BEM IMÓVEL
CONTRATO DE LOCAÇÃO
FALTA DE REGISTO
HIPOTECA
PENHORA
VENDA JUDICIAL
DIREITO PESSOAL DE GOZO
CADUCIDADE
Sumário

I - O direito de locação consiste no poder que assiste ao seu titular de retirar determinadas utilidades de uma coisa, sem a intermediação de ninguém, isto é, num direito pessoal de gozo, numa imediação como possibilidade de o titular do direito poder aceder, por si só, às utilidades que, segundo a sua destinação económica, a coisa é apta a produzir, configurando-se como um direito creditório referente a uma coisa, e não como um direito sobre uma coisa.

II - A oneração que resulta do arrendamento do prédio hipotecado e penhorado ocasiona a desvalorização deste bem e a frustração da posição do credor hipotecário reclamante, em fase executiva.

III - A venda judicial, em processo executivo, de um prédio hipotecado faz caducar o seu arrendamento, não registado, mas sujeito a registo, quando celebrado, posteriormente, à constituição e registo da aludida hipoteca, ainda que, em data antecedente à do registo da penhora, em virtude de, quanto a esta última situação, na expressão “direitos reais”, constante do art. 824.º, n.º 2, do CC, se incluir, por analogia, a situação do arrendamento.

IV - O locatário de prédio sujeito a registo, mas não registado, não é titular de um direito oponível e prevalente sobre a coisa penhorada na execução, com hipoteca constituída e registada, em data anterior à do contrato de locação, a favor do adquirente do bem em venda executiva, ou seja, de um direito que, nos termos do estipulado pelo art. 824.º, subsista após esta, não sendo aplicável ao caso a previsão do art. 1057.º, ambos do CC, transmitindo-se o bem adquirido, em venda judicial, pelo credor com garantia real, seu novo proprietário, livre e desembaraçado, do ónus locatício.

Texto Integral

ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA[1]:

“AA, SA”, credor reclamante na execução para pagamento de quantia certa, instaurada por BB contra CC, viu ser-lhe adjudicado, em 13 de janeiro de 2015, o imóvel penhorado, à ordem dos presentes autos, ou seja, o prédio urbano, sito à Rua ..., descrito na Conservatória de Registo Predial de ..., sob o n.° 1177, e inscrito na matriz predial urbana, sob o artigo 1282/Ginetes, pelo valor de €105.758,00 (cento e cinco mil setecentos e cinquenta e oito euros).

Depois de cumpridas as obrigações fiscais e, uma vez efetuado o pagamento dos honorários e despesas com a senhora Agente de Execução, foi emitido título de transmissão, a favor do referido credor reclamante, encontrando-se, atualmente. o imóvel já registado, em nome do mesmo, na Conservatória do Registo Predial de ..., sob a Ap. 1417, de 18/02/2015.

Tendo sido agendada, para o dia 14 de setembro de 2015, a diligência de  entrega do imóvel ao credor reclamante “AA, SA”, com a intervenção da força pública de segurança, em virtude de o executado ter impedido a efetivação da mesma, em 22 de maio de 2015, a senhora Agente de Execução notificou o adquirente do imóvel penhorado de que essa diligência não se iria realizar, uma vez que DD e EE haviam deduzido embargos de terceiro e requerido a suspensão do processo, nos termos do disposto pelo artigo 347.°, do Código de Processo Civil, alegando, para tanto, serem arrendatários do imóvel adjudicado ao credor reclamante, através de um contrato celebrado, em 3 de junho de 2010.

Estes embargos de terceiro foram, liminarmente, indeferidos, em virtude de o tribunal haver considerado, nuclearmente, que "o direito de arrendamento, invocado pelos embargantes sobre o imóvel penhorado nos autos principais não se pode considerar um direito incompatível com a penhora judicial para efeitos do preenchimento do disposto no art. 342.°, n.° 1 do CPC ", porquanto, como decorre do artigo 1057°, n° 1, do Código Civil, "esse direito ao arrendamento não sai beliscado pela penhora, ou sequer, pela posterior venda executiva do imóvel penhorado, pois a existir continuará a onerar o imóvel, impondo-se ao adquirente que acabará por assumir a posição de locador. (... )” .

Por requerimento apresentado em juízo, a 14 de setembro de 2015, o adquirente do imóvel penhorado, “AA, SA”, alegando ter a senhora Agente de Execução agido, sem fundamento legal, ao dar sem efeito a diligência de entrega do imóvel aquele, solicitou ao Tribunal que a mesma fosse notificada para agendar nova diligência de entrega do imóvel, de forma célere, em articulação com todas as entidades necessárias.

Este requerimento veio a ser, pelo menos, implicitamente, indeferido, por despacho proferido, em 5 de outubro de 2015, por se ter considerado que a sua apreciação estava prejudicada, em face do já decidido pelo despacho de indeferimento liminar, proferido no apenso de embargos de terceiro, em 18 de junho de 2015.

Desta decisão, o credor reclamante “AA, SA” interpôs recurso, tendo o Tribunal da Relação considerado que “o Despacho recorrido não merece qualquer censura, já que, na data em que o mesmo foi proferido (5/10/2015), o contrato de arrendamento invocado pelos Embargantes de terceiro para fundamentar o seu pretenso direito ao arrendamento do imóvel penhorado na presente execução ainda mantinha a sua plena eficácia, razão pela qual a presente apelação improcede, in totum, assim negando provimento à Apelação, confirmando o Despacho recorrido”.

Do acórdão da Relação de Lisboa, o credor reclamante “AA, SA” interpôs agora recurso de revista, pedindo que o mesmo seja julgado procedente e, em consequência, aquele seja revogado, devendo ser proferida nova sentença que julgue caducado o contrato de arrendamento celebrado entre executado e arrendatários, nos termos do estipulado pelo artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil, formulando as seguintes conclusões que se transcrevem, integralmente:

1ª. Veio o Tribunal da Relação de Lisboa julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença proferida, porquanto, considerou, por um lado que, o arrendamento está fora da previsão do artigo 824.º, n.º 2 do Código Civil, por não se tratar de um direito real de gozo, e por outro lado, que não existe analogia entre o direito do arrendatário e os direitos reais de gozo contemplados no artigo 824.º, n.º 2 do Código Civil.

2ª. Ora, o contrato de arrendamento celebrado entre o executado e os arrendatários é posterior ao registo da hipoteca.

3ª. Entende o recorrente que na expressão direitos reais mencionada no artigo 824.º, n.º 2 do Código Civil se inclui, por analogia, o contrato de arrendamento.

4ª. Tal implica a caducidade do contrato de arrendamento celebrado.

5ª. Aliás, esse tem sido o entendimento maioritário da doutrina e jurisprudência.

6ª. Até "O STJ, preocupado sobretudo com a dimensão real do arrendamento, vem decidindo uniformemente que com a venda judicial de um imóvel hipotecado que tenha sido dado de arrendamento a terceiro após o registo da referida hipoteca caduca o direito do respectivo locatário, nos termos do n.º 2 do art. 824.º do CC" - Acórdão 896/07.5TBSTS.P1.S1, datado de 22/10/2015.

7ª. E, ainda, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo n.º 430/11.2TBEVR-Q.E1.S1, que se encontra em contradição com o acórdão aqui recorrido que decidiu que "com a venda judicial de um imóvel hipotecado que tenha sido dado de arrendamento a terceiro após o registo da referida hipoteca, caduca o direito do respectivo locatário, nos termos do n.º 2 do artigo 824.º do CC".

8ª. Assim, e em face de todo o exposto, outra conclusão não se impõe que não seja julgar verificada a caducidade do contrato de arrendamento celebrado pelo executado com a venda celebrada nos autos.

9ª. Pelo contrário, mantendo-se a decisão recorrida, a oneração do prédio urbano através da celebração posterior de contrato de arrendamento impossibilita ou pelo menos dificulta o ressarcimento completo do credor com garantia real.

10ª. Isto porque o contrato de arrendamento constitui um ónus que incide sobre o imóvel que limita o direito de propriedade do adquirente que lhe foi garantido através da hipoteca anteriormente constituída e registada.

11ª. Assim, deverá considerar-se extinto o contrato de arrendamento, por caducidade e ordenada a entrega efectiva do imóvel em causa, livre de quaisquer pessoas ou bens, nos termos do artigo 828.º do Código de Processo Civil.

12ª. Face ao exposto, o acórdão recorrido ao decidir que o arrendamento está fora da previsão do artigo 824.º, n.º 2 do Código Civil e, ainda, que não existe analogia entre o direito do arrendatário e os direitos de gozo contemplados no citado artigo, fez uma incorrecta interpretação e aplicação daquele preceito legal.

Não foram apresentadas contra-alegações.

A factualidade que interessa reter com relevância para o julgamento do mérito do presente recurso consta do antecedente relatório, a que deve acrescer que a hipoteca existente, a favor do credor reclamante “AA, SA”, sobre o imóvel objeto da venda executiva, foi constituída e registada, na Conservatória do Registo Predial, em data anterior à da celebração do contrato de arrendamento entre o executado e os locatários.

                                                            *

 Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.

A única questão a decidir, na presente revista, em função da qual se fixa o objeto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 5º, 608º, nº 2, 609º, 635º, nºs 4 e 5, 639º e 679º, todos do Código de Processo Civil (CPC), consiste em saber se, tendo a hipoteca existente, a favor do ora credor reclamante, sobre o imóvel objeto de venda executiva, sido constituída e registada, na Conservatória do Registo Predial, em data anterior à da celebração do contrato de arrendamento, alegadamente, celebrado entre o executado e os arrendatários-embargantes, este caducou com a venda executiva, em face do disposto no artigo 824.°, n.° 2, do Código Civil, aplicável por analogia, e, em consequência, se deve ser ordenada a entrega efetiva do imóvel em causa, livre de quaisquer pessoas ou bens, ao credor/reclamante/adquirente, nos termos do  estipulado pelo artigo 828.°, do CPC.

                         DA CADUCIDADE DO ARRENDAMENTO

1. Uma das formas de extinção da relação locatícia consiste na caducidade que se traduz num instituto que opera a extinção «ope legis» ou automática do contrato, sem necessidade de qualquer manifestação de vontade tendente a esse resultado, como mera consequência de certo evento a que a lei atribui o efeito extintivo, caindo o contrato, a partir da verificação do mesmo[2].

Dispõe o artigo 824º, do Código Civil (CC), no seu nº 1, que “a venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida”, acrescentando o seu nº 2 que “os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os oneraram, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com exceção dos que, constituídos em data anterior, produzem efeitos em relação a terceiros independentemente do registo".

Por seu turno, o artigo 827º, nºs 1 e 2, do CPC, preceitua que, mostrando-se, integralmente, pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, são, oficiosamente, mandadas cancelar as inscrições relativas aos direitos que tenham caducado com a venda.

Assim sendo, tudo está em saber, desde já, quais os “direitos que caducam com a venda”, na formulação introduzida ao supracitado normativo processual, oriunda já do antecedente artigo 900º, do CPC/61, na redação instituída pelo DL nº 38/2003, de 8 de março, ou seja, os “direitos que caducam, nos termos do nº 2 do artigo 824º, do Código Civil”, como passou a constar da redação do DL nº 116/2008, de 4 de julho, que repôs, «ipsis verbis», no que aqui interessa considerar, o texto do artigo 907º, do CPC, na versão anterior à Reforma do Processo Civil de 1995/96, isto é, o texto que foi instituído pelo DL nº 457/80, de 10 de outubro.

Ora, os “direitos que caducam, nos termos do nº 2 do artigo 824º, do Código Civil”, só podem ser, consoante decorre deste último normativo legal, “os direitos de garantia que oneram os bens vendidos”, e ainda “os demais direitos reais”.

2. Porém, o direito de locação enquadrar-se-á no conceito dos “direitos que caducam”, na aceção civilista do termo, já considerada?

O artigo 1022º, do CC, define a locação como "o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição".

A controvérsia acerca da natureza jurídica do direito de locação concentra-se, fundamentalmente, em determinar se ele constitui um direito real, ou se é, apenas, um direito de crédito, um direito entre pessoa e pessoa, sem escamotear a construção que prefere aderir a uma tese dualista ou eclética.

Saliente-se, entretanto, que esta controvérsia só se afiguraria estéril, com vista à solução do «thema decidendum», se fosse, meramente, académica, o que não acontece, não sendo, metodologicamente, errado deduzir soluções para questões práticas de um conceito teórico que, aliás, a lei, neste caso, nem sequer consagrou, expressamente.

Com efeito, se o direito de locação for concebido, como no direito romano, de acordo com a máxima latina do «emptio tollit locatum» [a compra suprime o contrato de locação], o locatário será titular de um mero direito de crédito sobre o locador, relativamente à coisa, enquanto que se o mesmo for entendido, em conformidade com o princípio oposto do «emptio non tollit locatum», aquele já será titular de um verdadeiro direito real.

Porém, o núcleo essencial da locação, pese embora o gozo do locatário seja exercido, imediatamente, sobre a coisa, sem necessidade de colaboração, ativa e permanente, do locador, a faculdade concedida ao locatário de utilizar as ações de defesa da posse, previstas pelo artigo 1276º e seguintes, com referência ao artigo 1037º, nº 2, a enumeração, pretensamente, taxativa das causas de caducidade do contrato de locação, constantes do artigo 1051º, todos do CC, a manifestação da sequela[3] e o princípio do «emptio non tollit locatum»[4], não reduz a locação a uma estrutura real, não sendo os apontados atributos suficientes para lhe conferir natureza absoluta ou eficácia «erga omnes»[5].

Esta conceção doutrinária «real» da locação desconsidera as diferenças existentes no ordenamento jurídico, a propósito dos sinais marcantes da locação, nomeadamente, no que se reporta ao conteúdo pessoal e ao carácter obrigacional da mesma, em que uma das partes “se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa” [artigo 1022º, do CC], e de outros institutos afins, em que se revela o conteúdo real destes, com os quais se aproxima, como seja, o usufruto, isto é, o “direito de gozar temporária e plenamente uma cosa ou direito alheio, sem alterar a sua forma ou substância [artigo 1439º, do CC], ou se sobrepõe, parcialmente, como o uso, que, incidindo sobre uma casa, constitui o direito de habitação, que abrange o «usus» e o «fructus», mas, apenas, na medida das necessidades do titular e da sua família[6], nos termos do disposto pelo artigo 1484º, nºs 1 e 2, do CC, e a própria enfiteuse, já extinta, entre nós, também, de natureza real, em que o enfiteuta pode usar e fruir o prédio, como coisa sua, e, perpetuamente.

Para além do princípio da tipicidade dos modos de constituição dos direitos reais, a que alude o artigo 1306º, nº 1, do CC, o diverso critério da repartição do risco, nos contratos que importem a transferência do domínio sobre certa coisa ou que constituam ou transfiram um direito real sobre ela, em que o seu perecimento ou deterioração, por causa não imputável ao alienante, corre por conta do adquirente [artigo 796º, nº 1, do CC], enquanto que, na locação, a perda da coisa determina a caducidade do contrato [artigo 796º, nº 1, do CC] e, por fim, na expropriação, a propósito da indemnização respeitante ao arrendamento, considerado como encargo autónomo, nos termos do preceituado pelo artigo 30º, do Código das Expropriações, tudo são características significativas da falta de sintonia do direito de locação com o estatuto real.

Com efeito, a teoria da locação que concebe este instituto como um direito real, potencia o direito do locatário e o vinculismo arrendatício, em contraciclo histórico-social, e demonstra uma clara violação do princípio da unidade do sistema jurídico na interpretação da lei, consagrado pelo artigo 9º, nº 1, do CC, convertendo a locação numa espécie de enfiteuse dos tempos modernos.

Mas, também, o direito de locação não se reconverte numa mera estrutura creditícia, sem embargo da sua transitoriedade, isto é, da obrigação do locador proporcionar o gozo temporário da coisa, pelo limite máximo abstrato de trinta anos, atento o estipulado pelos artigos 1022º e 1025º, do CC, ou da sua inserção sistemático-formal, no âmbito dos «contratos em especial», ou ainda da sua natureza de negócio consensual, na dicotomia negócio consensual/negócio formal, por contraponto ao seu carácter real «quoad constitutionem», agora na divisão negócio consensual/negócio real, em virtude de a entrega da coisa não ser, nos termos do disposto pelo artigo 1031º, a), do CC, elemento constitutivo do contrato[7].

3. O artigo 1682º-A, do CC, na redação introduzida pela Reforma do DL nº 496/77, de 25 de novembro, reafirmou a natureza pessoal do arrendamento, ao proclamar, no seu nº 1, a), que carece do consentimento de ambos os cônjuges, salvo se entre eles vigorar o regime da separação de bens, “a alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre imóveis próprios ou comuns”.

Com efeito, a este propósito, a forma como o normativo legal, acabado de transcrever, se refere aos negócios constitutivos “de outros direitos pessoais de gozo sobre imóveis próprios ou comuns”, que não o arrendamento, comprova, de algum modo, a ideia de que o direito do locatário se traduz, de harmonia com a doutrina há muito dominante, num direito pessoal de gozo, e não, como, infundadamente, sugere o artigo 1º, do Regime do Arrendamento Urbano[8], num direito real de fruição sobre a coisa arrendada[9].

E este pensamento foi, também, reforçado com a instituição, pelo DL nº 275/93, de 5 de agosto, do direito real de habitação periódica, paralelamente, com o direito obrigacional de habitação turística.

O direito de locação consiste, assim, num poder que assiste ao titular de retirar determinadas utilidades de uma coisa, sem a intermediação de ninguém, isto é, de um direito pessoal de gozo[10], numa imediação como possibilidade de o titular do direito poder aceder, por si só, às utilidades que, segundo a sua destinação económica, a coisa é apta a produzir, que tem subjacente uma relação de crédito que lhe serve de suporte essencial[11], configurando-se, então, como um direito creditório referente a uma coisa, e não como um direito sobre uma coisa[12], não sendo a inerência, como manifestação da sequela, necessariamente, uma característica da absolutidade do direito[13].

E a incidência sobre uma coisa é uma característica comum aos direitos reais e aos direitos pessoais de gozo, mas de que não compartilham os direitos de crédito.

Por outro lado, o artigo 1057º, do CC, consagra a regra da oponibilidade da locação ao adquirente da coisa locada, que a doutrina, referindo-se à venda do direito do senhorio sobre essa coisa, condensou no princípio latino do «emptio non tollit locatum», ao preceituar que “o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo".

Com efeito, a tramitação processual executiva não se harmoniza, totalmente, com a estrutura substantiva da ação, razão pela qual o artigo 1057º, do CC, é inaplicável à venda de coisa locada em processo executivo, porquanto esta hipótese deve antes considerar-se incluída, na regra do artigo 824º, nº 2, do CC, sendo, portanto, inoponíveis ao comprador as relações locativas constituídas, posteriormente, ao registo de qualquer arresto, penhora ou garantia e ainda as constituídas, em data anterior, na medida em que a respetiva eficácia perante terceiros dependa de registo e este não tiver sido efetuado[14].

Com efeito, os direitos de gozo só caducam se não tiverem um registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia[15], com exceção, como já se disse, mas aqui inaplicável, dos direitos que produzam efeitos, em relação a terceiros, independentemente de registo.

4. Revertendo à factualidade que ficou consagrada, importa realçar que o prédio urbano penhorado aos executados foi adquirido, por adjudicação, em 13 de janeiro de 2015, pelo credor hipotecário reclamante “AA, SA”, a favor de quem se encontra já registado, desde 18 de fevereiro de 2015, sendo certo que os executados o haviam dado de arrendamento aos embargantes de terceiro, DD e EE, em 3 de junho de 2010, pelo prazo de trinta anos, isto é, por prazo superior a seis anos, mas sem que se tivesse demonstrado que o mesmo se encontra registado.

A isto acresce que a hipoteca existente sobre o imóvel, a favor do credor reclamante “AA, SA”, foi constituída e registada, na Conservatória do Registo Predial, em data anterior à da celebração do contrato de arrendamento entre o executado e os locatários.

5. O prédio em causa foi, oportunamente, retirado da esfera da disponibilidade dos executados, seus proprietários, que ficaram privados, a partir do momento da realização da penhora, do direito de praticar sobre ele atos capazes de colidirem com a situação jurídica criada pela mesma, cujos efeitos, após o registo, se tornam extensivos a terceiros, como é o caso dos embargantes, seus alegados arrendatários, atento o disposto pelo artigo 755º, do CPC.

A coisa onerada é aquela sobre que incidem, a favor de terceiros, direitos, gravames ou vínculos que a acompanham, em caso de transmissão, e que excedem os limites normais relativos aos bens que a mesma garanta, constituindo ónus, por exemplo, um direito de arrendamento de que o senhorio não possa libertar-se a curto prazo[16].

E a locação, implicando uma desvalorização para o bem a que se reporta, determina a sua oneração, quer sob o ponto de vista económico, quer sob o ponto de vista jurídico.

Ainda que a oneração, traduzida no arrendamento do prédio penhorado, seja válida, a desvalorização desse bem, sujeito agora à fase executiva, atenta a sua finalidade, vai frustrar a posição do credor reclamante.

Na expressão "direitos reais" suscetíveis de caducidade, em virtude da venda executiva, encontram-se, portanto, abrangidos os contratos de arrendamento, quer, naturalmente, os sujeitos a registo, quer mesmo os não registados, pois que, relativamente a estes últimos, não se descortinam razões para diversa forma de tratamento, no que respeita à sua oponibilidade a terceiros e à caducidade.

Efetivamente, dispõe o artigo 2°, n° 1, m), do Código do Registo Predial, que “está sujeito a registo o arrendamento por mais de seis anos…”.

A subsunção da relação locatícia à fórmula legal «demais direitos reais», constante do artigo 824º, nº 2, do CC, impõe-se por recurso à analogia, por se presumir que, relativamente a tal hipótese, procedem as razões justificativas da regulamentação expressa adotada para os direitos reais de gozo, em geral, contemplada no mesmo preceito de lei, atento ainda o estipulado pelo artigo 10º, nºs 1 e 2, do mesmo corpo normativo.

Com efeito, o terceiro, locatário do prédio, pode não ser titular de um direito oponível e prevalente sobre a coisa penhorada na execução, ou seja, de um direito que, nos termos do estipulado pelo artigo 824º, do CC, subsista após a venda executiva.

Os titulares de direitos pessoais de gozo são titulares de direitos de crédito contra o titular do bem penhorado, razão pela qual sendo penhorada a propriedade plena, são afetados pelo âmbito da diligência, uma vez que a transmissão forçada da propriedade perfeita sobre o imóvel, isto é, não comprimida por qualquer «ius in re aliena», é incompatível com a subsistência daqueles direitos, atento o teor do artigo 824º, nº 2, do CC.

Assim sendo, não é de aplicar ao caso de prédio penhorado e com arrendamento não registado, mas sujeito a registo, celebrado em data anterior ao do registo da penhora, e convergindo na mesma pessoa as qualidades de credor reclamante e adquirente em venda judicial, a previsão do artigo 1057º, do CC.

De outro modo, apesar de um manifesto intuito de tutelar o bem «estabilidade da habitação», não pode entender-se que o legislador houvesse querido deixar sem proteção os direitos dos credores, titulares de garantias reais registadas, posteriormente, à celebração da invocada relação locatícia, desde que sujeita a registo e não registada, pelo que os bens adquiridos, em venda judicial, pelo credor com garantia real, transmitir-se-ão para o adquirente, novo proprietário, livres e desembaraçados do ónus locatício, nos termos e para os efeitos do preceituado pelo artigo 824º, nº 2, do CC.

Os atos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados, a que alude o artigo 819º, do CC, mesmo com data anterior ao registo da penhora, só prevalecem sobre esta, estando sujeitos a registo, desde que, devidamente, registados[17].

Contudo, aceitando-se que a locação sujeita a registo, mas não registada antes do registo da penhora, que é a hipótese factual verificada, só é oponível ao adquirente pelo prazo por que poderia ser efetuada sem sujeição a registo, sendo, atualmente, como já se referiu, esse prazo de seis anos, a locação por tempo superior valeria, até seis anos[18], razão pela qual, datando o arrendamento de 3 de junho de 2010, só seria, então, inantingível, até de 2016, deixando, a partir daí, de ser oponível em relação ao adquirente.

Além do mais, "sempre que o legislador estabeleça no campo do direito civil... ou do direito processual uma disciplina diferente conforme se trate de relações jurídicas creditórias ou reais não pode, pelo que concerne à locação, optar-se pela disciplina das obrigações só porque o legislador continua a ver na relação locativa uma relação preponderantemente obrigacional"[19].

De todo o modo, a venda, em ação executiva, de imóvel adquirido pelo credor reclamante, com hipoteca constituída e registada, a seu favor, em data anterior à da celebração do contrato de arrendamento entre o executado e os locatários, determina a caducidade do mesmo, por não poder subsistir contra o direito real de garantia em que traduz a hipoteca, nos termos do preceituado pelo artigo 824º, nº 2, do CC[20].

Como assim, a venda judicial, em processo executivo, de um prédio hipotecado faz caducar o seu arrendamento, não registado, quando celebrado, posteriormente, à constituição e registo da aludida hipoteca, ainda que, em data antecedente à do registo da penhora, em virtude de, quanto a esta última situação, na expressão “direitos reais”, constante do artigo 824º, nº 2, do CC, se incluir, por analogia, a situação do arrendamento[21].

Na verdade, um dos grandes princípios da ordem jurídica nacional é o da analogia, fundado na regra constitucional do tratamento idêntico de casos semelhantes, devendo, por isso, qualquer enumeração ou tipologia legal presumir-se, assim, meramente, exemplificativa[22].

CONCLUSÕES:

I - O direito de locação consiste no poder que assiste ao seu titular de retirar determinadas utilidades de uma coisa, sem a intermediação de ninguém, isto é, num direito pessoal de gozo, numa imediação como possibilidade de o titular do direito poder aceder, por si só, às utilidades que, segundo a sua destinação económica, a coisa é apta a produzir, configurando-se como um direito creditório referente a uma coisa, e não como um direito sobre uma coisa.

II – A oneração que resulta do arrendamento do prédio hipotecado e penhorado ocasiona a desvalorização deste bem e a frustração da posição do credor hipotecário reclamante, em fase executiva.

III - A venda judicial, em processo executivo, de um prédio hipotecado faz caducar o seu arrendamento, não registado, mas sujeito a registo, quando celebrado, posteriormente, à constituição e registo da aludida hipoteca, ainda que, em data antecedente à do registo da penhora, em virtude de, quanto a esta última situação, na expressão “direitos reais”, constante do artigo 824º, nº 2, do CC, se incluir, por analogia, a situação do arrendamento.

 IV - O locatário de prédio sujeito a registo, mas não registado, não é titular de um direito oponível e prevalente sobre a coisa penhorada na execução, com hipoteca constituída e registada, em data anterior à do contrato de locação, a favor do adquirente do bem em venda executiva, ou seja, de um direito que, nos termos do estipulado pelo artigo 824º, subsista após esta, não sendo aplicável ao caso a previsão do artigo 1057º, ambos do CC, transmitindo-se o bem adquirido, em venda judicial, pelo credor com garantia real, seu novo proprietário, livre e desembaraçado, do ónus locatício.

DECISÃO[23]:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça, em conceder a revista e, em consequência, declaram extinto, por caducidade, o contrato de arrendamento celebrado entre o executado e os arrendatários, nos termos do estipulado pelo artigo 824.º, n.º 2, do CC, ordenando-se a entrega efetiva do imóvel em causa, livre de quaisquer pessoas ou bens, ao credor reclamante “AA, SA”, nos termos do disposto pelo artigo 828.º, do CPC.

                                                                *

Custas da revista, a cargo do executado CC.

                                                                 *

Notifique.

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[1] Relator: Helder Roque; 1º Adjunto: Conselheiro Roque Nogueira; 2º Adjunto: Conselheiro Alexandre Reis.
[2] Galvão Telles, Contratos Civis (Projecto Completo de um Título do Futuro Código Civil), BMJ nº 83, 151; Pereira Coelho, Direito Civil, Arrendamento, 1976, 144 e 145.
[3] Mota Pinto, Direitos Reais, 1971, 148 a 161.
[4] Defendendo a natureza real do direito do locatário, entre outros, Meneses Cordeiro, Direitos Reais, II, 1979, 938 e ss.; e Da Natureza do Direito do Locatário, ROA, 40º (1980), nºs 1 e 2, 402 e 403; Mota Pinto, Direitos Reais, 1971, 147 a 166; Oliveira Ascensão, Direito Civil - Reais, 5ª edição, 2012, 536 a 538; e Locação de bens dados de garantia, ROA, 45º (1985), II, 346 a 390.
[5] Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, Almedina, 1997, 149 e 150.
[6] Mota Pinto, Direitos Reais, 1971, 417 e 418.
[7] Defensores da natureza pessoal e obrigacional da locação contam-se, nomeadamente, Vaz Serra, RLJ, Ano 100º, 203; Pires de Lima, RLJ, Ano 89º, 278 a 282; Henrique Mesquita, Direitos Reais, 1967, 47 a 52; Pereira Coelho, Direito Civil, I, Arrendamento, 1976, 15 a 19; Januário Gomes, Constituição da Relação de Arrendamento Urbano, 1980, 123.
[8] Entretanto, revogado pelo artigo 60º, nº 1, do Novo Regime do Arrendamento Urbano (Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro), mas que falava no contrato pelo qual uma das partes “concede à outra”. 
[9] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, IV, 2ª edição, revista e atualizada, 1987, 303.
[10] José Andrade Mesquita, Direitos Pessoais de Gozo, 1999, 133 e 163.
[11] Antunes Varela, RLJ, Ano 124º, 348.
[12] Oliveira Ascensão, Direito Civil - Reais, 5ª edição, 2012, 536 a 538.
[13] José Andrade Mesquita, Direitos Pessoais de Gozo, 1999, 163.
[14] Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, Almedina, 1997, 1410 e nota (18); Oliveira Ascensão, ROA, Ano 45 (Setembro de 1985), 388.
[15] Lopes Cardoso, Manual da Acção Executiva, 3ª edição atualizada, 1964, 623 a 625.
[16] Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, Almedina, 1997, 414, 418, 443 e 446.
[17] STJ, de 11-2-1969, RLJ, Ano 103º, 161, nota (2).
[18] Vaz Serra, Realização Coactiva da Prestação, BMJ, nº 73, 225 e ss.; Luís Miguel Mesquita, Apreensão de Bens em Processo Executivo e Oposição de Terceiros, Dissertação de Mestrado, Almedina, Coimbra, 1998, 177 a 180.
[19] Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, Almedina, 1997, 183; e Pereira Coelho, Arrendamento (Sumários), 21.
[20] Remédio Marques, Curso de Processo Executivo Comum à Face do Código Revisto, Almedina, 2000, 411.
[21] Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, Almedina, 1997, 140 e nota (18); Oliveira Ascensão, ROA, Ano 45 (Setembro de 1985), 388; STJ, de 27-5-2010, Pº 5425/03.7TB5X.S1; STJ, de 15-11-2007, Pº 07B3456, www.dgsi.pt; STJ, de 6-7-2000, CJ (STJ), Ano VIII, T2, 150 e ss.
[22] Oliveira Ascensão, ROA, Ano 45 (Setembro de 1985), 355.
[23] Relator: Helder Roque; 1º Adjunto: Conselheiro Roque Nogueira; 2º Adjunto: Conselheiro Alexandre Reis.