REGISTO CRIMINAL
NÃO TRANSCRIÇÃO DA SENTENÇA
TRIBUNAL COMPETENTE
Sumário

I – O cancelamento provisório das decisões que deviam constar do registo criminal, nos termos previstos no art. 12.º da Lei n.º 37/2015, de 05-05, não pode confundir-se com a não transcrição da sentença nos certificados de registo criminal a que aludem os n.ºs 5 e 6 do art. 10.º do mesmo diploma, possibilidade prevista no respectivo art. 13.º.
II - Enquanto a avaliação do pedido de cancelamento provisório cabe ao Tribunal de Execução das Penas (o que resulta não só do teor do mencionado art. 12.º como também do art. 138.º, n.º 4, al. z), da Lei n.º 115/2009, de 12-10), a apreciação da pretensão de não transcrição compete ao Tribunal da condenação, como expressamente prevê o n.º 1 do art. 13.º da Lei n.º 37/2015, de 05-05.
III – Esta última apreciação pode ser efectuada quer na sentença quer em despacho posterior, não estabelecendo a lei qualquer limitação temporal para o efeito.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
1. Nos presentes autos de Processo Comum Singular que, com o n.º 1857/11.5PBSNT, correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Criminal de Sintra, o Ministério Público, não se conformando com o despacho, de 15-10-2018, que indeferiu o requerimento do arguido no sentido da não transcrição da sentença no Certificado de Registo Criminal, para efeitos civis e laborais, veio dele interpor o presente recurso, que termina com as seguintes conclusões (transcrição):
«I
O artigo 13°, n.° 1, da Lei n.° 37/2015, de 05.05, preceitua que “Sem prejuízo do disposto na Lei n.° 113/2009, de 17.09, com respeito aos crimes previstos no artigo 152°, no artigo 152° - A e no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, os tribunais que condenem pessoa singular em pena de prisão até 1 ano ou em pena não privativa da liberdade podem determinar na sentença ou em despacho posterior, se o arguido não tiver sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza e sempre que das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de práticas de novos crimes, a não transcrição da respectiva sentença nos certificados a que se referem os n.°s 5 e 6 do artigo 10º”.
II
O Tribunal a quo evidencia que o recorrente só através do TEP (Tribunal de Execução de Penas) poderá solicitar o cancelamento, total ou parcial, das decisões condenatórias.
III
Sucede que, como resulta claro dos autos, o condenado não pretende tal cancelamento, cancelamento que, como é sabido, visa extinguir - total ou parcialmente - a inscrição da decisão no registo criminal, e é, não se ignora, da competência do TEP (arts. 12°, da Lei n.° 37/2015, de 05.05, e 138°, n.° 4, al. z), do CEPMPL.
IV
De facto, o requerimento que foi subscrito e apresentado pelo próprio condenado era dirigido ao juiz dos autos e não a qualquer outro tribunal, e os termos em que se encontra formulado não oferecem dúvidas acerca da pretensão do seu subscritor, pretensão essa para a qual o Tribunal a quo é competente.
V
A norma ínsita no artigo 13° da referida Lei n.° 37/2015, de 05.05 expressamente admite que a ordem de não transcrição da sentença naqueles tipos de certificados de registo criminal seja dada em despacho posterior à sentença, já que a providência prevista não se traduz na omissão da inscrição da condenação no registo criminal do arguido, mas apenas na omissão da referência à condenação nos certificados de registo criminal que sejam pedidos para aqueles fins, pelo que a ordem para que, em tais certificados, seja omitida a referência à condenação, não contende com o caso julgado que se forma sobre a simples ordem de remessa de boletim ao registo criminal, para inscrição, ali, da condenação proferida.
VI
Afigura-se, assim, inequívoca a lei no sentido de que, com a decisão condenatória e a ordem de remessa do boletim ao registo criminal, não fica esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria e, portanto, não está impedido de ordenar, posteriormente - mesmo depois de declarada extinta a pena -, a não transcrição da condenação nos certificados assinalados supra.
VII
De resto, em momento algum da Lei de Execução de Penas é atribuída ao TEP qualquer competência para apreciação de questão relacionada com a não transcrição, tão só no âmbito do cancelamento, que, como se referiu já, não consubstancia o caso dos autos.
VIII
Ao assim não entender e não decidir, e ao concluir não lhe assistir competência para apreciação da requerida não transcrição da sentença nos mencionados certificados, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 10°, n.°s 5 e 6, e 13°, n.° 1, da Lei n.° 37/2015, de 05.05.
Termos em que, deverá o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que, concluindo pela competência do Tribunal a quo, aprecie o mérito do aludido requerimento do condenado.
Porém, Vossas Excelências melhor decidirão, fazendo, como sempre,
JUSTIÇA!»
2. O recurso foi admitido, por despacho de fls. 269 dos autos[1], tendo a Senhora Juiz a quo proferido, a fls. 271, despacho de sustentação da decisão recorrida.
3. O arguido não respondeu ao recurso.
4. Nesta Relação, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seu parecer, conforme consta de fls. 279, acompanhando a motivação do recurso apresentado pelo Ministério Público e pronunciando-se pela sua procedência.
5. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, não foi oferecida resposta.
6. Realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
*
II. Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (art. 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
In casu, a questão que se suscita é a de saber se, contrariamente ao que foi decidido, o Tribunal da condenação é o competente para apreciar o requerimento de não transcrição da condenação no certificado de registo criminal do arguido, para efeitos civis e laborais.
*
2. Da decisão recorrida
É do seguinte teor o despacho recorrido:
«A 03/10/2018, veio o condenado requerer, por motivos profissionais, a não transcrição da pena, no Certificado do Registo Criminal.
O Ministério Público pronunciou-se, a 10/10/2018, nada opondo.
Conforme despacho de fls. 65 v., foi extinta a pena aplicada nos presentes autos, a 19/10/2012, reportada a 17/07/2012.
Cumpre apreciar e decidir:
Uma vez que a pretensão do arguido se prende com o cancelamento provisório da decisão no registo criminal, entendo não ser este o Tribunal competente para apreciar o requerido, independentemente da nominação dada pelo requerente, pertencendo tal competência ao Tribunal de Execução das Penas de Lisboa, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 12.°, da Lei n.° 37/2015, de 05/05 e 138.°, n.° 4, al. z), do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, razão pela qual se indefere, nesta sede, o requerido.
Notifique, sendo o arguido para, querendo, requerer o cancelamento junto do Tribunal competente.
*
Após, regressem os autos ao arquivo.»
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3. Da análise dos fundamentos do recurso
Como acima referimos, o recorrente insurge-se contra o despacho que decidiu indeferir o requerimento do arguido no sentido de a condenação que lhe foi aplicada não ser transcrita no certificado de registo criminal, para efeitos civis e profissionais.
O despacho posto em crise fundamenta tal indeferimento na circunstância de, em seu entender, o arguido pretender o cancelamento provisório da decisão no registo criminal, cabendo a apreciação dessa pretensão ao Tribunal de Execução das Penas e sendo, em consequência, o tribunal da condenação incompetente para o efeito.

Vejamos o que, com interesse para a apreciação do objecto do recurso, resulta dos autos.
Por sentença de 03-04-2014, confirmada por acórdão deste Tribunal da Relação de 14-10-2014, o arguido P… foi condenado, pela prática de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelos arts. 30.º e 152.º, n.ºs 1, als. a) e c), 2, 4, 5 e 6, ambos do CP, na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita à condição de entregar à APAV, no prazo de trinta dias a contar do trânsito em julgado da sentença, a quantia de 100,00 (cem euros), comprovando tal pagamento nos autos.
Por despacho de 05-03-2018 foi declarada extinta a pena aplicada ao arguido[2].
Em 03-10-2018, o arguido apresentou requerimento no qual solicitava a «não transcrição da pena» no certificado de registo criminal «para efeitos civis e laborais».
O MP nada opôs ao requerido, sendo na sequência, em 15-10-2018, proferido o despacho recorrido.

A Lei n.º 37/2015, de 05-05 (que estabelece os princípios gerais que regem a organização e o funcionamento da identificação criminal) dispõe, no seu art. 10.º (Conteúdo dos certificados):
«(…)
5 - Sem prejuízo do disposto no número seguinte, os certificados do registo criminal requeridos por pessoas singulares para fins de emprego, público ou privado, ou para o exercício de profissão ou atividade em Portugal, devem conter apenas:
a) As decisões de tribunais portugueses que decretem a demissão da função pública, proíbam o exercício de função pública, profissão ou atividade ou interditem esse exercício;
b) As decisões que sejam consequência, complemento ou execução das indicadas na alínea anterior e não tenham como efeito o cancelamento do registo;
c) As decisões com o conteúdo aludido nas alíneas a) e b) proferidas por tribunais de outro Estado membro ou de Estados terceiros, comunicadas pelas respetivas autoridades centrais, sem as reservas legalmente admissíveis.
6 - Os certificados do registo criminal requeridos por pessoas singulares para o exercício de qualquer profissão ou atividade para cujo exercício seja legalmente exigida a ausência, total ou parcial, de antecedentes criminais ou a avaliação da idoneidade da pessoa, ou que sejam requeridos para qualquer outra finalidade, contêm todas as decisões de tribunais portugueses vigentes, com exceção das decisões canceladas provisoriamente nos termos do artigo 12.º ou que não devam ser transcritas nos termos do artigo 13.º, bem como a revogação, a anulação ou a extinção da decisão de cancelamento, e ainda as decisões proferidas por tribunais de outro Estado membro ou de Estados terceiros, nas mesmas condições, devendo o requerente especificar a profissão ou atividade a exercer ou a outra finalidade para que o certificado é requerido.»

O art. 12.º do mesmo diploma (Cancelamento provisório) estabelece:
«Sem prejuízo do disposto na Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro, estando em causa qualquer dos fins a que se destina o certificado requerido nos termos dos n.ºs 5 e 6 do artigo 10.º pode o tribunal de execução das penas determinar o cancelamento, total ou parcial, das decisões que dele deveriam constar, desde que:
a) Já tenham sido extintas as penas aplicadas;
b) O interessado se tiver comportado de forma que seja razoável supor encontrar-se readaptado; e
c) O interessado haja cumprido a obrigação de indemnizar o ofendido, justificado a sua extinção por qualquer meio legal ou provado a impossibilidade do seu cumprimento.»

E o seu art. 13.º (Decisões de não transcrição) estipula:
1 - Sem prejuízo do disposto na Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro, com respeito aos crimes previstos no artigo 152.º, no artigo 152.º-A e no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, os tribunais que condenem pessoa singular em pena de prisão até 1 ano ou em pena não privativa da liberdade podem determinar na sentença ou em despacho posterior, se o arguido não tiver sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza e sempre que das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de prática de novos crimes, a não transcrição da respetiva sentença nos certificados a que se referem os n.ºs 5 e 6 do artigo 10.º
2 - No caso de ter sido aplicada qualquer interdição, apenas é observado o disposto no número anterior findo o prazo da mesma.
3 - O cancelamento previsto no n.º 1 é revogado automaticamente, ou não produz efeitos, no caso de o interessado incorrer, ou já houver incorrido, em nova condenação por crime doloso posterior à condenação onde haja sido proferida a decisão.»

Tais disposições legais são claras.
Efectivamente, não pode confundir-se o cancelamento provisório das decisões que deviam constar do registo criminal, nos termos previstos no art. 12.º da Lei n.º 37/2015, de 05-05, com a não transcrição da sentença nos certificados de registo criminal a que aludem os n.ºs 5 e 6 do art. 10.º do mesmo diploma, possibilidade prevista no respectivo art. 13.º.
Enquanto a avaliação do pedido de cancelamento provisório cabe ao Tribunal de Execução das Penas (o que resulta não só do teor do citado art. 12.º como também do art. 138.º, n.º 4, al. z), da Lei n.º 115/2009, de 12-10), a apreciação da pretensão de não transcrição compete ao Tribunal da condenação, como expressamente prevê o n.º 1 do citado art. 13.º.
E, como também decorre deste preceito, tal apreciação pode ser efectuada quer na sentença quer em despacho posterior, não estabelecendo a lei qualquer limitação temporal para o efeito.[3]

Assim, só uma incorrecta interpretação do peticionado pelo arguido (sem que se alcance em que se funda o despacho recorrido para do requerido extrair uma pretensão de cancelamento provisório quando o requerente, de forma expressa, se refere à não transcrição da sentença no CRC, «para efeitos civis e laborais») explica a decisão ora posta em crise.
Em conformidade com as atinentes regras legais, não se suscitam quaisquer dúvidas de que é o Tribunal recorrido, enquanto tribunal da condenação, o competente para conhecer do mérito da pretensão formulada pelo arguido, de não transcrição da decisão condenatória nos certificados do registo criminal a que se referem os n.ºs 5 e 6 do art. 10.º da Lei n.º 37/2015, de 05-05, pelo que a decisão recorrida não pode manter-se.
Procede, pois, o recurso.
*
III. Decisão
Em face do exposto, acordam os Juízes da 9.ª Secção Criminal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogar o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que, tendo como pressuposto adquirido a competência material do tribunal da condenação, conheça do mérito da pretensão formulada pelo arguido.
Sem tributação.
Notifique.
*
(Certifica-se, para os efeitos do disposto no art. 94.º, n.º 2, do CPP, que o presente acórdão foi elaborado e revisto pela relatora, a primeira signatária)
*
Lisboa, 21/03/2019

Cristina Branco
Filipa Costa Lourenço

[1] Referimo-nos à paginação efectivamente aposta nos autos, mas que se constata estar incorrecta a partir de fls. 567 e que deverá ser oportunamente corrigida.
[2] Despacho disponível (apenas) na tramitação electrónica do processo, sendo que a afirmação, na decisão recorrida, de que a pena terá sido extinta «a 19/10/2012, reportada a 17/07/2012» configura lapso manifesto, desde logo pela óbvia impossibilidade de declarar extinta em 2012 uma pena que só por acórdão de 14-10-2014 foi confirmada.
[3] Cf., neste sentido, os acórdãos deste Tribunal da Relação de Lisboa de 07-05-2015 (Proc. n.º 375/12.9SILSB-A.L1-9, que subscrevemos na qualidade de adjunta), de 22-06-2017 (Proc. n.º 1748/07.4PASNT-A.L1-9) e de 17.01-2018 (Proc. n.º 1249/14.4IDLSB.L1-3); da Relação de Évora de 20-05-2014 (Proc. n.º 56/06.2GTPTG-A.E1) e de 07-06-2016 (Proc. n.º 907/12.2PBFAR.E1); da Relação de Coimbra de 15-06-2016 (Proc. n.º 21/13.3PFCBR.C1) e de 27-02-2013 (Proc. n.º 1562/09.2PCCBR-A.C1); e da Relação do Porto de 22-10-2014 (Proc. n.º 70/98.0TBPRD-A.P1), todos in www.dgsi.pt. Em sentido contrário, de que discordamos, cf. os acórdãos deste Tribunal da Relação de 01-07-2015 (Proc. n.º 4502/09.5TDLSB-A.L1-3) e de 19-04-2016 (Proc. n.º 171/13.6SFLSB-A.L1-5), ibidem.