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EXECUÇÃO
OBRIGAÇÃO IMEDIATA
Sumário
Sumário do Acordão (da exclusiva responsabilidade da relatora – art. 663, nº 7, do C.P.C.)
I– Não tendo dado em execução título de crédito como mero quirógrafo, estava o exequente dispensado de invocar a causa da obrigação, pelo que, tratando-se de uma livrança assinada em branco, não tinha o mesmo de justificar as concretas circunstâncias do seu preenchimento nem juntar o pacto respetivo;
II– O princípio da aquisição processual é absoluto relativamente aos meios de prova ressalvando-se, quanto à matéria de facto, os casos em que o juiz só pode considerar a matéria que for alegada pela parte a quem aproveita;
III– Tendo o exequente alegado, na contestação aos embargos, a concreta intervenção dos embargantes/avalistas no negócio subjacente à livrança dada em execução, colocando a discussão dos autos no claro domínio das relações imediatas dos sujeitos cartulares, não pode negar-se àqueles a possibilidade de opor qualquer exceção fundada nessa obrigação causal porque os mesmos não a tinham concretamente invocado na petição de embargos.
Texto Integral
Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa. I–Relatório:
A. e mulher, A’., vieram, em 15.2.2017, deduzir oposição, por meio de embargos, à execução comum para pagamento de quantia certa, com o valor de € 137.004,68, que contra si e P. foi movida, em 27.6.2014, pelo Banco Espírito Santo, S.A., Sociedade Aberta, agora Novo Banco, S.A.. Alegam, para tanto e em síntese, que a livrança dada em execução foi preenchida de forma abusiva, uma vez que o contrato de crédito que lhe está subjacente, celebrado em 1998 pelo seu filho e pagável em prestações mensais, foi denunciado pelo BES em 2002 e só em 2014 foi preenchida a dita livrança-caução em branco que fora dada em garantia. Sustentam, de qualquer modo, que os montantes contabilizados no valor aposto no título respeitam a um crédito prescrito. Dizem que o pacto de preenchimento deveria acompanhar a livrança, devendo considerar-se por isso esta incompleta, não sendo a obrigação reclamada certa, líquida nem exigível. Insistem, ainda assim, que a sua responsabilidade estaria presumivelmente limitada a 13.5.2002, data em que terá cessado o contrato caucionado pela livrança, encontrando-se prescritos os valores considerados, nos termos do art. 310, als. d) e e), do C.C., pelo que o preenchimento do título terá tido como único intuito sujeitar o alegado crédito ao prazo de 3 anos previsto no art. 70 da LULL. Referem ainda que os juros peticionados são usurários e que os embargantes não foram interpelados para proceder ao pagamento na data do vencimento da obrigação principal.
Admitidos os embargos, contestou o exequente Novo Banco, impugnando, no essencial, a factualidade alegada. Defende a autonomia da livrança dada em execução e refere que a mesma respeita ao contrato de empréstimo celebrado entre o BES e P., em 29.1.1998, sob a forma de facilidade de crédito em conta corrente, no montante de Esc. 8.000.000$00. Invoca que para garantia e segurança do cumprimento das obrigações decorrentes de tal contrato, foi entregue a livrança dos autos, subscrita pelo mutuário e avalizada pelos embargantes que então subscreveram também, além do próprio contrato, a autorização de preenchimento respetiva (doc. 2 que junta). Mais refere que tal contrato foi alterado em 17.9.2001, conforme contrato que os embargantes também subscreveram. Alega que o preenchimento da livrança obedeceu ao que foi convencionado, dado o incumprimento do contrato por parte do mutuário a partir de Maio de 2002, não tendo sido contratualmente estabelecida qualquer data limite para o preenchimento da livrança. Mais sustenta que os embargantes avalistas foram devidamente interpelados, em 17.9.2002, para procederem ao pagamento da quantia então devida. Conclui pela improcedência dos embargos e pelo prosseguimento da execução.
Por despacho de 14.1.2018, foram as partes convidadas a pronunciar-se sobre a dispensa da audiência prévia e alegar por escrito, atenta a perspetiva do imediato conhecimento do mérito da causa, tendo apenas os embargantes apresentado a sua alegação.
Em 15.4.2018, foi proferido despacho saneador que conferiu a validade formal da instância e que, considerando que o estado dos autos já o permitia, conheceu do mérito dos embargos, decidindo nos seguintes termos: “(...) Julgo improcedentes os embargos de executado, prosseguindo, em consequência, os autos principais de execução os seus ulteriores termos. Custas pelos embargantes – art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC..”
Inconformados, recorreram os embargantes, Lda, culminando as alegações por si apresentadas com as seguintes conclusões que se transcrevem: “ 1.–O presente recurso apenas se intenta por uma razão absolutamente de justiça objetiva. 2.– Deve, desde logo, aguardar-se pelo julgamento da dedução de embargos que corre termos como apenso B. 3.– O facto provado n°3 deveria ter sido considerado como não provado. 4.– A livrança em branco dada como caução, existindo pacto de preenchimento, não pode ser executada como se o mesmo inexistisse. 5.– Incumbe ao Exequente, ora Recorrido, por questões de ordem pública, facultar ao Tribunal o pacto de preenchimento de modo que este possa garantir que inexistiu preenchimento em abuso de direito. 6.– O Tribunal a quo tinha na sua posse o pacto de preenchimento e deveria oficiosamente ter decretado o abuso de direito no preenchimento do mesmo. 7.– A livrança-caução dos autos foi preenchida de forma abusiva para evitar o prazo prescricional do art. 310 do Cód. Civil, dado que a mesma dizia respeito a um contrato denunciado em 13 de Maio de 2002. 8.–As quotas de amortização de capital cujo pagamento se processaria de forma adjunta com os juros prescreveram em data próxima de 13 de Maio de 2007. 9.–É aplicável o prazo de prescrição de 5 anos previsto no art. 310 do Código Civil porque a Livrança foi subscrita em branco pelo devedor e pelos avalistas. 10.– Ora, existindo pacto de preenchimento, deveria o mesmo ter sido junto aos autos aquando da propositura da ação, pois sem o mesmo a livrança-caução em branco está incompleta e não pode servir de título executivo. 11.–Rectius, por inexistência da característica da “autonomia” deste título de crédito, a utilização da livrança como título executivo sem o respetivo pacto de preenchimento é um direito que não assiste ao BES, parecendo esconder um preenchimento abusivo do qual resulta que a obrigação não é certa, nem líquida, nem exigível. 12.– Esta suposta obrigação estaria, além do exposto, dependente da “causa debendi”, pois o título de crédito não se destinava a ser posto a circular, antes a garantir um específico crédito por parte do BES, como se constata pela aposição na livrança do termo “caução”. 13.–Aliás, a menção do termo “caução” aposto na livrança expressamente identifica a relação de dependência desta para com o pacto de preenchimento: a livrança seria preenchida quando o pacto de preenchimento o tornasse possível (não antes, por intempestivo; nem muito depois, sob pena de prescrição) e de seguida seria exigido o seu pagamento. 14.–O desvirtuamento da livrança como documento cartular caracterizado pela autonomia, independência, circulabilidade e abstração, ocorreu por motivo imputável ao BES Exequente. 15.–A forma como foi preenchida a livrança constitui um abuso de direito, pois a sua responsabilidade seria presumivelmente limitada aos valores em dívida a 13 de Maio de 2002, data em o BES alega ter cessado o contrato caucionado pela livrança-caução. 16.–Por maioria de razão, os montantes peticionados a título de imposto de selo sobre os juros também não são devidos pelos Executados ao BES.”
Em contra-alegações, sustenta o Banco exequente o acerto do julgado.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo.
Vieram, entretanto, os embargantes juntar aos autos, a fls. 86 e ss., cópia simples da sentença proferida no Apenso-B em 28.11.2018 respeitante ao devedor principal. Dizem que a referida sentença se fundou na mesma prova documental junta ao presente Apenso-A, concluindo-se pela procedência dos embargos de executado aí deduzidos pelo M.P. em representação do executado P.. Pedem se solicite certidão da referida sentença e da documentação existente naquele processo.
De acordo com informação entretanto fornecida em 1.2.2019, a referida sentença já transitou em julgado.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. ***
II–Fundamentos de Facto:
A sentença fixou como provada a seguinte factualidade: 1)–Nos autos de execução a que estes estão apensos foi dada à execução uma livrança, emitida em 29.01.1998, subscrita a favor do exequente por P., com a importância de € 136.214,94, contendo no seu verso as assinaturas dos embargantes antecedidas das expressões “por aval ao subscritor”; 2)–No momento em que os embargantes apuseram as suas assinaturas na livrança referida em 1., esta tinha os espaços destinados ao montante e data de vencimento em branco; 3)–P. não cumpriu as obrigações decorrentes do contrato subjacente à emissão da livrança. ***
III–Fundamentos de Direito:
Como é sabido, são as conclusões que delimitam o âmbito do recurso. Por outro lado, não deve o tribunal de recurso conhecer de questões que não tenham sido suscitadas no tribunal recorrido e de que, por isso, este não cuidou nem tinha que cuidar, a não ser que sejam de conhecimento oficioso.
De acordo com as conclusões acima transcritas, cumpre apreciar: –da relevância da decisão proferida no Apenso-B; –da validade do título dado em execução: livrança desacompanhada do pacto de preenchimento; –da impugnação da matéria de facto; –do preenchimento abusivo da livrança e da prescrição do crédito que lhe deu origem. A)–Da relevância da decisão proferida no Apenso-B:
Começam por dizer os apelantes, na conclusão 2ª do seu recurso, que deve aguardar-se pelo julgamento no Apenso-B de embargos.
Por sua vez, e já nesta instância, vieram os mesmos juntar, a fls. 86 e ss., cópia simples da sentença aí proferida em 28.11.2018 respeitante ao devedor principal. Dizem que a referida sentença se fundou na mesma prova documental junta a este Apenso-A, concluindo-se pela procedência dos embargos de executado aí deduzidos pelo M.P. em representação do executado P.. A referida sentença terá já transitado em julgado.
A apreciação dos presentes embargos em nada depende da decisão final proferida no aludido Apenso-B.
Com efeito, aquele Apenso-B respeita à oposição por embargos deduzida pelo M.P. em representação do executado P., citado editalmente, subscritor da livrança dada em execução.
Nos presentes autos está em causa a defesa dos apelantes que, na qualidade de avalistas, apuseram as suas assinaturas no referido título.
O aval é o ato pelo qual um terceiro ou signatário da letra ou livrança garante o pagamento da mesma por parte de um dos subscritores (cfr. arts. 30 e 77 da L.U.L.L.).
Constitui, por isso, um verdadeiro ato cambiário, uma garantia cambial de natureza comercial, em que o dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele avalizada.
Em todo o caso, a sua função específica é garantir ou caucionar a obrigação de certo obrigado cambiário, dando o aval origem a uma obrigação materialmente autónoma, pelo que o dador de aval não se limita a responsabilizar-se pela pessoa garantida, antes assumindo a responsabilidade abstrata e objetiva pelo pagamento da obrigação correspondente([1]).
Tal significa que a obrigação discutida no presente Apenso-A, respeitante aos avalistas da livrança executada, não depende da existência da obrigação principal que se aprecia no Apenso-B, respeitante ao subscritor da dita livrança.
Assim sendo, logo se vê que a decisão final daquele Apenso-B não condiciona nem determina a decisão nestes autos.
Questão diversa é a dos meios de defesa que, em cada um dos casos, podem os executados utilizar, matéria que mais à frente apreciaremos.
Improcede neste ponto o recurso. B)–Da validade do título dado em execução:livrança desacompanhada do pacto de preenchimento:
Argumentam, ainda, os apelantes que estando em causa uma livrança em branco dada como caução e existindo pacto de preenchimento, este deveria ter sido junto aos autos aquando da instauração da execução, pelo que sem o mesmo a livrança está incompleta e não pode servir de título executivo, parecendo esconder um preenchimento abusivo do qual resulta que a obrigação não é certa, nem líquida, nem exigível.
O Banco exequente defende que, atenta a natureza do título apresentado, é o mesmo suficiente para sustentar a execução.
Vejamos.
O título dado em execução é uma livrança, emitida em 29.1.1998 e com vencimento em 20.6.2014, subscrita por P. e avalizada pelos ora apelantes, A. e A’. (cfr. fls. 76/77 destes autos).
Conforme dispõe o art. 703, nº 1, al. c), do C.P.C., à execução podem servir de base “Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo”.
Assim, a letra, a livrança e o cheque são, em face do C.P.C. de 2013, os únicos documentos particulares a que é conferida exequibilidade.
O título executivo constitui a base da ação executiva e tem natural autonomia com relação à obrigação que o sustenta.
Contudo, prescrita a obrigação cartular constante de uma letra, livrança ou cheque, poderá qualquer deles continuar ainda a valer como título executivo embora enquanto escrito particular referido à obrigação subjacente.
O preceito indicado veio resolver, no Código de Processo Civil de 2013, questão amplamente debatida no anterior Código sobre a necessidade de, sendo dado em execução um título de crédito como mero quirógrafo, constar desse título a causa da obrigação ou ser esta alegada no requerimento executivo.
Dir-se-á, brevemente, que à validade como título executivo da letra, livrança ou cheque enquanto documentos particulares, uma vez julgada procedente a prescrição da ação cambiária, se opunha então Lopes Cardoso([2]), defendendo, em sentido contrário, essa validade, designadamente, J. Alberto dos Reis([3]), Anselmo de Castro([4]), Lopes do Rego([5]) e Lebre de Freitas([6]).
Discorria este último autor, no local indicado, nos termos seguintes: “(…) Quanto aos títulos de crédito prescritos dos quais não conste a causa da obrigação, tal como quanto a qualquer outro documento particular nas mesmas condições, há que distinguir consoante a obrigação a que se reportam emerja ou não de um negócio jurídico formal. No primeiro caso, uma vez que a causa do negócio jurídico é um elemento essencial deste, o documento não constitui título executivo (arts. 221º, 1, e 223º, 1, CC). No segundo caso, porém, a autonomia do título executivo em face da obrigação exequenda e a consideração do regime do reconhecimento da dívida (art. 458º, 1, CC) leva a admiti-lo como título executivo, sem prejuízo de a causa da obrigação dever ser invocada na petição executiva e poder ser impugnada pelo executado; mas, se o exequente não a invocar, ainda que a título subsidiário, no requerimento executivo, não será possível fazê-lo na pendência do processo, após a verificação da prescrição da obrigação cartular e sem o acordo do executado (art. 272), por tal implicar alteração da causa de pedir”.
Por conseguinte, já no domínio da legislação anterior se entendia, maioritariamente, que se a causa de pedir não fosse mencionada no título devia ser descrita, de forma sucinta, no requerimento executivo e, no caso de título de crédito a que pudesse ser oposta a prescrição, devia o exequente, querendo fundar a sua pretensão na relação subjacente e usar tal título como documento particular, alegar a causa da obrigação logo no requerimento executivo([7]).
A questão está, como dissemos, agora ultrapassada em face do art. 703, nº 1, al. c), do C.P.C. de 2013.
Voltando ao caso sub judice, verificamos que o Banco exequente sustenta a execução na obrigação cartular emergente das assinaturas que foram apostas na livrança e, não estando em causa a prescrição dessa obrigação cartular – questão que os embargantes também não suscitam (apenas alegam a prescrição do crédito subjacente, com o que justificam o preenchimento abusivo da livrança) – razão não se vislumbra para a obrigatória referência à relação fundamental.
Assim, não sendo dado em execução título de crédito como mero quirógrafo, estava o Banco exequente dispensado de invocar a causa da obrigação, o que significa que, tratando-se de uma livrança assinada em branco, não tinha o mesmo de justificar as concretas circunstâncias do seu preenchimento.
Ora, se assim é, já se vê que também não lhe caberia juntar qualquer pacto de preenchimento, sendo certo que um tal acordo nem sequer exige a forma escrita.
Coisa diferente é o executado excecionar, em sua defesa, o preenchimento abusivo da livrança, mas tal não tem já que ver com a validade ou suficiência do título dado em execução.
Em suma, a livrança dada em execução constitui título executivo bastante à luz do art. 703, nº 1, al. c), do C.P.C..
Improcede, também aqui o recurso. C)–Da impugnação da matéria de facto, do preenchimento abusivo da livrança e da prescrição do crédito que lhe deu origem:
Aqui chegados, e antes de abordarmos as demais razões de discordância dos apelantes, cumpre reter o fundamento principal da julgada improcedência dos embargos logo no despacho saneador.
Na sentença, depois de se selecionarem os factos julgados assentes e se discorrer sobre a natureza dos títulos de crédito e da livrança em particular, diferenciando a relação cambiária do negócio subjacente, afirmou-se, além do mais: “(…) O carácter literal, abstracto e autónomo do título de crédito em apreço pode, porém, ser posto em causa, no domínio das relações imediatas, entre os sujeitos da relação fundamental que esteve na origem da subscrição do título, relevando neste âmbito, as excepções derivadas das relações pessoais entre aqueles sujeitos – cfr. art.º 27º da LULL e Ferrer Correia, Direito Comercial, III, pag. 71 e 131 e seg.
Neste domínio, exercendo o portador do título os direitos correspondentes, tal como está preenchido e com a força própria desse título, impende sobre o obrigado cambiário que pretenda prevalecer-se de quaisquer de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito que daquele título emerge o ónus da prova de tais factos, em sede de oposição à execução.- cfr. neste sentido Acs STJ de 7.07.87 19.04.95, de 29.09.94, 28.05.96 e de 21.09.99, todos disponíveis na Internet, base de dados da DGSI (www.dgsi.pt).
Os ora embargantes nada alegam, porém, quanto à intervenção que possam ter tido no negócio subjacente à emissão da livrança. Tem-se entendido que apenas é possível impugnar a relação subjacente no domínio das chamadas relações imediatas dos sujeitos cartulares, isto é, quando o título se encontra no âmbito das relações estabelecidas entre um subscritor do título e o sujeito cambiário imediato – arts. 16º e 17º da LULL.
Ora, o aval é o acto através do qual um terceiro ou um signatário do título garante o seu pagamento por parte de um dos seus subscritores (art. 30º da LULL), constituindo uma obrigação autónoma, ainda que dependente da obrigação do avalizado. Por outro lado, a obrigação do avalista subsiste independentemente da do avalizado, mantendo-se ainda que seja nula a obrigação garantida, salvo se a nulidade provier de vício de forma (art. 32º do mesmo diploma), e a sua responsabilidade afere-se pela do avalizado, ou seja, o avalista fica na situação do devedor cambiário perante quem seja responsável e na mesma medida em que o avalizado o seja.
O avalista, dada a autonomia do aval, não pode defender-se com as excepções que competiriam ao seu avalizado se não tiver sido sujeito material da relação contratual subjacente à emissão do título de crédito, bem como não lhe pode opor a excepção de preenchimento abusivo, caso o título tenha sido entregue em branco, se não tiver tido intervenção no correspondente pacto de preenchimento.
Nesta medida, se o avalista outorgou no acordo que esteve na origem do título de crédito, ou interveio no pacto de preenchimento do título emitido em branco, poderá opor ao credor cambiário as excepções que afectem a validade do negócio subjacente ou o preenchimento em desconformidade com o respectivo pacto.
No caso, não tendo sido alegada a intervenção dos embargantes no pacto de preenchimento, ou no negócio subjacente, não podem aqueles opor ao exequente excepções derivadas desse contrato, nomeadamente, a prescrição da dívida.
Quanto ao pacto de preenchimento e à sua alegada violação pelo exequente, há que salientar que o art. 10º da LULL (Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças) dispõe: «Se uma letra incompleta no momento de ser passada tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de má-fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave».
Portanto, a letra em branco é admitida na nossa ordem jurídica. Mas, sempre que é emitida uma letra em branco tem de haver um acordo prévio ou simultâneo, expresso ou tácito, quanto ao critério de preenchimento, que é uma convenção extracartular, o chamado pacto de preenchimento (neste sentido, Pedro Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, Títulos de Crédito, 1997, pág. 62/63, Ac do STJ de 6/3/2003 – Proc. 03B103 e Ac do STJ de 3/5/2005 – Proc. 05A1086, ambos in www.dgsi.pt).
O preenchimento da letra em branco deve ser feito de acordo com o convencionado no pacto de preenchimento. Porém, compete ao obrigado cambiário que tenha tido intervenção na celebração desse pacto a alegação dos factos constitutivos da violação do preenchimento em conformidade com o mesmo, o que, no caso presente, não sucede, dado que nada nesse sentido foi alegado pelos embargantes.
Assim, será abusivo o preenchimento se não estiver de acordo com aquele pacto, o que constitui uma excepção de direito material e por isso deve ser alegado e provado pelos executados, nos termos do art. 342º nº 2 do Código Civil.
Ora, tal fundamento de embargos terá, manifestamente, de improceder, quer porque não foi alegada a intervenção dos embargantes no negócio subjacente, quer porque nada disseram quanto à sua intervenção no acordo de preenchimento do título e à correspondente violação do mesmo por parte da exequente. (…).”
Fundou-se, assim, a improcedência dos embargos, pelo menos em parte, na circunstância dos embargantes não poderem opor ao Banco exequente exceções emergentes da relação fundamental, como a prescrição da dívida ou o preenchimento abusivo da livrança, em virtude dos mesmos não terem alegado a sua intervenção no pacto de preenchimento ou no negócio subjacente.
Cremos, com o devido respeito, que não se atentou devidamente na defesa apresentada pelos embargantes e na contestação contraposta pelo exequente, tendo nomeadamente em conta o princípio da aquisição processual.
Com efeito, dispõe o art. 413 do C.P.C. (que reproduz, sem alterações, o art. 515 do C.P.C. de 1961), que: “O tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las, sem prejuízo das disposições que declarem irrelevante a alegação de um facto, quando não seja feita por certo interessado.”
Assim, o princípio da aquisição processual consagrado neste normativo é absoluto relativamente aos meios de prova dependendo, quanto à matéria de facto, da ressalva da parte final do preceito. Isto é, no tocante à matéria de facto, vigora também o princípio da aquisição processual, salvo nos casos em que o juiz só pode considerar a matéria que for alegada pela parte a quem aproveita([8]).
Como nos refere Manuel de Andrade a propósito do referido princípio: “Os materiais (afirmações e provas) aduzidos por uma das partes ficam adquiridos para o processo. São atendíveis mesmo que sejam favoráveis à parte contrária. (…).”([9]) Ora, os embargantes começam por alegar que a livrança dada em execução foi preenchida de forma abusiva, uma vez que o contrato de crédito que lhe está subjacente, celebrado em 1998 pelo seu filho e pagável em prestações mensais, foi denunciado pelo BES em 2002 e só em 2014 foi preenchida a dita livrança-caução em branco que fora dada em garantia. Sustentam, ainda, que os montantes contabilizados no valor aposto no título respeitam a um crédito prescrito. Dizem que o pacto de preenchimento deveria acompanhar a livrança e que a sua responsabilidade estaria presumivelmente limitada a 13.5.2002, data em que terá cessado o contrato caucionado pela livrança, encontrando-se prescritos os valores considerados, nos termos do art. 310, als. d) e e), do C.C., pelo que o preenchimento do título terá tido como único intuito sujeitar o alegado crédito ao prazo de 3 anos previsto no art. 70 da L.U.L.L.
Por sua vez, o Banco exequente veio defender na contestação, além do mais, que a livrança dada em execução respeita ao contrato de empréstimo celebrado entre o BES e P., em 29.1.1998, sob a forma de facilidade de crédito em conta corrente, no montante de Esc. 8.000.000$00, e que para garantia e segurança do cumprimento das obrigações decorrentes de tal contrato, foi entregue a livrança dos autos, subscrita pelo mutuário e avalizada pelos embargantes que então subscreveram também, além do próprio contrato, a autorização de preenchimento respetiva (doc. 2 que junta). Mais refere que tal contrato foi alterado em 17.9.2001, conforme contrato que os embargantes também subscreveram (doc. 1 que junta). Alega ainda que o preenchimento da livrança obedeceu ao que foi convencionado, dado o incumprimento do contrato por parte do mutuário a partir de Maio de 2002, não tendo sido contratualmente estabelecida qualquer data limite para o preenchimento do título de crédito.
Constatamos, deste modo, que se os embargantes não invocam que concretamente outorgaram no negócio subjacente à livrança dada em execução (o que também não negam), o Banco exequente veio alegar a concreta intervenção daqueles no dito negócio, colocando a discussão dos autos no claro domínio das relações imediatas dos sujeitos cartulares.
Ou seja, de acordo com o vertido na contestação, o exequente e os três executados serão também titulares das convenções extracartulares.
Nesta perspetiva e comprovando-se tal factualidade, não se mostrando que a dita livrança tenha entrado em circulação e se encontre em poder de terceiros estranhos à relação que lhe deu origem, seria sempre legítimo aos embargantes/avalistas opor qualquer exceção fundada nessa obrigação causal.
A questão é ainda especialmente clara no que toca ao preenchimento abusivo da livrança por estes invocado.
“O contrato de preenchimento é o acto pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo de vencimento, a sede do pagamento, a estipulação de juros, etc.. O acordo não precisa de ser expresso.”([10]).
O título em branco, isto é, aquele que apenas contenha a assinatura do seu subscritor será válido enquanto tal, mas não eficaz. Essa eficácia depende, nas relações imediatas, do credor a apresentar preenchida de harmonia com o acordo de preenchimento, quando pretender exercer os direitos dela emergentes([11]).
Haverá, inevitavelmente, preenchimento abusivo quando este seja feito por uma das partes em desconformidade com os termos acordados ou sem obtenção desse acordo de preenchimento.
Demonstrado que seja o preenchimento abusivo, nos casos em que é oponível, impõe-se a absolvição do devedor de toda a responsabilidade([12]). É o que resulta, a contrario, do art. 10 da L.U.L.L. (o portador de que se fala naquele normativo é o portador mediato, o único a quem aproveitará a boa-fé).
Deste modo, e porque os embargantes afirmam estar em causa uma livrança-caução em branco (art. 14º do requerimento de embargos), sempre seria suficiente a defesa dos mesmos neste tocante apenas baseada na inexistência de um efetivo acordo de preenchimento, ou seja, ainda que se entenda que os embargantes nada disseram quanto à sua intervenção no acordo de preenchimento do título.
Donde, cremos, ao contrário do que foi entendido na sentença, ser admissível a defesa dos mesmos no sentido, nomeadamente, de que houve preenchimento abusivo da livrança e prescrição do crédito que conduziu a tal preenchimento.
Já quanto ao ónus de alegação das referidas exceções, nenhuma dúvida haverá de que os embargantes o cumpririam minimamente.
Ou seja, nenhuma dúvida se coloca quanto à aplicação do princípio da aquisição processual reportada ao facto do Banco exequente e os embargantes/avalistas serem também titulares das convenções extracartulares, colocando-se a discussão dos autos no âmbito das relações imediatas.
Aqui chegados, não pode, todavia, conhecer-se, desde já, das referidas exceções.
Com efeito, e sem prejuízo do convite ao aperfeiçoamento do requerimento de embargos que entenda fazer-se (art. 590, nºs 3 e 4, do C.P.C.), encontra-se controvertida factualidade com interesse para a apreciação das mesmas, designadamente a relativa aos contornos da relação fundamental e ao pacto de preenchimento.
É o que, de certo modo, assinalam os apelantes ao impugnar no recurso o facto assente sob o ponto 3 supra (incumprimento do devedor principal). Veja-se ainda que os embargantes impugnam, a fls. 42 v e 43 dos autos, o doc. 2 junto pelo Banco exequente com a contestação, respeitante à aludida autorização de preenchimento da livrança.
Mostra-se, pois, indispensável produzir a competente prova sobre a factualidade relevante para o conhecimento do mérito da presente oposição.
O art. 595, nº 1, al. b), do C.P.C., assenta no pressuposto de que o juiz deve abster-se de decidir enquanto o processo não tiver por assentes os factos articulados necessários às várias e plausíveis soluções da questão de direito.
O Tribunal a quo não estava, como se demonstrou, munido de todos os elementos que lhe permitiam decidir na fase processual em que o fez, posto que o processo não fornece ainda os elementos indispensáveis ao conhecimento das exceções arguidas pelos embargantes (v.g., preenchimento abusivo da livrança e prescrição do crédito que lhe deu origem).
Não pode, pois, manter-se a decisão recorrida, ainda que por motivo diverso do invocado pelos apelantes, devendo prosseguir os autos, produzindo-se a necessária prova sobre a matéria ainda controvertida.
Fica naturalmente prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas. ***
IV–Decisão: Termos em que e face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em revogar a sentença proferida e ordenar o prosseguimento dos presentes embargos nos termos referidos. Custas pelo exequente/apelado. Notifique. ***
Lisboa, 19.2.2019
Maria da Conceição Saavedra Cristina Coelho
Luís Filipe Pires de Sousa
[1]Cfr., Abel Delgado, “Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças”, 7ª edição, págs. 167 a 176, e Ferrer Correia, “Lições de Direito Comercial”, vol. III, 1975, págs. 205 a 219. [2]“Manual da Acção Executiva”, 3ª ed., págs. 89/90. [3]“Código do Processo Civil Anotado”, vol. I, págs. 166/167. [4]“A Acção Executiva Singular, Comum e Especial”, 3ª ed., pág. 37. [5]“Comentários ao Código de Processo Civil”, 2ª ed., 2004, vol. I, pág. 82. [6]“A Acção Executiva - Depois da Reforma”, 4ª ed., págs. 61 a 63, à semelhança do que já defendia antes da reforma da ação executiva em 2003. [7]Neste sentido, cfr., entre outros, o Ac. do STJ de 18.1.2001, CJ, ASTJ, 2001, T. I, pág. 71, o Ac. do STJ de 30.1.2001, CJ, ASTJ, 2001, T. I, pág. 85, e ainda o Ac. RL de 21.4.2005, Proc. 9012/2004-8, o Ac. RL de 19.10.2006, Proc. 7465/2006-6, e o Ac. RL de 8.11.2007, Proc. 4894/2007-6, estes em www.dgsi.pt. [8]Cfr. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, Almedina, 2018, Vol. I, pág. 486. [9]“Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1976, pág. 385. [10]Abel Delgado, “Lei Uniforme sobre Letras e Livranças”, 7ª ed., pág. 80. [11]Abel Delgado, ob. cit., pág. 83. [12]Ainda Abel Delgado, ob. cit., loc. cit..