RECURSO PENAL
DOCUMENTO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
VÍCIOS DO ARTº 410.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
Sumário


I - Em processo penal, uma vez encerrada a audiência em 1.ª instância, deixa de ser admissível a junção de novos documentos, não sendo de admitir tal junção com a motivação de recurso nem a sua apresentação na audiência recursiva, com fundamento no instituto da renovação da prova.
II - A norma do art. 423.º nº 2 Código de Processo Penal em nada colide com o disposto no art. 165.º do Código de Processo Penal, mostrando-se ambos os preceitos em harmonia, pois renovar a prova não é produzir nova prova, mas produzir de novo, agora perante a relação, prova que foi apreciada em 1.ª instância, proporcionando ao tribunal superior a possibilidade de sanar os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, de contradição insanável da fundamentação ou de erro notório na apreciação da prova.
III - A situação em análise não configura caso omisso que permita a aplicação subsidiária do CPC, visto que o CPP contém norma própria respeitante à apresentação de documentos, a qual, diferentemente do que sucede em processo civil, não prevê a apresentação de documentos com a motivação de recurso, nem mesmo se se tratar de documentos supervenientes à audiência de 1.ª instância, havendo de entender-se a diferença de regimes como uma opção do legislador do CPP, pois quando este definiu as regras que nesta matéria vigoram em processo penal, necessariamente conhecia os preceitos do CPC, e deles se quis afastar.
IV - Esta interpretação de modo algum fere os princípios ou preceitos constitucionais, como reconheceu o TC no acórdão 392/03, entendimento que reiterou no acórdão 397/06.
V - Se e na medida em que o documento superveniente à produção da prova tiver potencialidade para pôr em causa a justiça da condenação, fica em aberto a possibilidade do recurso extraordinário de revisão.
VI - A omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes ou de que deve oficiosamente conhecer, entendendose por questões os problemas concretos a decidir e não os simples argumentos, opiniões ou doutrinas expendidos pelas partes na defesa das suas teses.
VIII - Não existe omissão de pronúncia por parte da relação sobre a questão da impugnação da matéria de facto, se o recorrente omitiu as concretas provas que impõe decisão diversa da recorrida, não tendo feito remissão alguma para a acta, nem concretizando as passagens em que funda a sua impugnação, conforme a lei lhe determina (art. 412.º, n.º 3 e 4 do CPP), antes se tendo limitado a discordar de alguns pontos da decisão da matéria de facto,
IX - De acordo com o art. 410.º do CPP, os vícios da matéria de facto têm de resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, sem recurso a elementos que lhe sejam externos.
X - Nos termos do disposto no art. 410.º, n.º 2 al. b), do CPP, verifica-se uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, se se considerou nos factos provados que "o arguido, juntamente com outros indivíduos cujas identidades se desconhecem, delineou um plano e organizou-se em ordem a assegurar o transporte de cocaína, por via marítima, desde São Salvador, no Brasil, para Portugal, com vista à sua comercialização", e se da fundamentação da matéria de facto nada resulta no sentido de ter sido o arguido quem concebeu, ou mesmo se colaborou, na elaboração do plano de remessa de cocaína a coberto da importação de móveis rústicos provenientes do Brasil.
XI - Verifica-se também contradição insanável entre a fundamentação e a decisão se dos factos provados resulta que a cocaína apreendida era pertença do arguido e se destinava a ser comercializada por elevada quantia monetária, mas, na fundamentação, tomada na sua globalidade, se aponta no sentido de que se trataria de uma rede na qual o arguido estava integrado, e não que o arguido seja o dono da droga.
XII - Verifica-se erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, se no acórdão se dá como provado que “alguns dos telemóveis que o arguido detinha destinavam-se a contactar e a ser contactado pelos ulteriores destinatários da cocaína”, mas na fundamentação da matéria de facto nada se refere quanto à finalidade da detenção pelo arguido de vários telemóveis, mais precisamente três, apenas sendo feita referência a que o arguido justificou a necessidade de utilizar vários telemóveis com a circunstância de se encontrar com várias mulheres e aditando-se que as explicações do arguido não mereceram ao tribunal qualquer credibilidade.

Texto Integral

    

            Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

           1. Pronunciado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelos arts. 21º nº 1 e 24º al. c) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro e Tabela I-B anexa, AA, identificado nos autos, foi julgado pelo tribunal colectivo da extinta ...ª Vara Criminal de ..., [hoje, Instância Central – 1ª Secção Criminal – J 21 da comarca de Lisboa], tendo sido condenado na pena de 10 anos de prisão.

           Do acórdão condenatório interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual incidiu sobre a matéria de facto e sobre a de direito. Por acórdão de 12-01-2017, o recurso foi julgado improcedente.

            Mantendo-se irresignado, o arguido recorre agora ao Supremo Tribunal de Justiça, tendo sintetizado a sua motivação nas conclusões seguintes:

1 ° - O Tribunal recorrido não admitiu a junção de documento, o que foi preconizado na audiência e que motivou adiamento da mesma junto do TRL, sendo que esse documento é fulcral para a Defesa do arguido e superveniente (ao ponto de antes não poder ser junto - por inexistir o conhecimento do mesmo), bem evidenciando o que resulta do respectivo teor, tendo sido violados os art°s 423°-5, 340° e 165° do CPP;

2° - A não ser admitido tal documento por via do entendimento feito do artº 165° do CPP resulta que essa mesma disposição legal contende com o direito ao recurso preceituado no art°32°-1 da CRP, vendando ao arguido o direito amplo de Defesa e a possibilidade de demonstrar a sua inocência através de uma impressiva carta que lhe foi remetida por alguém ligado ao assunto e ao tráfico ocorrido - que o mesmo desconhecia, mais violando os princípios da presunção da inocência e in dubio pro reo;

3° - Os temas convocados foram em termos precisos e exactos, sendo que o TRL cometeu a nulidade prevista no art°379°-1-a) e c) do CPP ao não analisar nem fazer análise critica dos motivos e argumentos seriados e invocados pela Defesa do arguido, designadamente ao não analisar cabalmente o processo de enformação dos factos dados como provados na instância quando em confronto com os diversos e muitos motivos elencados pelo recorrente, puramente omitindo os motivos e questões avançados no recurso e que colidem com tais factos, não dando resposta jurídica - além de genéricas considerações - aos temas elevados a debate;

4° - Igualmente o não fez na densa matéria atinente aos vícios que foram realmente suscitados sob o artº 410º-2 do CPP e que se perfilam latentes da mesma forma - antes se limitando, afinal a concluir "A prova produzida não nos deixa qualquer dúvida de que o arguido praticou os factos julgados provados" - sem fundamentar sequer essa afirmação, totalmente contrária à verdade e realidade; nem sequer se debruçando nos argumentos que a contrariam ... , não tendo analisado os temas inscritos a debate e assim violando o artº 97º-5 do CPP;

5° - Igualmente o não fez - quando por dever de patrocínio - foi convocada a matéria de direito, ao nível da subsunção e até da pena - que infelizmente o arguido se vê compungido a reanimar, sendo total e manifestamente omisso ao que se espera duma decisão, que afronta o art°379°-1-c) e 120° do CPP;

6° - Face ao exposto e nos sobreditos termos, deve o recurso merecer provimento e ser ordenado o reenvio nos termos e para efeitos do art°426°-2 do CPP e quando assim se não entender, ser a decisão alterada nos sobreditos e demais termos.

         Em resposta, o Ministério Público pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso, resumindo a sua argumentação pela forma seguinte;

             A- A lei foi aplicada e a prova foi valorada em conformidade com os poderes de cognição do Tribunal da Relação.

            B- O Acórdão não padece de falta de fundamentação, insuficiências, erro de apreciação ou qualquer nulidade/irregularidade.

             C - Não aplicou nem interpretou ao arrepio da Constituição o art. 1650 n° 1 do Código de Processo Penal ou qualquer outra norma.

             D- O Tribunal «a quo» deu cumprimento integral ao preceituado no art° 127° do CPP e
não violou o disposto nos nºs 2 dos arts. 4100 e 374°.

             E- O Acórdão recorrido não merece qualquer censura, pelo que deve ser mantido e
confirmado nos seus precisos termos, negando-se provimento ao recurso do arguido.

            Porque o arguido, no requerimento de interposição de recurso, requereu a realização de audiência, procedeu-se à mesma, com observação das formalidades legais.

           A defesa argumentou no sentido em que o havia feito na motivação que apresentara.

Acrescentou, porém, quanto à questão da tempestividade da apresentação de documento superveniente durante a audiência de recurso na Relação, que para o processo civil está prevista essa possibilidade, devendo a norma do art. 680º do Código de Processo Civil ser aplicada no processo penal nos termos do art. 4º do Código de Processo Penal, considerando-se que o art. 165º deste último Código não tem aplicação na fase de recurso.

Persistiu a defesa no entendimento de que são notórias as insuficiências na fundamentação do acórdão recorrido e insistiu na possibilidade de o Supremo Tribunal de Justiça conhecer oficiosamente dos vícios do art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal.

           Referiu, por fim, que não sendo a agravante qualificativa de aplicação automática, punir os factos pelo crime base do art. 21º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro e reduzir a pena seria atenuar os males resultantes da condenação de um inocente.

Pela representante do Ministério Público nada de relevante foi acrescentado ao que consta da resposta ao recurso. Considerou não existir no acórdão recorrido falta de pronúncia, por terem sido conhecidas as questões suscitadas e, afirmou, relativamente à qualificação juridíco-penal dos factos e à medida da pena, que o modo como as instâncias julgaram não merece qualquer dúvida ou reparo.

            Cumpre decidir.

           

2. A primeira questão que o recorrente coloca, que considera prévia relativamente às demais, diz respeito à apresentação, não admitida pelo Tribunal da Relação, de um documento superveniente à audiência de julgamento em 1ª instância, que o recorrente entende ser fulcral para a boa decisão da causa porque, segundo alega, dele resulta a sua inocência,

Na fundamentação do seu recurso, o arguido argumenta que o pedido de junção do documento na audiência no Tribunal da Relação, porque feito ao abrigo das disposições combinadas dos arts. 423º nº 5, 340º e 165º do Código de Processo Penal, devia ter levado à sua admissão, e não à rejeição, uma vez que a Relação “tinha poderes para analisar tal documento, no âmbito dos seus poderes de cognição”, acrescentando: “quando o artº 423°-2 se refere que à exposição do Relator segue-se a renovação da prova, isso inculca que atendendo aos poderes de cognição das Relações a prova pode realmente ser analisada - mesmo a que contemporiza documentos - como foi o caso - supervenientes, nos termos aliás resultantes do art°430° in fine e maxime o nº 5 do preceito legal”.  

Mas mesmo que assim se não ajuíze, o documento, porque superveniente, deve ser considerado apresentado em tempo por aplicação ao processo penal, do preceituado no art. 680º do Código de Processo Civil, ex ui do art. 4º do Código de Processo Penal, tal como sustentou em audiência.

A não ser como defende, a fundamentar-se a não admissão do documento no disposto no art. 165º do Código de Processo Penal, então tal norma é inconstitucional, por contender com o direito ao recurso consagrado no nº 1 do art. 32º da Constituição.

2.1  Ao regular a tramitação unitária do recurso, o Código de Processo Penal prevê, no art. 423º nº 2 respeitante à disciplina da audiência recursiva, que, após a exposição do relator, se siga a renovação da prova, quando a ela houver lugar. Tal norma tem de ser conjugada com a do nº 1 do art. 430º, nos termos do qual, “quando deva conhecer de facto e de direito, a relação admite a renovação da prova se se verificarem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º e houver razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo.” A renovação da prova está, pois, condicionada pela verificação de algum dos vícios referidos no nº 2 do art. 410º e pela prognose de que, dessa forma, se evitará o reenvio do processo.

E, sendo assim, equivoca-se o recorrente quando defende que, segundo a lei processual, é admissível a junção de prova documental com a motivação do recurso ou a sua apresentação na audiência recursiva, justificando essa interpretação com o instituto da renovação da prova. 

Atentando no preceito do Código de Processo Penal, verifica-se que o convocado art. 165º nº 1 do Código de Processo Penal determina que a prova documental seja junta no decurso do inquérito ou da instrução, ou até ao encerramento da audiência em 1ª instância apenas no caso de não ter sido possível ao apresentante a sua junção em momento anterior, competindo-lhe alegar e provar essa impossibilidade. A letra do preceito não favorece, pois, de modo algum, o entendimento que o recorrente reclama. Acresce que, renovar a prova não é produzir nova prova, mas produzir de novo, agora perante a relação, prova que foi apreciada em 1ª instância, proporcionando ao tribunal superior a possibilidade de sanar os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, de contradição insanável da fundamentação ou de erro notório na apreciação da prova. Deste modo, a norma do art. 423º em nada colide, antes se mostrando em harmonia, com o disposto no art. 165º do Código de Processo Penal.

Por isso tem a jurisprudência entendido que, em processo penal, encerrada a audiência em 1ª instância, deixa de ser admissível a junção de novos documentos. [Cfr. acórdãos do STJ de 30-11-1994 (CJ-STJ, II, III, pág. 262) e de 30-10-2001 -Proc. 1645/01-3ª Sec (www.stj.pt/criminal2001.pdf), destacando-se na jurisprudência das relações, como meros exemplos, os acs. de 17-04-2007 – Proc. 2989/07 da Relação de Lisboa, de 9-12-2004 – Proc. 150/04 da Relação do Porto, de 10-11-1999 Proc. 2182/99 da Relação de Coimbra (CJ, XXIV – V, pág. 47), de 2-02-2016 – Proc. 51/15.0GFELV.E1 da Relação de Évora e de 2-11-2015 – Proc. 44/08.4TAVN.G1 da Relação de Guimarães]

Para o recorrente, a apresentação do documento na fase de recurso sempre seria de admitir com base no disposto nos arts. 425º e 680º do Código de Processo Civil. Argumenta que não se entenderia que tal suceda em processo civil, quando estão em causa interesses privados, as mais das vezes de carácter patrimonial, e tal não possa ocorrer em processo penal, onde o objecto do processo contende com a liberdade das pessoas.

           Como resulta do disposto no art. 4º do Código de Processo Penal, para que em processo penal possam ser observadas as normas de processo civil é necessário, antes de mais, que o tribunal esteja perante um caso omisso que não possa ser resolvido por aplicação analógica do processo penal e desde que as normas do processo civil se harmonizem com o processo penal.

           No caso presente, falece, desde logo, o principal pressuposto, pois a situação em análise não é configurável como um caso omisso.

            Na verdade, o Código de Processo Penal contém norma própria respeitante à apresentação de documentos, a qual, diferentemente do que sucede em processo civil, não contém previsão acerca da apresentação de documentos com a motivação de recurso, nem mesmo se se tratar de documentos supervenientes à audiência de 1ª instância.

Tal assim sucede por se tratar de uma opção do legislador do Código de Processo Penal, pois quando este definiu as regras que nesta matéria vigoram em processo penal, necessariamente conhecia os preceitos do Código de Processo Civil, e deles se quis afastar.

Com efeito, já no Código de Processo Civil de 1939 se previa, no art. 550º, que “depois do encerramento da discussão só serão admitidos, no caso de recurso, documentos cuja junção não tenha sido possível até àquele momento”, e se estabelecia no art. 706º que “com as alegações podem as partes juntar documentos quando se verificarem os casos excepcionais previstos no artigo 550.° ou quando a junção só se tenha tornado necessária ·em consequência do julgamento proferido na 1ª instância”, acrescentando-se no § único que “posteriormente às alegações ainda podem juntar-se os documentos supervenientes”. Tais normas passaram para o Código de Processo Civil de 1961, e foram mantidas nas revisões operadas pelo Decreto-Lei nº 47.690, de 11 de Maio de 1967 e pelo Decreto-Lei nº 368/77, de 3 de Setembro.

Ao tempo da publicação do Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro, que aprovou o novo Código de Processo Penal, vigoravam, pois, em processo civil, relativamente à apresentação de documentos depois do encerramento da audiência de 1ª instância, o art.  524º cujo número 1 reproduzia com ligeiras alterações de redacção o art. 550º do Código de Processo Civil de 1939 e o art. 727º que prescrevia que “com as alegações podem juntar-se documentos supervenientes, sem prejuízo do disposto no nº 2 do artigo 722º e no nº 2 do artigo 729º.”

Tal como se ponderou no acórdão nº 406/03 do Tribunal Constitucional, “a intempestividade da junção de documentos supervenientes, na fase de recurso para a relação, está directamente conexionada com os termos em que a lei regula os recursos em processo penal, particularmente, no que concerne à reapreciação da matéria de facto.”

Os recursos têm sido considerados um remédio jurídico para pôr fim a um erro in procedendo ou in judicando, constituindo “meios processuais de impugnação de anteriores decisões judiciais  e não ocasião para julgar questões novas” (J. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil – Anotado, vol, 3, pág, 98). Ao tribunal superior não compete, pois, proferir decisão sobre questões que não tenham sido colocadas ao tribunal recorrido, mas, circunscrevendo-se aos elementos probatórios que este último tribunal teve ao seu dispor, analisar a decisão por ele proferida, aferindo da sua conformidade com as provas e com as normas legais.  Por isso se defende que “a admissão de um documento por pertinente implica que o recurso não verse integralmente sobre as provas produzidas que constituíram o meio de convicção do juiz de primeira instância, mas, também, sobre algo distinto que é o documento” (António Henriques Gaspar et alii, Código de Processo Penal Comentado, pág. 697).

Merece, por conseguinte, concordância, a afirmação do acórdão recorrido, segundo a qual “levar em consideração os documentos apresentados no recurso significa continuar a produção a prova já produzida no julgamento da primeira instância em vez de conhecer apenas da decisão recorrida. Seria apreciar a decisão recorrida com base em prova que não tenha sido produzida na altura em que esta foi proferida.”

Tal interpretação de modo algum fere os princípios ou preceitos constitucionais, como reconheceu o Tribunal Constitucional no acórdão nº 392/03, entendimento que reiterou no acórdão nº 397/06. Confirmando decisão sumária do relator, afirmou-se no primeiro dos referidos arestos: “A interpretação da norma do art. 165º nº 1 que a jurisprudência, quer do Supremo Tribunal de Justiça, quer das relações, tem adoptado não viola o art. 32º nº 1 da Constituição. Conforme afirmou o Tribunal Constitucional, no acórdão nº 406/03, “a Constituição (maxime, artigo 32º n.º 1), se assegura o direito ao recurso, deixa, no entanto, ao legislador ordinário uma margem de livre conformação na regulação do recurso, não impondo, de modo algum, que esta se traduza na permissão de um segundo julgamento da questão decidida em 1ª instância. Nesta lógica se compreende, sem vício de inconstitucionalidade, a proibição de junção de documentos supervenientes com vista a alterar a matéria de facto dada como provada em 1ª instância”.

Se e na medida em que se o documento superveniente à produção da prova tiver potencialidade para pôr em causa a justiça da condenação, sempre fica em aberto a possibilidade do recurso extraordinário de revisão. Como  expressamente se referiu no sobredito acórdão nº 406/03, “o arguido não fica desprovido de meios de defesa, podendo fazer valer uma decisão judicial superveniente, que o beneficia, incompatível com a decisão que o condenou definitivamente, através do recurso de revisão, nos termos previstos no artigo 449º alíneas a), b) e c) do CPP, sendo certo que o princípio constitucional em causa (garantias de defesa do arguido) se basta com a previsão de uma meio procedimental idóneo para o arguido efectivar essas garantias”.

Improcede, assim, o recurso nesta parte.

3.  Argui o recorrente a nulidade do acórdão da Relação com fundamento na previsão do art° 379° nº 1, als. a) e c) do Código de Processo Penal, defendendo não ter sido levada a efeito uma análise critica dos motivos e argumentos invocados pela defesa, que não analisou cabalmente o modo como os factos foram dados como provados pela 1ª instância em confronto com os diversos e muitos motivos elencados pelo recorrente, e não reconheceu a existência dos vícios do artº 410º nº 2 do Código de Processo Penal que foram invocados, violando deste modo o artº 97º nº 5 deste mesmo Código.

Cumpre reafirmar, à guisa de introito à apreciação da questão, que a circunstância de o Supremo Tribunal de Justiça ser um tribunal de revista faz com que lhe seja alheia a competência para apreciação do concreto uso que a Relação fez dos seus poderes no recurso que teve por objecto a matéria de facto.

Como se afirmou no acórdão de 17-01-2008 – Proc. 2696/07, o Supremo Tribunal de Justiça não pode “exercer crítica sobre o conteúdo da avaliação que a 2ª instância fez da matéria de facto, no uso dos seus poderes legais e de acordo com as regras estabelecidas”.  Por isso, tem vindo a ser referido que, “em matéria de poderes de cognição do STJ relativamente a recursos de decisões proferidas em recurso pelas Relações, a lei adjectiva penal – art. 434.º do CPP – limita aqueles poderes ao reexame da matéria de direito, sem prejuízo do disposto no art. 410.°, n.ºs 2 e 3. Daqui resulta estar vedado a este Supremo Tribunal o reexame da matéria de facto, o que significa que a decisão proferida pelo Tribunal da Relação sobre aquela matéria se tomou definitiva, sendo pois irrecorrível, havendo que rejeitar o recurso na parte em que o recorrente pretende se proceda ao reexame da matéria de facto sob a invocação de que a prova foi incorrectamente apreciada.” (ac. de 29-01-2007- Proc. 4354/06-3). No mesmo sentido, julgou o acórdão de 14-12-2006 - proc. n.º 4356/06-5, onde se decidiu que “a competência das Relações, quanto ao conhecimento de facto, esgota os poderes de cognição dos tribunais sobre tal matéria, não podendo pretender-se colmatar o eventual mau uso do poder de fazer actuar aquela competência, reeditando-se no Supremo Tribunal de Justiça pretensões pertinentes à decisão de facto, que lhe são estranhas, pois se hão-de haver como precludidas todas as razões quanto a tal decisão invocadas perante a Relação, bem como as que o poderiam ter sido”.

3.1  Discordando da matéria de facto apurada pelas instâncias, o recorrente alega  que a Relação violou o disposto no art. 379 nº 1 als. a) e c), e no art. 97º nº 5  do Código de Processo Penal, o que, constituindo nulidade, deve ser conhecido em recurso, pelo tribunal superior.

Enquanto o nº 5 do art. 97º estabelece que “os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”, o art. 379º considera nula a sentença que não contiver as menções referidas no art. 374º nº 2 e 3 al. b) e, bem assim, quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

O art. 374º, para onde o preceito do art. 379º remete, determina, no seu nº 2, que “ao relatório segue­se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”. E a al. b) do nº 3 determina que “a sentença termina por um dispositivo que contém a decisão condenatória ou absolutória”.

O disposto no art. 379º é correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso, tal como se dispõe no art. 425º nº 4.

Esta norma, porém, tem sido interpretada no sentido de que “o art. 374.º, n.º 2 do CPP não é directamente aplicável às decisões proferidas, por via de recurso, pelos Tribunais Superiores, mas só por via da aplicação correspondente do art. 379.º, pelo que aquelas não são elaboradas nos exactos termos previstos para as sentenças proferidas em 1.ª instância, uma vez que o seu objecto é a decisão recorrida e não directamente a apreciação da prova produzida na 1.ª instância e que embora as Relações possam conhecer da matéria de facto, não havendo imediação das provas, o tribunal de recurso não pode julgar a causa nos mesmos termos em que o tinha feito a 1.ª instância” (ac. STJ. de 17-01-2008 – Proc. 607/07).

Relativamente à omissão de pronúncia, esta só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir e não os simples argumentos, opiniões ou doutrinas expendidos pelas partes na defesa das teses em presença, tal como se julgou no acórdão de 11-10-2007 – Proc. 3330/07.

3.2  Definidas as linhas que devem ser observadas na interpretação e aplicação das normas invocadas pelo recorrente, vejamos se o acórdão recorrido se encontra ferido de alguma nulidade.

Segundo a norma do nº 3 do art. 412º do Código de Processo Penal, quando pretenda impugnar a decisão da matéria de facto, o recorrente terá de indicar especificamente os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõe decisão diversa da recorrida e as provas que devam ser renovadas.  Explicita o nº 4 do mesmo artigo que “quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.

Para que existisse no acórdão recorrido a nulidade imputada pelo recorrente de omissão de pronúncia acerca da questão da impugnação da matéria de facto, teria ele de ter observado rigorosamente o que a lei impõe, o que não sucedeu. É certo que indicou os concretos pontos de facto que considerou incorrectamente julgados – os pontos 1, 2, 4, 5, 30, 31, 32, 33 e 34 do elenco dos factos provados. Contudo, omitiu as concretas provas que impõe decisão diversa da recorrida, não tendo feito remissão alguma para a acta, nem concretizando as passagens em que funda a sua impugnação, conforme a lei lho determina. Com efeito, em vez de cumprir as exigências impostas por lei (art. 412.º, n.º 3 e 4 do CPP), o recorrente limitou-se a discordar de alguns pontos da decisão da matéria de facto, contrapondo à convicção adquirida pelo tribunal, a sua própria convicção sobre a prova produzida. Uma tal forma de impugnação não corresponde, porém, ao que formal e substancialmente decorre da lei, sendo forçoso concluir que o recorrente não cumpriu os ónus, quer de impugnação e motivação, quer de adequação às formalidades impostas. Deste modo a Relação não tinha elementos para apreciar a questão da impugnação da matéria de facto, sendo, pois, absolutamente infundado o que o recorrente afirma no sentido de que “o TRL nada analisou sobre este prisma [o da impugnação especificada dos factos incorrectamente julgados], limitou-se a socorrer-se do art. 127º do Código Penal, a prova foi apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente e que é o juiz do julgamento.

Alegou ainda o arguido, no seu recurso para a Relação, a existência de vícios da matéria de facto, como sejam o de contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão e o de erro notório na apreciação da prova.

Conforme tem sido a jurisprudência há muito firmada e como resulta expressis verbis do art. 410º do Código de Processo Penal, os vícios da matéria de facto têm de resultar da própria decisão recorridas, na sua globalidade, sem recurso a elementos que lhe sejam externos.

Após terem procedido à enunciação dos factos provados e à da respectiva fundamentação, os juízes desembargadores afirmaram que “lendo os extractos transcritos, não vemos qualquer contradição, seja na fundamentação, seja entre a fundamentação e a decisão, muito menos notória” e justificaram a não verificação de erro notório na apreciação da prova pelas razões que se transcrevem:

“Vemos que o Colectivo de Juízes explicou detalhadamente e de forma lógica, racional e convincente como chegou à conclusão de que o recorrente praticou os factos pelos quais o condenaram, nomeadamente, como a partir de factos assentes com base em prova directa concluiu, por presunção, os factos provados que não podiam resultar da prova directa.

Não encontramos nos autos nada que indique que os juízes valoraram a prova de forma contrária às regras da experiência, exclusivamente na base do seu convencimento psicológico ou arbitrariamente. Pelo contrário, os documentos juntos aos autos mostram que o recorrente era o destinatário do contentor e do mobiliário onde a cocaína vinha acondicionada. O depoimento das testemunhas ouvidas na audiência permitem concluir sem qualquer dúvida que o arguido se comportou sempre como o destinatário do que vinha no contentor, nomeadamente tomando todos os cuidados para que o contentor e o seu conteúdo chegassem à sua casa. As declarações do arguido só vêm reforçar a convicção de que ele era o destinatário do contentor, dos móveis e da cocaína acondicionada nos móveis. Vai contra a experiência comum a versão dada pelo arguido, segundo a qual, uma pessoa do Brasil, que ele apenas conhecia por BB lhe enviou um contentor de móveis à consignação e, ainda por cima, contendo cerca de 300 quilos de cocaína. Não existe qualquer prova que possa sustentar a alegação do recorrente de que ele foi utilizado por pessoas, que desconhece, da rede internacional da cocaína. Como diz o Tribunal recorrido, a experiência comum, e a experiência judiciária em particular, mostra que qualquer 'correio de droga' nas condições referidas nos autos teria que ser contactado previamente e estaria sujeito a constante vigilância de quem lhe encomendou o transporte para garantir que produto de tão elevado valor económico não se extravie. A experiência ensina também que só uma razão económica muito forte levaria uma pessoa que explora bares nocturnos, sem experiência no negócio de mobiliário, a decidir, de um momento para outro, dedicar-se à importação de móveis rústicos do estrangeiro com o custo de investimento que essa actividade representa.

Contra toda essa prova directa e indirecta que demonstra que ele praticou os factos pelos quais foi condenado, o recorrente limita-se a contrapor a sua valoração da prova à do Tribunal recorrido - o que não é permitido pelo referido artigo 127.° do CPP.

A prova produzida não nos deixa qualquer dúvida de que o arguido praticou os factos julgados provados.

O Tribunal recorrido fez correcta apreciação da prova. Não há qualquer fundamento para se enviar o processo para novo julgamento nos termos do artigo 426.°, n.º 1, do CPP.”

Contrariamente ao que o recorrente sustenta, a Relação ponderou acerca da impugnação apresentada pelo arguido. Não se vislumbra, portanto, no acórdão recorrido nulidade por falta de fundamentação, não tendo sido violado o disposto no art. 379 nº 1 als. a) e c), aplicável às decisões em recurso pelo art. 425º nº 4, nem o disposto no art. 97º nº 5  do Código de Processo Penal.

O conhecimento pela Relação, em recurso, das questões relativas à matéria de facto esgota os poderes de cognição dos tribunais sobre tal matéria, tornando-a definitiva.

4.  O que acaba de ser afirmado quanto à matéria de facto não é, contudo, de modo algum prejudicado pelo disposto no art. 434º do Código de Processo Penal, que permite ao Supremo Tribunal de Justiça conhecer dos vícios do art. 410º nº 2. Conforme o próprio recorrente expressamente aceita, este poder só é passível de ser exercido oficiosamente, constituindo válvula de segurança para a situação em que o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, se vir privado da matéria de facto necessária para constituir a base de uma segura decisão de direito.

4.1  Os factos dados como provados pelas instâncias são os seguintes:

1. O arguido, juntamente com outros indivíduos cujas identidades se desconhecem, delineou um plano e organizou-se em ordem a assegurar o transporte de cocaína, por via marítima, desde ..., no Brasil, para Portugal, com vista à sua comercialização.

2. Para tanto, sob o pretexto de compra de móveis rústicos de madeira a transportar em contentor, desde o Brasil para Portugal, vinham dissimuladas 286 (duzentas e oitenta e seis) placas de cocaína, com o peso bruto de 297.363,800 gramas.

3. A cocaína foi introduzida nas próprias estruturas dos móveis rústicos.

4. Servindo somente tal exportação/importação, o fim único de introduzir em território nacional, aquele produto estupefaciente, de forma aparentemente legal, em ordem a iludir o controlo das autoridades alfandegárias e policiais.

5. Assim, na execução desta estratégia, foi enviada por via marítima, do Brasil, desde a cidade de ..., o contentor com o número SUDU ....

6. Sendo exportador a empresa "...", representada pelo Agente "...", com sede na [...].

7. E constando na qualidade de importador, o nome e morada do arguido: AA, residente na [...].

8. No dia 8 de Abril de 2013, pelas 16h00, as autoridades Alfandegárias junto ao Porto de Lisboa, no âmbito de habituais controlos de mercadorias, examinaram o contentor com o número SUDU ..., e o seu conteúdo cuja carga consistia em 21 (vinte e um) móveis rústicos de madeira, sofás, bancos, cama e vários tipos de mesas.

9. Nessa sequência, foi detectada cocaína dissimulada nas estruturas dos referidos móveis.

10. No referido Porto de Lisboa, estava o motorista ..., para transportar o contentor no camião, com a matrícula ...-RA e atrelado de matrícula ....

11. CC era o motorista da empresa "DD, Lda.", com instalações situadas em Odivelas.

12. Empresa que tinha sido subcontratada pela empresa "EE", para efectuar o transporte do contentor.

13. Por seu turno, a empresa "EE", foi contratada pela empresa "FF" para transporte do contentor SUDU..., a ser levantado na “...", no Porto de Lisboa, com destino ao importador AA.

14. Já sob controlo policial, por volta das 18h00, CC, o condutor do camião, telefonou para a firma "EE" para saber o local para onde deveria levar o contentor.

15. No decurso dessa conversa foi-lhe transmitido o contacto ..., pertencente ao arguido AA, para o qual deveria ligar e combinar a entrega do contentor.

16. Após duas tentativas de chamada para o número..., e como não obteve resposta, CC voltou a contactar a empresa "EE", informando do sucedido, esperando assim receber instruções para que local se deveria dirigir.

17. Tendo recebido informação de que tinha sido efectuado um novo contacto do importador, ficando a entrega do contentor agendada para o dia seguinte, de Abril de 2013.

18. Perante tal indicação, CC transportou o contentor para as instalações da empresa para a qual trabalha - "DD, Lda.", situadas em ....

19. Local onde foi montado um dispositivo de segurança e vigilância até à saída do contentor.

20. Ao início da noite do dia 8 de Abril de 2013, o arguido AA ligou para CC, a partir do seu telefone ..., que lhe [deu] indicações para este último se dirigir à zona de Alverca, parquear o camião junto da empresa de metalomecânica "GG", pelas 9h00, onde se iria encontrar consigo para lhe indicar o local e conduzi-lo ao local de descarregamento.

21. Pelas 8h00 do dia 9 de Abril de 2013, o arguido telefonou de novo a CC, perguntando qual o tamanho do camião, a fim de poder escolher o melhor itinerário para a passagem do camião, nas imediações da sua vivenda.

22. Sempre sob controlo policial, o contentor contendo cocaína, foi levado das instalações da empresa - "DD, Lda.".

23. Conforme o combinado previamente, o arguido AA e o motorista do camião - CC, encontraram-se junto à "GG", em Alverca.

24. Deslocando-se o arguido na carrinha de marca "Volkswagen Golf”, de cor cinzenta, com a matrícula ...-0X.

25. Depois de trocarem algumas palavras, o arguido iniciou a marcha, sendo seguido de imediato pelo camião, seguindo CC as instruções que previamente lhe tinham sido fornecidas por aquele, designadamente para[r] no ..., a poucos metros da vivenda do arguido.

26. Após chegarem ao local combinado e avaliarem a forma como camião deveria entrar na vivenda, para se proceder ao descarregamento do contentor, o motorista iniciou as manobras, enquanto o arguido foi buscar o empilhador que se encontrava no logradouro de sua casa.

27. Nessa ocasião, pelas 9h45, o arguido AA foi abordado pelos Inspectores da Polícia Judiciária.

28. Tendo sido apreendido o conteúdo do contentor, bem como os seguintes bens:

Na posse do arguido:

- um telemóvel de marca "Alcatel", modelo "FM", preto, com o cartão nº ...;

- um telemóvel de marca "Nokia", modelo "X3-02", branco, com o cartão nº ...;

- um computador portátil de marca "Toshiba", modelo "NB200-10Z".

Dentro do seu veículo:

- um telemóvel de marca "GPS", modelo "F035", com cartão SIM da operadora "Moche", com o número ... e cartão da operadora "Ekit", com o número ..., contendo ainda o cartão Micro SD de 2 Gb;

- um computador de marca "Apple", modelo "IPAD".

29. No total, foram apreendidas 286 (duzentas e oitenta e seis) placas de cocaína (cloridrato), com o peso bruto de 297.363,800 gramas, tendo a amostra cofre o peso líquido de 12.763,900 gramas e o remanescente o peso de 293.350,00 gramas.

30. A cocaína apreendida era pertença do arguido e destinava-se a ser comercializada por elevada quantia monetária, atenta a elevada quantidade e preços de mercado, que rondam os 50.000 € por cada quilograma.

31. O arguido tinha conhecimento da natureza e características estupefacientes da cocaína.

32. Alguns dos telemóveis que o arguido detinha destinavam-se a contactar e a ser contactado pelos ulteriores destinatários da cocaína.

33. Agiu com o único intuito de auferir proventos pecuniários.

34. Actuou deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Quanto à situação económico-social do arguido provou-se que:

35. O arguido é o mais novo de uma fratria de 2 irmãos e desenvolveu-se num contexto familiar tradicional e normativo em que os pais foram modelos de referência significativos.

36. Ao nível escolar completou o 8 ano de escolaridade, tendo deixado a escola aos 17 anos para trabalhar.

37. Trabalhou durante cerca de um ano numa fábrica de rações.

38. Iniciou um curso de formação profissional de mecânica, que não completou, por ter conseguido trabalho na Central Eléctrica de Sines, como serralheiro aos 19 anos de idade.

39. Efectuou um percurso laboral investido nesse sector de actividade e após trabalhar cerca de 7 anos por conta de outrem, optou por constituir uma empresa juntamente com o irmão.

40. Essa e outra empresa congénere, que constituiu com o seu irmão, permitiu- lhe usufruir de uma situação económica desafogada durante algum tempo.

41. Paralelamente abriu um bar/discoteca que veio a arrendar posteriormente e que possibilitou ter um rendimento fixo.

42. A empresa que constituiu com o irmão fechou em 2004/2005, devido a dificuldades financeiras.

43. Entre 2007 e 2011 manteve a exploração de um bar em Lisboa, o qual arrendou a terceiros.

44. Casou aos 30 anos, tendo da relação com o cônjuge nascido uma filha com a qual o arguido sempre teve proximidade e afecto.

45. Divorciou-se há cerca de 9 anos, embora tenha continuado a residir com a sua ex-mulher na mesma casa.

46. Posteriormente, teve um relacionamento com uma pessoa de nacionalidade romena, da qual teve uma filha, mas com quem nunca chegou a viver em comum.

47. À data da prática dos factos o arguido residia com o ex-cônjuge e filha na morada de família.

48. A nível laboral ocupava-se com a aquisição de alguns carros para arranjar e revender, juntamente com um ex-funcionário, bem como com trabalhos agrícolas.

49. Vivia essencialmente dos rendimentos obtidos nos arrendamentos dos bares, que lhe proporcionavam cerca de 3.500€ mensais, não tendo dificuldades económicas.

50. Conta, actualmente, com o apoio do ex-cônjuge, família e amigos.

51. O arguido não tem antecedentes criminais.

4.2  A enunciação dos factos provados constante da decisão condenatória corresponde pari passu à acusação deduzida pelo Ministério Público, para a qual o despacho de pronúncia remeteu.

No facto 1º, considerou-se que “o arguido, juntamente com outros indivíduos cujas identidades se desconhecem, delineou um plano e organizou-se em ordem a assegurar o transporte de cocaína, por via marítima, desde São Salvador, no Brasil, para Portugal, com vista à sua comercialização”.

Tendo o verbo “delinear” o sentido de “conceber, planear” (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, s.v. delinear), e sendo “o arguido” o sujeito da acção, temos que, perante o conteúdo deste facto, ele é autor moral do crime.

Contudo, percorrendo a fundamentação da matéria de facto nada resulta no sentido de ter sido o arguido quem concebeu, ou mesmo se colaborou na elaboração do plano de remessa de cocaína a coberto da importação de móveis rústicos provenientes do Brasil. Ali se reconhece que o arguido “esclareceu que … em Junho/Julho de 2012, decidiu começar a fazer uma consulta na internet sobre preços de vendas de móveis rústicos. Nessa época fez um contacto; foi-lhe dada uma resposta e enviada uma tabela com preços. Na altura desistiu do negócio, mas veio a ser contactado em NovembrolDezembro desse mesmo ano, por um senhor de nome BB, que lhe falou na consulta que o arguido havia feito meses antes e que lhe foi transmitindo que estariam interessados em ter pessoas que vendessem a sua mercadoria e que, inclusivamente, estariam na disponibilidade de a enviar à consignação. Apesar de num momento inicial não estar interessado, foi-lhe dado o contacto de um despachante, termos em que começou a acreditar na viabilidade do negócio.”

O tribunal, porém, observou que “analisando o teor das explicações alvitradas pelo arguido e conjugando as mesmas com o teor da demais prova efectuada nos autos (testemunhal e documental), diremos, desde logo, que as mesmas não nos merecem qualquer credibilidade”.

Por outro lado, diz-se na fundamentação que “não temos quaisquer dúvidas, atentas as circunstâncias como o negócio foi desenvolvido a partir do Brasil”, logo referindo que “se é certo que nenhuma testemunha conseguiu atestar em sede de audiência de julgamento … qual o seu [do arguido] concreto papel no plano que foi gizado conjuntamente com outros indivíduos para trazer esta quantidade enorme de cocaína para Portugal”.

Existe, assim, uma nítida contradição entre a fundamentação e a decisão, sendo certo que o papel que o arguido exerceu no âmbito do grupo é relevante para aferir da sua culpa e do grau de ilicitude da sua conduta.

 

4.3  Por outro lado, no facto nº 30 afirma-se que “A cocaína apreendida era pertença do arguido e destinava-se a ser comercializada por elevada quantia monetária, atenta a elevada quantidade e preços de mercado, que rondam os 50.000 € por cada quilograma”.

Segundo a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. 21,  “pertença” tem o sentido de “propriedade, domínio”. O mesmo significado se encontra no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, que apresenta como um dos diversos sentidos de “domínio”, o “direito legal de propriedade sobre alguma coisa”.

A primeira parte do facto nº 30 significa ou pode ter o sentido de que a cocaína era propriedade do arguido.

Também neste ponto existe contradição entre a fundamentação e a decisão.

Com efeito, a testemunha ..., quando instada, “reconheceu não ter sido recolhida prova que lhe permitisse concluir … que o mesmo [arguido] seria o único destinatário da cocaína apreendida.” Da fundamentação da matéria de facto, consta ainda: “Resultou provado que o importador da mercadoria era, sem margem para qualquer dúvida, o arguido.”

Esta afirmação não significa que o arguido seja o dono da droga. A fundamentação, vista na sua globalidade, aponta no sentido de que se trataria de uma rede na qual o arguido estava integrado, Assim, diz-se ali: “Como é consabido, as redes de tráfico de droga envolvem diversas pessoas, com distintas funções e, se é certo que algumas delas não passam de meros intermediários ou participantes secundários neste negócio, não menos certo é que só pessoas que têm um conhecimento mínimo que seja são introduzidas nestas redes. Resulta da experiência comum em geral, e da experiência judiciária, em particular, que qualquer "correio de droga", por mais diminuta que seja a quantidade de produto estupefaciente que lhe seja pedido para transportar, é submetido a contactos prévios, tem noção que vai fazer um "transporte", que se encontra sob uma vigilância quase permanente por parte de quem lhe propõe o negócio, o que se justifica em face do avultado valor económico da mercadoria transportada.” E mais à frente: “… é uma evidência que o arguido não actuou sozinho, mormente porque sendo a droga proveniente do Brasil, é óbvio que alguém naquele país teve, mais que não seja, que a adquirir e acondicionar no interior dos móveis. Também não existem quaisquer dúvidas de que, independentemente, do papel de maior ou menor preponderância que o arguido tivesse nesta rede de tráfico internacional, o mesmo esperava auferir proventos económicos muito superiores à média dos auferidos no "comum" dos tráficos. Alguém que se dedica a planear a importação de móveis rústicos como o arguido admitiu que fez; que trata directamente do processo de transporte de tais mercadorias e que traz para Portugal, para ser entregue em sua casa, móveis com cerca de 300 quilos de cocaína, tem que ser muitíssimo bem pago.”

4.4  Por sua vez, no facto nº  32º dá-se como provado que “Alguns dos telemóveis que o arguido detinha destinavam-se a contactar e a ser contactado pelos ulteriores destinatários da cocaína.”

Na fundamentação da matéria de facto nada se refere quanto à finalidade da detenção pelo arguido de vários telemóveis, mais precisamente três, segundo o que consta do facto nº 28. Neste aspecto, apenas é feita referência a que o arguido  justificou a necessidade de utilizar vários telemóveis com a circunstância de se encontrar com várias mulheres, sendo certo que, conforme já se referiu, as explicações do arguido não mereceram ao tribunal qualquer credibilidade.

Embora se deva reconhecer a muito diminuta relevância deste facto, a verdade é que relativamente a ele existe um erro notório na apreciação da prova.

4.5  As duas aludidas contradições entre a fundamentação e a decisão, dizendo respeito à matéria de facto, são insanáveis pelo Supremo Tribunal de Justiça, constituindo vícios da matéria de facto na previsão do art. 410º nº 2 al. b) do Código de Processo Penal.

Idêntico vício, embora na previsão na alínea c) do nº 2 do referido artigo 410º, se verifica no apontado erro notório na apreciação da prova. 

Nos termos do disposto no art, 426º do Código de Processo Penal, sempre que, existindo os referidos vícios, não for possível decidir da causa, o processo é reenviado para novo julgamento.

O reenvio é feito para o Tribunal da Relação de Lisboa, nos termos do disposto no nº 2 do art. 426º do Código de Processo Penal, sendo o reenvio restrito aos três apontados vícios.

DECISÃO

            Termos em que acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

a) em julgar improcedente o recurso do arguido AA na parte que respeita à possibilidade de junção de documentos após a audiência de 1ª instância e, bem assim, na parte em que invoca a existência de nulidades no acórdão recorrido;

b) em determinar oficiosamente o reenvio do processo ao Tribunal da Relação de Lisboa com vista à eliminação do vício de contradição entre a fundamentação e a decisão detectado no facto nº 1 e no primeiro segmento do facto nº 30 e do vício de erro notório na apreciação da prova que afecta o facto nº 32, tal como consta dos pontos nºs 4.2, 4.3 e 4.4 do presente acórdão, após o que deve ser proferida nova decisão.

Sem custas.

Lisboa, 6 de Julho de 2017

Arménio Sottomayor (Relator)

Souto de Moura