DESPEJO IMEDIATO
INCIDENTE
FALTA DE PAGAMENTO DA RENDA
OBRIGAÇÃO DO LOCATÁRIO
Sumário

1. O espírito da lei ao criar o incidente de despejo imediato, agora previsto no Art. 14.º n.º 4 e 5 do N.R.A.U., foi sempre o de não permitir que alguém pudesse, gratuitamente, desfrutar de imóvel, durante o longo período que poderia durar a ação até ao despejo efetivo, numa situação que não seria reparável por nenhuma condenação em indemnização, ou pelo pagamento das rendas vencidas, por ser frequente o despejado não ter bens bastantes para o efeito. Pretendia-se evitar que o devedor da renda permanecesse no gozo da coisa injustificadamente e à custa alheia.
2. Não é totalmente inconstitucional a interpretação segundo a qual os meios de defesa oponíveis ao incidente de despejo imediato previsto no Art. 14.º n.º 4 e 5 do NRAU devem consistir na prova do pagamento ou depósito das rendas devidas na pendência da ação de despejo, mas esse entendimento sobre os meios de defesa oponíveis deve ser objeto de interpretação restritiva em conformidade com o julgamento de inconstitucionalidade decorrente do acórdão n.º 673/2005 do Tribunal Constitucional.
3. Assim, por força do princípio da proibição da indefesa, consagrado no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da Constituição, o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da ação não é automático, sendo o livremente apreciado pelo juiz nos casos em que na ação de despejo persista controvérsia quanto à existência ou exigibilidade do próprio dever de pagamento de renda, seja por que fundamento for (inexistência de contrato de arrendamento válido, não se­rem au­tor e/ou réu os verdadeiros locador e/ou locatário, dissídio quanto ao montante da renda ou da sua imediata exigibilidade, invocação de diverso título para justificar a ocupação do local).
4. Deverá ser decretado o despejo imediato quando os fundamentos de defesa apresentados em nada afetam o cumprimento da obrigação de pagamento de renda e quando mais não sejam que uma forma de protelar o gozo da coisa de forma injustificada e à custa do senhorio.
5. Não obsta ao despejo imediato o alegado incumprimento pela senhoria da obrigação de fazer obras, por ser ilegítima para esse efeito a invocação da exceção do não cumprimento do contrato, nos termos do Art. 428.º do C.C., uma vez que a obrigação de pagamento das rendas na pendência da ação de despejo é uma obrigação principal do contrato de arrendamento (Art.s 1022.º e 1038.º al. a) do C.C.) que não é correspetiva daquela outra obrigação, meramente acessória, a cargo do senhoria (Art. 1074.º do C.C.).
6. O pedido reconvencional de indemnização por benfeitorias necessárias, realizadas com o consentimento do senhorio, não obsta ao despejo imediato com fundamento na falta de pagamento das rendas na pendência da ação, quando o inquilino não invoca expressamente a compensação e não aciona, nem faz cumprir, os mecanismos estabelecidos nos n.ºs 3 e 4 do Art. 1074.º do C.C..
7. Sendo invocada a invalidade formal do contrato de arrendamento e não existindo fundamento para que essa exceção perentória seja julgada por improcedente, não pode ser deferido ao pedido de despejo imediato, porque em causa está desde logo saber se existe a obrigação de pagamento de renda na pendência da ação.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO
MI…, ao abrigo do disposto no Art. 14º n.ºs 1 e 3 do NRAU (redação introduzida pela Lei n.º 79/2014, de 19.12), veio intentar ação de despejo, que corre termos sob a forma de processo declarativo comum contra EA…, pedindo que:
1) Seja declarado resolvido o contrato de arrendamento para habitação celebrado entre o primitivo proprietário, a falecida mãe da A., e a R., referente ao … direito, do Prédio Urbano sito na Rua …, n.º …, em Póvoa de Santa Iria;
2) Seja a R. condenada na entrega imediata do locado, à A., sua atual proprietária, e livre de pessoas e bens;
E ainda que:
3) Seja a R. condenada, no pagamento à A., da quantia de €14.787,00 (catorze mil, setecentos e oitenta e sete euros), correspondente ao valor das rendas vencidas e não pagas, desde 2013 até Maio de 2017, acrescidas de indemnização de 50%;
4) Ao pagamento do valor correspondente às rendas vincendas, até à efetiva entrega do locado, rendas essas acrescidas de indemnização de 50%;
5) Tudo acrescido de juros de mora vencidos e vincendos.
Citada a R. contestou, confessando a falta de pagamento das rendas reclamadas desde Janeiro de 2013 em diante, mas arguiu a exceção perentória de não cumprimento do contrato, nos termos do Art. 428º do C.C., alegando que a casa arrendada nunca teve condições de habitabilidade desde o início do contrato, mas como a senhoria assumiu o compromisso de resolver os problemas, assentiu na celebração do mesmo. Sucede que, apesar de pequenas reparações feitas, com o decorrer do tempo verificou-se ser necessária a realização de obras que a senhoria não executou, tendo a R. pedido autorização para as fazer em sua substituição. Apesar disso, a situação veio a agravar-se, o que obrigou a R. a interpelar por diversas vezes a senhoria para proceder à realização das obras necessárias a tornar habitável o locado, para além de ter feito denúncias à edilidade camarária, também sem sucesso, encontrando-se o locado sem condições de habitabilidade.
Também deduziu pedido reconvencional, peticionando indemnização no valor global de €7.797,78 em virtude de benfeitorias necessárias por si efetuadas no locado, com o conhecimento e a autorização da primitiva senhoria.
A A. replicou impugnando a factualidade aduzida em sede de reconvenção e, bem assim, a relativa ao estado do locado, tal como descrito pela R..
Por requerimento de 9/05/2018, veio a A. requerer o incidente de despejo imediato, uma vez que, no decurso dos autos, a R. não comprovou quaisquer pagamentos ou depósitos das rendas reclamadas e das entretanto vencidas.
A R. deduziu oposição, por Requerimento de 18 de maio de 2018, sustentando que o contrato de arrendamento era verbal, deveria ser declarado inválido por falta de forma e o incidente improcedente por inadmissibilidade legal.
Por Requerimento de 4 de junho de 2018, a A. veio requerer que fosse proferido despacho que decretasse o despejo imediato, por não ter a R. feito prova do pagamento das rendas.
Nessa sequência, foi proferido o despacho de 26 de junho de 2018, que ordenou a notificação da R. para, em 10 dias, ao abrigo do que dispõe o Art. 14º n.º 4 do NRAU, proceder ao pagamento das rendas ou ao seu depósito e ainda da importância da indemnização devida, juntando prova aos autos, com a advertência para o que dispõe o n.º 5 do citado preceito legal.
A R. veio apresentar um requerimento de defesa urgente, em 16/07/2018, considerando que existe erro na forma de processo e incompetência em razão da matéria do tribunal para apreciar o pedido formulado.
A tal pretensão a A. respondeu por Requerimento de 26 de julho de 2018, invocando não haver erro de forma, porque não poderia recorrer ao processo especial de despejo, dado o contrato de arrendamento não ter sido celebrado por escrito.
Por despacho de 18 de julho de 2018 veio a ser ordenada a repetição da notificação constante do despacho de 26 de junho de 2018, em virtude de vicissitudes com o patrocínio da R., tendo esta mantido o teor da sua resposta de 18 de maio de 2018, conforme requerimento de 5 de agosto de 2018.
Cumprido assim o contraditório, veio a ser proferido despacho datado de 14 de setembro de 2018 que, ao abrigo do Art. 14.º do NRAU, julgou o incidente por procedente e determinou o despejo imediato do locado, condenando a R. a entregá-lo à A., livre e devoluto de pessoas e bens.
É dessa decisão final, sobre o incidente de despejo imediato, que a R. vem agora recorrer, apresentando no final das suas alegações as seguintes conclusões:
1- Na contenda sub judice, pede a Autora o despejo da Ré, com a resolução do contrato, bem como o pagamento da quantia atinente a rendas atrasadas e vincendas.
2- Não foi, pela Ré, efetuado o depósito das rendas na pendência do processo, havendo a Autora requerido, em incidente, posteriormente, o despejo imediato da Ré.
3- Como não foi efetuasse a Ré o pagamento dessa soma pecuniária, foi decretado, no incidente, o seu despejo imediato do imóvel.
4- Porém, a mesma Ré, ora Recorrente, apresentou, tempestivamente, a sua oposição ao despejo imediato requerido pela Autora.
 5- Nela invocando argumentos de defesa de exceção, como, primaciamente, a falta de execução de obras de conservação do imóvel por parte da Autora/senhoria.
6- Essa oposição, e apresentação de defesa subsequente, terá o efeito necessário, segundo a jurisprudência, de maneira transversal, de condicionar o decretamento do despejo imediato (e não somente a prova do pagamento das rendas).
7- Devendo esse decretamento ser resguardado para fase posterior, ou seja, somente decretado depois de analisado todos os argumentos contrários e posterior decisão final.
8- De outro modo, o Art. 20.º da Constituição da República Portuguesa, ou seja, o princípio da tutela jurisdicional efetiva, com direito a processo equitativo, sairia dos tribunais seriamente afetado.
9- Devendo ser, prima facie, analisada a sua defesa, e somente depois lhe ser exigível o pagamento das rendas ou o seu depósito, no âmbito do incidente de despejo imediato.
10- Devendo ser a recorrente/Ré mantida na posse do imóvel e a douta sentença de despejo imediato ser revogada.
Pede assim que seja dado provimento ao recurso, sendo a sentença recorrida revogada, mantendo-se a R. na posse do imóvel até prolação de sentença transitada em julgado na ação de despejo que se encontra a correr termos.
Não foram apresentadas contra-alegações.
*
II- QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Art.s 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do C.P.C., as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (vide: Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2017, pág. 105 a 106). Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. Art. 5º n.º 3 do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Vide: Abrantes Geraldes, Ob. Loc. Cit., pág. 107).
Assim, em termos sucintos, a questão a decidir é a de saber se poderia ser deferido o incidente de despejo imediato em face das exceções invocadas em defesa pela R..

Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
*

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso não identificou de forma discriminada a factualidade em que assentou, mas do seu contexto resulta que relevou os seguintes factos:
1- A A. intentou contra a R., ao abrigo do Art. 14.º n.º 1 e 3 do NRAU, a presente ação de despejo, que corre termos sob a forma de processo declarativo comum, pedindo que:
«1) seja declarado resolvido o contrato de arrendamento para habitação celebrado entre o primitivo proprietário, falecida mãe da Autora, e a Ré, referente ao … direito, do Prédio Urbano sito na Rua …, n.º …, em Póvoa de Santa Iria,
«2) seja a Ré condenada na entrega imediata do locado, à Autora, sua atual proprietária, e livre de pessoas e bens, e ainda,
«3) seja a Ré condenada, no pagamento à Autora, da quantia de €14.787,00 (catorze mil, setecentos e oitenta e sete euros), correspondente ao valor das rendas vencidas e não pagas, desde 2013 até Maio de 2017, acrescidas de indemnização de 50%,
4) e ainda, no pagamento do valor correspondente às rendas vincendas, até à efetiva entrega do locado, rendas essas acrescidas de indemnização de 50%,
5) além de, todas as referidas quantias acrescidas dos juros de mora vencidos e vincendos (cfr. fls 86 a 105).
2- A R., na sua contestação, alegou entre outros factos que:
«4.º Na verdade, a R. deixou de pagar as rendas, porquanto o locado deixou de reunir as condições mínimas de habitabilidade.
«5.º A R. em janeiro de 1992 celebrou com a Sra. MN… um contrato de arrendamento na forma verbal, para habitação do locado identificado na presente ação. O valor da renda à data da celebração do referido contrato era de 25.000,00 escudos.
«6.º À data da celebração do referido contrato, a habitação era antiga, o interior era amplo e não tinha condições de habitabilidade (…).
«8.º Nos meses que se seguiram à data da celebração do referido contrato foram feitos alguns trabalhos no interior da habitação por parte da senhoria (…).
«9.º Decorridos alguns anos (…) em 1995 a R. pediu autorização, a então, senhoria, (…) para ser a R. a realizar as referidas obras no interior do locado (…).
«13.º Os senhorios (…) nunca realizaram quaisquer obras que eram necessárias à preservação do prédio e com o decorrer dos anos o locado começou a apresentar problemas (…).
«15.º Durante anos a R. inúmeras vezes reclamou junto da senhoria (…) queixou-se das infiltrações, da humidade nas paredes, da degradação que o interior da habitação vinha apresentando (…).
«16.º (…) a Sra. MN… respondia à R. com escusas (…).
«19.º Durante uma das noites do ano de 2012 a R. foi acordada com uma grande barulho provocado por um desabamento da parte da parede da casa de banho que tinha azulejos.
«20.º Ora, perante essa situação (…) solicitou junto da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, no ano de 2012, um pedido de vistoria ao locado.
«23.º (…) não obstante os senhorios [terem] manifestado junto da referida entidade [a Câmara Municipal] a sua intenção de realizar obras, a verdade é que até à presente data, nunca o locado foi objeto de intervenção de quais obras (…).
«24.º Presentemente, a habitação continua degradada e carece de obras urgentes. Uma das paredes exteriores está rachada, no interior da habitação as paredes têm buracos por onde entra a mais variada bicharada, nomeadamente ratos e insetos. Existem humidades nas paredes e a tinta das mesmas está empolada, as janelas são de madeira e estão apodrecidas, o quadro elétrico e a instalação elétrica é antigo e não tem condições de segurança. (…)
«31.º (…) os senhorios recusam fazer quaisquer obras no locado.
«32.º (…) a moradia encontra-se degrada e não tem condições de habitabilidade.
«35.º O facto do locado não possuir o mínimo de condições para albergar condignamente a R. e a sua família, a recusa perentória dos senhorios em realizar as devidas obras, foi fator determinante na decisão tomada pela R. em não pagar as rendas, porquanto, a senhoria não cumpria com as suas obrigações.» (cfr. fls 68 a 85);
3- Invocou expressamente a exceção de não cumprimento do contrato, conforme art.ºs 428º a 431º do CC (artigo 43.º da contestação) e deduzido pedido reconvencional (artigos 65.º a 68.º da contestação), reclamando o pagamento de indemnização no valor de €7.797,78, em virtude de benfeitorias necessária por si efetuadas no locado, com o conhecimento e a autorização da primitiva senhoria (cfr. cit. fls 68 a 85).
4- A A. replicou impugnando os factos alegados na contestação a título de exceção e reconvenção, não aceitando o estado do locado tal como descrito pela R. (cfr. fls 63 a 67).
5- Por requerimento de 9 de maio de 2018 a A. veio requerer o incidente de despejo imediato, por não ter a R. comprovado quaisquer pagamentos ou depósitos de rendas na pendência da ação (cfr. fls 54 a 55);
6- A R. veio a deduzir oposição ao incidente por requerimento de 18 de maio de 2018, nos termos constantes de fls 50 a 53, invocando a invalidade do contrato de arrendamento, mas sem fazer prova do pagamento das rendas em causa, ou do seu depósito, o que foi repetiu no requerimento de 30 de julho de 2018 (cfr. fls 38 a 39).

Tudo visto, cumpre apreciar.
*
IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
A decisão recorrida reporta-se ao incidente de despejo imediato previsto no Art. 14.º n.º 4 e 5 do NRAU, o qual é de particular difícil aplicação atentas as vicissitudes que este instituto jurídico tem vindo a sofrer ao longo da sua história.
Desde cedo o legislador nacional foi sensível à necessidade de celeridade do processo de despejo, mas nem sempre foi particularmente consequente nas soluções que encontrou para esse efeito.
Não havendo necessidade de recuar muito, diremos que já no quadro do Art. 979.º do C.P.C. de 1961 se previa o “incidente de despejo imediato”.
Nos termos desse Art. 979.º do C.P.C., na versão aprovada pelo Decreto-Lei n.º 44.129, de 28 de dezembro de 1961, caso o R. deixasse de pagar as rendas vencidas na pendência da ação de despejo, o A. poderia requerer, por esse motivo, que se procedesse ao despejo imediato do primeiro (n.º 1), o qual só não seria decretado caso, ouvido o arrendatário, este provasse que procedeu ao pagamento das quantias devidas (n.º 2).
O espírito da lei ao criar este incidente foi sempre o de não permitir que alguém pudesse, gratuitamente, desfrutar de imóvel, durante o longo período que pode durar uma ação até ao despejo efetivo, numa situação que não seria reparada por nenhuma condenação em indemnização, ou pelo pagamento das rendas vencidas, por ser muito frequente que o despejado não tivesse bens bastantes para o efeito.
Por outras palavras, pretendia-se obstar a que o devedor da renda pudesse permanecer no gozo da coisa injustificadamente e à custa alheia.
Era considerando o espírito desta norma que a doutrina e jurisprudência ao tempo ia maioritariamente no sentido de que a única defesa possível ao incidente de despejo imediato por falta de pagamento de rendas na pendência da ação de despejo, quando o contrato era válido e eficaz, seria o pagamento ou o depósito das rendas em mora, disso fazendo prova nos autos.
A este propósito, Alberto dos Reis (in R.L.J. n.º 78º, pág.s 64 e ss) afirmava categoricamente que a ação de despejo coloca o réu no dever de depositar as rendas que se forem vencendo, ainda que o senhorio as não vá, ou não queira receber, sob pena de despejo imediato.
Foram-se sucedendo as reformas legislativas do nosso Direito do Arrendamento, sendo que o Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro, que aprovou o Regime do Arrendamento Urbano, ou simplesmente “R.A.U.”, veio a revogar a secção que regulava a ação especial de despejo no Código de Processo Civil (v.g. Art. 3.º n.º 1 al. b) desse diploma preambular), passando a prever a mesma regra no seu Art. 58.º.
Assim, o senhorio poderia requerer o despejo imediato do arrendatário (Art. 58.º n.º 2 do R.A.U.), com fundamento no não cumprimento da obrigação de pagamento ou depósito das rendas vencidas no decurso da ação de despejo (Art. 58.º n.º 1 do R.A.U.), sendo que, ouvindo-se o arrendatário, o direito a requerer o despejo apenas caducaria caso este último fizesse prova do pagamento ou depósito das rendas em falta (Art. 58.º n.º 3 do R.A.U.).
Também no quadro desta lei se defendia que o único meio de defesa oponível ao despejo imediato era a prova do pagamento ou depósito das rendas.
Esta limitação dos meios de defesa oponíveis ao despejo imediato suscitou evidentes problemas de constitucionalidade que chegaram ao conhecimento do Tribunal Constitucional, que por Acórdão com o n.º 673/2005, veio a declarar essa interpretação, aplicada ao Art. 58º do R.A.U., inconstitucional, por violação do Art. 20º da C.R.P. e do princípio derivado do acesso efetivo à justiça relativo à “proibição da proibição da indefesa”.
Ora, a Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, que aprovou o “Novo Regime do Arrendamento Urbano” (NRAU) veio prever de novo na tramitação da ação de despejo um “incidente de despejo imediato” com fundamento na falta de pagamento de rendas pelo arrendatário na pendência desse processo, à semelhança do anteriormente previsto no R.A.U. e do previamente disposto no Art. 979.º do C.P.C. de 1961.
O legislador manteve a obrigação de pagamento ou depósito das rendas que se vençam na pendência de ação de despejo (Art. 14.º n.º 3 do NRAU) e determinou que, em caso de incumprimento dessa obrigação, o arrendatário deve ser notificado para, no prazo de 10 dias, proceder ao pagamento ou depósito das rendas vencidas por um período igual ou superior a três meses, e ainda da indemnização devida (Art. 14.º n.º 4 do NRAU), sob pena de o senhorio ficar habilitado a pedir certidão relativa a esses factos, a qual constituía título executivo para efeitos de despejo do local arrendado, na forma de processo executivo comum para entrega de coisa certa (Art. 14.º n.º 5 do NRAU).
Entretanto, a Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, alterou o Art. 14.º do NRAU, para reduzir a 2 meses o período a que se reporta o incumprimento da obrigação de pagamento da renda (Art. 14.º n.º 4) e determinou que o exercício desse direito pelo senhorio passasse a seguir os termos do “Processo Especial de Despejo” (Art. 14.º n.º 5 e Art. 15.º n.º 1).
Assim, volta-se a colocar a questão da limitação dos meios de defesa do arrendatário habitacional ao incidente de despejo imediato deduzido na pendência da ação de despejo, nos mesmos termos que o Tribunal Constitucional já se havia pronunciado relativamente ao Art. 58.º do R.A.U..
Convirá recordar que o Acórdão n.º 673/2005 do Tribunal Constitucional pronunciou-se pela inconstitucionalidade tendo em atenção o “princípio da proibição da indefesa”, que decorrente do “princípio do contraditó­rio” a que se deve subordinar todo o processo uma vez iniciado. Assim, sustenta-se aí que: «Como refere Carlos Lopes do Rego (“Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime de citação em processo civil”, Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra, 2003, pp. 835‑859): “A garantia da via judiciária – ínsita no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa e a todos conferida para tutela e defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos – envolve, não apenas a atribuição aos interessados legítimos do direito de ação judicial, destinado a efetivar todas as situações juridicamente relevantes que o direito substantivo lhes outorgue, mas também a garantia de que o processo, uma vez iniciado, se deve subordinar a determinados princípios e garantias fundamentais: os princípios da igualdade, do contraditório e (após a revisão cons­titucional de 1997) a regra do «processo equitativo», expressamente consagrada no n.º 4 da­quele preceito constitucional”, sendo do princípio do contraditório que “decorre, em primeira linha, a regra fundamental da proibição da indefesa”.»
Partindo destas considerações o Tribunal Constitucional defendeu que seria: «uma restrição constitucionalmente intolerável do direito de defesa a limitação, no incidente de despejo imediato por falta de pagamento de rendas na pendência de ação de despejo, das possibilidades de defesa do requerido à alegação e prova de que, até ao termo do prazo para a sua resposta, procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância da indemnização. Tal meio de defesa é manifestamente desajustado em todos os casos em que justamente se questiona o próprio dever de pagamento de determinada renda, seja por que fundamento for (inexistência de contrato de arrendamento válido, não se­rem au­tor e/ou réu os verdadeiros locador e/ou locatário, dissídio quanto ao montante da renda ou da sua imediata exigibilidade, invocação de diverso título para justificar a ocupação do local)».
Recentemente, o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 327/2018 (Proc. n.º 850/14 – Relator: Cláudio Monteiro) debruçou-se sobre esta mesma questão já no quadro do Art. 14.º n.º 4 e n.º 5 do NRAU, com as alterações da Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, sustentando que o incidente de despejo imediato, com os contornos legais assim estabelecidos, não seria inconstitucional, mas deveria ser sujeito aos limites de interpretação impostos pela valoração já anteriormente sustentada por esse mesmo Tribunal no acórdão n.º 673/2005 e, fazendo uso do disposto no Art. 80.º n.º 3 do LTC, conformou a norma em causa com a interpretação restritiva julgada conforme com a Constituição.
Decidiu assim: «interpretar o artigo 14.º, n.º 4 da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, alterado pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, em consonância com o n.º 5 do mesmo artigo, em conformidade com princípio da proibição da indefesa, consagrado no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da Constituição, no sentido de que o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da ação nele previsto não é automático, sendo o seu requerimento livremente apreciado pelo juiz, pelo que, nos casos em que na ação de despejo persista controvérsia quanto à existência ou exigibilidade do próprio dever de pagamento de renda, o réu não deve ser impedido de exercer o contraditório mediante a utilização dos correspondentes meios de defesa.»
Há assim que considerar todos os meios de defesa que o arrendatário opõe ao pedido de despejo, mas subsistindo a possibilidade do senhorio recorrer ao incidente de despejo imediato, que se funda no não cumprimento da obrigação de pagamento da renda na pendência da ação de despejo, teremos de ponderar se os concretos fundamentos que o inquilino invoca em sua defesa constituem causa de justificação bastante para não lhe ser exigível o pagamento da renda.
Deverá ser decretado o despejo imediato quando os fundamentos de defesa em nada afetam o cumprimento da obrigação de pagamento de renda e quando mais não sejam que uma forma de protelar o gozo da coisa de forma injustificada e à custa alheia.
No caso, verificamos que a R. suscitou em sua defesa 3 fundamentos distintos:
1- Invocou a exceção do não cumprimento do contrato;
2- Invocou o direito a indemnização por benfeitorias realizadas no locado;
3- Invocou a invalidade formal do contrato de arrendamento, pondo em causa o valor da renda.
A exceção do não cumprimento do contrato, tal como estabelecida no Art. 428.º do C.C. só legitima o incumprimento do devedor relativamente a prestações principais recíprocas, ligadas entre si por um vínculo sinalagmático.
A inquilina não pode deixar de cumprir a obrigação de pagamento das rendas com fundamento no facto da senhoria não cumprir a obrigação de fazer obras no locado, porque a obrigação de pagar a renda é uma obrigação principal do contrato de arrendamento (Art.s 1022.º e 1038.º al. a) do C.C.) que não é correspetiva daquela outra obrigação, meramente acessória, a cargo do senhoria (Art. 1074.º do C.C.).
A obrigação de pagamento da renda é, no entanto, correspetiva da obrigação, a cargo do senhorio, de proporcionar o gozo da coisa (Art. 1022.º, conjugado com os Art.s 1031.º al. b) e 1038.º al. a) do C.C.).
Tanto assim é que o Art. 1040.º n.º 1 do C.C. prevê que se o locatário sofrer uma privação ou diminuição do gozo da coisa, haverá lugar a uma redução da renda proporcional ao tempo da privação ou diminuição e à extensão desta.
Invocando a R. que a casa locada não tem condições de habitabilidade, sendo que o contrato de arrendamento destina-se à habitação da R., em função do Art. 1040º do C.C., poderia colocar-se a questão do eventual direito à redução da renda, uma vez que a inquilina, apesar das condições de habitabilidade deficientes que diz existirem, nem por isso deixou de residir no locado.
Só que, na verdade, nada disso está em causa nos autos, porque a R. decidiu, pura e simplesmente, deixar de pagar a renda, o que é incompatível com a sua continuação do gozo da coisa.
A R. pode efetivamente ter razões válidas para exigir da A. a realização de obras no locado por forma a que o mesmo cumpra requisitos de habitabilidade, mas não pode recusar o pagamento integral da renda, continuando a residir, como reside, no locado.
É precisamente para este tipo de situações que se justifica o incidente de despejo imediato, por forma a não se permitir que o inquilino permaneça indefinidamente no locado, beneficiando do gozo gratuito da coisa à custa do senhorio, protelando o despejo efetivo de forma injustificada.
Relativamente a este tipo de justificação para o não pagamento da renda a jurisprudência, que foi citada na decisão recorrida, é praticamente unânime em não a acolher como facto que possa obstar ao despejo imediato. Pelo que, com este fundamento, a oposição ao incidente em causa sempre improcederia.
O segundo fundamento é o direito a indemnização por benfeitorias realizadas no locado com o alegado consentimento do senhorio.
As benfeitorias necessárias, como aquelas que foram alegadas na contestação e que fundamentam o pedido reconvencional, quando realizadas com o consentimento do senhorio, são lícitas (Art. 1074.º n.º 2 do C.C.). Mas a R. não pode com fundamento nas mesmas sustentar o direito ao não pagamento da renda.
A lei permite a compensação entre o valor das rendas e o das obras realizadas pelo inquilino na pendência do contrato de arrendamento, mas essa possibilidade está subordinado às regras dos n.ºs 3 e 4 do Art. 1074.º do C.C., cujos pressupostos claramente não se verificam nos autos, nem foram invocados pela R. na sua contestação. Portanto, não é o direito a indemnização por benfeitorias que pode justificar o não pagamento das rendas que se venceram na pendência da ação de despejo, improcedendo também este fundamento de defesa contra o pedido de despejo imediato.
Resta assim a questão da invalidade formal do contrato de arrendamento.
Desde sempre que o incidente de despejo imediato teve como pressuposto legal a validade do contrato de arrendamento.
Por exemplo, no âmbito da vigência do Art. 979.º do C.P.C. de 1961, o acórdão de 29/10/1969 do Tribunal da Relação do Porto (in J.R. - 15.º, pág. 855), conforte consta do respetivo sumário, decidiu que: «I- O fundamento de despejo imediato previsto no art. 979.º do C.P.C. (falta de pagamento de rendas na pendência da ação de despejo) só pode verificar-se quando a situação subjacente à ação de despejo é uma situação de arrendamento válido. II- Assim, proposta ação de despejo e levantada pelos Réu a exceção perentória da nulidade do contrato de arrendamento por falta de forma, o julgador não pode apreciar a questão de saber se está ou não verificado o fundamento do art. 796.º do C.P.C. antes de decidir no sentido negativo a exceção perentória suscitada».
No quadro legal do Art. 58.º do R.A.U. mantinha-se a mesma interpretação, como decorre do acórdão do S.T.J. de 20/5/1997 (Proc. n.º 274/97 – 1.ª, Bol. Sum., www.stj.pt), com o seguinte sumário: «I- O pedido de despejo imediato previsto no Art. 58.º do R.A.U. pressupõe a existência de um contrato de arrendamento válido, atento o disposto no n.º 1 do Art. 55.º do R.A.U.. II- Sendo pedido na ação, na qual se deduziu o incidente do Art. 58.º do R.A.U., a validade do contrato de arrendamento, o pedido de despejo imediato não pode ser deferido, por reflexamente estar em discussão a obrigação de pagamento ou depósito de rendas».
No mesmo sentido o acórdão do S.T.J. de 8/5/2001 (Agravo n.º 849/01 – 1.ª, Bol. Sum., www.stj.pt), onde se pode ler: «III- O pedido de despejo imediato, formulado em ação de despejo, pressupõe a existência de um contrato válido de arrendamento».
Já no quadro da lei vigente, veja-se, por exemplo, o sumário do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23/6/2015 (Proc. n.º 496/13.0TBSTS – Relator: Pedro Martins), onde se refere que: «Numa ação de despejo baseada na falta de pagamento de rendas, tendo sido excecionada, na contestação, a nulidade do contrato de arrendamento e a existência de um acordo de não pagamento de rendas, o pedido de despejo imediato não deve ser admitido, nem deferido».
Evidentemente que, não tendo o contrato de arrendamento sido sujeito à forma escrita, nem cumprindo as obrigações fiscais inerentes, o senhorio não pode aceder ao meio processual mais expedito do “procedimento especial de despejo” previsto nos Art.s 15.º a 15.º-S do NRAU, tendo em atenção desde logo o disposto no Art. 15.º n.º 2 para o qual remete o Art. 15.º-C n.º 1 al. b), que regula os fundamentos de recusa do requerimento inicial.
De igual modo, invocando-se a invalidade formal do contrato de arrendamento que, aliás, é de conhecimento oficioso (Art. 7.º n.º 1 do R.A.U., conjugado com o Art. 220.º do C.C.), não poderá o senhorio recorrer ao mecanismo do despejo imediato por falta de pagamento das rendas na pendência da ação de despejo.
Essa questão foi suscitada pela R. na sua contestação, quando invoca no artigo 58.º que só ocupou o locado em janeiro de 1992, pondo também em causa o valor da renda que a A. alegou na petição inicial.
A mesma questão foi depois trazida à liça nos Artigos 11.º e 12.º do requerimento de oposição ao incidente de despejo imediato, como fundamento de direito que obstaria ao pedido.
Ora, se é discutida a questão da validade formal do contrato, com base em pressupostos de facto invocados pela R. na sua contestação, está vedado à senhoria o recurso ao incidente de despejo imediato por falta de pagamento das rendas na pendência da ação, desde logo porque a própria obrigação de pagamento de “rendas”, em sentido próprio, é posta em causa.
Como referia Aragão Seia (in “Arrendamento Urbano, Almedina 7.ª Ed., pág. 382): «Só se pode falar em rendas vencidas na pendência da ação se esta estiver subjacente um arrendamento válido, que não é posto de qualquer modo em questão pelo réu».
Não significa isto que a pessoa que ocupa o locado, com base numa “relação de facto” de natureza locatícia, formalmente inválida, não esteja eventualmente obrigado a pagar pelo gozo que beneficiou da coisa à custa do proprietário do imóvel. Só que, essa obrigação é meramente indemnizatória – eventualmente configurável no quadro do enriquecimento sem causa (Art. 289.º n.º 1 e n.º 2 do C.C.) –, e não corresponde à obrigação de pagamento de renda emergente de contrato de arrendamento válido que justifica o incidente agora previsto no Art. 14.º n.º 4 e 5 do NRAU.
É só com este fundamento que se concorda com as conclusões 7.ª, 9.ª e 10.ª das alegações de recurso, devendo a apelação ser julgada por procedente e a decisão recorrida revogada.
*
V- DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente, por provada, a apelação, revogando a sentença de 14 de setembro de 2018 que determinou o despejo imediato do locado e condenou a R. a entregar à A. o mesmo, livre e devoluto de pessoas e bens, que assim é substituída pela decisão de indeferir ao incidente de despejo imediato deduzido.
- Custas pela Apelada (Art. 527º n.º 1 do C.P.C.).
*
Lisboa, 20 de dezembro de 2018

Carlos Oliveira
Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva