtualidade inibir a utilizabilidade da prova indirecta e por eventual consequência a formação de uma verdade, naturalmente formal, as mais das vezes contrária à convicção do julgador. [...] — cfr., "Depoimento Indirecto e Arguido; Admissibilidade e Livre Valoração versus Proibição da Prova", (Capítulo: depoimento indirecto versos direito ao silêncio), in Revista do CEJ, n.°2, pg.s 165 e ss.

Acompanhamos, pois, o entendimento de que, considerar inválido o depoimento indirecto em face do silêncio do arguido criaria um entorse ao escopo da norma do artigo 129° do Código de Processo Penal, que visa tutelar a fiabilidade da prova para a prossecução da verdade e não a garantia da liberdade de declaração — pois, muitas vezes, não é verdadeiramente um depoimento indirecto, mas antes a prova directa do facto criminoso. Logo, deve considerar-se objecto de livre apreciação o depoimento de ouvir-dizer a um arguido que chamado a depor, opta pelo exercício do seu direito ao silêncio sem que isso atinja de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva o direito de defesa do arguido. - cfr., neste sentido, de entre outros, o acórdão do Tribunal Constitucional n.° 440/99 de 08.07.1999, no sentido da constitucionalidade da norma quando aplicada com esta interpretação, disponível in www.tribunalconstitucional.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.04.2006; os acórdãos da Relação do Porto de 24.09.2008, de 04.07.2007, de 07.02.2007; da Relação de Lisboa de 15.03.2007, todos disponíveis in www.dgsi.pt; PINTO DE ALBUQUERQUE, PAULO, in "Comentário do Código de Processo Penal", 2a edição, Universidade Católica Editora, 2008, pg.344 e ss.

No caso dos autos, estamos perante um testemunho de ouvir dizer ou indirecto, de uma assistente social, que foi prestado em audiência de julgamento e - diga-se - refutado pelo arguido que prestou declarações negando a prática dos factos.

Acresce que, trata-se de um depoimento de ouvir dizer à própria ofendida (mulher do arguido) que prestou declarações em dois momentos processuais distintos e que mereceu credibilidade num deles, nos termos já mencionados e para onde se remete por razões de economia processual, viabilizando a possibilidade do Tribunal chamar a testemunha fonte: "[..] Tendo deposto a pessoa a quem se ouviu dizer, desaparece a proibição de prova de valoração do depoimento de ouvir dizer, pelo que nenhum impedimento se forma para que o tribunal valore o "depoimento indirecto" no processo de formação da sua convicção. [...]"; "[..] O depoimento indirecto não é admissível e, portanto, não pode ser valorado, se o depoimento da testemunha originária, apesar de ser possível, não tiver sido realizado, isto é, quando a testemunha originária não depôs porque não foi chamada a tribunal ou porque se recusou a depor. Este instrumento contraria o princípio constitucional da imediação da prova ínsito na ideia de um Estado de Direito e só se justifica com vista a preservar a prova testemunhal em face da ocorrência de circunstâncias extraordinárias. Por isso a norma do art.º 129° tem natureza excepcional — cfr. neste sentido, jurisprudência dos Tribunais Superiores seguida por este Tribunal, designadamente, os acórdãos da Relação de Coimbra de 20.04.2016, de 10.12.2014, de 19.09.2012, de 26.11.2008; da Relação do Porto de 02.02.2011, de 12.05.2010, de 05.05.2010, e de 07.11.2007; da Relação de Guimarães de 27.09.2010, disponíveis in www.dgsi.pt; no mesmo sentido PINTO DE ALBUQUERQUE, PAULO, in ob. cit. supra, pg. 360.

Ademais, o conhecimento indirecto da testemunha ouvida em audiência neste caso constitui, nos seus termos, parcialmente, um depoimento directo (pois teve contacto com a ofendida dias após os episódios descritos, tendo constatado o seu estado de espírito, as alterações comportamentais em consequência dos mesmos, cuja genuinidade atestou em confronto com o conhecimento prévio que detinha dos hábitos e rotinas daquele agregado familiar, por via das visitas domiciliárias efectuadas no âmbito das suas funções), constatando-se que esses factos foram percepcionados pelos próprios sentidos da depoente, sem qualquer mediação. — cfr. acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 29.02.2011, de 09.11.2011, disponíveis in www.dgsi.pt.

Finalmente, porque o depoimento indirecto, enquanto meio de prova livremente apreciável pelo julgador, de acordo com as regras de experiência e a livre convicção (artigo 127° do Código de Processo Penal), é uma comunicação, com função informativa, de um facto de que o sujeito teve conhecimento por um terceiro e que constitui prova indirecta que, no caso concreto, é conjugável com a demais prova produzida, conclui-se que o depoimento em apreço é, pois, valorável nos termos referidos.

A testemunha IC., assistente social, relatou, de modo sereno e conciso, que contactou com SP. após Abril de 2018 no âmbito de intervenção de promoção e protecção destinada ao desenvolvimento de competências parentais por parte desta, tendo referido, no que releva ao objecto da acção, que nas visitas realizadas, a mesma nunca lhe relatou nada relevante relativamente aos factos em apreço ou ao desejo do regresso do arguido à habitação, referindo ainda que a sua intervenção ocorreu exclusivamente em momento posterior à situação de reclusão do arguido, tendo, por fim, clarificado que resultava do processo individual um relatório elaborado pela colega CG., do qual resulta que a testemunha tinha manifestado que se encontraria em processo de divórcio.

A este propósito, importa referir que o declarado pela testemunha resulta da circunstância do seu contacto com a ofendida ter ocorrido em momento posterior à ocorrência dos factos, após o afastamento do arguido da habitação do casal, circunstância que não comprometeu o teor do por si declarado - que se revelou espontâneo e assertivo, na medida do seu conhecimento - mas tão só significa que dado o momento da sua intervenção (o período de contacto entre a declarante e a referida interveniente é posterior ao momento temporal dessas interacções e ao período em que a ofendida se encontrava fragilizada pela decorrências que relatou, quer ao Tribunal (em memória futura), quer à sua Colega que acompanhou o processo nesse período), desconhecia essa realidade.

Por fim, sempre cumpre referir quanto à versão apresentada pelo arguido, após produção da totalidade da prova em julgamento, limitando-se a negar os factos e as suas circunstâncias nos termos supra expressos, que, ainda que, à luz do princípio do acusatório o mesmo não se encontre onerado em provar ao Tribunal que não praticou os factos, a verdade é que a sua versão não se revelou susceptível sequer susceptível de gerar a dúvida razoável sobre a realidade ocorrida, quando criticamente apreciadas as versões em confronto — veja-se que a sua versão não se mostra respaldada em qualquer outro meio probatório e é directamente contraditada pelo relato apresentado por SP. em declarações para memória futura (a qual, como se viu, transmite garantias adicionais de crédito) e também não é, igualmente, consentânea com a versão apresentada pela ofendida em audiência de julgamento (declarações cuja credibilidade, nos termos enunciados, é inexistente).

Finalmente, trata-se de uma versão que não tem qualquer alicerce de sustentação quando analisada à luz das regras da experiência comum. Objectivamente, ainda acedendo que se encontra em curso a suspensão da execução da pena de prisão referente ao processo n.° 945/15.3P8LSB, não é crível que o arguido, que assume a responsabilidade de sustentar financeiramente a sua família através da sua actividade comercial, tenha decidido abandonar a habitação onde vivia com a esposa e os três filhos — sendo que declarou que tinha uma boa relação com a esposa, o que não, é de todo, consentâneo com a existência de uma discussão por causa de compras e a saída da habitação - para pernoitar na sua loja - conforme disse, porque tinha iniciado uma discussão com a mulher a propósito das compras realizadas para a habitação.

Assim, se analisarmos a consistência interna das declarações à luz das regras da experiência e as confrontarmos com os demais meios probatórios analisados, impõe-se concluir que os factos ocorreram tal como descritos na matéria de facto assente. — factos 1) a 17)
Quanto à situação familiar, económica e social do arguido, a mesma resultou assente do teor do relatório social elaborado pela Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais e junto a fls. 592 a 594, 596 a 598 e 599 a 601, bem como, das declarações prestadas pelo arguido e pela testemunha SP. — factos 18) a 38)
O passado criminal do arguido resultou assente do teor do seu certificado de registo criminal de fls. 541 e 667, bem como, da certidão de sentença de fls. 49 a 79, 240 a 270 e 651 a 666. — facto 39).
Os factos não provados resultam da circunstância de nenhuma prova ter sido produzida sobre os mesmos em julgamento que permitisse considerá-los assentes. - factos a) a k) não provados

111.4–Enquadramento jurídico-penal dos factos provados:
Determinado o quadro factual de acordo com o teor da acusação e, sem perder de vista, o princípio da vinculação temática do Tribunal (artigos 339% n.°4°, 358 e 359°, todos do Código de Processo Penal), importa agora efectuar o respectivo enquadramento jurídico.

111.4.1—Da prática do crime de violência doméstica:

Na versão em vigor após a alteração da Lei n.° 59/2007 de 4 de Setembro, o crime de violência doméstica vem previsto e punido pelo artigo 152° do Código Penal:

Artigo 152°, n°s 1 e 2 do Código Penal (Violência doméstica)
1– Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a)- Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b)- A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c)- A progenitor de descendente comum em 1° grau; ou
d)- A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2– No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
3– Se dos factos previstos no n° 1 resultar:
a)- Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;
b)- A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dei anos
4– Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5– A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
6– Quem for condenado por crime previsto neste artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela por um período de um a dei anos.
Como se pode ver da redacção supra, a nova incriminação prevista no artigo 152° do Código Penal actualmente em vigor, resulta de um desdobramento das condutas punidas pelo antigo artigo 152° do Código Penal, que no seu corpo previa, além do mais, tanto a punição dos maus tratos perpetrados ao cônjuge e análogos como outras condutas típicas de maus tratos, v. g., perpetrados a pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez, sem distinguir, contudo, os praticados no seio do lar por familiares ou terceiros que com eles coabitassem, dos praticados por outrem, por exemplo, em estabelecimentos de ensino, lares de terceira idade ou instituições de acolhimento (ou seja, em local diferente da residência familiar e por quem não tendo laços familiares com a vítima, mantinha com ela uma relação de guarda ou vigilância).

Assiste-se, com a alteração legislativa operada, a um agravamento da moldura penal abstractamente aplicável ao agente que pratica contra menor ou na presença dele, no domicílio comum ou no domicílio da vítima.

O anterior crime de maus tratos, hoje crime de violência doméstica e de maus tratos (artigos 152° e 152°-A do Código Penal), surgiu por uma necessidade de consciencialização ético-social sobre a gravidade destes comportamentos que eram um mais face ao crime de ofensa à integridade física simples (artigo 143° do Código Penal) e que não tinham correcto assento legal.

O âmbito punitivo deste tipo de crime inclui os comportamentos que, de forma reiterada ou não, afectem a dignidade pessoal e o desenvolvimento da personalidade e do bem estar da vítima — pretende-se pois, evitar formas de violência na família, educação e trabalho.

O bem jurídico protegido tem vindo a ser identificado, tanto na jurisprudência como na doutrina de forma algo hesitante quando se trata da sua definição exacta e do recorte teleológico da norma. Percebe-se que é essencial encontrar uma definição do bem jurídico que se diferencie do bem jurídico protegido, em particular, pelo crime de ofensa à integridade física simples, do artigo 143.°, do Código Penal.

Existem assim, três posições sufragadas: (i) a que estima que o objecto da protecção penal é a paz e a convivência familiar; (ii) a que considera que o bem jurídico é idêntico ao do resto das lesões; e (iii) a que defende que o bem jurídico protegido é a dignidade humana — esta última é a que tem merecido um maior acolhimento.

Pode, pois, dizer-se que o bem jurídico protegido é a saúde, enquanto bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental que pode ser afectado por toda uma multiplicidade de comportamentos que atinjam a dignidade pessoal do indivíduo.

A panóplia de acções que integram o tipo de crime em causa, analisadas à luz do contexto especialmente desvalioso em que são perpetradas, constituem-se, pois, em maus tratos quando, por exemplo, revelam uma conduta maltratante especialmente intensa, uma relação de domínio que deixa a vítima em situação degradante ou um estado de agressão permanente.

No fundo, a ratio do preceito deriva da especial relação entre o agente e o ofendido e não está, pois somente na protecção da comunidade familiar, conjugal, educacional, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana. Se em tempos passados, se considerou que o bem jurídico protegido era apenas a integridade física, constituindo o crime de maus tratos uma forma agravada do crime de ofensas corporais simples, hoje, uma tal interpretação redutora é, manifestamente, de excluir. - "[...] não se pode deixar de entender que através deste preceito se tutela um bem jurídico diferente daqueles que são protegidos por outras incriminações que a conduta do agente pode eventualmente também ter preenchido, como sejam a integridade física e diferentes dimensões da liberdade. Isto quer se considere que esse bem jurídico é a saúde física, psíquica e mental, quer se entenda que com esta incriminação se visa proteger a pai familiar - sancionando aqueles actos que exteriorizam uma atitude tendente a converter aquele âmbito num microcosmo regido pelo medo e pela dominação — acórdão da Relação de Lisboa de 27.02.2008, disponível in www.dgsi.pt.

As condutas típicas que integram o elemento objectivo do tipo do ilícito podem ser de várias espécies: maus tratos físicos (ofensas corporais voluntárias simples) e maus tratos psíquicos (humilhações, provocações, ameaças mesmo que não configuradoras, em si, do crime de ameaças).

Inclui, além da agressão física (mais ou menos violenta, reiterada ou não), a agressão verbal, a agressão emocional (coagindo a vítima a praticar actos contra a sua vontade), a agressão sexual, a agressão económica (impedindo-a de gerir os seus proventos) e a agressão às liberdades (de decisão, de acção, de movimentação, etc.), que, analisadas no contexto específico em que são produzidas e face ao tipo de relacionamento concreto estabelecido entre o agressor e a vítima indiciam uma situação de maus tratos, ou seja, um tratamento cruel, degradante ou desumano da vítima (ver artigo 25.°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa).

Assim, o que se pretende criminalmente proibir são aqueles maus-tratos conducentes à violação ostensiva da saúde física ou psíquica das pessoas que integram aquelas relações familiares ou análogas ou então de coabitação, podendo ainda abarcar a afectação da sua privacidade, seja ao nível da sua liberdade pessoal em geral ou da sua autodeterminação sexual em particular [v. g. Acs. R. P. de 1999/Nov./03, 2010/Mai./26; Ac. R. C. de 2005/Jul./06, respectivamente na CJ V/223, 111/216; IV/41].

Nesta conformidade, podemos assentar e partindo do bem jurídico aqui tutelado que os maus tratos proibidos pelo crime de violência doméstica têm sempre subjacente um tratamento degradante ou humilhante de uma pessoa, de modo a eliminar ou a limitar claramente a sua condição humana, reduzindo-a praticamente à categoria de coisa.

Muito embora o crime de maus tratos ou sobrecarga de menores e de subordinados ou entre cônjuges da previsão do artigo 153° do Código Penal de 1982, tenha surgido com a "vocação para a chamada neocriminalização" [ponto 23 do seu preâmbulo], passando a conferir dignidade penal às situações mais chocantes que aí se detectavam, fê-lo apenas para as condutas que infligirem "maus tratos físicos", "tratar cruelmente" ou "não prestar(em) o cuidados ou assistência à saúde" enunciadas na alínea a) do n.° 1.

Assim e numa primeira leitura os "maus tratos psíquicos" estavam como que arredados da literalidade deste tipo legal de crime, só passando a estar contemplados na sua descrição típica com a Reforma de 1995 [Dec.-Lei n.° 48/95, de 15/Mar.], agora através do artigo 152.°, ao mesmo tempo que se eliminava do proémio daquele n.° 1 a referência à conduta de maus tratos devida por "malvadez ou egoísmo".

Nestes maus tratos psíquicos passaram a estar contemplados um leque mais alargado de condutas, que se podem manifestar mediante humilhações, provocações, ameaças, tanto de natureza física ou verbal, insultos, como privações ou limitações arbitrárias da liberdade de movimentos, que revelem desprezo pela condição humana do parceiro, podendo provocar sentimentos de culpa ou indefesa, mas não necessariamente um sofrimento psicológico.

O relevante é que os maus tratos psíquicos estejam associados à posição de controlo ou de dominação que o agressor pretende exercer em relação à vítima, decorrente da posição de maior vulnerabilidade desta última.

A actual definição típica por incluir agora também castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais, suscita questões de qualificação jurídica, revestindo-se de alguma complexidade determinar se perante a factualidade considerada provada de que se dispuser se deve entender que o agente praticou o crime de maus tratos, ou, se praticou, antes, crimes de tipo comum (nomeadamente de ofensas à integridade física), ou, ainda, se simplesmente agiu, no caso de vítimas que tenha à sua guarda e vigilância ou sejam filhos menores de idade, comuns ou não do casal, ao abrigo do chamado 'direito de correcção', concluindo-se pela existência de uma causa de justificação da sua actuação nos termos do artigo 31°, nos 1 e 2 do Código Penal.

Esta questão, reveste-se de particular acuidade, nos casos em que estamos perante a existência de um direito de castigo dos pais e educadores quando este se traduza, em concreto, em lesões da integridade física do educando.

Deve, desde logo, dizer-se a este respeito que, independentemente da causa justificativa a que se recorra, seja ela, a existência de um direito de correcção, seja de adequação social, mantém-se controvertido não só a sua admissibilidade, como também os seus limites: 'De acordo com um ponto de vista maioritário a ofensa á integridade física será justificada quando se mostre adequada a atingir um determinado fim educativo, e seja aplicado pelo encarregado de educação com essa intenção." — FIGUEIREDO DIAS, JORGE DE, in "Comentário Conimbricense do Código Penal", Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pg. 214.
Vejamos, pois, o sistema consagrado:
O critério será, então, o da razoabilidade. É certo que a finalidade educativa abrange a correcção, que se revela (deve revelar) essencialmente no exemplo e na palavra, contudo nos casos em que tal poder abranja castigos corporais, o agente não poderá agir de forma desproporcionada e com uma brutalidade desnecessária: "São hoje inadmissíveis castigos pretensamente correctivos que seriam aceites (e até louvados) há 100 ou 200 anos." — Acórdão da Relação do Porto de 02.07.2008 e Acórdão da Relação de Guimarães de 15.01.2007, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.

Neste sentido, cfr. o recente acórdão da Relação do Porto de 29.02.2012: "[...] Os maus-tratos previsto pelo crime de violência doméstica, do art.º 152.° do Cód. Penal, têm subjacente um tratamento degradante ou humilhante de uma pessoa, capaz de eliminar ou limitar claramente a sua condição e dignidade humanas. Com a Reforma de 1995, os maus tratos psíquicos passaram a estar contemplados com um leque mais alargado de condutas, como humilhações, provocações, ameaças (de natureza física ou verbal), insultos, privações ou limitações arbitrárias da liberdade de movimentos, ou das, condutas que revelam desprezo pela condição humana do parceiro, podendo provocar sentimentos de culpa ou de fraqueza mas não, necessariamente, um sofrimento psicológico. O relevante é que os maus-tratos psíquicos estejam associados à posição de controlo ou de dominação que o agressor pretenda exercer sobre a vítima, de que decorre uma maior vulnerabilidade desta. [..1". — disponível in www.dgsi.pt.

Quanto aos sujeitos protegidos com a incriminação há, pois, um alargamento incluindo-se no tipo legal da violência doméstica, o ex-cônjuge, os unidos de facto e ex-unidos de facto do mesmo sexo, ainda que sem coabitação — pretendeu o legislador incluir as relações familiares pretéritas e aquelas que não assentam em laços familiares ao tempo da consumação do facto. — PINTO DE ALBUQUERQUE, PAULO, in "Comentário do Código Penal", Universidade Católica Editora, 2008, Lisboa, pg. 405.

Note-se a este respeito que o âmbito da norma parece pretender abranger não só as relações conjugais, como outras, de certa analogia ou proximidade que o próprio legislador equipara àquelas e sendo certo que não existem figurinos predefinidos, prevalece a ideia de que será abrangida toda a relação que se desenrole, por via de regra, num determinado clima de confiança, solidariedade e respeito, que resiste à atinente cessação e é, pois, essencialmente perdurável ou duradoura, independentemente da existência de coabitação, da sua durabilidade ou da sua atestação legal.

Neste sentido, "[...] Segundo Rui Abrunhosa Gonçalves (Agressores conjugais: investigar, avaliar e intervir na outra face da violência conjugal, RPCC, Ano 14, n.° 4, Outubro-Dezembro 2004, págs. 542-543), a expressão "violência conjugal" — que se distingue de conceitos mais abrangentes como os de "violência doméstica", "violência familiar" ou "maus tratos familiares", em que podem ser afectados outros elementos da família ou que coabitem com o casal — abarca um conjunto variado de actos agressivos que se distinguem entre si pela sua gravidade, mas que têm em comum o facto de serem exercidos por um elemento do casal (geralmente o homem) sobre o outro, de forma consciente, envolvendo a noção de que de que tais actos podem ocorrer numa fase pré-matrimonial ou de vida em conjunto, durante esse período ou mesmo após, quando o matrimónio ou a união de facto se encontram em vias de dissolução. [....1" —Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02.07.2008, disponível in www.dgsi.pt.

Apesar deste alargamento, continua a ser um crime específico, ainda que impróprio (cuja ilicitude é agravada em função da relação familiar), de dano e de resultado, aplicando-se-lhe a teoria da adequação da conduta.

O crime de violência doméstica, na redacção anterior pressupunha a existência de alguma reiteração das condutas, de modo a inculcar um carácter de habitualidade - neste sentido, entre outros, MAIA GONÇALVES, MANUEL LOPES, in "Código Penal Português Anotado", Almedina, 17° edição, 2005, pg, 551 e SIMAS SANTOS e LEAL HENRIQUES, in "Código Penal Anotado", 2° vol, pg. 301 - mas não se exigia como elemento objectivo do tipo ali previsto, uma conduta plúrima e repetitiva. "Não são os simples actos plúrimos que caracterizam o crime; o que importa é que os actos isolados ou reiterados, apreciados à In da intimidade do lar e da repercussão que possam ter na continuidade da vida comum conjugal coloquem a pessoa ofendida numa situação de vítima mais ou menos permanente sujeita a actos incompatíveis com a sua dignidade e liberdade." - Acórdão da Relação de Lisboa, de 04.11.2004, disponível in www.pgdlisboa.pt.

Este entendimento foi sufragado pelo legislador na nova redacção do tipo legal ainda que sob novas epígrafes "Violência doméstica' e "Maus tratos" quando, por um lado manteve, depois de se ter discutido se ainda corresponderia ao nosso quadro sociológico, a protecção, em especial, ao cônjuge e à pessoa que conviva com o agente em condições análogas à do cônjuge, bem como aos demais sujeitos visados pela protecção da norma, e, por outro, quando inseriu nos nºs 1 do artigo 152° e do artigo 152°-A, ambos do Código Penal a menção "de modo reiterado ou não".

Veja-se o Acórdão da Relação de Lisboa de, 15.11.2007, disponível in www.dgsipt
"[..] o artigo 152° do Código Penal não exige,  para verificação do crime nele previsto, uma conduta plúrima e repetitiva, ou seja, habitualidade. Considerar o contrário redundaria de alguma forma em admitir em casos de comportamentos ocorridos no âmbito de relação conjugal ou equiparada [...] que só quando e se instalasse a habitualidade das condutas atentatórias à saúde física ou mental e à dignidade humana visadas pelo preceito operaria a punição nele prevista o que, tendo como reverso que condutas isoladas ou assumidas espaçadamente, sem carácter de regularidade, não poderiam ser punidas a título de maus tratos, o que - e note-se ainda que comportamentos há que, relevando para efeitos de tal artigo, não são autonomamente puníveis - obviamente não pode ter correspondido à postura/ vontade do legislador.

Aliás, se tal se tem por incontestável já considerando a redacção do preceito vigente à data dos factos, na actual redacção do preceito (introduzida pela Lei 59 / 2007 de 4/9) a definição típica consagrada não deixa hoje lugar quaisquer dúvidas a este respeito - e bem assim quanto à intenção do legislador - ao dispor expressamente que: "Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais [...] ."

Contudo, tem sido entendido que, pese embora a supressão da distinção entre maus-tratos reiterados e intensos operada em processo legislativo, um único acto ofensivo — sem reiteração — para poder ser considerado maus-tratos e, assim, preencher o tipo objectivo, continua, na redacção vigente, a reclamar uma intensidade do desvalor, da acção e do resultado, que seja apta e bastante a molestar o bem jurídico protegido — mediante ofensa da saúde física, psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana (cfr. com interesse, a este respeito, PLÁCIDO CONDE FERNANDES, "Violência Doméstica, Novo Quadro Penal e Processual Penal", in Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, 1.° semestre de 2008, n.° 8, pg. 308), citado no Acórdão da Relação de Coimbra de 21.10.2009, disponível in www.dgsi.pt.

Dito por outras palavras, no ilícito de violência doméstica é objectivo da lei assegurar urna 'tutela especial e reforçada' da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima. — cfr., a título meramente exemplificativo, a jurisprudência sobre esta matéria, disponível in www.dgsi.pt, versada nos acórdãos da Relação do Porto de 28.09.2011 e de 26.05.2010; da Relação de Lisboa de 02.03.2011 e de 07.12.2010, da Relação de Coimbra de 17.11.2010; da Relação de Guimarães de 09.05.2011, de 03.05.2011, e de 17.05.2010.

Em última instância, é ainda o conceito de integridade pessoal (física e psíquica) ¬ver artigo 25.°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa, comum ao crime de ofensa à integridade física simples, com a particularidade de, aqui, ser outra a caracterização da agressão e da actuação do agressor, estabelecidas, ambas, em função do "ambiente e da imagem global do facto" indiciador de um maior desvalor da acção e de um potencial perigo de prejuízos sérios para a saúde e para o bem-estar da vítima. O importante é, pois, analisar e caracterizar o quadro global da agressão física de forma a determinar se ela evidencia um estado de degradação, enfraquecimento, ou aviltamento da dignidade pessoal da vítima que permita classificar a situação como de maus tratos, que, por si, constitui um "risco qualificado que a situação apresenta para a saúde psíquica da vítima". Nesse caso, impõe-se a condenação pelo crime de violência doméstica, do artigo 152°, do Código Penal. Se não, a situação integrará a prática de um ou vários crimes de ofensas à integridade física simples, do artigo 143.°, do Código Penal.

Nem toda aquela ofensa representa maus tratos, pois estes pressupõem que o agente ofenda a integridade física ou psíquica de um modo especialmente desvalioso e, por isso, particularmente censurável. A ocorrência deste crime pressupõe uma agressão capaz de afectar a dignidade pessoal do visado. Não é por a(s) agressão(ões) físicas terem sido praticada no seio da vida familiar/doméstica que, imediatamente, se mostra excedida a previsão do crime de ofensas à integridade física simples, do artigo 143.°, do Código Penal.

Tem que estar em causa a dignidade humana da vítima, a sua saúde física e psíquica, a sua liberdade de determinação, que são brutalmente ofendidas, não apenas através de ofensas, ameaças ou injúrias, mas essencialmente através de um clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade, humilhação, tudo provocado pelo agente, que torna num inferno a vida daquele concreto ser humano.

No caso especial da alínea d) do artigo 152°, nº 1 do Código Penal, esta sofreu alteração por força da entrada em vigor da Lei n.° 19/2013, de 21 de Fevereiro, que introduziu a palavra 'nomeadamente' com o intuito de abrir o âmbito da definição de 'pessoa particularmente indefesa' que deve ser vista como alguém que, de forma indesmentível e objectiva, vivência situação de desamparo e fragilidade carecida de protecção e auxílio, designadamente, em razão da sua avançada idade ou debilidade física por doença.

São exemplos de comportamentos típicos subsumíveis nos actos de violência contra estas pessoas: o achincalhamento, o menosprezo, o vexame e a humilhação, a proibição, o constrangimento a fazer algo ou o cercear a actuação, o isolamento, a infantilização, a chantagem, a ameaça, o insulto ou o abuso verbal ou emocional, a apropriação de valores ou de quantias monetárias (reformas, pensões, subsídios), o furto de objectos, as condutas de controlo.

Tais actos ainda que abrangidos nos casos de "micro violência continuada', que se caracterizam pela opressão exercida e assegurada normalmente através de repetidos actos de violência psíquica que apesar da sua baixa intensidade quando considerados avulsamente são adequados a causar graves transtornos na personalidade da vítima quando se transformam num padrão de comportamento, vêem, por regra, associados a maus tratos físicos, e tendem a obter uma negação progressiva da dignidade e personalidade dessas pessoas. — cfr. acórdão da Relação de Évora de 08.01.2013, disponível in www.dgsi.pt.

O número 2 do artigo 152° do Código Penal, por seu lado, prevê também um agravamento da moldura penal aplicável ao crime em apreço nos casos dos crimes praticados: contra menores de 18 anos de idade, na presença de menores de 18 anos de idade, no domicílio comum (ou seja, no local da coabitação), ou no domicílio da vítima (no caso do ex-cônjuge ou equivalente).

O propósito do legislador foi o de censurar mais gravemente os casos de violência doméstica velada, contra menores de idade ou na presença deles (neste caso, vítimas indirectas de maus tratos, no menos, psicológicos), especialmente vulneráveis e frágeis, em razão da idade e da própria relação familiar com o infractor e, por outro lado, contra as vítimas no seio do seu domicílio, local preferencial de violência doméstica favorecida pelo confinamento e pela ausência de testemunhas.

Mas esta situação prevista no n° 2 do artigo 152° do Código Penal não se confunde com a incriminação criada pelo artigo 152°-A, n.°1, a) do Código Penal, pois ali pretende-se proteger, além do mais, o menor de 18 anos de idade que coabita com o maltratante, em regime de agregado familiar (em regra, um familiar próximo - pai, mãe, padrasto ou madrasta), enquanto que aqui pretendeu o legislador proteger o menor, vítima de maus tratos, fora do seu lar ou no interior deste, mas quando se vê sujeito à guarda e cuidados de terceiro, v. g., quando entregue a educadores de infância ou professores em creches, infantários, escolas ou a uma ama que toma conta de si na sua própria casa.

No caso do crime de maus tratos, este pressupõe uma relação de guarda ou vigilância entre o agente e a vítima, enquanto que, no caso da violência doméstica, forma especial daquele, mais do que uma relação de guarda, protegem-se os laços familiares presentes ou pretéritos e, bem assim, aqueles que tenham resultado de ocasião fortuita (relações parentais não familiares).

Quanto ao elemento subjectivo, estas incriminações só se preenchem com a intenção dolosa, em todas as suas modalidades previstas no artigo 14° do Código Penal (dolo directo, necessário ou eventual), sendo essencial, no caso do crime de violência doméstica, o correcto conhecimento da identidade da vítima e, no caso dos maus tratos, além disso, também o conhecimento do carácter perigoso ou proibido da actividade ou excessivo dos trabalhos em relação às forças da vítima.

Volvemos, pois, ao caso dos autos:
No caso dos autos resultou assente que o arguido que, no período compreendido entre Março e Abril de 2018, o arguido, cônjuge da destinatária SP., a qual depende economicamente do mesmo, praticou, a título doloso e no domicílio comum do casal, um conjunto de factos lesivos da integridade física e psíquica (pontapé, aperto de pescoço, relação sexual não consentida, ameaças de morte, discussões constantes), factos que geraram receio legítimo, dor, mau-estar e estado de pânico na destinatária que, se interpretados no seu contexto (veja-se que não são situações meramente isoladas de eventual ofensa à integridade física, ameaça ou coacção sexual, mas antes factos praticados em contexto de vida conjugal, após condenação por prática de factos semelhantes e durante o período da suspensão da execução da pena ali aplicada), e que, por isso consubstanciam uma afectação ilegítima e intolerável da pessoa, dignidade e liberdade da ofendida.

Assim, conclui o Tribunal que os actos praticados pelo arguido são adequados para o preenchimento do tipo legal do crime de violência doméstica, no seu elemento objectivo, pois integram a prática de mau trato psicológico e físico e reiterado. Por outro lado, da factualidade descrita e provada resulta também que aquela conduta é idónea para criar uma situação de vítima por parte da visada (sua mulher e mãe de descendentes comuns) que, em face das atitudes constantes do arguido e da sua dependência económica, não tendo autonomia para sair de casa, não estava em situação de se defender (verificando-se assim o preenchimento das alíneas a) e c) do n.'1 do artigo 152° do Código Penal). Além disso, está também preenchido o elemento subjectivo do crime em causa pois o arguido actuava motivado pela sua própria vontade e consciente do alcance da sua conduta e das suas consequências.

Finalmente, a circunstância de tais factos terem sido praticados também na residência onde todos viviam, impedindo a sua normal vivência dentro do seu espaço habitacional e convivial, nomeadamente, pela imposição da presença do arguido no interior do mesmo, permite concluir, sem necessidade de mais considerações, pelo preenchimento dos elementos objectivo e subjectivo do tipo em legal em apreço, devendo ser o arguido condenado pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152°, nºs 1, a) e c) e 2 do Código Penal.

111.5—Determinação da pena a aplicar:
Qualificados juridicamente os factos e operada a sua subsunção aos preceitos legais incriminadores, concluindo-se pela responsabilidade criminal do arguido, importa agora determinar os fundamentos que irão presidir à escolha e determinação da medida da pena a aplicar ao mesmo — artigo 71°, n.°3 do Código Penal e artigo 375', n.°1, do Código de Processo Penal.

111.5.1—Da medida concreta da pena:
A moldura penal abstracta do crime de violência doméstica é de dois a cinco anos de prisão.
Na ponderação a fazer para determinar concretamente a medida da pena, ter-se-á, por um lado, como limite e suporte axiológico, a culpa do arguido revelada nos factos por si praticados - proíbe-se, desta forma, o excesso, "[...] uma tal ultrapassagem, mesmo em nome das mais instantes exigências preventivas, poria em causa a dignitas humana do delinquente e seria assim, logo por ratões jurídico-constitucionais, inadmissível. [...]"- FIGUEIREDO DIAS, JORGE, in "Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Parte Geral II", Aequitas - Editorial Noticias, 1993, pg. 229.

E, por outro, a sua adequação para assegurar as exigências de prevenção geral no sentido de evitar a realização de futuros crimes e, em última análise, de prevenção especial, com vista à reinserção social do agente, como se deixou explanado supra. Tem pois a execução da pena, um sentido simultaneamente pedagógico e ressocializador. — artigo 40° do Código Penal.

Assim, com base neste modelo de prevenção importa determinar a concreta medida da pena tendo em conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta licita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena (consagração do princípio da proibição da dupla valoração das circunstâncias que façam já parte do tipo de crime) - artigo 71°, n.° 2, do Código Penal.

– O grau de ilicitude dos factos, que se afigura elevado, fazendo-se referência, por um lado, ao bem jurídico em causa (liberdade de actuação, integridade física e psíquica) e, por outro lado, à natureza e gravidade dos maus tratos perpetrados (essencialmente psicológicos, mas com carácter contínuo, aproveitando a dependência económica da vítima, de elevada intensidade dada a natureza e conteúdo do verbalizado e a circunstância de se tratar de uma conduta reiterada face à condenação anteriormente sofrida por factos de idêntica natureza;
– A intensidade do dolo que, in casu, é, como se viu, na modalidade de dolo directo, de alta intensidade, por ser a forma mais gravosa do dolo, pois o arguido actuou motivado pela sua própria vontade e imbuído de um espírito de leviandade e sentimento de impunidade, sendo certo que atinge bens jurídicos pessoais, vida e integridade física e psíquica que são tidos por fundamentais e, por isso, dos que mais devem ser respeitados;
– Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram que não revelam nenhuma circunstância digna de relevo a assinalar, dos quais não se logrou apurar a existência de qualquer motivo de valor relevante que mereça referir, dado que os factos surgem como reacção permanente à convivência em comum, sem qualquer motivação externa aparente, denotando antes uma atitude por parte do arguido demarcada por um sentimento de domínio e desrespeito, de posse e de necessidade de controle da vítima como se de um objecto se tratasse.;
– As condições pessoais do arguido e a sua situação económica, que resultaram provadas com base no teor do relatório social junto aos autos, das suas declarações e também das declarações da própria ofendida;
– A conduta anterior ao facto e posterior a este que revelam ausência de qualquer premeditação ou preparação ou recurso a um particular empenho de meios ou esforço do arguido na sua execução. No entanto, também não se olvida o circunstancialismo em que estes factos são praticados, após uma condenação por prática de crime de idêntica natureza, não se podendo, naturalmente, considerar que se tratou de conduta isolada, integradora de crimes diversos. Pelo contrário são praticados explorando uma situação de debilidade económica e de dependência da vítima.
– O facto de o arguido ter antecedentes criminais, conforme resulta do seu certificado de registo criminal que se dá aqui por integralmente reproduzido.
Assim, face ao exposto e, considerando as circunstâncias que depõem a favor e contra o arguido, quais sejam, o facto de a relação convivial se encontrar, actualmente, pacificada, desde logo, porque o arguido cessou os contactos com a vítima em virtude da sua prisão preventiva nos presentes autos, do facto de em momento algum ter praticado tais factos na presença dos filhos menores que sempre tratou de forma adequada, mas por outro, os seus antecedentes criminais por crime da mesma natureza, a gravidade dos factos desde logo pelo modus operandi (factos praticados entre quatro paredes, ou seja, explorando uma situação de particular vulnerabilidade da vítima), a exploração da dependência financeira da vítima (o que é notório face ao teor do requerimentos subsequentemente apresentados nos autos pelo arguido onde refere a necessidade de ser colocado em liberdade para apoiar financeira e logisticamente o agregado familiar, o que a torna a vítima uma presa fácil para o agressor), a postura do arguido em sede de audiência de discussão e julgamento revelando uma actividade de negação dos factos e desculpabilização das consequências da ocorrência, não demonstrando capacidade para proceder a um juízo crítico e reflexivo relativamente aos factos por si praticados, o que consubstancia fortes factores de risco, consideramos adequado e suficiente aplicar ao arguido M.  a pena de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão.

111.5.2—Das penas de substituição:
Face à pena concretamente aplicada ao arguido de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão importa ponderar se, ao abrigo do disposto nos artigos 43°, 44°, 50° e 58° do Código Penal, tal pena deverá ser substituída por outra, por se entender que a execução efectiva da pena de prisão não se mostra essencial e adequada às finalidades de prevenção do cometimento de futuros crimes.

O legislador não previu uma ordem de preferência para as penas de substituição cabendo ao julgador analisar o caso concreto e ponderar de entre as várias alternativas possíveis, qual a que melhor se adequa às finalidades da punição. No entanto, tem-se por adquirido que a pena de substituição prevista no artigo 43°, do Código Penal, qual seja, pena em regime de permanência na habitação, embora seja verdadeiras pena de substituição, pelo facto de ter natureza privativa da liberdade, ainda que mitigada (o confinamento pode ser reduzido a um menor período de tempo seguido ou a um local familiar — a habitação própria, no entanto, é sempre limitativo da liberdade), deve ser aplicadas a título subsidiário em relação às primeiras, i. e., apenas e só no caso de nenhuma das anteriores satisfizer os fins pretendidos.

No caso em apreço, atento a moldura concretamente aplicada ao arguido, tal substituição apenas poderá ser ponderada relativamente à pena suspensa prevista no artigo 50° do Código Penal.

Vejamos:

111.5.2.1—Da suspensão da pena de prisão:

Nos termos do disposto no artigo 50° do Código Penal:
"1—O Tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
2—O Tribunal, se o julgar conveniente e adequado a realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.
3—Os deveres, regras de conduta e o regime de prova podem se impostos cumulativamente.
4—A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições.
5—O período de suspensão é fixado de um a cinco anos."
Este preceito foi alterado com a entrada em vigor da Lei n.°
94/2017 de 23 de Agosto, reduzindo o período da suspensão para um a cinco anos e não mantendo o período de suspensão igual ao estabelecido para a pena efectivamente aplicada, criando assim um regime claramente mais favorável que o anterior, sendo, por essa razão, o que irá ser considerado na situação em apreço (cfr. artigo 2°, n.°4 do Código Penal).

A suspensão da execução da pena de prisão é um meio em si mesmo autónomo de reacção jurídico-criminal, configurada como pena de substituição, que se baseia em juízo de prognose favorável ao condenado, desde que não fiquem prejudicadas as finalidades de punição. Com a afirmação dum desvalor ético-social aliada ao apelo estimulante da ameaça da pena, que, por assim dizer cautelarmente, aquele juízo não dispensa e não omite. — SÁ PEREIRA, VÍTOR DE e LAFAYEITE, ALEXANDRE, in "Código Penal — Anotado e Comentado, Legislação Conexa e Complementar", Quid Juris, pg. 179.

As modalidades de suspensão da execução da pena são as seguintes: simples (que se esgota no número 1 do artigo em apreço), subordinada ao cumprimento de deveres (artigo 51° do Código Penal), a regras de conduta (artigo 52° do mesmo diploma) e com regime de prova (artigo 53° daquele diploma).

Assim, o primeiro pressuposto indispensável para a substituição da pena de prisão é a circunstância de ao arguido ter sido aplicada uma pena inferior a três (hoje cinco) de prisão, sendo então obrigatório equacionar essa substituição no cumprimento de um poder-dever ou poder vinculado. No sentido de que se trata de um poder dever, MAIA GONÇALVES, MANUEL LOPES: 7.. ./ Trata-se de um poder-dever, ou seja de um poder vinculado do julgador que terá que decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização daquelas finalidades, sempre que se verifiquem os pressupostos. [...P. -in ob. cit. supra, pg. 201 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.03.2004, disponível in www.dgsi.pt.

Para além do requisito de ordem formal referente ao tempo de prisão aplicado ao arguido, é necessário que se verifiquem os requisitos de ordem material (pressuposto material) indicados na segunda parte do n° 1 daquele artigo 50.° e que fundamentam um juízo de prognose favorável, ou seja, a conclusão de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Essa fundamentação é obrigatória, nos termos do disposto no artigo 50°, n.°4 do Código Penal quando o Tribunal opte pela suspensão da execução da pena, não fazendo o artigo referência aos casos em que a mesma não é aplicada.

Assim, para a aplicação suspensão da execução da pena de prisão é necessário que a mesma não coloque irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias, ou seja, o sentimento de reprovação social do crime ou sentimento jurídico da comunidade, sendo também necessário um convencimento do tribunal, face à personalidade do arguido, o comportamento global, a natureza do crime e a sua adequação a essa personalidade, que o facto cometido não está de acordo com ela, mas foi tão só um acidente de percurso, esporádico, cuja ameaça da pena como medida de reflexos sobre o comportamento futuro, evitará a repetição de comportamentos delituosos.

Donde se depreende que, com a suspensão da pena, visa-se atingir a ressocialização do agente, tanto quanto possível, subordinada às exigências de prevenção geral positiva, visto que a tutela dos bens jurídicos é o objectivo primordial inscrito nas finalidades da punição, na esteira de opções hoje prevalecentes a nível de política criminal e plasmadas na lei, que, todavia, não se alheia ao objectivo de reinserção social do condenado: "[...] no sentido de que mesmo que o Tribunal conclua "... por um prognóstico favorável — à luz de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização", "a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem «as necessidades de reprovação e prevenção do crime" ["estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita — mas por elas se limita sempre — o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto ora em análise" - Acórdão da Relação do Porto de 17.12.2008 disponível in www dgsi.pt.

A suspensão da pena tem, pois, um sentido pedagógico e reeducativo, sentido norteado, por sua vez, pelo desiderato de afastar, tendo em conta as concretas condições do caso, o delinquente da senda do crime.

Assim, são sobretudo razões de prevenção especial (ou, como parecerá ainda legítimo dizer, de prevenção da reincidência), e não considerações de culpa, as que lhe estão na base, como, aliás, em toda a operação de escolha de penas alternativas ou penas de substituição, sendo esse o critério geral ou denominador comum que preside a tal operação, não obstante a diversidade de critérios específicos que a lei prevê para cada caso. Esse critério geral vem a traduzir-se na preferência manifestada pelo legislador pela aplicação de uma pena alternativa ou por uma pena de substituição, sempre que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa ou a de substituição se revelem adequadas e suficientes à realização das finalidades da punição. - FIGUEIREDO DIAS, JORGE, in ob, cit. supra, pg. 331 e ROBALO CORDEIRO, "A Determinação da Pena", Jornadas de Direito Criminal — Revisão do Código Penal, CEJ, vol. 2.°, pg. 48.
Deste modo, é possível a substituição de uma pena institucional ou detentiva, por outra não detentiva, isoladamente aplicada ou associada à subordinação de deveres, destinados a reparar o mal do crime e (ou) de regras de conduta, estabelecidas estas com o fim de melhor reinserir socialmente o condenado em ordem ao acatamento dos valores comunitários, cujo respeito, pelo afastamento do condenado da criminalidade (e não pela sua regeneração ou ressocialização) se pretende obter. - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.01.2008, disponível in www.dgsi.pt.

Para tal, exige a lei um juízo de prognose favorável, centrado na pessoa do arguido e no seu comportamento futuro que assenta na análise das circunstâncias do caso em correlação com a personalidade do agente, visando obter em toda a linha possível a socialização em liberdade, em consonância com a finalidade político-criminal do instituto, que é o afastamento do condenado da prática de novos crimes por meio da simples ameaça da pena, eventualmente com sujeição a deveres e regras de conduta, se tal se revelar adequado a tal objectivo e desde que as exigências mínimas de prevenção geral fiquem também satisfeitas com a aplicação da pena de substituição.

O sentido destas é, aliás, nesta sede, o de se imporem como limite às exigências de prevenção especial, constituindo então o conteúdo mínimo de prevenção geral de integração de que se não pode prescindir para que não sejam, em último recurso, defraudadas as expectativas comunitárias relativamente à tutela dos bens jurídicos FIGUEIREDO DIAS, JORGE, in ob. cit. supra, pg. 333.

No entanto, como bem afirma aquele autor, importa acrescentar que esse juízo de prognose não corresponde a uma certeza, antes a uma esperança fundada de que a socialização em liberdade se consiga realizar. Trata-se pois de uma convicção subjectiva do julgador que não pode deixar de envolver um risco, derivado, para além do mais, dos elementos de facto mais ou menos limitados a que se tem acesso. - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.09.2008, disponível in www.dgsi.pt.

Em última instância, porque a aplicação desta pena de substituição não é automática, ao actuar neste campo em que os interesses a prosseguir, seja da prevenção geral de integração seja da prevenção especial de socialização, interagem em verdadeira tensão dialéctica, compete ao Tribunal respectivamente: ponderando o grau de ilicitude e gravidade dos factos em causa, definir a exigência mínima, indispensável e irrenunciável de defesa do ordenamento jurídico e num juízo de conformação que leve em conta a personalidade do agente, as condições da sua vida, a sua conduta ante e post-facto, enfim as circunstâncias da prática deste, determinar, dentro dos limites daquela exigência, se é adequada ao propósito de 'prevenção da reincidência' a aplicação de uma tal pena de substituição de conteúdo eminentemente pedagógico e reeducativo.

Em suma, desde que as exigências de prevenção especial fiquem asseguradas, a pena de prisão só não deve ser suspensa na sua execução se a esta decisão se opuserem as exigências mínimas de prevenção geral — «o limite mínimo de prevenção geral constituído pela defesa irrenunciável do ordenamento jurídico». - Tribunal da Relação de Évora de 16.11.2004, disponível in www.dgsi.pt.

Volvemos ao caso dos autos:
No caso em apreço existem necessidades de prevenção geral, atenta a necessidade de acautelar a ocorrência de factos semelhantes e de transmitir à comunidade um sentimento de segurança que previna o receio de violação da norma, pois o tipo em causa destina-se a tutelar bens jurídicos de natureza particular com manifesta importância comunitária — a dignidade da pessoa humana e tendo em consideração a frequência com que estes tipos de crimes são praticados na comunidade, o que transmite para a comunidade e inculca nesta uma ideia de desconsideração do respeito pela pessoa humana enquanto ser único e irrepetível dotado de dignidade em razão da sua qualidade, tutelado pela norma incriminadora que urge combater.
A ocorrência do mencionado crime, ainda que com prevalência numérica descendente de acordo com os dados disponibilizados no Relatório Anual de Segurança Interna referente ao ano de 2017, disponível em https://www.portugal.gov.pt/download-ficheiros/ficheiro.aspx?v=9f0d7743-7d45-40f3-8cf2-e448600f3af6, corresponde a um número absoluto de 22.599 participações referentes ao crime em apreço, correspondendo a cerca de 28% dos crimes praticados contra as pessoas (das quais 6303 no distrito de Lisboa), colocando em crise, de modo sensível, o bem jurídico protegido, de carácter nuclear na comunidade.

Assim, a manifestação judicial destes crimes — que culminou em 4.465 acusações deduzidas no ano transacto, é reveladora do sentimento de desrespeito e indiferença pela norma jurídica que deve ser impedido.

Por outro lado, também resultam elevadíssimas necessidades de prevenção especial, pois atendendo às circunstâncias profusamente analisadas nos autos, constata-se que o arguido actuou revelou uma personalidade distante do dever ser, imbuído da ideia de dono e senhor de um direito de agredir física e psicologicamente, sem qualquer razão aparente e por qualquer via. Praticou factos graves, atento a sua motivação fútil — a saturação da relação conjugal.

Por outro lado, abusou da privacidade e descrição oferecida pelo local onde agrediu, casa onde viviam — entre quatro paredes e também no interior da sua loja, em período de fecho ao público - garantindo assim a ausência de testemunhas para vilipendiar e humilhar a vítima.

De facto, quer no que respeita aos antecedentes criminais do arguido (encontra-se actualmente sujeito a prisão preventiva à ordem dos autos, e tem uma condenação anterior pela prática do mesmo crime, pelo qual foi condenado na pena parcial de 3 anos e 8 meses de prisão), e tal facto não foi suficiente para o refrear na prática dos factos agora em julgamento, sendo revelador de um padrão de comportamento violento, com o mesmo modus operandi, e indiciador de um total desrespeito pelos bens jurídicos integridade física, liberdade de autodeterminação, e, no limite, vida, da vítima), quer no que respeita à conduta anterior e posterior ao ilícito e as condições da sua vida (relata uma situação que resultará desestruturada, considerando que não revela ter suporte familiar em Portugal para além do cônjuge na pessoa da qual perpetrou os dois crimes), e, bem assim, à gravidade dos factos praticados na medida em que geraram na vítima medo em relação à segurança, integridade física e vida também da sua família, não obstante durante a tramitação do processo a mesma tenha procurado voltar a contactar com o arguido, tudo ponderado permite inferir a existência de importantes limitações à capacidade para manter uma conduta regular de acordo com o Direito, em caso de cumprimento de pena na comunidade.

Acresce que o arguido praticou os factos em apreço nestes autos durante o período de suspensão da execução da pena de prisão aplicada no processo n.° 945/15.3P8LSB, o que revela, por si só, a total falência de qualquer parecer favorável no sentido de concluir que a mera ameaça de cumprimento de uma pena de prisão efectiva é adequada e suficiente a prevenir a prática de novos ilícitos. Crê-se que uma suspensão da pena de prisão aplicada ao arguido não permite impedir que situações como a descrita possam ter réplicas, como aliás já sucedeu, o que se pretende evitar sob pena de se obter o efeito pernicioso com a suspensão, já que os sinais da personalidade do arguido e o seu contexto social não nos permitem concluir no sentido da probabilidade segura do seu afastamento futuro da prática de novos crimes (prevenção da reincidência).

Em face do exposto, entende o Tribunal que não é possível formar um juízo de prognose positivo ao arguido, pois, apesar de ter tido a oportunidade de refazer a sua vida quando foi condenado em pena de prisão suspensa na sua execução, voltou a delinquir e fê-lo de forma consecutiva assumindo uma postura pouco responsável e pouco empenhada numa alteração efectiva do modo de vida no sentido pró-social.

Denota, pois, o não acatamento da norma ou a interiorização das consequências da violação do ordenamento jurídico, o que demonstra que, em liberdade, voltaria a delinquir, pois a mera ameaça de cárcere falhou o seu objectivo dissuasor e intimidatório como se pretendia, aquando das penas substitutivas.

Por todas estas razões, entende o Tribunal não ser possível, em absoluto, fazer um juízo de prognose favorável ao arguido e considerar que as "exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico", ficarão asseguradas no presente caso com a suspensão da execução da pena, nos termos do disposto no artigo 50°, n.°1 do Código Penal, pelo que não se suspende a pena aplicada.

111.5.3–Da pena acessória de proibição de contactos com a vítima:
O Ministério Público requereu na acusação deduzida a aplicação ao arguido da pena acessória de proibição de contacto com a vítima SP., com fiscalização por meios electrónicos de controlo à distância, p. e p. pelo artigo 152°, nºs 4 e 5 do Código Penal.

Nos termos do disposto no artigo 152°, nºs 4, 5, e 6 do Código Penal:
[...]4– Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5– A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância."

É patente a preocupação do Legislador que, com a revisão de 2007, procurou alargar o âmbito de aplicação da pena acessória de proibição de contacto com a vítima, enquanto mecanismo tendente à protecção da vítima, o qual passou a incluir o afastamento do local de trabalho, pelo período de seis meses a cinco anos, e criou como novas penas a proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e a inibição do poder paternal, da tutela ou da curatela por um período de um a dez anos.

Paralelamente, pretendeu-se, também, intervir de forma educacional e ressocializadora junto do agressor, através da obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.

Existe, pois, um objectivo dissuasor da prática de novos crimes, a par da pena principal, e de eliminação ou redução do perigo de práticas violentas sobre a vítima.

Por outro lado, porque em muitas situações de violência doméstica o agente segue a vítima até ao seu local de trabalho ou até à sua habitação, para aí provocar desacatos, o cumprimento da pena acessória poderá ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, que podem incluir o sistema de pulseira electrónica, exigindo-se o consentimento do agente e da vítima para a sua implementação, nos termos do disposto nos artigos 35° e 36°, ambos da Lei n.° 112/2009 de 16 de Setembro.

Além disso, importa ter presente que, tratando-se de uma pena, ainda que acessória, pressupõe não só a condenação numa pena principal, mas também deverá ter em consideração os critérios que estão na base da aplicação de uma qualquer pena e que já se teve oportunidade de referir, designadamente, a culpa do agente, a ilicitude, intensidade do dolo, condições concretas da sua execução, dando-se por reproduzido os considerandos efectuados a este respeito a propósito do caso concreto.

Volvemos ao caso em apreço:
No caso dos autos, vislumbra-se o objectivo de garantir a segurança da vítima. Presentemente, embora as necessidades de prevenção estejam mais atenuadas tendo em conta o afastamento do casal por via da prisão preventiva aplicada ao arguido, a verdade é que, tal não significa que uma vez em liberdade, não possa tentar aproximar-se da ofendida com vista à prática de novos ilícitos.

Assim, e, por forma a salvaguardar tal hipótese, entende o Tribunal adequado para o reforço da consciencialização do arguido e à dissuasão de comportamento semelhante, aplicar a pena acessória de proibição de contactos com SP. e de frequentar a sua residência sita na R. , pelo período 3 (três) anos e 9 (nove) meses. Sem prejuízo tal medida deverá salvaguardar a possibilidade de realização de todos os contactas que se afigurem necessários no âmbito do exercício das responsabilidades parentais relativamente aos filhos menores de ambos.

Não obstante, a fiscalização por vigilância electrónica ficará dependente da oportuna recolha de consentimento do arguido e da vítima para a sua utilização (cfr. artigo 152°, n.°4 e 5 do Código Penal e artigos 35° e 36°, ambos da Lei n.° 112/2009 de 16 de Setembro.

111.4– Do direito a indemnização a que alude o artigo 21°, n.° 2 da Lei n.° 112/2009 de 16 de Setembro:
Nos termos no disposto no artigo 21° da Lei n.° 112/2009, de 16 de Setembro, (Regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à protecção e assistência suas vítimas), alterada pelas: Lei n.° 24/2017, de 24 de Maio; Lei n.° 42/2016, de 28 de Dezembro; Lei n.° 129/2015, de 03 de Setembro; Lei n.° 82-B/2014, de 31 de Dezembro; Lei n.° 19/2013, de 21 de Fevereiro; Rectificação n.° 15/2013, de 19 de Março; Lei n.° 82-B/2014, de 31 de Dezembro; e Lei n.° 129/2015, de 03 de Setembro: "[..] 1 - À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável. 2 - Para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicarão do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser. 3 - Salvo necessidade imposta pelo processo penal, os objectos restituíveis pertencentes à vítima e apreendidos no processo penal são imediatamente examinados e devolvidos. 4 - Independentemente do andamento do processo, à vítima é reconhecido o direito a retirar da residência todos os seus bens de uso pessoal e, ainda, sempre que possível, os seus bens móveis próprios, bem como os bens pertencentes a filhos menores e a pessoa maior de idade que se encontre na directa dependência da vítima em razão de afectação grave, permanente e incapacitante no plano psíquico ou físico, devendo os bens constar de lista disponibilizada no âmbito do processo e sendo a vítima acompanhada, quando necessário, por autoridade policiai [..]".

Por seu lado, dispõe o artigo 82.°-A do Código de Processo Penal que:
"[...]1– Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72° e 77°, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham.
2– No caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório.
3– A quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em acção que venha a conhecer de pedido civil de indemnização".

A jurisprudência tem entendido que cabe ao Tribunal, por força da previsão da norma citada, e sob pena de nulidade, pronunciar-se sobre o arbitramento oficioso de indemnização "em todo o caso", desde que na ocasião da sentença não exista um pedido de indemnização civil pendente e processualmente válido, com uma única excepção: a de se verificar a oposição da própria vítima. — cfr., neste sentido, os acórdãos da Relação de Coimbra de 28.05.2014; da Relação de Guimarães de 22.04.2013, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.

Trata-se de um meio subsidiário de reparação das perdas e danos causados pelo crime não tendo havido dedução de pedido de indemnização cível.

Estão em causa prejuízos não patrimoniais, que — reportando-se a valores de ordem espiritual, ideal ou moral, não se repercutem no património do lesado e portanto não são susceptíveis de avaliação pecuniária, embora sejam compensáveis — correspondem àquilo que na linguagem jurídica se costuma designar por pretium doloris ou ressarcimento tendencial de angústia, da dor física, da doença, ou do abalo psíquico-emocional, em tudo semelhantes aos danos supra referidos para efeito de pedido de indemnização cível.

Apenas são atendíveis os danos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (conforme o artigo 496° do Código Civil) e o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo Tribunal, tendo em atenção a situação económica do agente e do lesado e demais circunstâncias do caso concreto (conforme o artigo 494° ex vi artigo 496% n° 3, ambos do Código Civil).

A fixação da indemnização nestes casos foge aos parâmetros normais, uma vez que nos encontrámos, quase sempre, perante uma reiteração de eventos danosos, enquanto na generalidade dos casos temos um evento danoso, ainda que com consequências que se prolongam no tempo.

Vejamos o caso concreto:
SP. não deduziu, designadamente, pedido de indemnização civil contra o arguido.

Por outro lado, referiu expressamente em audiência de julgamento que não pretendia o arbitramento de uma reparação de cariz pecuniário.

Assim sendo e em face da expressa oposição da vítima, decide o Tribunal não arbitrar qualquer reparação por considerar que não estão verificados os seus pressupostos à luz do disposto no artigo 21°, n.°2 da Lei n.° 112/2009 de 16 de Setembro (e sucessivas alterações) e artigo 82°-A, n.°1 do Código de Processo Penal.

111.6–Da recolha de ADN:
A Lei n.° 5/2008, de 12 de Fevereiro, aprovou a criação de uma base de dados de perfis de ADN (ácido desoxirribonucleico — cfr. artigo 2°, a)) para fins de identificação civil e criminal conforme resulta do seu artigo 1°: a lei estabelece os princípios de criação e manutenção de uma base de dados de perfis de ADN, para fins de identificação, e regula a recolha, tratamento e conservação de amostras de células humanas, a respectiva análise e obtenção de perfis de ADN, a metodologia de comparação de perfis de ADN, extraídos das amostras, bem como o tratamento e conservação da respectiva informação em ficheiro informático, sendo certo que essa base de dados de perfis de ADN serve ainda finalidades de investigação criminal.

Nos termos do artigo 8°, n.° 1, do supra referido diploma legal:
"[...]1– A recolha de amostras em processo-crime é realkada a pedido do arguido ou ordenada, oficiosamente ou a requerimento, por despacho do juiz a partir da constituição de arguido, ao abrigo do disposto no art.° 172° do Código de Processo Penal.
2– ,Quando não se tenha procedido à recolha de amostra nos termos do número anterior, é ordenada, mediante despacho do juíz de julgamento, a após trânsito em julgado, a recolha de amostras em condenado por crime doloso com pena concreta de prisão igual ou superior a 3 anos, ainda que esta tenha sido substituída. [...1".
As entidades competentes para a análise laboratorial em causa são, nos termos do disposto no artigo 5°, n.° 1, do mesmo diploma legal, o Laboratório de Policia Científica da Policia Judiciária e o Instituto Nacional de Medicina Legal.
Atento o exposto, verifica-se estarem reunidos os pressupostos formais para que se determine, com vista à criação da base de dados prevista pela lei em causa, a recolha de amostras de ADN ao arguido M., para os fins previstos no artigo 18°, n.° 3, do mesmo diploma legal.
Por seu turno, e em termos materiais, julgamos que tal recolha se mostra de igual modo justificada, considerando o tipo de criminalidade em análise, compatível com ulteriores investigações.”

7.2.–Apreciação.

1.– Da impugnação da matéria de facto, da valoração da prova das declarações da ofendida em audiência e para memória futura, das declarações de “ouvir dizer”, e da violação do princípio in dubio pro reo do erro notório na apreciação da prova, da contradição insanável entre a matéria provada e não provada.

Inicia o recorrente a apresentação da sua discordância relativa à sentença proferida nos autos, - que o condenou pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152°, n°s 1, a) e c) e 2 do Código Penal, na pena parcelar de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão, - na alegação de não ter sido produzida prova da prática do crime de que vinha acusado, impugnando os pontos números 4, 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12 da matéria de facto assente por provada.

Cumpre recordar que as Relações julgam de facto e de direito – art.º 428º nº 1 do CPP – mas o duplo grau de jurisdição está condicionado e limitado à previsão do art.º 410º nºs 2 e 3 do CPP.
A impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto exige ao recorrente a especificação dos artigos ou pontos da matéria de facto que considera incorrectamente apreciados, as provas que impõem decisão diversa da recorrida, as provas que devem ser renovadas – art.º 412º nº 3 do CPP.

Constitui entendimento pacífico e constante da jurisprudência dos tribunais superiores que a referência aos suportes técnicos a que se refere o nº 4 do art.º 412º implica a expressa indicação dos específicos pontos da gravação correspondentes aos depoimentos erradamente valorados pelo tribunal de 1ª instância e que reclamavam decisão diversa quanto à matéria de facto, não sendo admissível a indicação genérica da gravação desse depoimento.

Para dar cumprimento às referidas exigências legais tem o recorrente nas suas conclusões de especificar, quais os pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados, quais as provas específicas que impõem decisão diversa da recorrida, bem como referir as concretas passagens/excertos/segmentos das declarações/depoimentos que, no seu entender, obrigam à alteração da matéria de facto, transcrevendo-as (se na acta da audiência de julgamento não se faz referência ao início e termo de cada declaração ou depoimento gravados) ou mediante a indicação do segmento ou segmentos da gravação áudio que suportam o seu entendimento divergente, com indicação do início e termo desses segmentos (quando na acta da audiência de julgamento se faz essa referência, o que não obsta a que, também nesta eventualidade, o recorrente, querendo, proceda à transcrição dessas passagens).

Fica em aberto, obviamente, a possibilidade de conhecer da matéria de facto nos estreitos limites previstos no art.º 410º, nº 2 do CPP, por ser do conhecimento oficioso, cumprindo recordar que a disciplina dos vícios de contradição insanável de fundamentação, ou entre a fundamentação e a decisão, e do erro notório na apreciação da prova, cujo quadro legal disciplinador se encontra no disposto no referido art.º 410º nº 2 alíneas a) a c) do CPP, se exige que resultem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugados com as regras de experiência comum.

Ora, tais vícios, como jurisprudência uniforme dos tribunais superiores, apenas são atendíveis se resultarem, ostensivos, do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugados com as regras da experiência comum, e sejam perceptíveis por uma pessoa média, o que significa, além do mais, inadmissibilidade de apelo a elementos exteriores à mesma decisão.

2.– O recorrente funda a sua discordância quanto à decisão recorrida, alegando que não se provou a prática do crime de que vinha acusado, e que a matéria de facto assente por provada se fundou na errada valoração das declarações da ofendida prestadas para memória futura, contrariadas pelas declarações que prestou em audiência, assim como na valoração da prova testemunhal de “ouvir dizer”.

Perscrutada a decisão recorrida na parte da fundamentação da apreciação crítica da prova e da explicação dos motivos da convicção do tribunal, verifica-se que a mesma descreve de modo extenso e explicado que as declarações da ofendida, prestadas para memória futura e em audiência, assim como a prova testemunhal, não foram isoladamente apreciadas, tendo sido conjugadas com a prova pericial e documental expressamente ali descrita, como resulta do seguinte excerto que se transcreve:
“Consigna-se que, na formação da sua convicção, o Tribunal fundou-a com base na apreciação crítica da prova feita em audiência de julgamento, designadamente, as declarações prestadas pelo arguido M.  em sede de primeiro interrogatório judicial e em sede de audiência de discussão e julgamento; nas declarações prestadas para memória futura pela testemunha SP., bem como, nas prestadas na audiência de discussão e julgamento; no depoimento das testemunhas CG. e IC., as quais foram criticamente conjugados com a seguinte prova documental:
– Auto de denúncia da Polícia de Segurança Pública, de 04.04.2018, NPP 160818/2018, a fls. 3 a 6 e 80 a 83;
– Proposta para sinalização para teleassistência, de 06.04.2018, a fls. 10 a 12 e 102 a 106;
– Proposta de atribuição de estatuto de vítima, de 04.04.2018, a fls. 22 a 23 e 84 a 85;
– Certidão de sentença proferida no processo n.° 945/15.3P8LSB do J10 da Local Criminal do Tribunal de Lisboa, com menção da data de trânsito em julgado, a fls. 651 a 666;
– Ficha de avaliação de risco para situações de violência doméstica, de 04.04.2018, 06.04.2018, 12.04.2018, 24.04.2018, 28.08.2018, 10.09.2018, a fls. 88 a 89, 186 a 188, 190 a 192, 217 a 219, 547- a 552, 554 a 559;
– Relatório escolar de Muhtadir Sharif, da International School of Palmela, de fls. 110 a 113
– Print do sistema de registo de armas, de 06.04.2018, a fls. 114;
– Auto de primeiro interrogatório judicial e respectivo suporte de gravação de 16.04.2018 (cfr. artigo 141°, n.°4, b) do Código de Processo Penal), a fls. 152 a 160;
– Certidão de assento de nascimento de SM.  e HP., de fls. 198 a 199;
– Termo de responsabilidade de teleassistência, de 28.04.2018, a fls. 221 a 225;
– Auto de declarações para memória futura, de 15.05.2018 (cfr. artigo 21°, n.1, d) e 24° do Estatuto de Vítima Especialmente Vulnerável, artigo 33° da Lei n.° 112/2009de 16 de Setembro, e artigo 271° do Código de Processo Penal), a fls. 230 a 235;
– Informação do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, de 15.05.2018, a fls. 272;
– Consentimento para utilização de meios de vigilância electrónica para fiscalização à distância, de 28.06.2018, a fls. 365 a 366, 389 a 391 e 455 a 457;
– Informação sobre o arguido de violência doméstica e fiscalização da proibição de contactos, de 13.07.2018, de fls. 367 a 369, 384 a 388 e 450 a 454;
– Certificado de registo criminal a fls. 541 e 667;
– Relatório social elaborado pela Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais de 03.10.2018, de fls. 592 a 594, 596 a 598 e 599 a 601;
– Guia de recluso de 01.10.2018, a fls. 613;
– Auto de cópia de mensagens SMS de telemóvel, de 29.05.2018, a fls. 306 e respectivo suporte de gravação a fls. 307, acompanhado de transcrição de fls. 670 e ss, cuja tradução foi efectuada em audiência conforme resulta da acta que antecede;
Do apenso com o n.° 3539/18.8T9LSB:
–Relatório da Associação PP de 16.04.2018 referente a acompanhamento dos menores filhos do arguido em sede de sinalização para processo de promoção e protecção, a fls. 2 a 5 e 6 a 7.”

Do relato efectuado na fundamentação da decisão recorrida resulta explicado que nos encontramos perante as especificidades próprias da avaliação da prova em que a vítima de continuados crimes de violência doméstica, apresentou em audiência uma descrição dos factos diversa dos anteriormente descritos nas declarações para memória futura.

De acordo com o exame crítico da prova encontram-se pormenorizadamente explicadas as razões da alteração do estado psicológico da vítima, com o estatuto de vítima especialmente vulnerável, mãe de três filhos menores, que se encontram em processo de acompanhamento em sede de processo de promoção e protecção, às pressões para que retirasse a queixa, de receio que o arguido concretizasse as ameaças (de morte de todos os familiares da vítima,) associada às dificuldades identificadas na mesma em suprir sozinha as necessidades do seu agregado familiar, que anteriormente se encontrava totalmente dependente do arguido, que goza de um bom estatuto económico com um rendimento mensal de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros).

A vítima, já estigmatizada por crimes de violência doméstica perpetrados pelo arguido nos anos de 2015 e 2016, pelos quais foi condenado em pena cuja execução lhe foi suspensa na sua execução, viu-se novamente na necessidade de acompanhamento a partir de 2017 por técnicos da Associação Passo-a-Passo, Associação de Ajuda Psicossocial.

Em Abril de 2018, coincidindo com a sujeição do arguido ao regime de prisão preventiva e com o pedido do arguido para que a vítima retirasse a denúncia e as mensagens de voz para pressionar que retirasse a queixa, operou-se a mudança de atitude da vítima, que subitamente se tornou complacente com o comportamento do arguido dando mostras de que pretendia que o mesmo regressasse ao lar, o que não pode deixar de ser desassociado das dificuldades económicas da vítima e do agregado familiar.

Com base nesta avaliação do circunstancialismo em que se verificaram as diferentes declarações da vítima, em declarações para memória futura e em audiência de julgamento, o tribunal recorrido procedeu, de seguida, a detalhada apreciação do conteúdo concreto de tais declarações.

De tal análise resultou a demonstrada falta de credibilidade das declarações da vítima prestadas em audiência confrontadas com a autencidade das declarações que anteriormente prestara.

Desde logo, observe-se o pormenor das declarações da vítima em audiência e da atenta tentativa de correcção das mesmas em quanto fosse prejudicial ao arguido.

A vítima SP., em sede de declarações para memória futura, relatou, com detalhe e tranquilidade, as circunstâncias em que ela e o agregado familiar viviam, dependentes do arguido, que o que arguido a responsabilizou por não ter recebido a autorização de residência e as ameaças que lhe foram dirigidas em consequência desse facto, assim como as circunstâncias de tempo, lugar, modo e as razões pelas quais discutiram em casa.

Descreveu igualmente as agressões físicas de que foi alvo nesse circunstancialismo - um pontapé no peito e aperto de pescoço para que esta não fizesse barulho durante a contenda- e as circunstâncias de tempo, lugar, modo e as razões da discussão na loja do arguido, bem como, as ameaças ali proferidas e os efeitos que isso lhe provocou.

Assim também quanto à situação em que se viu forçada a manter contra a sua vontade relação sexual com o arguido e as consequências daí advenientes (referiu a toma de medicação para as dores) e as discussões que mantinham diariamente sobre a autorização de residência.

Já em sede de audiência de julgamento, a vítima relatou, de modo muito empenhado, nervoso e contraditório, que aquando da prestação de declarações para memória futura, se encontrava perturbada pela ideia de o arguido se encontrar num relacionamento com outra mulher e que, por essa razão, declarou anteriormente que os factos tinham ocorrido com o intuito de o prejudicar.

Do exposto, resulta que perante as versões contraditórias apresentadas pela ofendida, o Tribunal a quo considerou plenamente credíveis as declarações prestadas em sede de memória futura na medida em que, contrapondo ambas as prestações da testemunha, as mesmas foram prestadas de modo espontâneo e genuíno em momento temporalmente mais próximo da factualidade, encontrando particular sustento na prova documental, nomeadamente nos relatórios de apreciação de risco a fls. 88 a 89, 186 a 188, 190 a 192, 217 a 219, 547 a 552, 554 a 559, da colaboração para protecção via teleassistência e respectivo consentimento (fls. 10 a 12, 102 a 106, 221 a 225, 365 a 366, 389 a 391 e 455 a 457), auto de cópia de mensagens SMS de telemóvel, a fls. 306 e respectivo suporte de gravação a fls. 307, acompanhado de transcrição de fls. 670 a ss, salientando-se ainda com particular acuidade que, contrariamente ao ocorrido em sede de julgamento, as declarações prestadas pela testemunha em memória futura encontram-se corroboradas também pelo relato trazido a juízo pela testemunha CG., que relatou de modo consistente e coerente os factos relatados pela ofendida, que se coadunam com a primeira versão dos factos e não com o relatado em sede de julgamento.

Como resulta da fundamentação, “pese embora a ofendida tenha procurado, em audiência de julgamento, confundir os dois blocos de factualidade (de 2015, apreciado no processo n.º 945/15.3P8LSB, e de 2018), a verdade é que o seu relato não adere à realidade, na exacta medida em que, nos presentes autos, relatou espontaneamente que o arguido lhe apertou o pescoço e lhe desferiu um pontapé pela ocasião de uma discussão ocorrida pela meia-noite, enquanto dos factos provados do sobredito processo resulta a existência de agressões físicas no período da tarde e nunca nocturno, o que gera ao Tribunal reservas em considerar verídica a existência de uma confusão ao relatar factos que já tinham ocorrido.”

O Tribunal a quo não olvidou a circunstância de a testemunha e o seu agregado familiar se encontrarem na dependência económica do arguido, como causa justificativa do súbito comportamento protectivo do arguido.

Finalmente, o Tribunal a quo concluiu fundamentada e explicadamente por que entendeu as declarações prestadas pela testemunha SP. em sede de declarações para memória futura, eram credíveis, porquanto prestadas de modo genuíno, em detrimento das por si prestadas em sede de julgamento, atendendo além da referida prova documental às declarações das testemunhas CG.  e IC .

Alega o recorrente que o testemunho de CG.  é inválido por resultar de “ouvir dizer”.

Antes de examinar a validade jurídica da valoração de tais declarações importa explicar as circunstâncias em que a testemunha tomou conhecimento dos factos, no exercício da actividade de acompanhamento do agregado familiar da vítima que desde 2017 vinha desenvolvendo, no âmbito técnico de assistência social, não sendo por isso um “testemunho de ouvir dizer”.

Do seu testemunho o tribunal retirou as seguintes conclusões:
“A testemunha CG., assistente social e anteriormente técnica gestora da associação PP., relatou em juízo, de modo isento, espontâneo, detalhado e genuíno, tendo por isso merecido a plena credibilização por parte do Tribunal, a circunstância do acompanhamento realizado do agregado familiar do arguido durante os anos de 2017 e 2018, os sentimentos e convicções transmitidas por esta entre Maio de 2017 e Junho de 2018 e a mudança de percepção de SP., bem como, as mudanças de comportamento percepcionadas, que se deviam ao medo que SP. lhe foi transmitindo que sentia de que o arguido concretizasse as ameaças. A testemunha referiu especialmente que, em Abril de 2018, SP. lhe revelou, de forma emocionada (chorando nervosamente, o que foi percepcionado como comportamento genuíno pela declarante) que tinha sido alvo de agressões por parte do arguido, originadas por uma discussão relativa à atribuição de autorização de residência a SP. e aos filhos, bem como, da existência de ameaças de morte da própria e dos familiares, e de uma tentativa de contacto sexual contra a sua vontade, tendo ainda afirmado que 'andava a fugir do arguido com os meninos porque que tinha medo que lá aparecesse' (sic), justificação que apresentou para o facto de não se encontrar na habitação nas datas em que ocorreram as tentativas de contacto pela associação com a mesma. Segundo referido pela testemunha, a ofendida asseverou a quebra da relação e a vontade de se divorciar do arguido e seguir com a sua vida pois o marido tinha-lhe dito 'que não precisava da mulher nem dos filhos' (sic).
A testemunha relatou ainda, com detalhe suficiente para merecer a credibilização do Tribunal, que em momento posterior a Abril de 2018 constatou uma mudança de atitude de SP. que subitamente se tornou mais complacente com o comportamento do arguido dando mostras de que pretendia que o mesmo regressasse ao lar, o que a testemunha associou às dificuldades identificadas na mesma em suprir sozinha as necessidades do seu agregado familiar.
O relato formulado pela testemunha, cuja credibilidade intrínseca resulta do modo sereno como o depoimento foi prestado, é externamente corroborado pelas declarações prestadas por SP. em sede de declarações para memória futura e que, se analisadas criticamente perante as versões oferecidas em confronto, permite a valorização positiva das declarações para memória futura e do declarado pela testemunha CG., conjugadamente com os elementos documentais existentes nos autos (mormente, relatório a fls. 2 a 5 e 6 a 7 do apenso por linha e, de entre outros, consentimento para utilização de meios de vigilância electrónica para fiscalização à distância, a fls. 365 a 366, 389 a 391 e 455- a 457).”

Ora examinado o testemunho de CG., dele resulta que os factos que esta relatou, resultantes do seu acompanhamento do agregado familiar da vítima, como técnica de assistência social, que se limitou a constatar factos, reacções e estados de espírito durante os anos de 2017 e 2018, não se enquadra no depoimento indirecto da “testemunha de ouvir dizer”, não podendo ser considerado meio de prova proibido, nos termos do art.º 129º nº 1 do CPP.

De acordo com a jurisprudência uniforme dos tribunais superiores:
“I.– No nosso ordenamento processual penal, a regra é a da invalidade do depoimento por ciência indirecta, que só depois de confirmado se torna válido como meio de prova.
II.– Não corresponde a depoimento indirecto o depoimento de testemunhas que se limitam a constatar factos e reacções que presenciaram doutrem. O depoimento de uma testemunha que presencia a admissão de um crime por um arguido ao exclamar «ai o que eu fiz», não se enquadra no depoimento indirecto da «testemunha de ouvir dizer», não podendo ser considerado meio de prova proibido. É uma constatação de um facto, isto é de uma reacção. Verbi gratia o Ac. TR de Coimbra de 27 de Junho de 2007, in Col.ª Jur.ª Ano 2007, T3, pág.55.

 Também o Ac. TR de Guimarães de 11 de Fevereiro de 2008, in Col.ª Jur.ª Ano 2008, T1, pág.296:
“I.– Quando a testemunha relata em tribunal aquilo que ouviu da boca de outra pessoa, o depoimento é directo porque a testemunha dele teve conhecimento por o ter captado por intermédio dos seus ouvidos.
II.– Estando em causa a autoria de uma agressão, se o relato da testemunha é o que ouviu ao ofendido, nesse particular o seu depoimento é indirecto, na medida em que, relativamente a essa autoria, a testemunha não possui conhecimento directo.
III.– Se no julgamento foram ouvidos a testemunha e o ofendido que lhe relatou a agressão, não obsta a que o tribunal valore esse depoimento indirecto.”

E ainda que se considerasse que o testemunho fosse indirecto, o que já dissemos não ser o caso, o actual Código de Processo Penal, no seu artigo 129º, n.º 1, não estabelece qualquer proibição de produção dos depoimentos indirectos, prevendo apenas a proibição da sua valoração, na parte em que como tal devam ser qualificados, caso o tribunal não chamasse a depor as pessoas indicadas pela testemunha como sendo a fonte originária do conhecimento por ela transmitido ao tribunal. Ora in casu a testemunha CG.  e a vítima foram ambas ouvidas, pelo que a valoração do testemunho não era proibida, sendo por isso livremente apreciável pelo tribunal.

Do exposto supra resulta quanto ao facto provado número 5, relativo à discussão e postura agressiva do arguido, e aos factos provados números 6, 7 e 8, relativos ao episódio de 31 de Março de 2018, (ao pontapé no peito, aperto do pescoço e ameaças de morte), que o tribunal fundamentou a factualidade provada após exaustivo exame crítico da prova, nos termos já referidos supra, pelos quais na sua convicção prevaleceram as declarações prestadas pela vítima para memória futura, corroboradas por prova testemunhal e documental.

Acerca deste episódio de 31 de Março de 2018, alega o recorrente que não foram observadas lesões no corpo da ofendida, mas tal alegação não tem a virtualidade de colocar em causa a factualidade provada, até porque a vítima não procurou tratamento hospitalar, o que não será estranho ao estado de pânico e terror em que a mesma ficou após as agressões e ao profundo medo que tinha de que o arguido a matasse, tal como este prometera fazer.

Resultou também provado que “o comportamento do arguido M. provocou em SP. um constante estado de pânico e terror que a faz temer pela sua vida e integridade física.”

Quanto aos números 9 e 10 da matéria provada, que se reportam ao dia 2 de Abril de 2018, e às ameaças do arguido de matar toda a família da vítima, caso o arguido não recebesse autorização de residência, e números 11 e 12 da matéria provada, relativos às chamadas de voz para retirar a queixa de 4 de Abril de 2018, sucede que ao contrário do que alega o recorrente se encontram concretizadas temporalmente ocorridas após a saída de casa do arguido a 2 de Abril e à queixa da vítima de 4 de Abril, e que apesar de não ter sido determinada a origem das chamadas de voz, as mesmas encontram-se registadas e não estão em contradição com a alínea k) da matéria não provada:
“k)- Que os contactos referidos em 12) tivessem sido realizados pelos números 0088.........81 e 088.........79 (ambos do Bangladesh) e pela aplicação Facebook Messenger”.

O recorrente alega a verificação de contradição insanável entre o facto número 4 da matéria provada – que não resultaria do depoimento de nenhum sujeito processual, - e a matéria de facto não provada, descrita nas alíneas c) e d) desta.

Observada a matéria de facto provada, descrita no número 4, verifica-se que esta deu como provada uma ocasião, em data indeterminada, que a fundamentação situa entre Março e Abril de 2018, em que o arguido manteve relações sexuais com a ofendida, contra a vontade desta, causando-lhe sofrimento psíquico, e a matéria de facto não provada, descrita nas alíneas c) e d) desta, pela qual se deram como não provadas as relações sexuais, posteriores a 9 de Junho de 2017, contra a vontade da ofendida, com violência, e do qual resultaram lesões e hematomas na zona genital e sofrimento físico e psicológico.

Cumpre observar que os factos provados se encontram devidamente balizados no tempo, durante a vida em comum do casal entre Março e Abril de 2018, tal como expressamente explicado na fundamentação em que prevaleceram as declarações prestadas pela vítima para memória futura, corroboradas por prova testemunhal.

Por outro lado não existe contradição insanável entre a factualidade provada, ocorrida entre Março e Abril de 2018, e a não provada, referente a data posterior a 9 de Junho de 2017, porque as referências temporais se referem a diferentes episódios descritos em cada uma das situações, pelo que do texto da decisão recorrida não se verifica o alegado vício.

Ora perscrutada a decisão recorrida verifica-se que em relação aos factos, a decisão do tribunal, que beneficiou da imediação, se encontra devidamente fundamentada, explicando os motivos pelos quais, face às declarações do recorrente e da vítima, tanto nas suas declarações para memória futura, como as prestadas em audiência, a prova testemunhal, já examinada, e a prova documental, ficou com total certeza da factualidade provada e sem qualquer dúvida quanto ao grau de certeza com que poderia dar como provados tais factos, explicando o processo lógico-dedutivo alcançou tais conclusões, que assim sendo só poderia ter sido decidida em nos precisos termos em que o foi, não merece qualquer censura, sendo de assinalar, como decidido na jurisprudência dos tribunais superiores que “quando da atribuição de credibilidade a uma fonte de prova se basear em opção assente na imediação ou oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras de experiência comum”. Neste sentido verbi gratia o Acórdão do TR de Coimbra, de 6 de Março de 2002, in Col.ª Jur.ª, ano XXVII, Tomo II, pág. 44.

Assim, “ao tribunal superior cumpre verificar a existência da prova e controlar a legalidade da respectiva produção, nomeadamente no que respeita à observância dos princípios da igualdade, oralidade, imediação, contraditório (…) verificando, outrossim, a adequação lógica da decisão relativamente às provas existentes. Assim, só em caso de existência de provas, para se decidir em determinado sentido, ou de violação das normas de direito probatório (nelas incluindo as regras da experiência comum ou da lógica) cometida na respectiva valoração feita na decisão de primeira instância, esta pode ser modificada, nos termos do art.º 431º do CPP”, cfr. Ac. desta 5ª Secção do TR de Lisboa, sendo relator o Senhor Conselheiro Vasques Dinis, de 22 de Novembro de 2005, no processo nº 3717/05.5.

Por outro lado, e conforme há muito entendido pela jurisprudência dos tribunais superiores, o recurso em matéria de facto previsto no nosso sistema processual, não se destina à obtenção de um segundo julgamento sobre tal matéria, mas antes está concebido, tão só, como um remédio jurídico destinado a corrigir eventual ilegalidade cometida, e no caso concreto ora em apreciação, do exame de todas as provas disponíveis não se verifica, nem se vislumbra, que o tribunal haja violado as regras de experiência comum ou da lógica, em que se funda a livre apreciação da prova, nem que haja violado qualquer das normas do direito probatório, o que recorrente também não invoca, tendo limitado a sua impugnação da matéria assente, na sua pessoalíssima e diversa interpretação da prova, pelo que a interpretação da prova efectuada pelo recorrente, nos termos expostos, não tem sequer a virtualidade de abalar o julgamento da matéria de facto efectuada em primeira instância, como declarado pelo Tribunal Constitucional, no processo nº 198/04, publicado in DR II Série, de 2 de Junho de 2004, onde se afirma que, “a impugnação da decisão em matéria de facto terá de assentar na violação dos factos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na convicção ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção. Doutra forma seria a inversão dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela de quem espera a decisão”.

O recorrente, procurando restringir a apreciação do tribunal à sua interpretação dos factos, decidiu não se pronunciar nas conclusões da motivação de recurso sobre a concreta apreciação do tribunal e teor da sua fundamentação, não procedendo o seu entendimento sobre as razões pelas quais o tribunal deveria ter entendido no sentido pelo recorrente e os motivos pelos quais em confronto com tal versão deveria o tribunal a quo ter decidido.

O recorrente limitou-se a invocar o alegado erro na apreciação da prova, sustentando que o tribunal a quo, deveria atribuir credibilidade às declarações da vítima em audiência e à invalidade dos testemunhos contrários à sua pretensão de serem dados como não provados os factos apurados.

Vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, com expressa previsão no artigo 127º do Código de Processo Penal, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pela recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador, após a produção de prova em audiência de julgamento, não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação.

Assim, não só a prova se encontra devidamente analisada como a matéria de facto não merece reparo ou censura.

Da mesma forma cumpre recordar, que não havendo nos termos da fundamentação da decisão recorrida qualquer raciocínio que tivesse base em presunções, nem margem de dúvida quanto à prática dos factos provados pelo recorrente, não permite a formulação de qualquer juízo de dúvida que pudesse ser solucionada com recurso ao princípio de in dubio pro reo.

Com efeito e de acordo com a jurisprudência uniforme dos tribunais superiores, verbi gratia, o Ac. do TRL de 29 de Junho de 2006, proferido no processo nº 3759/06 da 9ª Secção, disponível em www.pgdlisboa.pt “o princípio In dubio pro reo só se aplica no domínio da prova quando o tribunal tenha ficado numa situação de non liquet, ou seja com sérias dúvidas relativamente aos factos, que em tal situação teria de ser resolvida a favor do arguido”, ou ainda nas palavras do Ac. do TRL de 2 de Novembro de 2006, de que foi relator o mesmo relator do presente recurso, também disponível em www.pgdlisboa.pt:
“O tribunal só lança mão do princípio in dubio pro reo – corolário do princípio constitucional da presunção da inocência (art.º 32º nº 2 da CRP) – se a prova produzida, depois de avaliada segundo as regras da experiência e da liberdade de apreciação (art.º 127º CPP), tivesse conduzido à subsistência, no espírito do julgador, de uma dúvida positiva invencível sobre a verificação ou inexistência de um facto relevante para a descoberta da verdade”.

3.– O recorrente alega que a factualidade provada não é subsumível à previsão legal do crime de violência doméstica previsto no art.º 152º do Código Penal.

No caso dos autos resultou assente que, no período compreendido entre Março e Abril de 2018, o arguido, cônjuge da destinatária SP., a qual depende economicamente do mesmo, praticou, a título doloso e no domicílio comum do casal, um conjunto de factos lesivos da integridade física e psíquica (pontapé, aperto de pescoço, relação sexual não consentida, ameaças de morte, discussões constantes), factos que geraram receio legítimo, dor, mau-estar e estado de pânico na destinatária que, se interpretados no seu contexto (veja-se que não são situações meramente isoladas de eventual ofensa à integridade física, ameaça ou coacção sexual, mas antes factos praticados em contexto de vida conjugal, após condenação por prática de factos semelhantes e durante o período da suspensão da execução da pena ali aplicada), e que, por isso consubstanciam uma afectação ilegítima e intolerável da pessoa, dignidade e liberdade da ofendida.

Assim, concluiu o Tribunal que os actos praticados pelo arguido são adequados para o preenchimento do tipo legal do crime de violência doméstica, no seu elemento objectivo, pois integram a prática de mau trato psicológico e físico e reiterado. Por outro lado, da factualidade descrita e provada resulta também que aquela conduta é idónea para criar uma situação de vítima por parte da visada (sua mulher e mãe de descendentes comuns) que, em face das atitudes constantes do arguido e da sua dependência económica, não tendo autonomia para sair de casa, não estava em situação de se defender (verificando-se assim o preenchimento das alíneas a) e c) do nº 1 do artigo 152° do Código Penal). Além disso, está também preenchido o elemento subjectivo do crime em causa pois o arguido actuava motivado pela sua própria vontade e consciente do alcance da sua conduta e das suas consequências.

Finalmente, a circunstância de tais factos terem sido praticados também na residência onde todos viviam, impedindo a sua normal vivência dentro do seu espaço habitacional e convivial, nomeadamente, pela imposição da presença do arguido no interior do mesmo, permite concluir, pelo preenchimento dos elementos objectivo e subjectivo do crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152°, nºs 1, a) e c) e 2 do Código Penal.

O bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica é plural e complexo, visando essencialmente a defesa da integridade pessoal, nas suas vertentes física, psíquica e mental, e a protecção da dignidade humana no âmbito de uma particular relação interpessoal.

“Embora o tipo legal abranja acções típicas que já encontram previsão noutros tipos legais, o seu fundamento deve ser encontrado na protecção de quem, no âmbito de uma concreta relação interpessoal, vê a sua integridade pessoal, liberdade e segurança ameaçadas com tais condutas, sendo, pois, o enfoque colocado na situação relacional existente entre agressor e vítima.

O verdadeiro traço distintivo deste crime relativamente aos demais onde igualmente se protege a integridade física, a honra ou a liberdade sexual, reside no facto de o tipo legal prever e punir condutas perpetradas por quem afirme e actue, dos mais diversos modos, um domínio, uma subjugação, sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade e que a reconduz a uma vivência de medo, de tensão, de subjugação.” Verbi gratia o Acórdão do TR de Guimarães, de 4 de Junho de 2018, relator Jorge Bispo.

No caso dos autos, a caracterização de uma posição de dominação e de prevalência do arguido sobre a vítima, com a consequente subjugação desta, resulta suficientemente caracterizada em face da reiteração de violências e maus tratos físicos e psíquicos, traduzidos em sofrimento moral, derivado das múltiplas agressões físicas, violência sexual, injúrias e ameaças de morte, com foros de seriedade, tendo-se demonstrado que a ofendida, para além do terror, pânico, vexame, humilhação e constante sobressalto sofridos, ficou amedrontada, intimidada, insegura e intranquila, a ponto de ver prejudicada a sua liberdade de decisão e de acção, por recear que o arguido concretizasse as ameaças e atentasse conta a sua vida e integridade física, assim como dos seus familiares.

Ora, perscrutada, mais uma vez, a decisão recorrida dela não resulta ter havido qualquer dúvida quanto à culpabilidade do recorrente, assim como quanto ao dolo e à plenitude dos elementos constitutivos do ilícito criminal de violência doméstica p. e p. pelo art.º 152º nºs 1 alíneas a) e c) e 2 do Código Penal, pelo qual foi o recorrente, muito justamente, condenado, termos em que improcede a pedida absolvição.

4.– O recorrente alega que a medida concreta da pena, fixada em 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão, é desproporcionada, e que se lhe afiguram preenchidos os pressupostos de suspensão de execução da pena de prisão, como resultantes das suas condições pessoais, bom comportamento prisional e juízo de prognose favorável fundado na prisão preventiva sofrida.

Considerada a moldura penal abstracta aplicável, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos de prisão, não militando a favor do arguido qualquer atenuante, como a mera confissão ou o simples arrependimento, e tendo sido condenado um ano antes dos factos por crimes de violência doméstica perpetrados em 2015 e 2016, voltando o arguido a cometer no crime de violência doméstica entre Março e Abril de 2018, e considerados os concretos actos praticados, de violência sexual, agressões físicas e psíquicas, ameaças de morte com foros de seriedade, infundindo terror e pânico na vítima, a pena concreta fixada de três anos e nove meses encontra-se ponderada de acordo com os atinentes critérios legais e jurisprudenciais, não merecendo censura nem reparo, sendo por isso insusceptível de redução.

Não demonstrando o recorrente arrependimento nem interiorização da gravidade e desvalor das suas condutas, tendo praticado o crime no decurso do prazo de suspensão da execução da pena de prisão por crime da mesma natureza, não se nos afigura que as condições pessoais do arguido, que aufere € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) de rendimento mensal, ou o tempo de prisão preventiva, possibilitem a efectivação de um juízo de prognose favorável ao seu comportamento futuro, uma vez que tanto as referidas condições pessoais, como a condenação anterior não obstaram à prática do crime, como os autos espelham abundantemente que nem o tempo de prisão preventiva sofrido alterou a sua personalidade e postura perante a vítima, pelo que o juízo efectuado na decisão recorrida, quanto à necessidade de cumprimento efectivo da pena de prisão se encontra plenamente demonstrado, termos que ditam a improcedência do recurso.

8.–Decisão:

Em conformidade com o exposto acordam os juízes neste tribunal em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido M.  e confirmar a douta decisão recorrida.
Custas em 5 (cinco) Unidades de Conta.
(Texto elaborado de acordo com a raiz latina da língua portuguesa, em suporte informático e integralmente revisto pelos signatários)



Lisboa, 19 de Março de 2019



Ricardo Manuel Chrystello e Oliveira de Figueiredo Cardoso
Artur Daniel Tarú Vargues da Conceição