CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
DIREITO DE RETENÇÃO
EMBARGOS DE TERCEIRO
Sumário

I – O direito de retenção decorre directamente da lei, surgindo sem necessidade de prévia declaração judicial nesse sentido.
II – Em caso de incumprimento por parte do promitente-vendedor e com fundamento no direito de retenção de que goza o promitente-comprador a favor de quem houve simultânea tradição da coisa prometida vender e, entretanto, penhorada, pode este último obstar, mediante dedução de embargos de terceiro, à entrega daquela ao fiel depositário para ulterior venda judicial.

Texto Integral

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

I- Relatório

B………., deduziu embargos de terceiro na execução que “C………., SA” move contra D………., pedindo que seja ordenada a suspensão da diligência da entrega efectiva ao fiel depositário do imóvel penhorado nos autos principais;
Alegou para tal, em síntese, ter assumido a posição contratual de promitente compradora no contrato-promessa que a Executada, na qualidade de vendedora, celebrou com E………., o que fez com o conhecimento e o consentimento daquela. Nessa conformidade, a Embargante pagou à Executada o respectivo sinal, no montante de 34.915,85€.
Desde a data da assinatura do mencionado contrato-promessa que a Embargante entrou na posse do imóvel, pagando todas as despesas inerentes ao mesmo.
Porém, a Executada não cumpriu o mencionado contrato-promessa, recusando-se até à data a celebrar a respectiva escritura pública de compra e venda.
Em consequência, a Embargante intentou uma acção judicial, pedindo a resolução do contrato-promessa, bem como a condenação da Executada a pagar o sinal em dobro, acção essa que foi julgada procedente, por sentença transitada em julgado.

Recebidos os embargos foram notificadas as partes primitivas, nos termos e para os fins do artigo 357º nº 1 do Código de Processo Civil.

O embargado “C………., SA” contestou, impugnando por desconhecimento os factos alegados pela Embargante.
No mais, invocou argumentos de direito no sentido de contrariar a admissibilidade dos presentes embargos; aflorando igualmente a inconstitucionalidade das normas que fazem prevalecer o direito de retenção sobre a hipoteca.
A embargada D………., pessoalmente notificada, não deduziu contestação.

Houve replica onde a Embargante concluiu como na petição inicial.

No despacho saneador julgaram-se procedentes os embargos de terceiro e, em consequência, determinou-se a impossibilidade de se proceder à entrega efectiva do imóvel penhorado ao encarregado da venda.

Discordou da sentença o Banco exequente e recorreu tendo no final das respectivas alegações formulado as seguintes conclusões:
I - Afigura-se ao Recorrente que a douta sentença recorrida não deve manter-se pois consubstancia uma solução que não consagra a justa e rigorosa interpretação e aplicação ao caso “sub judice” das normas e princípios jurídicos competentes;
II - Por apenso aos autos de execução que o aqui Recorrente instaurou contra D………., para pagamento da quantia global de 3.965.169$00, veio B………. deduzir embargos de terceiro, invocando o crédito que detém sobre a Executada decorrente do direito de retenção sobre a fracção penhorada e requerendo a suspensão da diligência de entrega efectiva do imóvel ao fiel depositário;
III - O Recorrente, cujo crédito se encontra provido de garantia real (hipoteca registada em primeiro lugar), contestou o direito de retenção, alegando que a Recorrida não logrou demonstrar a existência do mesmo ou, sequer, que ocupava o imóvel em apreço, pelo que o imóvel penhorado deveria ser entregue ao fiel depositário para promoção da venda;
IV - Nos termos constantes da douta sentença recorrida, os embargos de terceiro foram julgados procedentes e, em consequência, foi determinada a impossibilidade de se proceder à entrega efectiva do imóvel penhorado ao fiel depositário, considerando o Meritíssimo Juiz “a quo” que “a entrega ordenada nos autos principais ofende o direito de retenção da embargante, uma vez que a mesma acarretará a extinção de tal direito.”;
V - Entende o Recorrente que a entrega efectiva do imóvel penhorado ao fiel depositário não conduz à extinção do direito de retenção, sendo certo que a detenção do imóvel na posse da Recorrida impede o processamento da venda judicial do mesmo;
VI - A extinção do direito de retenção prevista no art. 761º do Cód. Civil, baseada na entrega da coisa sobre que incide o direito em causa, indicia a renúncia tácita ao direito de retenção, pelo que pressupõe que essa entrega tenha sido voluntária;
VII - Na situação vertente é incontroverso que não há, por parte da Recorrida, qualquer entrega voluntária do prédio, pelo que não pode falar-se na extinção do direito de retenção, à luz do artigo 761º do Código Civil.
VIII - A apreensão judicial da coisa não extingue o direito de retenção.
IX - Ao impedir a entrega do imóvel ao fiel depositário, a decisão recorrida inviabiliza a promoção da venda judicial de imóvel, uma vez que, ficando este impedido de entrar no imóvel, não lhe é permitido exercer as funções para que foi designado;
X - A decisão recorrida, ao inviabilizar a entrega do bem ao fiel depositário, baseando a suas motivação no preceituado no artigo 761º do Código Civil, incorreu num erro de interpretação e aplicação da lei, devendo por isso ser revogada e substituída por outra que julgue inaplicável ao caso concreto o disposto no artigo 761º do Cód. Civil;
XI - Em face das razões expostas, resulta claramente demonstrado que a douta decisão recorrida, violou as disposições legais constantes do art.º 761º do Cód. Civil.
Termos em que o presente recurso deve merecer provimento, revogando-se a douta sentença recorrida e, em conformidade, substituindo-se a mesma por outra que julgue inaplicável ao caso concreto o disposto no artigo 761º do Cód. Civil, ordenando-se a entrega do imóvel ao fiel depositário, com todas as consequências legais.
Assim, se fará, como sempre, inteira JUSTIÇA

Não houve Contra alegações.

Corridos os vistos, cumpre decidir:

II- Fundamentos
a)- A matéria de facto provada.

Na sentença consideraram-se provados os seguintes factos:

a) No âmbito do processo de execução a que os presentes embargos estão apensos, foi lavrado, em 23/03/2001, termo de penhora sobre a fracção autónoma designada pelas letras “CI”, correspondente a uma habitação no 4º andar, frente, com entrada pelo nº .. da Rua ………., do prédio em regime de propriedade horizontal, situado na Rua ………., nºs .. a .. e na Rua ………., nºs .., .., … e …, freguesia de ………., concelho do Porto, inscrito na matriz predial urbana respectiva sob o artigo 9190º e descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o nº 00803/261185.
b) Em 26/10/2004 foi proferido despacho nesses mesmos autos, ordenando a entrega efectiva do imóvel penhorado ao fiel depositário nomeado.
c) Teor integral, aqui dado por reproduzido, da sentença proferida em 232/10/2002 no âmbito do processo nº …/99 da .ª Vara, .ª Secção deste Tribunal, junta de fls. 07 a 20 destes autos, já transitada em julgado, na qual foi considerado validamente resolvido o contrato-promessa celebrado entre as aqui Embargante e Executada, relativo ao imóvel mencionado em a), e esta condenada a pagar àquela a quantia de 7.000.000$00 (34.915,85€).

b)-O recurso de apelação.

É pelas conclusões que se determina o objecto do recurso (arts.684º,nº 3 e 690º, nº1 do CPC), salvo quanto às questões de conhecimento oficioso ainda não decididas com trânsito em julgado.
Vejamos, pois, do seu mérito.

1-Está aqui em causa saber se com fundamento no direito de retenção pode, através de embargos de terceiro obstar-se à entrega do imóvel em causa.

O direito de retenção passou a ser, com o regime traçado nos artºs 754º e ss do CC, um verdadeiro direito real de garantia.
Por sua vez o artº 759º equipara o titular do direito de retenção de coisas imóveis ao credor hipotecário e dá-lhe declaradamente a faculdade de executar a coisa para pagamento do seu crédito e o direito de ser pago com preferência sobre os demais credores do devedor. E vai ao ponto (nº2) de conceder prioridade ao titular do direito de retenção sobre o credor hipotecário, ainda que a hipoteca tenha sido registada anteriormente.
Por outro lado o legislador definiu também com rigor o campo de aplicação do direito de retenção no artº 755º do CC.
Traduz-se, pois, o direito de retenção no direito conferido ao credor, que se encontra na posse de coisa que deva ser entregue a outra pessoa, de não a entregar enquanto esta não satisfizer o seu crédito, verificada alguma das relações de conexidade entre o crédito do detentor e a coisa que deva ser restituída a que a lei confere tal tutela - arts. 754º e 755º C. Civil.

Assim, desde que o credor tenha um crédito relacionado, nos termos legalmente previstos, com a coisa retida, reconhece-se-lhe o direito de garantia, válido erga omnes e atendível no concurso de credores.
Com efeito, o retentor não pode opor-se à execução, singular ou universal, movida por outros credores, mas é-lhe assegurada a posição preferencial que legitima a recusa em abrir mão da coisa até ao pagamento do seu crédito (cfr. CALVÃO DA SILVA, "Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória", 339 e ss.; VAZ SERRA, "Direito de Retenção", in BMJ 65º- 103 e ss, 234 e ss e 243 e ss.Ac. STJ de 9-12-2004-05A2158-Nº Convencional: JSTJ000 -Relator: ALVES VELHO -Nº do Documento: SJ200510040021581).

2-No caso de um contrato-promessa de compra e venda de imóvel, a lei (art. 755 1-.f) C. Civil) concede o direito real de garantia ao beneficiário da promessa de transmissão (promitente-comprador) que obteve a transmissão da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 442.
Assim, o promitente-comprador credor de indemnização pelo incumprimento do contrato, nos termos previstos no art. 442, desde que tenha obtido tradição da coisa, goza, contra quem quer que seja, da faculdade de não largar mão do imóvel enquanto se não extinguir o seu crédito (A. VARELA, RLJ 124-351 e citado acórdão do STJ).
A partir do momento em que houve tradição do imóvel por parte do promitente vendedor, constitui-se para o promitente-comprador um direito real de garantia, o que preenche um dos seus requisitos -a detenção lícita.
Quando o promitente-comprador entra na posse da coisa prometida vender, no âmbito do contrato-promessa celebrado, goza, a partir daí, da protecção jurídica relativamente aos direitos emergentes do contrato, com uma posse legítima sobre a coisa, enquanto não for pago o crédito.

3-No caso dos autos, sabemos já que houve incumprimento do contrato prometido e tendo mesmo sido já resolvido os embargantes ficaram credores da promitente vendedora/executada.
Uma vez que também o recorrente invoca um crédito hipotecário sobre o mesmo imóvel, pedindo por isso a entrega do mesmo, existe também aqui o requisito de conexão de créditos por causa do mesmo imóvel.
Portanto o direito de retenção previsto no artº 754º do CC que depende dos três requisitos enunciados por Almeida Costa- Direito das Obrigações-5ª edição,pág.827,estão aqui preenchidos.

4-Aqui chegados podemos dizer que o direito de retenção decorre directamente da lei, surgindo sem necessidade de prévia declaração judicial nesse sentido (cfr. no mesmo sentido o Ac.do STJ citado na sentença de Acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 04/10/2005, in www.dgsi.pt. e Ac. RL de 22/3/90 - CJ XV- -II-140).

Na contestação aos embargos, o ora recorrente, não atentou que na certidão junta com o requerimento inicial respeitante à sentença transitada em julgado (Proc.nº …/99 da .ª Vara Cível do Porto, .ª secção ) donde consta que foi apreciado o incumprimento do contrato por parte da promitente-vendedora, estando aí contido como facto (o nº 3) provado que a aqui embargante tomou posse do andar com o consentimento da promitente vendedora, no dia da celebração do contrato-promessa de compra e venda.
Por isso não tem fundamento a alegação (artº 9º da contestação) de que a embargante não demonstrou a existência do invocado direito de retenção, argumentação que aliás o recorrente já não utiliza em sede deste recurso de apelação.

Com efeito, naquela referida acção foram dados como assentes todos os factos de que depende a constituição do direito de retenção, por força do disposto no artigo 755º nº 1- f) do Código Civil, ou seja, a celebração de contrato-promessa de compra e venda; a tradição da coisa prometida vender; e o incumprimento culposo do contrato por parte do promitente vendedor.
Assim sendo, esse direito real de garantia é oponível à aqui executada, face aos requisitos que preenche, situação que não é, aliás, colocada em causa pelo recorrente.

Reconhecido o direito de retenção da embargante por força da lei (artº 755-1-f) do CC) importa então saber se os embargos de terceiros deduzidos na execução ao ser ordenada a entrega do imóvel foram ou não bem decididos.

5- Nos autos principais foi ordenada a entrega efectiva do imóvel ali penhorado ao fiel depositário.

Com os presentes embargos, a embargante pretende a suspensão desse despacho que ordenou a entrega efectiva ao fiel depositário do prédio penhorado nos autos de execução, com base no facto de gozar de direito de retenção sobre o mesmo, que lhe adveio da circunstância de ter celebrado um contrato-promessa de compra e venda, com tradição da coisa, contrato-promessa esse que foi culposamente incumprido pela promitente vendedora.

O artº 351º,nº 1 do Código de Processo Civil, dispõe que os embargos de terceiro podem ser deduzidos por quem, não sendo parte na causa, seja titular de qualquer direito incompatível com a realização de penhora ou de qualquer acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens.
A embargante que não é parte na execução, não coloca em causa a diligência de penhora e venda subsequente, já que o disposto no artº 759º do CC acautela nessa perspectiva o seu direito de retenção.
Opõe-se, sim a embargante à entrega do imóvel ao fiel depositário, porquanto isso afectará o seu direito de retenção, que assim se extinguirá.

A isto contrapõe o recorrente que a entrega efectiva do imóvel penhorado ao fiel depositário não conduz à extinção do direito de retenção, sendo certo que a detenção do imóvel na posse da Recorrida impede o processamento da venda judicial do mesmo.
Sustenta o recorrente este entendimento no facto de a extinção do direito de retenção prevista no art. 761º do Cód. Civil, baseada na entrega da coisa sobre que incida o direito em causa, indicia a renúncia tácita ao direito de retenção, pelo que pressupõe que essa entrega tenha sido voluntária, o que não será o caso, por parte da Recorrida que não faria entrega voluntária do prédio.

6-Com respeito por opinião contrária do recorrente que se apoia em doutrina e jurisprudência que cita, entendemos que a situação dos autos se deve configura diferentemente das que são mencionadas na jurisprudência que invoca.
No caso presente a própria subsistência do direito de retenção da embargante, a efectuar-se a entrega do imóvel ficaria comprometida, já que implicaria a saída imediata da embargante do imóvel.
Dado que o imóvel retido está em poder do credor com direito de retenção compreende-se que por força do disposto no artº 759º do CC a embargante aí permaneça.
Não pode assim afirmar-se que a entrega não implica aqui a extinção do direito de retenção, à luz do artigo 761º do Código Civil.
É certo que no artº 761º do CC a extinção do direito de retenção se reporta a renúncia tácita do direito e portanto a entrega tem de ser voluntária, o que não seria o caso de ela ser ordenada judicialmente.
Porém o detentor do imóvel nestes casos não deixa de perder a respectiva detenção involuntariamente (cfr. Ac. STJ de 26-06-Acs. CJ-ano 2001-Tomo II, pág.135)
Ora acontece que depois de ser ordenada a entrega do imóvel a um depositário a embargante como terceiro que é afectado veio invocar o seu direito de retenção.
E neste caso tal direito de retenção deve prevalecer para que a embargante possa fazer valer realmente e no momento da venda e posterior graduação de créditos a sua garantia real de ser paga preferencialmente sobre o exequente através do produto da venda que se vier a realizar.
A embargante deve, pois, permanecer no imóvel até que se proceda a essa venda.

Com a entrega do imóvel antes da venda (embora a doutrina entenda que não se trata de renúncia voluntária do credor capaz de levar à extinção do direito de retenção), deixaria de subsistir um dos seus requisitos, precisamente aquele que está relacionado com a detenção lícita da coisa que lhe foi entregue.
E como o detentor pode, conforme lhe consente a lei, lançar mão dos meios destinados à defesa possessória, inclusive contra o próprio dono, a decisão de procedência de embargos está correcta (o detentor tem direito a usar dos meios possessórios que lhe são concedidos por força do disposto no artigo 670º a) do Código Civil, “ex vi” do artigo 759º nº 3 do mesmo diploma).
Deve ainda referir-se no que diz respeito ao direito de retenção que, conforme já decidido na jurisprudência “o art. 759.º, n.º 2, do CC não colide com o princípio da confiança ínsito no art. 2.º da CRP…”, -cfr. Ac. STJ de 12-09-2006-Processo: 06A2136 -Nº Convencional: JSTJ000 -Relator: FARIA ANTUNES-Nº do Documento: STJ20060912021361.
E da mesma forma também quanto ao disposto no artº 755º nº 1-f) do CC se pronunciaram vários acórdãos do STJ e do Tribunal Constitucional que foram unânimes em considerar não haver qualquer violação de preceito constitucional naquelas disposições legais (cfr. Acórdão STJ de 14-02-2006-Processo: 05A3647 -Nº Convencional: JSTJ000 -Relator: JOÃO CAMILO -Nº do Documento: SJ200602140036476, onde é apresentado um resumo alargado dessa jurisprudência).

Entendemos, assim, que o facto de a embargante continuar com o direito de retenção não inviabiliza as diligencias que conduzirão à venda (que permitirá à embargante pagar-se do seu crédito), já que o tribunal terá ao seu alcance diversos meios para levar cabo a tramitação conducente a tal.

Nestes termos não assiste razão ao apelante, não merecendo a sentença qualquer censura e por isso se confirma .

III- Decisão.
Pelo exposto acorda-se em julgar improcedente o recurso de apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.

Porto, 24 de Maio de 2007
Gonçalo Xavier Silvano
Trajano A. Seabra Teles de Menezes e Melo
Mário Manuel Baptista Fernandes