LIQUIDAÇÃO DA SOCIEDADE
INSOLVÊNCIA
ENCERRAMENTO POR INSUFICIÊNCIA DA MASSA
PODERES DO GERENTE E DO SÓCIO NA LIQUIDAÇÃO
Sumário

I - As sociedades comerciais só retomam a atividade com o encerramento do processo de insolvência, se o mesmo se fundar na homologação de plano de insolvência que preveja a continuidade da exploração, ou se houver deliberação dos sócios nesse sentido, no caso de o encerramento resultar de pedido do devedor;
II - Após o encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente, a liquidação da sociedade insolvente prossegue através do procedimento administrativo de dissolução e liquidação de entidades comerciais previsto no Dec. Lei nº 76-A/2006, de 29.3 [RJPADLEC];
III - Daqui decorre que nesta fase (de liquidação) a cessão de um crédito para pagamento de uma eventual dívida só poderá ser efetuada pelo liquidatário, nomeado pelo Conservador, e no âmbito de tal procedimento administrativo;
IV - O gerente e os sócios da sociedade insolvente não têm, nesta fase, apesar da manutenção da sua personalidade jurídica que só se extingue com o registo do encerramento da liquidação, poderes para disporem livremente dos bens da sociedade, procedendo, designadamente, à cessão de um crédito.

Texto Integral

Proc. nº 348/14.7T8STS-AV.P1
Apelação
Comarca do Porto – Juízo de Comércio de Santo Tirso – Juiz 4
Recorrente: “B..., Lda.”
Recorrida: Massa Falida de C..., S.A
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e Maria de Jesus Pereira

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
A autora, “B..., Lda.”, com sede na Rua ..., n.º .., ..., Santo Tirso, propôs a presente ação declarativa de condenação, com forma de processo comum, por apenso ao processo de falência no qual foi declarada em estado de falência a ali requerida “C..., Limitada”, contra a aqui ré, “Massa Falida de C..., S.A”, peticionando a condenação desta a pagar à autora (que adquiriu o direito de crédito que pertencia à “D...”), o valor de 3.247.040,00€, acrescido de IVA e de juros de mora, à taxa legal, desde a citação para a presente ação até integral pagamento.
Para fundamentar a sua pretensão, alega a autora que depois de ter sido declarada a falência da referida empresa, a sociedade “D..., Lda.” instaurou contra a ora ré uma ação judicial, mediante a qual peticionou o reconhecimento de que o liquidatário judicial daquela “C...” não podia apreender os bens que identifica e que fosse ordenado o levantamento do arrolamento daqueles bens e a restituição dos mesmos à ali autora. Tal ação veio a ser julgada procedente e, em consequência, ordenada a restituição àquela “D... …” dos bens em causa, dado que se provou que os mesmos tinham sido por si adquiridos e eram sua propriedade.
Mais alega que quando tais máquinas e equipamentos foram apreendidos encontravam-se em perfeito estado de funcionamento e utilização. Porém, refere, apesar daquela sentença, a ré não entregou voluntariamente àquela “D...” os bens que tinha à sua guarda nas antigas instalações da “C...”, tendo sido instaurada execução para entrega dos mesmos. Na data designada para a entrega dos bens àquela “D...”, veio a verificar-se que, para além de parte dos equipamentos e máquinas ter desaparecido, as máquinas e equipamentos que vieram a ser entregues tinham perdido o seu valor, encontrando-se imprestáveis e praticamente em estado de sucata, sendo que para a reparação e substituição de tais máquinas era necessário o valor de 1.702.775,00€, acrescido de IVA. Aquela “D... …” tentou negociar a venda de tal equipamento, no estado em que se encontrava, mas a melhor proposta foi de 110.000,00€ e foi esse o valor obtido com a venda dos mesmos.
Concluiu, defendendo que aquela “D... …” sofreu um prejuízo com a apreensão de tais bens que ascendeu ao valor de 3.247.040,00€, acrescido de IVA, ao qual acrescem todos os demais prejuízos sofridos devido a tal apreensão, nomeadamente resultantes de ter deixado de poder utilizar tais máquinas e equipamentos; ter perdido a sua atividade; a sua quota de mercado; os seus clientes, etc., valores que serão peticionados posteriormente, em ação própria, não sendo, por isso, objeto desta ação.
Finalmente, e para justificar a sua legitimidade, alega que através de contrato de cessão de crédito outorgado em 28.11.2016, a aqui autora adquiriu à empresa “D... …” o direito de crédito, ainda litigioso, resultante de todos os prejuízos causados àquela que derivaram da referida apreensão de bens, onde se inserem os prejuízos que estão a ser peticionados na presente ação.
Na sequência do despacho proferido a fls. 72, e porque resultava da respetiva base de dados que a aqui a referida “D... …” tinha sido declarada insolvente, tomou a autora a iniciativa de esclarecer nos termos que constam de fls. 75 e segs., designadamente que no processo de insolvência da “D... …” reclamou o seu crédito no montante de 2.560.214,09€ e foi ali colocada a questão de ser instaurada uma ação por parte da massa insolvente contra a aqui ré, bem como foi requerida a substituição do Sr. Administrador da Insolvência ali nomeado, porque era o mesmo dos autos principais de insolvência da referida “C... …”, mas tal proposta veio a ser rejeitada com o voto desfavorável do credor “E...”. Assim, o processo veio a ser encerrado por insuficiência da massa, conforme publicação do dia 22.11.2016, terminando funções o Sr. Administrador de Insolvência nomeado no processo, cessando todos os efeitos que resultaram da declaração de insolvência e recuperando a “D... …” a livre gestão dos seus negócios. E, defende, que foi nessa sequência que, em 28.11.2016, aquela “D... …” cedeu o crédito à aqui autora.
Regularmente citada, veio a ré apresentar contestação, na qual defendeu a inexistência do direito na titularidade da autora, determinante da sua falta de legitimidade (material) para a presente ação, a inexistência do direito objeto de compensação na titularidade da autora, a prescrição do direito e a inexistência de culpa.
Defendeu a ré, em síntese, e quanto ao primeiro fundamento, que na sequência do encerramento do processo de insolvência da referida “D... …”, por insuficiência da massa insolvente, é de aplicar o estatuído no n.º 4 do artigo 234.º do CIRE e, consequentemente, o percurso a seguir era o do procedimento administrativo de dissolução e de liquidação previsto no Anexo III ao Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29.3 (RPADLEC).
Mais defendeu que, encerrado o processo por insuficiência da massa, sendo o devedor uma sociedade comercial, esta considera-se dissolvida e passa a ser uma sociedade em liquidação, devendo extinguir-se definitivamente com a concretização da respetiva liquidação. E, dissolvida a sociedade, os poderes dos administradores ficam limitados à prática dos atos meramente conservatórios, não podendo os administradores tomar iniciativas sobre a gerência da sociedade, não lhes sendo tão-pouco permitido continuar a gerir os seus negócios e a sua atuação limita-se à conservação do património, ou à preparação da sua liquidação, se não tiverem sido nomeados liquidatários. E, quanto à nomeação de liquidatários, na situação presente, cabia ao Sr. conservador, e seriam aqueles a praticar todos os atos necessários à liquidação do património social, ultimando os negócios pendentes, cobrando os créditos, alienando os bens e pagando aos credores, em conformidade com o disposto no art. 1015.º do Cód. Civil e n.º 3 do art. 152.º do Cód. das Sociedades Comerciais.
Assim, defendeu, que a referida “D... …” em vez de comunicar a existência do direito no âmbito do Procedimento Especial de Liquidação, como estava obrigada, optou, à revelia da lei, por cedê-lo à autora sem que tivesse legitimidade para o fazer, pois tal cedência, ainda que viesse a ocorrer, teria de o ser no âmbito do procedimento de liquidação, de acordo com as suas regras, e o ato praticado pelo liquidatário nomeado pelo Conservador, único com legitimidade para o fazer, sendo certo que neste caso existiam credores da insolvente interessados nesse crédito. Pelo que, não deveria ter sido feita uma liquidação privada, à margem da lei, cedendo a “D...” um direito a uma sociedade com quem manteve desde o passado um relacionamento especial, utilizada até pelo gerente da insolvente, F..., para fazer negócios, a troco da extinção de um alegado crédito, que a existir seria de natureza subordinada, deixando de lado credores como a Fazenda Nacional e a Segurança Social, e sendo certo, ainda, que a aqui autora não é um terceiro de boa fé, que careça de proteção, pois a mesma interveio no processo de insolvência, onde era credora, e esteve ao corrente de toda a sua tramitação, incluindo a discussão no seio da assembleia de credores do destino a dar a esse direito, sendo a má fé da mesma evidente.
Concluiu, defendendo que a “D... …” não ficou vinculada perante a aqui autora, uma vez que na invocada cessão de créditos interveio o seu gerente, pessoa que não tinha legitimidade para intervir no âmbito do procedimento administrativo de liquidação e vincular a sociedade, a menos que fosse nomeado liquidatário, o que não sucedeu, a que acresce o facto da cessão ter ocorrido no âmbito do procedimento oficioso de liquidação, que tem um regime jurídico próprio, tendo sido levada a cabo numa espécie de liquidação privada ou interna, sem a intervenção de autoridade externa (o Juiz, no caso da liquidação judicial, ou o Conservador, no caso da liquidação administrativa), e sem sequer cumprir com as regras a que uma liquidação privada obriga, por violar as regras básicas que devem nortear a liquidação, sendo uma delas a prioridade de pagamento de dívidas ao Estado, que constava da lista de credores da referida “D... …”, e de estar a pagar um crédito que, ainda que existisse, seria subordinado.
Terminou, pronunciando-se no sentido da improcedência da ação.
Depois, em sede de despacho saneador, foi proferida sentença que julgou improcedente a ação e absolveu a ré “Massa Falida de C..., S.A.” do pedido formulado pela autora.
A autora, inconformada, interpôs recurso de apelação, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:
I) - Terá de ser alterada a alínea h) dos factos provados – que refere que “No acordo aludido em g), interveio o gerente da insolvente” - por a mesma padecer de claro defeito, o que resulta dos autos, nomeadamente do documento nº. 16 junto à p.i., que constitui o contrato de cessão de crédito, e que se encontra assinado, por um lado, pelo gerente da recorrente (G...) e, por outro, pelo gerente e pelos sócios da D..., como é possível também aquilatar através do documento nº. 1 junto à contestação da recorrida;
II) - Daí que, resultando essa prova claramente dos autos, deverá a alínea h) dos factos provados ser alterada nos seguintes termos: “No acordo aludido em g), interveio quer o gerente da autora, quer o gerente e os sócios da D...”
III) - Na sua contestação a recorrida veio defender a falta de legitimidade material da recorrente para intentar a presente ação, alegando para tanto a inexistência do direito na titularidade da recorrente, tendo a Mª. Juiz entendido que a recorrente não havia adquirido validamente o crédito em causa nos autos, por, supostamente, não ter sido transmitido eficazmente para a recorrente aquele crédito pela empresa D..., tese com a qual se não concorda;
IV) - A Mª. Juiz “a quo” entra noutra enorme confusão na decisão recorrida, ao afirmar, referindo-se ao negócio de transmissão do crédito da D... para a recorrente, que “neste caso, tal transmissibilidade pode ser afastada, como invocado pela aqui ré e que a autora alega ser a devedora, e que é, pois, uma interessada na ineficácia da cessão alegada pela aqui autora”.
V) - É que tal argumento não tem o menor sentido, e deveria desde logo levar à improcedência da exceção deduzida pela recorrida, por força do disposto no artigo 585º. do C.C.;
VI) - Como se refere in Código Civil Anotado de Pires de Lima e Antunes Varela, Volume I, pág. 600 e segs., na nota 3 ao artigo 585º “Excluem-se, como é natural, do círculo dos meios de defesa oponíveis pelo devedor, todas as circunstâncias que respeitam à causa da cessão; estas interessam apenas às relações entre cedente e cessionário, e não ao devedor, que é um terceiro em relação ao facto da cessão”;
VII) - A cessão de crédito celebrada entre a D... e a recorrente produziu os seus efeitos entre as partes, sendo res inter alios acta para os terceiros em geral, nomeadamente para o devedor (recorrida), sendo o que decorre do princípio da relatividade dos contratos (artigo 406º. do C.C.), e a cessão de créditos é um contrato, sendo que, como referido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28/01/2004, disponível em www.dgsi.pt, “Tendo havido cessão de crédito, o devedor cedido é terceiro quanto ao acordo de cessão, não gozando do direito de impugnar o contrato de cessão com fundamento em vícios do mesmo.”;
VIII) - A recorrida, como devedora cedida que é, é simplesmente terceira quanto ao acordo de cessão (v. Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 9ª ed., pág 760), não tendo legitimidade para pôr em causa tal negócio de cessão de crédito, já que o que a lei (artº 585º do CC) lhe concede é apenas o direito de opor ao cessionário os meios de defesa que podia invocar contra o cedente, sendo que também Antunes Varela (v. Das Obrigações em Geral, II, 3ª ed., pág 263) informa que são irrelevantes para o devedor os vícios do contrato de cessão.
IX) - Neste caso, mesmo que a cessão viesse porventura a sofrer de algum vício, v.g. ser declarada nula ou anulada, o pagamento não perderia a sua validade e eficácia (v. Antunes Varela, ob. cit., pág 264), e a recorrida não teria sequer interesse em agir nesta matéria, pois interessado entende-se aqui o titular de relação cuja consistência possa ser afetada pelo negócio, o que não é o caso da recorrida, sendo que a recorrida nunca poderá ser afetada pela pretensa invalidade da cessão, pois que a primitiva credora não goza do direito de exigir a repetição do pagamento feito à cessionária (recorrente) e a recorrida sempre seria devedora do crédito em causa;
X) - Daí que a recorrida – que não era credora da insolvente D..., nem nenhum direito tinha sobre a mesma - para além da evidente falta de interesse em agir relativamente à exceção deduzida, não tenha também legitimidade para a arguir, já que a Lei não lhe dá o direito, dentre os meios de defesa oponíveis perante a recorrente, de tentar colocar em causa o negócio de cessão de crédito operado entre a recorrente e a D..., e daí que nunca a Mª. Juiz “a quo” poderia ter proferido a decisão recorrida, violando assim o disposto no artigo 585º. do C.C.;
XI) - Por outro lado, se é verdade que, como refere a Mª. Juiz “a quo”, nos termos do nº. 1 do artigo 577º. do C.C., a cessão só é eficaz se não existirem impedimentos legais”, já não é correto que “na situação em apreço, a questão que se coloca refere-se a impedimento legal”, já que aquelas exceções referidas no nº. 1 do artigo 577º. do C.C. referem-se a exceções à regra da livre cedibilidade de créditos, mas que têm a ver com a própria natureza do crédito, e não com os requisitos do negócio da cessão, como de forma clara se escreveu no sumário do acórdão do S.T.J. de 02/07/1996, disponível em www.dgsi.pt, quando refere que “No que respeita aos direitos de crédito, há duas ordens de excepções à regra da livre cedibilidade, ambas elas inspiradas no mesmo pensamento básico: por um lado, os direitos cuja cessão seja interdita por lei ou convenção das partes; por outro lado, os direitos de crédito cuja constituição se encontra de tal modo ligada à ideia de satisfação directa das necessidades pessoais do credor, que seria ilógica não só a transmissão para terceiro, como a própria negociabilidade da sua cedência.”, tratando-se de casos em que, devido à própria natureza do crédito, a lei impede a sua cessão, como são exemplos os casos de crédito de alimentos e os casos previstos no artigo 579º. de créditos litigiosos, como refere também Antunes Varela in “Das Obrigações em Geral, Vol. II, pag. 266;
XII) - A Mª. Juiz “a quo” faz aqui uma enorme confusão e, partindo de um pressuposto errado, confunde a questão das exceções resultantes da lei relativas à livre cedibilidade do crédito (que é o que consta do nº. 1 do artigo 577º. do C.C.) com a própria cessão em si, a sua causa e os requisitos atinentes a essa causa.
XIII) - Dúvidas não podem existir que o crédito em causa pertencia à empresa D..., que foi quem procedeu à sua cedência à recorrente, através de contrato outorgado quer pelo seu gerente, quer pelos seus sócios.
XIV) - O raciocínio da Mª. Juiz “a quo” vai no sentido de, tendo o processo de insolvência terminado por ter sido encerrado por insuficiência da massa, e apesar de não ter sido feita nem sequer iniciada a liquidação da empresa, a mesma manter-se-ia dissolvida (apesar de terem cessado os efeitos do processo de insolvência, por o processo ter sido encerrado) e, portanto, o gerente da D... não teria legitimidade para vincular a sociedade e ceder o crédito (esquecendo-se, desde logo, que no contrato intervieram também os próprios sócios da D...), e partindo deste raciocínio, considera que existia um impedimento legal à cessão do crédito (com base no nº. 1 do artigo 577º. do C.C.), e que na altura em que o crédito foi cedido, tal cedência só poderia ocorrer no âmbito de um processo de dissolução e liquidação da empresa na Conservatória, o que não faz o menor sentido;
XV) - Tendo o processo de insolvência da empresa cedente (D...) terminado, por insuficiência da massa, o encerramento do processo por insuficiência da massa foi comunicado à Conservatória do Registo Comercial de Guimarães e foi levado a registo por parte desta Conservatória através da Insc. 7 - Ap. 9 no dia 24/11/2016 e, portanto, na data em que o crédito foi cedido pela D... à recorrente (28/11/2016), o processo de insolvência estava encerrado, sendo que tal encerramento do processo concursal não corresponde à extinção da sociedade insolvente – o que equivale a dizer que a sociedade comercial mantém a sua personalidade jurídica;
XVI) - Apenas com o registo do encerramento da liquidação a sociedade fica extinta, ou seja, enquanto não for efetuado o registo do encerramento da liquidação não se pode considerar a sociedade extinta, pelo que esta mantém a sua personalidade jurídica – nos termos do artigo 5.º do CSC, artigo 158º. do C.C. e artigo 11.º do CPC;
XVII) - Apesar de o encerramento do processo por insuficiência da massa ter ocorrido a 21/11/2016, esse facto apenas determinou que a dissolução e liquidação da sociedade ocorresse nos termos do artigo 24.º n.º 6 do RJAPLEC – não tendo prejudicado em nenhuma medida a personalidade jurídica da sociedade D..., que se manteve, dado que não foi imediatamente extinta, e este processo de dissolução e liquidação só se iniciou em 21/06/2017 (iniciando-se e terminando, aliás, no próprio dia);
XVIII) - Apenas no dia 21/06/2017, foi iniciado este processo de dissolução e liquidação e registada a decisão de liquidação administrativa, sendo que entre o encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente e a decisão de dissolução e liquidação administrativa e respetivo cancelamento da matrícula, a sociedade comercial manteve a sua personalidade jurídica, ou seja, até ao dia 21/06/2017, a sociedade comercial não viu cancelada a sua matrícula e não viu iniciado aquele processo com vista à sua extinção – mantendo sempre a sua personalidade e capacidade jurídica, sendo que analisando o caso expresso no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23/06/2015 referido, verifica-se que o entendimento ali expresso é precisamente o de que o encerramento do processo de insolvência não gera automaticamente a dissolução e extinção da sociedade comercial, reconhecendo até legitimidade à própria insolvente para requerer a própria liquidação, se a mesma não for feita oficiosamente pelo Conservador;
XIX) - Após o encerramento do processo de insolvência, e tendo o administrador de insolvência cessado as suas funções, cessaram também “todos os efeitos da declaração de insolvência, recuperando designadamente o devedor o direito de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios” (artigo 233º. nº. 1 al. a) CIRE, que está inserido no título XI, aplicável quer a particulares quer a empresas);
XX) - Como referido naquele Ac. da Relação de Coimbra, “uma leitura compaginada dos artigos 232º e 233º do CIRE, comparando a situação (do artigo 232º) com a do artigo 39º do CIRE, nos faz concluir que o insolvente em todas as situações em que no processo concursal não é realizada a liquidação do património, ou esta aí não é completada (o que aqui equivale à sua não realização), acaba, o insolvente nesse caso, por se subtrair, no essencial, às indisponibilidades geradas pela declaração de insolvência”, “a referida consequência da cessação das indisponibilidades resulta, fundamentalmente, da ponderação conjugada dos diversos efeitos do encerramento previstos nas várias situações elencadas no artigo 233º do CIRE.”
XXI) - Tendo o processo de insolvência da D... sido encerrado, tal como resulta das disposições legais (artigo 39º. nº. 7, 232º. e 233º. do CIRE), cessaram todos os efeitos da declaração de insolvência, e uma vez que a insolvência não foi considerada culposa, a gerência da empresa não ficou privada dos poderes de administração e disposição do seu património;
XXII) - Se é verdade que, como refere a Mª. Juiz “a quo”, nos termos da alínea e) do artigo 1007º. do C.C. a sociedade entra em dissolução “Por decisão judicial que declare a sua insolvência”, também é verdade que com o encerramento do processo de insolvência (que ocorreu), cessam todos os efeitos que resultam da declaração de insolvência, nomeadamente aquele estado de dissolução, e o artigo 1009º. do C.C. invocado pela Mª. Juiz “a quo” refere-se apenas aos casos dos poderes dos administradores depois da dissolução (o que não existia quando o crédito aqui em causa foi cedido), até porque o processo de insolvência havia encerrado e com ele terminados os seus efeitos, mas mesmo nesses casos, quando não houver liquidatários nomeados, os administradores estão legitimados a proceder a atos de liquidação do património social (artigo 1009º. nº. 1 do C.C.);
XXIII) - Não pode defender-se que, nos casos de encerramento do processo por insuficiência da massa, tem apenas aplicação o artigo 234º. nº. 4 do C.I.R.E., pois se assim fosse, para qualquer sociedade comercial não poderia ocorrer qualquer daqueles efeitos previstos na alínea a) do nº. 1 do artigo 233º., e não faz sentido a interpretação (que não tem estribo na Lei) que faz a Mª. Juiz “a quo” de que “está em causa uma das exceções previstas à norma do 233º. nº. 1 do CIRE, acerca da disponibilidade dos bens e livre gestão dos mesmos”, entendendo que a Lei admite duas exceções à livre gestão dos bens, uma resultante da qualificação da insolvência e outra referente às sociedades comerciais, “que só retomam a atividade com o encerramento do processo, se o mesmo se fundar em homologação do plano de insolvência ou no caso de haver deliberação dos sócios nesse sentido, no caso de o encerramento resultar do pedido do devedor”, sendo que, desde logo, a Mª. Juiz “a quo” confunde “retoma de atividade” com “direito de disposição de bens”, já que uma sociedade não precisa de retomar a atividade para poder dispor dos seus bens;
XXIV) - Se é verdade que, mesmo encerrando o processo, podem existir determinados efeitos que resultem de uma qualificação da insolvência como culposa (previstos no artigo 189º.do CIRE, mas onde não consta sequer a impossibilidade do devedor dispor dos seus bens), já não é verdade que o estatuído no artigo 233º. nº. 1 alínea a) do CIRE não tenha aplicação às sociedades comerciais que encerrem por insuficiência da massa (ou seja, que relativamente a estas sociedades não cessem todos os efeitos que resultam da declaração de insolvência, recuperando o devedor o direito de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios), já que a norma do artigo 234º. (nomeadamente o nº. 4) não prevê (muito menos explicitamente) esse efeito, e muito menos o prevê o artigo 233º. nº. 1 alínea a).
XXV) - Sendo incontroverso que a interpretação da lei, embora não só, deve atender à letra da lei, o que o dispositivo legal do artigo 233º. nº. 1 a) refere é que “encerrado o processo: cessam todos os efeitos que resultam da declaração de insolvência, recuperando designadamente o devedor o direito de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios, SEM PREJUÍZO dos efeitos da qualificação da insolvência como culposa e do disposto no artigo seguinte”, ou seja, relativamente às sociedades comerciais cujo processo encerre por insuficiência da massa, aplica-se, para além da primeira parte daquele artigo, também o artigo 234º. nº. 4 do CIRE, já que a expressão “SEM PREJUIZO” inserida nesta norma tem o sentido de reforçar que, para além de ter aplicação aquele artigo 233º. nº. 1 alínea a) do CIRE, também se aplica o artigo 234º., e se o legislador pretendesse, de facto, implementar uma exceção relativamente às sociedades comerciais (ou seja, não aplicar a primeira parte do artigo 233º. nº. 1 alínea a) às sociedades comerciais cujo processo encerrasse por insuficiência da massa), a expressão correta a inserir em tal norma seria, não “SEM PREJUÍZO…”, mas sim a expressão e trecho SALVO nos casos de qualificação da insolvência como culposa ou nos casos de encerramento por insuficiência da massa.
XXVI) - Se fosse correta a interpretação da Mª. Juiz “a quo”, mesmo naqueles casos em que entende tratar-se de exceções (artigo 234º. nºs. 1 e 2), a tais sociedades apenas seria permitido “retomar a sua atividade”, mas continuariam a não estar cessados os efeitos da declaração de insolvência e continuariam a não poder dispor livremente dos seus bens e gerir livremente os seus negócios!!!
XXVII) - O artigo 234º. nº. 4 do CIRE regula apenas a questão de como irá realizar-se a dissolução e liquidação da sociedade, e nada mais, não existindo qualquer ressalva relativamente à questão de cessarem todos os efeitos que resultaram da declaração de insolvência e do direito de disposição dos bens pela empresa, pelo que com o encerramento do processo, cessaram todos os efeitos da declaração de insolvência e a D... passou a poder gerir e dispor dos seus bens;
XXVIII) - Cessando funções o administrador de insolvência da D..., não se iniciando entretanto o processo de dissolução e liquidação administrativa da empresa, a mesma tinha de ter alguém que a representasse, e esse alguém era o gerente da empresa, sendo certo que, ainda que assim não fosse – ou seja, o gerente da D... não a representasse - resulta do artigo 253º. nº. 1 do C.S.C. que “se faltarem definitivamente todos os gerentes, todos os sócios assumem por força da lei os poderes de gerência, até que sejam designados os gerentes”, e estabelece o artigo 261º. nº. 1 do C.S.C. que “Quando haja vários gerentes e salvo cláusula do contrato de sociedade que disponha de modo diverso, os respetivos poderes são exercidos conjuntamente, considerando-se válidas as deliberações que reúnam os votos da maioria e a sociedade vinculada pelos negócios jurídicos concluídos pela maioria dos gerentes ou por ela ratificados”;
XXIX) - Nos termos do artigo 260º. nº. 1 do C.S.C. “os actos praticados pelos gerentes, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-na para com terceiros, não obstante as limitações constantes do contrato social ou resultantes de deliberações dos sócios.”, sendo que, no caso dos autos, no negócio de cessão de crédito interveio não só o gerente da D..., mas também os seus sócios, pelo que, em rigor, naquele negócio existiu, concomitantemente, uma deliberação da sociedade nesse sentido e a sociedade ficou vinculada naquele negócio, concluído pela maioria dos gerentes (diga-se, seus sócios);
XXX) - Ressalva o número 2 do artigo 146º. do CSC que “a sociedade em liquidação mantém a personalidade jurídica e, salvo quando outra coisa resulte das disposições subsequentes ou da modalidade da liquidação, continuam a ser-lhe aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições que regem as sociedades não dissolvidas” – nomeadamente no que diz respeito aos direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, sendo certo, no entanto, que caso a empresa, após o encerramento do processo de insolvência, estivesse de facto em estado de dissolução, necessário seria que à firma da sociedade fosse aditada no registo a menção “sociedade em liquidação” ou “em liquidação”, conforme exige o nº. 3 do artigo 146º. do C.S.C., o que não ocorreu, nem a Lei o refere no artigo 234º. nº. 4 do C.I.R.E., precisamente porque a manutenção daquele estado de sociedade em dissolução é completamente incompatível com o encerramento do processo de insolvência e o “desaparecimento” dos seus efeitos, tal como determina a alínea a) do nº. 1 do artigo 233º. do C.I.R.E.;
XXXI) - Depois de encerrado o processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente, a sociedade comercial D... era ainda titular de um direito de crédito sobre a “Massa Falida de C..., Lda”, e sete meses antes do início do processo de dissolução e liquidação da sociedade, cedeu esse direito de crédito à recorrente, que era uma das suas credoras, que reclamou créditos no processo, sendo que tal contrato se encontra assinado por todos os sócios (o que equivale a deliberação dos mesmos) e gerente da sociedade cedente, sendo perfeitamente válido e eficaz;
XXXII) - Desde o encerramento do processo de insolvência até à efetiva dissolução, liquidação e extinção da sociedade comercial (que só ocorreu em 2017/06/21), os administradores da sociedade (e, na falta destes, os seus sócios, nos termos das normas referidas do CSC), gozam dos seus poderes de gestão e disposição previstos no CSC, sob pena de existir, neste hiato temporal, um verdadeiro vazio legal, sendo certo que, mesmo que assim não se entendesse, sempre deveriam ser os administradores da sociedade considerados os liquidatários (quando o regime especial não prevê a obrigatoriedade de nomeação de liquidatários, como acontece no artigo 24.º do RJPALEC), pois conforme resulta do artigo 151.º do Código das Sociedades Comerciais, “salvo cláusula do contrato de sociedade ou deliberação em contrário, os membros da administração da sociedade passam a ser liquidatários desta a partir do momento em que ela se encontre dissolvida”, funções essas que só terminam com a extinção da sociedade (artigo 151º. nº. 8 do CSC), e onde a Lei especial não prevê, há que aplicar o previsto na Lei geral;
XXXIII) - Ainda que a gerência da D... (e também os seus sócios) não tivessem poderes para vincular a sociedade no negócio de cessão de crédito que fizeram com a recorrente, sempre seria necessário verificar qual seria, então, o regime aplicável a esse negócio, pois que o mesmo, para deixar de produzir efeitos e não ser eficaz, não basta que se refira – como fez a Mª. Juiz “a quo” – que “à autora não foi transmitido validamente qualquer crédito, designadamente não lhe foi eficazmente transmitido pela insolvente o alegado crédito sobre a aqui ré”, sem estribar sequer a sua conclusão em norma legal;
XXIV) - Se atentarmos na sentença proferida, a Mª. Juiz “a quo” entende que a sociedade D... e o seu gerente não teriam capacidade para ceder aquele crédito à recorrente, por tal cedência ter de ser feita no âmbito de um processo de liquidação oficiosa e, portanto, o seu gerente não poderia vincular a sociedade, esquecendo desde logo que o contrato foi assinado também pelos sócios da D..., e que, relativamente à vinculação da sociedade, nos termos do artigo 260º. nº. 1 do C.S.C. os atos praticados pelos gerentes (e pelos sócios, quando faltem os gerentes), em nome da sociedade vinculam-na para com terceiros.
XXXV) - Sendo incontroverso que aquele crédito que foi cedido à recorrente pertencia à D... (não se tratando, por isso, de uma venda de bem que lhe não pertencia), quem poderia ter interesse e legitimidade de invocar tal suposto vício seria a própria D..., ou a sua massa insolvente, e no limite (embora seja difícil esta defesa) os credores da D..., mas já não a devedora (recorrida), a quem a Lei não dá esse direito (artigo 585º. do C.C.);
XXXVI) - A Mª. Juiz “a quo” entende que a transmissão do crédito da D... para a recorrente não foi eficaz, mas não indica com base em que normativo legal chega a essa conclusão, embora se suponha que tenha pretendido socorrer-se da ineficácia dos atos realizados pelo insolvente prevista no artigo 81º. do C.I.R.E., mas também sem razão, existindo mais uma vez manifesta confusão da Mª. Juiz “a quo”;
XXXVII) - A existir tal ineficácia, tratar-se-ia de uma ineficácia relativa, produzindo aquele negócio os seus efeitos, podendo apenas não ter eficácia relativamente à Massa Insolvente da D... (que nem sequer é parte neste processo), sendo que como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12/05/2016, em que estava em causa uma partilha feita após a declaração de insolvência, “Integrando o aludido imóvel a massa insolvente, o que não depende do acto concreto de apreensão de bens, a partilha efectuada pelos ex-cônjuges em data posterior à declaração de insolvência é ineficaz em relação àquele património autónomo. A configuração dos contornos desta sanção, nesta matéria de violação da inibição do poder de disposição, implica a qualificação da ineficácia do negócio jurídico como relativa por operar apenas em relação à massa insolvente, só podendo ser invocada por determinados interessados. Como exemplo de casos de ineficácia relativa, Manuel de Andrade escolheu, nos seus ensinamentos, precisamente os negócios realizados pelo falido ou insolvente. Assim, nesses casos, tais negócios, segundo as palavras daquele autor, são eficazes entre as partes, e só não produzem efeitos em relação à massa falida. Acrescentando, com muito interesse, que são negócios bifrontes, negócios com cabeça de Jano: quanto a uma das caras produzem efeitos; quanto à outra não.”;
XXXVIII) - Também refere Mota Pinto, in “Teoria Geral do Direito Civil”, pág. 606, “a ineficácia será relativa se se verificar apenas em relação a certas pessoas, só por elas podendo ser invocada (o negócio, embora eficaz noutras direções, é inoponível a certas pessoas).”, dando depois exemplos de ineficácias relativas, onde inclui, precisamente “actos do falido (art. 1190º. do antigo Cód. Proc. Civil)”, referindo ainda na mesma obra, “os negócios feridos de ineficácia relativa produzem, pois, efeitos, mas não estão dotados de eficácia relativamente a certas pessoas”, “O negócio é relativamente ineficaz, por força do impedimento, resultante daquela posição legítima do terceiro acerca do conteúdo do acto.”, “É necessário proteger o terceiro na medida apropriada à não frustração do seu direito, mas não se deve limitar o poder de disposição (ou a legitimidade para agir) do titular mais do que for necessário a essa proteção. Logo, o negócio só é ineficaz em face do terceiro, mas não é entre as partes ou em face de outras pessoas”.
XXXIX) - Refere a propósito Maria do Rosário Epifânio, in Manual de Direito da Insolvência, pág. 107 que “os atos praticados pelo insolvente são, pois, ineficazes em relação à massa insolvente. Este conceito deve ser entendido no seu sentido estrito, uma vez que os atos permanecem válidos”, referindo ainda, na mesma obra, a pág. 109, “os atos podem recuperar a sua eficácia por outra via que não a da confirmação – é o caso do levantamento dos efeitos da declaração de insolvência em relação ao insolvente e em relação aos credores (da insolvência e da massa insolvente), por efeito do encerramento do processo de insolvência (respetivamente artº. 233º. nº. 1 al. a) e art. 233º. nº. 1 al. c) e d).”;
XL) - Assim, não é verdade que o crédito não foi transmitido eficazmente para a recorrente, já que a existir alguma ineficácia daquele negócio, aquela apenas existiria para com a massa insolvente da D..., que não é parte neste processo e que nada invocou, sendo só ela quem poderia ter legitimidade para tal;
XLI) - Na situação em causa existiria ainda outro paradoxo, já que, com o encerramento do processo de insolvência, precisamente por insuficiência da massa, já não existe massa insolvente, pelo que, em rigor, deixou de existir a entidade (património autónomo) que poderia ter legitimidade para se pretender prevalecer daquela ineficácia, e dúvidas não podem existir de que, tendo a recorrente adquirido validamente aquele crédito da D..., tem legitimidade para a presente ação;
XLII) - Por outro lado, sendo incontroverso que o processo de insolvência encerrou, e com ele os seus efeitos, e sendo aquela ineficácia prevista no CIRE claramente vocacionada para situações em que o processo de insolvência se mantenha aberto e exista massa insolvente, mesmo que existisse algum impedimento da sociedade para dispor dos seus bens e direitos a partir do momento do encerramento do processo, mas tendo-o feito (através dos seus sócios e gerentes), estaria em causa uma suposta “indisponibilidade”, “incapacidade” ou “interdição” para dispor de bens - resultante de supostamente a empresa se encontrar num estado de dissolução, embora sem liquidação – mas para que aquele negócio não produzisse efeitos entre a D... e a recorrente, para além de tal vício ter de ser invocado por quem tivesse legitimidade para o efeito, o negócio apenas poderia, quando muito, ser considerado anulado, nos termos do artigo 287º. do C.C., e tal situação não ocorreu, pelo que o negócio celebrado entre a D... e a recorrente continua a vigorar no ordenamento jurídico;
XLIII) - A anulabilidade não é de conhecimento oficioso e apenas pode ser arguida pelas pessoas em cujo interesse a lei a estabelece (o que não é o caso da recorrida, que nem sequer era credora da D...), nos termos do artigo 287º. do C.C., e daí que também por aqui, não teria qualquer sentido a decisão proferida, pois que a Mª. Juiz “a quo” não poderia conhecer daqueles supostos vícios, quer porque não foram invocados – nomeadamente por quem tivesse interesse ou esse direito – quer porque os mesmos não são de conhecimento oficioso;
XLIV) - Assim, a sentença proferida é também nula, por duas ordens de razões, nos termos do artigo 615º. nº. 1 alíneas c) e d) do C.P.C., já que, por um lado, a decisão é obscura e ininteligível, pois que não se refere sequer com base em que disposição legal se veio a entender que a recorrente não havia adquirido eficazmente aquele direito de crédito e, por outro, a Mª. Juiz “a quo” conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento, já que não poderia ter considerado ineficaz o negócio celebrado entre a D... (que nem sequer é parte no processo, ou a sua massa insolvente) e a recorrente (sem sequer invocar com base em que vício), até porque tal questão não era de conhecimento oficioso;
XLV) - A decisão recorrida, para além de incorrer em nulidade, conforme supra referido, violou, por erro de interpretação e aplicação, o disposto nos artigos 287º., 406º., 577º., 578º. e 585º. do Código Civil, e 81º. nº. 6, 230º. nº. 1 d), 232º., 233º. nº. 1 e 234º. do CIRE, devendo ser revogada e substituída por outra que considere a recorrente parte legítima para a presente ação, seguindo os seus termos a presente demanda.
A ré apresentou contra-alegações, nas quais se pronunciou pela confirmação do decidido.
Cumpre então apreciar e decidir.

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FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
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As questões a decidir são as seguintes:
IApurar se deve ser alterada a redação da alínea h) dos factos provados;
II Apurar se a cedente “D..., Lda.”, após o encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente e antes do início do procedimento administrativo com vista à sua liquidação, podia ceder, nas circunstâncias em que o fez, o crédito em causa nos autos à aqui autora.
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É a seguinte a factualidade dada como assente na sentença recorrida:
a) Nos autos principais de falência foi declarada em estado de falência a ali requerida “C..., Limitada”, por sentença de 14 de Julho de 2000;
b) No âmbito da referida falência, o Sr. liquidatário judicial procedeu ao arrolamento e apreensão dos bens identificados no artigo 8.º da petição inicial da acção cuja cópia se encontra junta a estes autos a fls. 8 e seguintes, e cuja descrição aqui se dá por reproduzida, como se se tratassem de bens pertencentes à falida “C... …”;
c) Em 18/01/2001, a sociedade “D..., Lda.” instaurou contra os credores da referida falida “C... …” uma acção judicial, peticionando o reconhecimento de que o liquidatário judicial daquela “C... …” não tinha o direito de apreender os bens aludidos em b) e que fosse ordenado o levantamento do arrolamento daqueles bens e a sua restituição àquela autora da acção, conforme petição junta ao apenso “G”, cuja cópia se encontra junta a fls. 8 e seguintes, e que aqui se dá por integralmente reproduzida;
d) No processo aludido em c), veio a ser proferida sentença, que julgou a acção procedente e ordenou a restituição àquela “D... …” dos bens ali identificados, nos termos e pelos fundamentos que constam da sentença cuja cópia se encontra junta a fls. 37 e seguintes, e que aqui se dão por reproduzidos;
e) A referida “D...” instaurou contra a massa falida da referida “C... …” execução para entrega de coisa certa, a 24-03-2013 (cfr. no apenso AU, nos termos que constam da cópia do requerimento executivo junta a fls. 42 e seguintes, que aqui se dão por reproduzidos;
f) Naquele processo executivo foi elaborado “auto de entrega de bens móveis”, a 28-07-2014, nos termos que constam da cópia junta a fls. 44, que aqui se dão por reproduzidos;
g) Por documento datado de 28-11-2016, que as partes denominaram “contrato de cessão de créditos”, consta como 1.ª outorgante a referida “D..., Lda.” e como 2.ª outorgante a aqui autora, e que ambas consideraram que a 2.ª era credora da 1.ª pelo valor de €1.261.372,89, acrescido de juros de mora; e que a 1.ª considerava ser titular de um crédito sobre a “Massa Falida de C..., S.A”, que resultava dos danos sofridos pela 1.ª outorgante, “pelo facto de terem sido oportunamente arrolados e apreendidos, à ordem do processo de falência daquela empresa, máquinas e equipamentos propriedade da 1.ª outorgante …tendo – após reconhecimento do direito de propriedade da 1.ª outorgante na acção que instaurou – sido entregues à 1.ª outorgante apenas algumas das máquinas em causa e em estado de praticamente sucata…”. Mais consta de tal documento que através de tal acordo a 1.ª outorgante cede à 2.ª outorgante, para liquidação do crédito da 2.ª outorgante sobre a 1.ª outorgante o crédito desta sobre a referida “Massa Falida de C..., S.A”;
h) No acordo aludido em g), interveio o gerente da insolvente;
i) A referida sociedade “D..., Lda.”, foi declarada insolvente no âmbito do processo n.º 4958/15.7T8GMR, a 18/11/2015;
j) O processo referido em i) foi declarado encerrado por insuficiência da massa insolvente, a 21-11-2016 e anúncio de 22-11-2016, sendo que o despacho de encerramento transitou em julgado a 07/12/2016;
k) No âmbito do processo de insolvência aludido em i) foi colocada a questão de ser instaurada uma acção por parte da massa insolvente contra a aqui ré, pelos factos que estão em causa nos presentes autos, tendo ali sido realizada assembleia de credores a 06/10/2016. Apesar dos restantes credores terem votado favoravelmente à instauração de tal acção, tal proposta foi rejeitada com o voto desfavorável do credor “E...”, face à posição determinante deste credor;
l) No âmbito do processo de insolvência aludido em i) a aqui autora interveio, reclamou crédito e esteve presente na assembleia de credores aludida em k);
m) Entre os credores da referida “D... …”, encontravam-se o Estado e a Segurança Social;
n) A decisão judicial de encerramento do processo de insolvência aludido em i) foi registada mediante Ap. 9/20161124 e a liquidação na sequência do procedimento administrativo, mediante a Ap. 4/20170621 e nessa altura cancelada a matrícula da sociedade.
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Passemos à apreciação do mérito do recurso.
I – A autora/recorrente entende, em primeiro lugar, dever ser alterada a redação da alínea h) dos factos provados – “No acordo aludido em g), interveio o gerente da insolvente” -, passando esta a ser a seguinte:
“No acordo aludido em g), interveio quer o gerente da autora, quer o gerente e os sócios da “D...”.
No sentido pretendido indica o documento nº 16 junto à petição inicial (contrato de cessão de créditos) e o documento nº 1 junto com a contestação (certidão emitida pela Conservatória do Registo Comercial de Braga relativa à sociedade “D..., Lda.”).
Ora, desses documentos decorre que o contrato de cessão de créditos foi outorgado, em 28.11.2016, pela cedente “D..., Lda.” e pela cessionária “B..., Lda.”.
Pela “D..., Lda.” o contrato acha-se assinado pelo seu gerente H... e também pelos sócios F... e I....
Pela autora “D..., Lda.” está assinado pelo seu gerente, G....
Assim, assiste razão à recorrente e a redação da alínea g) da factualidade assente passará a ser a seguinte:
“No acordo aludido em g) intervieram quer o gerente da autora “B..., Lda.”, quer o gerente e os sócios da “D..., Lda.”.”
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II – Com a propositura da presente ação pretende a autora “B..., Lda.” ser ressarcida dos danos que foram causados à sociedade “D..., Lda.” na sequência da apreensão de bens efetuada no âmbito do processo de falência da “C..., S.A.”.
Invocou como fundamento da sua legitimidade o contrato de cessão de créditos, celebrado em 28.11.2016, através do qual a “D..., Lda.” lhe cedeu o crédito de que é titular sobre a Massa Falida de “C..., S.A.” resultante dos danos que sofreu pelo facto de terem sido oportunamente arroladas e apreendidas máquinas e equipamentos, relativamente às quais foi reconhecido o seu direito de propriedade, tendo-lhe sido entregues apenas algumas dessas máquinas e em estado de praticamente sucata.
O art. 577º, nº 1 do Cód. Civil estatui que «o credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor, contanto que a cessão não seja interdita por determinação da lei ou convenção das partes e o crédito não esteja, pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor
Os requisitos da cessão de créditos são os seguintes:
a) Um negócio jurídico a estabelecer a transmissão da totalidade ou de parte do crédito;
b) A inexistência de impedimentos legais ou contratuais a essa transmissão;
c) A não ligação do crédito, em virtude da própria natureza da prestação, à pessoa do devedor.[1]
Ora, para que um crédito possa ser cedido é imprescindível que seja possível a sua transmissão e no caso “sub judice” o que se impõe averiguar é se existe algum impedimento legal a essa transmissão.
Sucede que a autora/recorrente entende que nada obsta a essa transmissão e que a cedente podia dispor do crédito nas condições em que o fez, posição que foi contrariada na sentença recorrida, onde se considerou haver impedimento legal a essa transmissão.
Com efeito, haverá que ter em atenção que na altura da celebração do contrato de cessão de créditos, em 28.11.2016, a cedente “D..., Lda.” já havia sido declarada insolvente e no respetivo processo de insolvência fora, inclusive, proferida decisão no sentido do seu encerramento por insuficiência da massa insolvente com data de 21.11.2016 e trânsito em julgado em 7.12.2016.
Um dos fundamentos do encerramento do processo de insolvência ocorre quando o administrador da insolvência constata a insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente – cfr. art. 230º, nº 1, al. d) do Cód. da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
Verificando-se esta situação o administrador da insolvência dá conhecimento do facto ao juiz, podendo este conhecer oficiosamente do mesmo. Então, ouvidos o devedor, a assembleia de credores e os credores da massa insolvente, o juiz declara encerrado o processo, salvo se algum interessado depositar à ordem do tribunal o montante determinado pelo juiz segundo o que razoavelmente entenda necessário para garantir o pagamento das custas do processo e restantes dívidas da massa insolvente – cfr. art. 232º, nºs 1 e 2 do CIRE.
Tal como flui da matéria de facto assente, o crédito que é aqui invocado pela autora já tinha sido referenciado no processo de insolvência relativo à “D..., Lda.”, tendo aí sido levantada a questão da propositura – ou não – de uma ação onde o mesmo fosse discutido. Acontece que realizada assembleia de credores em 6.10.2016, apesar dos demais credores terem votado favoravelmente, o credor maioritário – E... – votou contra tal propositura, assim a impossibilitando.
E, sendo cumprido o disposto no referido art. 232º, nº 2 do CIRE e não surgindo qualquer interessado a depositar à ordem do tribunal o montante necessário para garantir o pagamento das custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente, o juiz determinou o encerramento do processo de insolvência referente à “D..., Lda.”, por despacho de 21.11.2016.
Ou seja, a autora não usou da faculdade prevista no art. 232º, nº 2 do CIRE.
Dispõe o art. 233º, nº 1, al. a) do CIRE que «encerrado o processo, e sem prejuízo do disposto no nº 5 do artigo 217º quanto aos concretos efeitos imediatos da decisão de homologação do plano de insolvência: a) Cessam todos os efeitos que resultam da declaração de insolvência, recuperando designadamente o devedor o direito de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios, sem prejuízo da qualificação dos efeitos da insolvência como culposa e do disposto no artigo seguinte; (…)».
No caso presente, em que não foi aprovado nem homologado qualquer plano de insolvência, há que ter em conta o preceituado no artigo seguinte – o 234º do CIRE -, uma vez que estamos perante uma sociedade comercial. Nele se estabelece o seguinte:
«1. Baseando-se o encerramento do processo na homologação de um plano de insolvência que preveja a continuidade da sociedade comercial, esta retoma a sua atividade independentemente de deliberação dos sócios.
2. Os sócios podem deliberar a retoma da atividade se o encerramento se fundar na alínea c) do nº 1 do artigo 230º.
3. Com o registo do encerramento do processo após o rateio final, a sociedade considera-se extinta.
4. No caso de encerramento por insuficiência da massa insolvente, a liquidação da sociedade prossegue nos termos do regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e liquidação de entidades comerciais, devendo o juiz comunicar o encerramento e o património da sociedade ao serviço de registo competente
A propósito destas normas escreve Menezes Leitão (in “Direito da Insolvência”, 2011, 3ª ed., págs. 315/6) que existem dois sistemas diferentes quanto aos efeitos resultantes do encerramento do processo de insolvência. Num primeiro sistema, correspondente ao antigo instituto da “cessio bonorum”, vigente nos países de “common law” e na Alemanha, o encerramento do processo determina a plena recuperação da capacidade do devedor, permitindo-lhe reiniciar a sua vida nos mesmos termos; entende-se a insolvência como um acidente de percurso, que não deve afetar a vida futura do devedor. Num segundo sistema, considera-se que, mesmo que a insolvência resulte de um facto acidental, o devedor deve ser responsabilizado pela falta de diligência e imprevidência que a insolvência faz presumir e, por isso, a sua incapacidade é estendida para além do encerramento do processo.
O nosso ordenamento jurídico coloca-se num plano intermédio.
Assim, o art. 233º, nº 1, al. a), já referido, estabelece que encerrado o processo cessam todos os efeitos que resultam da declaração de insolvência, recuperando o devedor o direito de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios, o que corresponde ao primeiro sistema. Esta solução admite, porém, duas exceções, que são tributárias do segundo sistema. A primeira resulta da qualificação da insolvência como culposa. A segunda respeita aos efeitos sobre sociedades comerciais, dado que as mesmas só retomam a atividade com o encerramento do processo, se o mesmo se fundar na homologação de plano de insolvência que preveja a continuidade da exploração [art. 234º, nº 1], ou se houver deliberação dos sócios nesse sentido, no caso de o encerramento resultar de pedido do devedor [art. 234º, nº 2 e art. 230º, nº 1, al. c)].
Ora, na situação “sub judice” a sociedade insolvente “D..., Lda.” não recuperou, com o encerramento do processo de insolvência, a livre disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios, atendendo a que, por um lado, não foi homologado plano de insolvência que previsse a continuidade da exploração, nem, por outro lado, estamos perante encerramento do processo de insolvência a pedido do devedor, caso em que a retoma da atividade poderia resultar de deliberação dos sócios nesse sentido.
Neste caso, em que o encerramento do processo de insolvência decorreu da insuficiência da massa insolvente, tratando-se o devedor de sociedade comercial, esta considera-se dissolvida e deve extinguir-se definitivamente com a concretização da respetiva liquidação.[2]
Assim, o caminho que há a seguir é o indicado pelo art. 234º, nº 4 do CIRE em que a liquidação prossegue não nos autos de insolvência, mas sim nos termos do regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e liquidação de sociedades comerciais – Dec. Lei nº 76-A/2006, de 29.3 [RJPADLEC].
No art. 15º, nº 5, al. i) deste diploma legal estatui-se que «o procedimento administrativo de liquidação é instaurado oficiosamente pelo conservador, mediante auto que especifique as circunstâncias que determinaram a instauração do procedimento e no qual nomeie um ou mais liquidatários, quando: (…)
i) O tribunal que decidiu o encerramento de um processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente tenha comunicado esse encerramento ao serviço de registo competente, nos termos do n.º 4 do artigo 234.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas
O procedimento corre os seus termos em serviço de registo competente para o registo da liquidação – cfr. art. 15º, nº 7 deste diploma.
Deste modo, o que se verifica é que, após o encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente, essa situação é comunicada pelo tribunal ao serviço de registo competente e aí correrá termos o respetivo procedimento administrativo de liquidação.
Constata-se, pois, que o caminho seguido pela insolvente “D..., Lda.” ao proceder à cessão do crédito de que dispunha sobre a Massa Falida da “C..., SA” a um dos seus credores, que beneficiou em detrimento dos demais, após o encerramento do seu processo de insolvência, não se mostrou o adequado.
É certo que só com o registo do encerramento da liquidação se obtém a extinção da personalidade coletiva, porque a sociedade mantém a personalidade jurídica durante a liquidação, constituindo uma realidade jurídica diferente dos seus sócios – cfr. art. 160º, nº 2 do Cód. das Sociedades Comerciais.[3]
Porém, não pode deixar de se realçar que na data em que a cessão do crédito foi feita, a sociedade “D..., Lda.” não tinha nem a livre disposição dos seus bens, nem a livre gestão dos seus negócios.
A personalidade jurídica de que nessa altura a insolvente ainda dispunha, no contexto que acabou de se expor, estava diretamente correlacionada com a sua extinção e com o correspondente procedimento administrativo destinado à sua liquidação.
Aliás, a declaração de insolvência determina a imediata dissolução da sociedade, a menos que tenha sido aprovado plano de insolvência que preveja a continuidade da sociedade comercial e a retoma da sua atividade nos termos do art. 234º, nº 1 do CIRE – cfr. arts. 141º, nº 1, al. e) do Cód. das Sociedades Comerciais e 1007º, al. e) do Cód. Civil.
E dissolvida a sociedade o que se prevê no art. 1009º do Cód. Civil é que os poderes dos administradores ficam limitados aos atos meramente conservatórios e aos atos necessários à liquidação do património social, no caso de não terem sido nomeados liquidatários.
Ou seja, os administradores, depois da sua dissolução, não podem continuar a gerir a sociedade e a sua ação circunscreve-se a atos de conservação do património e a atos de preparação da liquidação do património social, se não tiverem sido nomeados liquidatários.[4]
Mas, no caso vertente, tal como já atrás se expôs, há que ter em atenção o disposto no art. 234º, nº 4 do CIRE onde se diz que, após o encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente, a liquidação prossegue nos termos previstos no regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e liquidação de entidades comerciais.
Ora, no âmbito deste procedimento, regulado pelo Dec. Lei nº 76-A/2006, de 29.3. [RJPADLEC], após a comunicação a que alude a parte final do art. 234º, nº 4 do CIRE, cabia ao Conservador instaurar oficiosamente a liquidação e nomear os liquidatários – cfr. arts. 15º, nº 5 e 18º.
A propósito dos deveres, poderes e responsabilidade dos liquidatários rege o art. 152º do Cód. das Sociedades Comerciais, onde se preceitua o seguinte:
«1. Com ressalva das disposições legais que lhes sejam especialmente aplicáveis e das limitações resultantes da natureza das suas funções, os liquidatários têm, em geral, os deveres, os poderes e a responsabilidade dos membros do órgão de administração da sociedade.
2. Por deliberação dos sócios pode o liquidatário ser autorizado a:
a) Continuar temporariamente a atividade anterior da sociedade;
b) Contrair empréstimos necessários à efetivação da liquidação;
c) Proceder à alienação em globo do património da sociedade;
d) Proceder ao trespasse do estabelecimento da sociedade.
3. O liquidatário deve:
a) Ultimar os negócios pendentes;
b) Cumprir as obrigações da sociedade;
c) Cobrar os créditos da sociedade;
d) Reduzir a dinheiro o património residual, salvo o disposto no art. 156º, nº 1;
e) Propor a partilha dos haveres sociais
Por seu turno, no art. 1015º do Cód. Civil estatui-se que «cabe aos liquidatários praticar todos os atos necessários à liquidação do património social, ultimando os negócios pendentes, cobrando os créditos, alienando os bens e pagando aos credores
Daqui decorre que o ato ora em apreciação – a cessão de um crédito para pagamento de uma eventual dívida – só poderia ser praticado pelo liquidatário, nomeado pelo Conservador, no âmbito do procedimento administrativo destinado à liquidação da sociedade.
Sucede que não foi isso que se fez.
Com efeito, a sociedade insolvente, através do seu gerente e dos seus sócios, apesar de não ter recuperado com o encerramento do processo de insolvência a livre disposição dos seus bens, agiu como se a tivesse, o que não ocorria.
Assim, o que se constata é que uma sociedade que se encontrava em liquidação decidiu fazer o que pode ser designado como uma liquidação “privada” ou “interna”, sem apoio na lei, por iniciativa dos seus gerentes e sócios, que não tinham poderes para o efeito e que, por isso, não podiam vincular a insolvente.
Não podiam, pois, nem o gerente da insolvente nem os seus sócios disporem do crédito aqui em causa fora do âmbito do procedimento administrativo de liquidação, sendo que a sua cessão foi feita a favor de um credor que nem sequer tinha o seu crédito reconhecido no processo de insolvência e em prejuízo dos restantes credores da insolvência, onde se incluíam o Estado e a Segurança Social.
Para além disso, não pode deixar de se sublinhar que a autora “B..., Lda.” tinha conhecimento da existência do processo de insolvência, do seu desfecho e da necessidade de ocorrer procedimento administrativo de liquidação na conservatória respetiva.
Em suma: a liquidação da sociedade insolvente “D..., Lda.” – e a eventual cessão do crédito à ora autora - teria sempre que ser efetuada no âmbito do procedimento administrativo previsto no Dec. Lei nº 76-A/2006, de 29.3. [RJPADLEC] e não de forma privada, como se fez, sendo que esta realidade esvazia toda a argumentação explanada pela autora/recorrente.[5]
E de modo algum se pode aceitar, como parece entender a autora/recorrente, que tendo havido um intervalo de tempo entre o encerramento do processo de insolvência e o início da liquidação administrativa, a sociedade nesse período recupere os seus poderes de gestão e disposição, o que, de resto, contraria o disposto no art. 234º, nº 4 do CIRE, onde se diz que “no caso de encerramento por insuficiência da massa insolvente, a liquidação da sociedade prossegue…”, o que inculca a ideia de que nenhuma interrupção existirá.
Por conseguinte, impõe-se concluir no sentido de que o crédito aqui em causa não foi transmitido validamente à autora, uma vez que o gerente e os sócios da insolvente “D..., Lda.” não tinham poderes para proceder a essa transmissão, sendo que a eventual cessão desse crédito, destinada a proceder a compensação, só poderia ser concretizada pelo liquidatário e no âmbito do referido procedimento de liquidação.
Como tal, à semelhança do que é sustentado pela ré e também pela Mmª Juíza “a quo”, entendemos que a autora não pode ser considerada como válida titular de qualquer direito fundado no contrato de cessão de créditos celebrado em 28.11.2016, pelo que carece de legitimidade substantiva para propor a presente ação nos termos em que o fez.
Acresce que à ré não pode ser retirada a possibilidade de, demandada com base nesse contrato de contrato de cessão de créditos celebrado em manifesta desconformidade com as normas legais que regulam a liquidação de sociedades comerciais após o encerramento do processo de insolvência, se defender, plenamente, no âmbito da presente ação que lhe é movida pela autora.
Antes de finalizar, há ainda a referir que da leitura da sentença recorrida não se alcança que a decisão padeça de qualquer obscuridade ou ininteligibilidade ou que a Mmª Juíza “a quo” tenha conhecido de questões de que não podia tomar conhecimento, o que significa a não verificação das nulidades previstas nas alíneas c) e d) do nº 1 do art. 615º do Cód. de Proc. Civil.
Neste contexto, há que julgar improcedente o recurso interposto.
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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil):
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela autora “B..., Lda.” e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da autora/recorrente.

Porto, 12.2.2019
Rodrigues Pires
Márcia Portela
Maria de Jesus Pereira
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[1] Cfr. Menezes Leitão, “Direito das Obrigações”, vol. II, 6ª ed., pág. 16.
[2] Cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, “CIRE Anotado”, 2ª ed., pág. 891.
[3] Cfr. Paulo Olavo Cunha, “Direito das Sociedades Comerciais”, 6ª ed., pág. 1049.
[4] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. II, 3ª ed., págs. 349/350.
[5] Cfr. Ac. Rel. Coimbra de 19.10.2010, proc. 1649/09.1 TJCBR.C1, disponível in www.dgsi.pt.