REPARAÇÃO OFICIOSA DA VÍTIMA
FINS DAS PENAS
VÍTIMA
Sumário


1. Na categorização das consequências jurídicas do crime devem distinguir-se as consequências de natureza civil, que geram o dever de indemnizar pela prática de facto ilícito, nos termos das disposições aplicáveis do Código Civil e do artigo 129.º do Código Penal, dependente de pedido do lesado, e as consequências de natureza penal, em que se inclui o arbitramento oficioso de reparação à vítima, como efeito penal da condenação, nos termos do artigo 82.º-A do CPP.
2. A “reparação” da vítima prevista neste preceito, convocando conceitos e elementos da lei civil, requer que tenham sido causados prejuízos que mereçam ser compensados mediante uma soma em dinheiro cujo quantitativo não tem que corresponder ao montante desses prejuízos, como resulta do n.º 3 do art.º 82.º-A do CPP, segundo o qual a quantia arbitrada é levada em conta na indemnização.
3. Participando na realização das finalidades das penas (artigo 40.º do Código Penal), em particular pelo seu efeito socializador, que obriga o autor a enfrentar as consequências do crime e a reconhecer os interesses da vítima, através da compensação desta pelos danos causados, a “reparação” terá de considerar as “particulares exigências de protecção” da vítima do crime, tendo em conta os danos patrimoniais e não patrimoniais que esta sofreu em resultado do concreto facto típico e os critérios de necessidade, adequação e proporcionalidade que presidem à determinação das reacções criminais. É neste quadro, que deve entender-se o estatuído no artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, havendo que distinguir as situações do n.º 1 e do n.º 2 deste preceito, na incompletude das suas normas.
4. A “reparação” prevista no artigo 82.º-A do CPP foi aditada pela Lei n.º 58/98, com carácter de novidade, em coerência com as opções de política criminal estruturantes do sistema, em resposta à necessidade de conferir atenção à posição da vítima, domínio em que se verificaram posteriormente significativos desenvolvimentos que conduziram, no seu estádio mais recente, à atribuição do estatuto de sujeito processual (Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro, que adita o artigo 67.º-A do CPP e aprova o Estatuto da Vítima, transpondo a Directiva 2012/29/UE de 25.10.2012, que estabelece normas relativas aos direitos, ao apoio e à protecção das vítimas da criminalidade e substitui a Decisão-Quadro 2001/220/JAI, que inspirou a Lei n.º 112/2009).
5. É neste contexto, tendo em conta a natureza e o conteúdo da “reparação” prevista no artigo 82.º-A, bem como a definição de “vítima” constante da alínea a) do artigo 2.º da Lei n.º 112/2009, que há que definir o sentido da remissão operada pelo artigo 21.º deste diploma, segundo o qual “há sempre lugar à aplicação o artigo 82.º-A do Código de Processo Penal”.
6. O artigo 82.º-A do CPP obriga, pela sua imperatividade normativa, a que o tribunal, nessas circunstâncias, averigúe, sempre que seja caso disso, acerca das “exigências de protecção”.
7. Tendo em conta os elementos de interpretação a considerar, o sentido útil da remissão do artigo 21.º da Lei n.º 112/2009 impõe que o tribunal condene sempre na “reparação pelos prejuízos causados”, como efeito penal da condenação (da aplicação da pena) pela prática de crime de violência doméstica da previsão do artigo 152.º do Código Penal. Isto desde que, verificados os respectivos pressupostos formais – não dedução de pedido de indemnização e não oposição à reparação –, a pessoa ofendida pelo crime tenha sofrido “um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou uma perda material, directamente causada por acção ou omissão” que constitua esse crime, ou seja, desde que essa pessoa seja uma “vítima” do crime na acepção da alínea a) do artigo 2.º da Lei n.º 112/2009.

Texto Integral


ACÓRDÃO

Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

I.  Relatório

1. AA, arguido nestes autos, notificado do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em recurso do Ministério Público da sentença da Secção Criminal da Instância Local (J3) da comarca de Lisboa, que o condenou na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução, pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, al. d), e 2 do Código Penal, não se conformando com aquela decisão na parte em que o condena a pagar a quantia de 45.000 (quarenta e cinco mil) euros à ofendida, “a título de indemnização pelos danos não patrimoniais”, dela vem interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

Delimita expressamente o objecto do recurso nos seguintes termos: “O presente recurso tem, exclusivamente, por objecto a impugnação do trecho decisório do douto aresto proferido pela 9ª Secção, do Tribunal da Relação de Lisboa em que o Arguido, aqui Recorrente, é condenado «(…) a pagar à ofendida BB a quantia de € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais a esta causados, o que se arbitra visto o disposto na conjugação dos artigos 21.º da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, 82º-A do Código de Processo Penal, 129.º do Código Penal e 483.º, 494.º e 496.º n.ºs 1 e 3, do Código Civil (…)”.

2. Para além de pugnar pelo agravamento da pena, pretendia o Ministério Público, pelo recurso que interpôs, que o Tribunal da Relação declarasse a nulidade da sentença proferida em 1.ª instância “no segmento que não condenou o arguido na indemnização prevista no artigo 21.º da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro” (lei que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas).

Quanto a esta questão, concluía a motivação de recurso dizendo (transcrição):

«18. No caso especial dos crimes de violência doméstica, da conjugação do teor dos artigos 21º, nºs 1 e 2 da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro, com o artigo 82º-A, nº 1 do Código de Processo Penal, em caso de condenação, impõe-se ao tribunal condenar o agente do crime no pagamento à vítima de uma indemnização arbitrada a título de reparação dos prejuízos materiais e/ou morais sofridos, independentemente de particulares exigências de protecção da vítima e, precisamente, porque há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82º-A do Código de Processo Penal, salvo oposição expressa da vítima.

19.  A Mmª juiz a quo condenou o arguido pela prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº1, al. d) e nº 2 do Código Penal.

20.  A ofendida não deduziu pedido de indemnização civil.

21.  Do processo não consta declaração da ofendida, escrita ou oral, opondo-se ao arbitramento de indemnização decorrente da prática do crime pelo qual o arguido foi condenado.

22.  Contudo, a Mmª Juiz não condenou o arguido no pagamento à vítima da indemnização a que alude a Lei, pelo que verifica-se a violação da norma estabelecida no artigo 21º da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro, como impõe a norma em apreço e, fê-lo, alegando que: “Atentos os factos provados designadamente a situação económica do arguido, temos que concluir pela improcedência de peticionado e, consequente, não se condena no pagamento de indemnização”.

23.  Ora, tendo ocorrido a condenação do arguido pela prática do crime de violência doméstica e não tendo havido oposição da vítima, estava o tribunal a quo obrigado, por força do disposto no artigo 21º da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro, a fixar uma indemnização a pagar pelo arguido à ofendida BB e isto, independentemente da situação económica do arguido, que apenas releva para efeitos da quantificação da indemnização em causa, não podendo ser fundamento para o não arbitramento da indemnização à vítima, atenta a imposição legal em causa».

3. Apresenta o arguido, agora recorrente, a devida motivação de recurso, de que extrai as seguintes conclusões (transcrição):

«A. O presente recurso tem, exclusivamente, por objecto a impugnação do trecho decisório do douto aresto proferido pela 9ª Secção, do Tribunal da Relação de Lisboa em que o Arguido, aqui Recorrente, é condenado «(…) a pagar à ofendida BB a quantia de € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais a esta causados, o que se arbitra visto o disposto na conjugação dos artigos 21.º da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, 82º-A do Código de Processo Penal, 129.º do Código Penal e 483.º, 494.º e 496.º n.ºs 1 e 3, do Código Civil (…);

B.    A decisão firmada, nesta parte, pelo douto Tribunal da Relação, ao arbitrar um quantum indemnizatório totalmente desadequado, injusto e desproporcional, viola o disposto nos artigos 483.º, 494.º e 496.º n.ºs 1 e 3 do Código Civil;

C.    O Arguido, aqui Recorrente, discorda do montante fixado a título de indemnização por danos não patrimoniais que foi condenado a pagar à ofendida, sua mãe;

D.   Resulta do artigo 496º do Código Civil que somente são atendíveis, para efeitos indemnizatórios, os danos patrimoniais (aqueles que são insusceptíveis de expressão pecuniária) que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito;

E.   Concorda-se (não faria qualquer sentido não o fazer) com o Tribunal da Relação de Lisboa quando aquele sustenta na decisão colocada em crise que a quantificação desses danos patrimoniais se faz por recurso à equidade e tendo em atenção o preceituado nos artigos 483.º, 494.º e 496.º n.ºs 1 e 3 do Código Civil;

F.    Contudo, somos em crer que o Tribunal da Relação de Lisboa, salvo o devido respeito que é muito, não observou tais regras aquando da fixação do montante de indemnização em que condenou o Arguido, aqui Recorrente, a pagar à ofendida, sua mãe;

G.   Sublinhe-se que equidade não significa arbitrariedade;

H.  Na determinação do valor da indemnização por danos não patrimoniais causados, têm de ser chamadas à colação todas as regras da “boa prudência”, da “justa medida” e da “criteriosa ponderação de realidades de vida”;

I.    Significa isto que na apreciação que o julgador fará do que é equitativo e justo em cada caso, jamais poderá perder de vista as especiais circunstâncias do caso, a proporcionalidade da indemnização à gravidade do dano, a gravidade do dano, a culpa do agente, a situação económica quer do agente, quer do lesado/ofendido, etc…;

J.     Como é sabido a indemnização a título de danos não patrimoniais causados não serve, nem pode vislumbrar ser uma segunda pena (como aparenta aqui suceder), nem visa reparar os danos sofridos pelo lesado/ofendido;

K.   Mas, sim, tentar suavizar e neutralizá-los;

L.   No caso sub judice, ainda que os danos não patrimoniais sejam tomados como relevantes e carentes de ser minimizados com o pagamento de uma indemnização, o que é certo é que uma indemnização, no valor de € 45.000,00, como a arbitrada pelo Tribunal da Relação de Lisboa é absurda;

M.   Só se poderá interpretar tal decisão como se tratando de um equívoco do Tribunal recorrido;

N.   O Tribunal da Relação de Lisboa, com todo o respeito, não atendeu a um dos critérios a presidir na fixação do quantum indemnizatório: a situação económica do Arguido, ora Recorrente;

O.   Como o próprio Tribunal recorrido reconhece, a situação social e económica do Arguido, aqui Recorrente é debilitada: está desempregado, dependendo da assistência da mãe para subsistir, não lhe sendo conhecidos bens de qualquer natureza, bem como qualquer vencimento, como resulta dos autos;

P.    Mostra-se manifestamente excessivo, inadequado e ilegal que o Tribunal recorrido se socorra de anseios e suposições para sustentar uma condenação do mesmo numa indemnização de tal grandeza de valor;

Q.   Sem conceder, sempre se diga que mesmo que o Arguido, ora Recorrente, consiga arranjar emprego com brevidade (o que deseja!) tendo em conta as suas habilitações literárias, apenas conseguirá arranjar empregos indiferenciados cujos salários se situarão, no máximo, no valor do ordenado mínimo, isto é, €557,00, o que significa que para poder pagar a indemnização em que foi condenado o Arguido, aqui Recorrente, terá de auferir cerca de 81 salários, no valor de €557,00, que é mesmo que dizer, que demorará perto de 7 anos a liquidar tal quantia;

R.   A ofendida, mãe do Arguido, aqui Recorrente não é economicamente dependente deste, verificando-se, na verdade, o seu contrário;

S.    O Arguido, ora Recorrente, até ser preso preventivamente residia com a ofendida, sua mãe – com quem está proibido de ter contactos – ou em comunidades terapêuticas financiadas pelo Sistema Nacional de Saúde, terá de passar a pagar casa, água, luz, supermercado, vestuário, farmácia e tratamento médico adequado, numa cidade com o custo de vida como a de Lisboa, na melhor das hipóteses e com grande esforço, poderá pagar mensalmente 1/3 desse valor ao Tribunal, o que significa que demorará perto de 273 meses a pagar a indemnização, ou seja, 22 anos;

T.    Os tribunais nunca permitirão que o Arguido, aqui Recorrente, demore tanto tempo a liquidar tal pagamento à ofendida, sua mãe,

U.   Pois que, tal condenação redondará, in fine, numa condenação simbólica;

V.   Pois que o destino do Arguido/Recorrente se não conseguir pagar tal montante é a prisão!,

W.   Estamos diante de uma dupla condenação do Arguido/Recorrente pelo mesmo crime, o que é expressamente proibido pela nossa Lei Fundamental;

X.   O Arguido, ora Recorrente, é primário, sem quaisquer antecedentes criminais;

Y.   O Tribunal a quo também não relevou as especiais circunstâncias do caso;

Z.    Não podemos perder de vista que o Arguido, ora Recorrente, como ficou provado, padece de perturbações de humor graves, com surtos psicóticos durante os quais fica sem qualquer autocrítica para a sua patologia e com alterações de comportamentos e que a própria ofendida, sua mãe, padece, também ela, de problemas do foro mental/psicológico, sendo acompanhada nos serviços de Psiquiatria do Hospital de ...;

AA.     Mantendo, o Arguido, ora Recorrente, e a ofendida, sua mãe, uma relação conflituosa e de extremos, pautada ora por momentos de união, ora por períodos em que ambos se alteravam e discutiam, o que conduzia de seguida a situações de enorme conflitos, “Kit” de pormenores que rodeiam e orlam os factos dados como provados nos autos;

BB. Aliás, premissa da execução da pena de prisão imposta ao Arguido, aqui Recorrente é a obrigação de sujeição daquele a tratamento médico em instituição adequada, o que, sempre se acrescente, importará custos que aquele terá de suportar e, provavelmente, períodos de internamento em que estará impedido de exercer uma profissão;

CC. Por outro lado, não se verificou um elevado e crescente grau de violência do Arguido, aqui Recorrente, nas ocorrências dadas como provadas;

DD.     É residual o perigo de tais condutas se voltarem a repetir;

EE. Na generalidade das condenações por crimes de ofensa à integridade física ou de ameaça ou mesmo de injúrias, ou até em concurso real destes crimes, a indemnização situa-se muito abaixo destes valores;

FF.  Conclui-se, pois que, o montante indemnizatório a título de danos não patrimoniais fixado, tendo em atenção os factos provados, designadamente atendendo às dores, às agressões, às humilhações e às sequelas delas resultantes para a referida ofendida, bem como as situações especiais do caso e a situação social, profissional e económica do Arguido, aqui Recorrente, é claramente excessivo, ultrapassando, em muito, o “quantum” indemnizatório devido, em tese;

GG.    Em consequência, a decisão recorrida deverá ser alterada impondo-se a redução do valor da indemnização atribuída e que o Arguido, ora Recorrente foi condenando a pagar à ofendida, sua mãe, a título de danos não patrimoniais, afigurando-se-nos justa a fixação de uma indemnização a esse título que não ultrapasse os €5.000,00».

4. Cumprido o disposto no artigo 413.º, n.º 1, do CPP, não houve resposta ao recurso.

5. Recebidos, foram os autos, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 416.º, n.º 1, do CPP, com vista ao Ministério Público, não tendo sido emitido parecer, por o recurso dizer respeito à decisão sobre “indemnização civil”.

6. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência, o recurso é julgado em conferência – artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP.

Nada obsta ao conhecimento do recurso, o qual é admissível, por dizer exclusivamente respeito a parte da sentença relativa à indemnização civil e não se lhe opor motivo de não admissão, relativo aos valores da indemnização, da alçada do tribunal recorrido e da sucumbência, em conformidade com o disposto no n.º 2 do artigo 400.º do CPP.

O recurso visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, da competência deste tribunal (artigo 432.º, n.º 1, al. b), e 434.º do CPP).

Cumpre decidir.

II. Fundamentação

7. Estão provados os seguintes factos (transcrição):

«– O arguido é filho de BB, nascida a ... de 1954;

– O arguido residiu na companhia da mãe na habitação sita na Rua ...;

– Desde o óbito do pai, há cerca de vinte e três anos, que o arguido começou a ficar mais agressivo e revoltado;

– O arguido padece de perturbações de humor graves, com surtos psicóticos durante os quais fica sem qualquer autocrítica para a sua patologia e com alterações de comportamento;

– Há cerca de vinte e um anos, o arguido começou a consumir produto estupefaciente, nomeadamente canábis, heroína e cocaína;

– Desde há cerca de quinze anos, cerca de uma vez por mês, o arguido, no interior da habitação acima referida, desfere chapadas na face da mãe e empurra-a contra os móveis existentes na residência;

– Com a mesma periodicidade, grita-lhe aos ouvidos, puxa-lhe os cabelos, agarra-lhe a cara e desfere-lhe socos na cabeça, cara e membros;

– O arguido fica mais agressivo sempre que é contrariado, apelidando a mãe de “caralho, puta, vaca, lésbica”;

– No dia 6 de Abril de 2007, pelas 19 horas e 45 minutos, após entrar na residência acima identificada, o arguido dirigiu-se a BB e desferiu-lhe um número não concretamente apurado de murros e pontapés no corpo e face e apertou-lhe o pescoço;

– Após, de modo não apurado, queimou-lhe a face;

– Em simultâneo o arguido afirmava que queria que a mãe morresse, tentando fazer-lhe crer que a atirava pela janela;

– Em consequência destes factos, BB sofreu equimose violácea peri-orbitária à esquerda;

– Tal lesão demandou-lhe um período de dez dias de doença, todos com afectação da capacidade para o trabalho;

– Em data não concretamente apurada, mas situada em data anterior ao ano de 2010, o arguido deslocou-se, por mais de uma vez, ao então Instituto ..., sito na Rua ..., local de trabalho da sua mãe, e na presença de colegas de trabalho, apelidou-a de “puta, lésbica”, afirmando que a culpa era toda dela e que não prestava;

– Em consequência destes factos, BB sentiu-se envergonhada;

– O arguido ingressou na comunidade terapêutica de tratamento de toxicodependentes da Associação ... a 17 de Março de 2015 ali permanecendo até 13 de Março de 2016;

– Enquanto esteve nestas comunidades deslocava-se a casa uma vez por mês;

– No fim-de-semana de 5 e 6 de Março de 2016, por considerar que o arguido apresentava um comportamento agressivo, BB perguntou-lhe se voltara a consumir;

– Aquele afirmou-lhe “estás doida ou quê”, gritando consigo;

– No dia 13 de Março de 2016, o arguido abandonou a comunidade terapêutica de tratamento de toxicodependentes, na companhia do irmão CC, visto que desencadeou, na sequência da última fase do processo de tratamento, um excesso de angústia que ultrapassou a sua capacidade de continência psíquica, acabando por se desorganizar de forma incontrolável – fls. 223 cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido;

– O arguido chegou à residência supra identificada na companhia do irmão CC e estava alterado, descompensado, com um olhar agressivo;

– Dirigiu-se, de imediato, à sua mãe afirmando aos gritos “onde estão as chaves do carro, a pulseira e o anel de ouro”;

– Assustada, BB informou os locais e aquele agarrou nos objectos e saiu;

– No dia 14 de Março de 2016, pela manhã, o arguido regressou a casa e não dirigiu palavra à mãe;

– Após, tomou banho e saiu;

– Depois do almoço, entrou novamente em casa, com um olhar agressivo, dirigiu-se à mãe e gritou “dá-me o ouro todo que tu tens”;

– Ao ver o telemóvel ao lado da mãe, disse-lhe para lho dar a fim de não falar com ninguém;

– Após, desferiu-lhe uma forte pancada na cabeça com o telemóvel e afirmou “agora morre para aí, estás por tua conta”;

– BB sentiu profunda dor e ficou cheia de sangue;

– Apesar de ter visto a mãe a sangrar da cabeça, o arguido nada fez para a socorrer;

– Arrancou os fios de ligação do telefone fixo e saiu de casa;

– Apesar das dores, BB logrou pedir ajuda pela janela, tendo um vizinho chamado o 112;

– Em consequência destes factos, BB sofreu ferimento suturado na região interparietal;

– Tal lesão demandou-lhe doze dias de doença, dez dos quais com incapacidade para o trabalho;

– Em face dos factos descritos, por recear nova agressão, BB viu-se obrigada a sair da sua residência, no dia 14 de Março de 2016;

– No dia 14 de Março de 2016, em hora não apurada, o arguido deslocou-se à ourivesaria “..., Lda.”, sita na ..., e vendeu pela quantia de €320,00 (trezentos e vinte euros) um anel de mesa, em ouro, com o peso total de 13,9 gramas;

- No dia 17 de Março de 2016, em hora não apurada, o arguido deslocou-se à ourivesaria “..., Lda.”, sita na ..., em Lisboa, e vendeu pela quantia de €830,00 (oitocentos e trinta euros) uma pulseira barbela, em ouro, com o peso total de 35,30 gramas;

- No dia 28 de Março de 2016, em hora não apurada, o arguido deslocou-se à ourivesaria “..., Lda.”, sita na ..., em Lisboa, e vendeu:

a)  um fio de malha barbela, em ouro, com o peso total de 11,6 gramas;

b)  pela quantia de €29,73 (vinte e nove euros e setenta e três cêntimos) uma medalha de uma santa, com peso total de 1,3 gramas;

- No dia 4 de Abril de 2016, em hora não apurada, o arguido deslocou-se à ourivesaria “..., Lda.”, sita na ..., em Lisboa, e vendeu pela quantia de €95,00 (noventa e cinco euros) um fio de malha barbela, em ouro, com o peso total de 3,8 gramas e uma cruz em ouro, com o peso total de 0,6 gramas;

- No dia 7 de Abril de 2016, em hora não apurada, o arguido deslocou-se à ourivesaria “..., Lda.”, sita na ..., em Lisboa, e vendeu pela quantia de €10,00 (dez euros) uma argola, em ouro, com o peso total de 0,5 gramas;

– Os referidos objectos eram jóias de família que BB ofereceu ao arguido ao longo dos anos a pedido deste;

– O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, com o propósito, concretizado, de molestar BB, sua mãe, no seu corpo e na sua saúde, causando-lhe dores;

– Agiu, ainda, o arguido do mesmo modo, pois sabia que as expressões que dirigia à sua mãe a ofendiam na sua honra e consideração, mas ainda assim não se coibiu de a diminuir enquanto pessoa e prejudicar o seu bem-estar;

– Da mesma forma actuou o arguido pois sabia que com as expressões que dirigia à sua mãe lhe provocava medo e inquietação e actuou querendo isso mesmo;

– Visava o arguido criar permanente medo, perturbação e um clima de terror nocivo à estabilidade emocional daquela, sabendo que é pessoa doente e de idade avançada e que com a sua actuação agravava o seu estado de saúde;

– O arguido actuou dentro da residência comum;

– Bem sabia o arguido que as suas condutas eram proibidas e puníveis pela Lei Penal;

- Aos 8/9 anos, o irmão do arguido (porque não queria viver com a progenitora) passou a residir permanentemente com os avós paternos;

- Pelo menos entre 12/2004 e 08/2005, 04/2010 e 05/2010, 10/2014 e entre 10/2015 e 03/2016, o arguido esteve internado em tratamento em comunidades terapêuticas;

- Após ter alta clínica de uma dessas comunidades, nomeadamente da “Associação ...”, o arguido passou a residir num denominado “apartamento terapêutico”, que partilhava com duas outras pessoas;

- O arguido deixou esse “apartamento terapêutico” na altura que foi residir, na zona de ..., com uma namorada, de seu nome ...., para casa da mesma;

- Na pendência dessa relação amorosa (que durou entre 2012 e 12/2013) quer o arguido quer a sua namorada mantêm uma relação próxima com a mãe do arguido;

- O arguido e a mãe, não obstante os naturais sentimentos que os unem, sempre mantiveram uma relação conflituosa e de extremos, pautada ora por momentos de união, ora por períodos em que ambos se alteravam e discutiam, o que conduzia de seguida a situações de enormes conflitos;

- A mãe padece de problemas do foro mental/psicológico, sendo acompanhada nos serviços de Psiquiatria do Hospital ...;

- O arguido, pelo menos desde o ano de 2001, que é acompanhado no CAT – Taipas pelo Dr. ...;

- A intenção do arguido com a venda dos objectos supra identificados era obter liquidez financeira que lhe permitisse pagar o arranjo do seu carro, um “Peugeot 106” que tinha a junta da cabeça queimada e cujo arranjo orçamentado em cerca de €450,00 (quatrocentos e cinquenta euros);

– O arguido é solteiro e não tem filhos;

– O arguido é auxiliar de acção médica mas desde Dezembro de 2013 que não trabalha e não recebe subsídio de desemprego nem nenhum outro subsídio;

– O arguido tem o 9º ano de escolaridade;

– No relatório social de fls. 427 a 430 dos autos consta que:

“(…) Da avaliação efetuada, destaca-se um processo de socialização condicionado pela exposição a vários modelos educativos, que não facilitaram a AA, a aquisição de algumas competências mais adaptativas, designadamente ao nível do desenvolvimento pessoal, social e familiar, as quais lhe permitiriam vir a integrar de forma mais ajustada, as diferentes experiências a que esteve sujeito durante a infância e juventude.

O seu percurso revela precocemente um padrão de comportamento desajustado e agravado com consumos de drogas, com repercussões ao nível psíquico e emocional, que se reflectiu em condutas descompensadas, agressivas e perturbadoras da ordem social, e nas quais a progenitora figurava como principal objecto de investimento da sua agressividade.

Trata-se em suma de um arguido cujos contactos com a justiça estão essencialmente ligados à sua instabilidade psíquica, potenciada pela manutenção de consumos de drogas e que carece de intervenção especializada e continuada quer no âmbito da psiquiatria como da toxicodependência, preferentemente controlada por instâncias judiciais.

O seu processo de reinserção ficará condicionado a esta intervenção, ao reconhecimento das suas fragilidades, motivações e problemáticas emocionais, desenvolvimento de capacidades reflexivas e consequenciais, bem como a uma revalidação dos seus valores ético-morais, com vista a um estilo de vida futuro social e profissional integrado, conforme ao direito. (…)”;

– O arguido não tem antecedentes criminais.»

8. O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigo 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do tribunal ad quem quanto a vícios da decisão recorrida e a nulidades não sanadas, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2 e 3, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995).

A única questão que o recorrente suscita diz respeito ao montante da quantia que lhe é atribuída a título de indemnização, que considera excessiva e não justificada.

9. O acórdão recorrido apreciou e decidiu a questão da “indemnização” nos seguintes termos:

«3.3. Atentemos, finalmente, na questão da indemnização oficiosa à vítima.

Antes de mais, dir-se-á que, contrariamente ao que alegou o arguido na sua resposta ao recurso, não padeceu a decisão recorrida de qualquer omissão de pronúncia nesta matéria, pois na sentença, a este propósito, como vimos, consignou-se que:

“Nos termos do disposto no artigo 129º do Código Penal (em conjugação com o disposto nos artigos 483º, nº1, 496º, nº1 e 562º e seguintes, todos do Código Civil): “a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil”.

A reparação civil arbitrada em processo penal não é um efeito da condenação, o supra mencionado artigo apenas remete para a lei civil.

Para além das sanções penais que venha a sofrer, o agente de um delito encontra-se obrigado a reparar o dano do ofendido por via da restituição do produto do crime ou da equivalente indemnização no plano jurídico-civilístico.

A obrigação de indemnizar resultante da prática de factos ilícitos pressupõe a observância dos requisitos constantes do artigo 483º, nº1 do Código Civil.

Preceitua o artigo 483.º, n.º 1 do Código Civil que:

“Aquele que, com dolo ou mera culpa violar ilicitamente os direitos de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.

Importa, assim, apurar a existência de um comportamento do agente dominável pela vontade, ilícito enquanto violador do direito de outrem, culposo no sentido de o agente optar livremente por conduta diversa daquela exigível pela ordem jurídica, a verificação de um dano e o nexo causal entre a conduta do agente e os danos que lhe sobrevieram.

Só e apenas quando preenchidos cumulativamente os pressupostos acima indicados incorrerá o agente em responsabilidade civil por factos ilícitos e, eventualmente, no pagamento da respectiva indemnização.

Em relação aos danos não patrimoniais, ou seja, prejuízos que, insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização – vide Antunes Varela in “Das Obrigações em Geral”, I, 10.ª, 2000, página 601.

Tal situação encontra-se salvaguardada pela lei civil uma vez que o artigo 496º, nº 1 do Código Civil dispõe que:

“na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.

Foi peticionada a condenação do arguido no pagamento de uma indemnização à ofendida nos termos dos artigos 21º, nº1 e 2 da Lei nº112/2009, de 16.09, e 82º-A do Código de Processo Penal.

Atentos os factos provados designadamente a situação económica do arguido, temos que concluir pela improcedência do peticionado e, consequentemente, não se condena no pagamento de indemnização." (fim de transcrição).

Concorda este tribunal ad quem com tudo o acima transcrito da decisão recorrida, com exceção do último parágrafo, pois se a situação económica do arguido AA é um dos critérios para a fixação do quantum indemnizatório, a ausência de meios económicos por parte deste para pagar uma eventual indemnização não o exclui de condenação nessa parte, até porque a situação de desemprego pode entretanto cessar – será mesmo desejável que comece a trabalhar e tudo faça o arguido nesse sentido – bem como pode a qualquer momento da sua vida futura vir a ter um património e rendimentos que lhe permitam o pagamento da indemnização que ora fosse arbitrada à ofendida.

Com efeito, a Lei nº 112/2009, de 16 de setembro que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas, dispõe no seu artigo 21º que:

“1 – À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável.

2 - Para efeitos da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser”.

E é a seguinte a redacção do artigo 82º-A do Código de Processo Penal que versa sobre a reparação da vítima em casos especiais:

“1. Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72º e 77º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de proteção da vítima o imponham.

2. No caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório.

3. A quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em acção que venha a conhecer de pedido civil de indemnização.”

Refere Paulo Pinto de Albuquerque na anotação ao artigo 82º-A do seu Comentário ao Código de Processo Penal (4ª edição) que “O direito à indemnização previsto no artigo 21º, nº 2, da Lei 112/2009, de 16.9, prejudica as regras do artigo 82º-A do C.P.P., uma vez que consagra uma indemnização oficiosa “obrigatória”, mesmo no caso de não dedução do pedido de indemnização por culpa, negligência ou desinteresse da vítima ou de não existência das “particulares” exigências de protecção da vítima que imponham a reparação oficiosa. As únicas condições da reparação oficiosa da vítima são a prova de danos causados à vítima, a condenação do arguido pelo crime imputado e a não oposição da vítima à reparação”. (fim de transcrição).

Defende este autor e bem que o regime especial prevalece sobre o regime geral, o que de resto é também defendido pela jurisprudência.

Vejam-se, na base de dados da DGSI, a título de exemplo:

- o Acórdão de 16-9-2015, proferido no processo 67/14.4 S2LSB.L1-3, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu que “por crime de violência doméstica há sempre que arbitrar uma indemnização à vítima, excepto se esta expressamente se tiver oposto a tal. Por regra para que possa haver lugar a determinação de uma indemnização é necessário que oportunamente o/a lesado/a tenha formulado pedido cível. Não obstante, essa regra comporta excepções. Desde logo, a prevista no nº 1 do artº 82-A do C.P. Penal, de carácter genérico, potencialmente aplicável às vítimas de qualquer tipo de crime, cujo requisito de aplicabilidade é a existência de particulares exigências de protecção da vítima. E a constante do artº 21 da Lei nº 112/09, que impõe aquele arbitramento, excepto quando a vítima do crime expressamente a tal se opuser”;

- o Acórdão de 22-9-2015, proferido no processo 671/14.0PBFAR.E1, a Relação de Évora decidiu que “da conjugação dos arts. 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16.09, e 82.º-A do Código de Processo Penal, decorre actualmente, não existindo pedido civil, a obrigatoriedade de fixação de indemnização em caso de condenação por crime de violência doméstica, desde que a vítima a tal se não oponha”;

- ou ainda o Acórdão de 7-3-2016, proferido no processo 697/14.4GAVNF.G1, o Tribunal da Relação de Guimarães decidiu que “no caso da prática de crime de violência doméstica, a lei impõe o arbitramento de indemnização à vítima, presumindo a existência de particulares exigências da sua protecção, só assim não sendo quando a ele se oponha a vítima expressamente”.

In casu, a Mmª Juiz a quo condenou o arguido AA pela prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº1, al. d) e nº 2 do Código Penal.

A ofendida não deduziu pedido de indemnização civil.

Do processo não consta declaração da ofendida, escrita ou oral, opondo-se ao arbitramento de indemnização decorrente da prática do crime pelo qual o arguido foi condenado e, a nosso ver, particulares exigências de proteção da vítima o impõe no caso concreto.

Contudo, a Mmª Juíza não condenou o arguido no pagamento à vítima da indemnização a que alude a Lei, pelo que, salvo melhor opinião, verifica-se a violação da norma estabelecida no artigo 21.º da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro e, fê-lo, alegando que “Atentos os factos provados designadamente a situação económica do arguido, temos que concluir pela improcedência de peticionado e, consequente, não se condena no pagamento de indemnização”.

Ora, tendo ocorrido a condenação do arguido AA pela prática do crime de violência doméstica e não tendo havido oposição da vítima, estava o tribunal a quo obrigado, por força do disposto no artigo 21º da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, a fixar uma indemnização a pagar pelo arguido à ofendida BB e isto, independentemente da situação económica do arguido, pois que, tal como logo ab initio consignámos, apenas releva para efeitos da quantificação da indemnização em causa, não podendo ser fundamento para o não arbitramento da indemnização à vítima, atenta a imposição legal em causa.

De acordo com o disposto no art. 129.º do CP a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.

O art. 483.º do CC preceitua que “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”

Recorde-se que foi dado como provado que: [transcrição dos factos provados especificados supra].

Ou seja, resulta dos factos provados que em consequência da conduta do arguido a ofendida, pessoa doente e de idade avançada, foi reiteradamente, ao longo de quinze anos, molestada física e psiquicamente, infligindo-lhe maus tratos físicos e psíquicos, humilhando-a, ofendendo-a na sua honra e considerações pessoais, condicionando a sua vida, liberdade e bem-estar psicossocial, ofendendo-lhe a respetiva dignidade humana, criando e potenciando na ofendida sentimentos de vergonha, humilhação, diminuição e frustração, fazendo-o quer no interior da residência onde ambos viveram como filho e mãe, quer no local de trabalho desta, causando-lhe angústia e sério temor, pois a mesma andava seguramente em constante sobressalto.

As diversas agressões cometidas pelo arguido, foram, quer no tempo quer no modo, inquestionavelmente, causa adequada de sofrimento físico e psíquico durante longo período, afetando inclusive a capacidade de trabalho da ofendida. O arguido agiu sempre com a intenção de maltratar física e psicologicamente a assistente, tendo-a agredido, insultado ameaçado e intimidado para melhor assegurar o êxito das suas intenções atingindo-a na sua integridade física, na sua honra e dignidade.

Os danos não patrimoniais sofridos, pela sua gravidade, justificam uma compensação, com recurso à equidade e tendo em atenção o preceituado nos art.s 483.º, 494.º e 496.º n.ºs 1 e 3, do Código Civil.

É evidente que quando se recorre a critérios de equidade, como é o caso, há sempre uma certa margem de discricionariedade e subjetividade.

No entanto, não poderá esquecer-se que a indemnização reveste, no caso de danos não patrimoniais, uma natureza acentuadamente mista: por um lado visa reparar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente" [Cf. A. Varela, Das Obrigações em geral, vol. I, 7.ª ed., p. 602].

Na fixação do "quantum" indemnizatório manda a nossa lei atender, através da remissão para o disposto no art. 494.º, ao grau de culpa do lesante, situação económica de lesante e lesado, flutuações do valor da moeda, etc., devendo ser proporcionada à gravidade do dano e tomando em conta, na sua fixação, "todas as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas, da criteriosa ponderação das realidades da vida" (vide A. Varela e Pires de Lima, CC anotado, 4º Ed., pág. 501).

Foi dado também como provado que a mãe do arguido padece de problemas do foro mental/psicológico, sendo acompanhada nos serviços de Psiquiatria do Hospital de ... e que o arguido, pelo menos desde o ano de 2001, que é acompanhado no CAT – Taipas pelo ..., bem como que o arguido, que tem o 9º ano de escolaridade, é solteiro e não tem filhos, sendo profissionalmente auxiliar de acção médica, embora, desde Dezembro de 2013, não trabalhe e nem receba subsídio de desemprego nem nenhum outro subsídio.

Na determinação concreta do montante indemnizatório há que ter em conta, finalmente, por razões de igualdade e harmonia, e como forma de ultrapassar algum miserabilismo, a evolução dos quantitativos praticados pela nossa jurisprudência, nomeadamente a respeito do dano morte, considerado o dano não patrimonial máximo e que, portanto, não devem ser ultrapassados.

Afigura-se-nos in casu equitativo – porquanto não só ajustado, como plenamente justificado, à situação dos autos e tendo em consideração todos os critérios que presidem na fixação de tais danos e seu ressarcimento – fixar em € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros), a indemnização devida pelo arguido à sua mãe, a título de danos não patrimoniais.

Quanto a danos patrimoniais não tendo resultado provada a existência de tais danos para a vítima face à atuação do arguido, nessa parte nada se arbitra.

Uma última nota. À fixação da indemnização, deve corresponder, previamente, por respeito às garantias de defesa, a possibilidade do condenado se pronunciar quanto à mesma. Se, não obstante não existir menção, na acta da audiência de julgamento, a notificação ao arguido para se pronunciar nesse âmbito, o que sucedeu in casu, mas o assunto foi trazido à audiência, como resulta da 1ª parte do penúltimo ficheiro áudio da gravação digital daquela audiência de julgamento disponível na aplicação informática em uso no tribunal a quo (com cópia no CD em envelope agrafado na contracapa), assim se proporcionando ao arguido que, nessa sede, se pronunciasse, como o fez e igualmente se alcança do teor da 2ª parte do mesmo ficheiro áudio, tal afigura-se suficiente para garantir que, para tanto, tivesse ficado alertado, sem se poder dizer que, para si, a fixação viesse a constituir surpresa com que não contasse. Não se mostra, por isso, violado o contraditório - não é necessário que exista alguma manifestação anteriormente à realização do julgamento, o arbitramento é oficioso e apenas efetuado em caso de condenação - se o assunto é trazido à discussão em audiência, perante a dinâmica que aí é propiciada, não olvidando que o arguido esteve presente e sempre defendido por Advogada. Veja-se neste mesmo sentido o já mencionado Acórdão da Relação de Évora.

Destarte, igualmente procede o recurso neste segmento».

Em consequência, concedendo parcial provimento ao recurso do Ministério Público, o tribunal a quo, para além de agravar a pena de prisão, de 2 para 3 anos, suspensa na sua execução, condenou o arguido na referida indemnização, nos seguintes termos: “a pagar à ofendida BB a quantia de € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais a esta causados, o que se arbitra visto o disposto na conjugação dos artigos 21.º da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, 82º-A do Código de Processo Penal, 129.º do Código Penal e 483.º, 494.º e 496.º n.ºs 1 e 3, do Código Civil”.

10. A questão sujeita à apreciação e decisão deste Tribunal requer a clarificação do sentido normativo do artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, em aplicação do critério estabelecido no artigo 9.º do Código Civil, segundo o qual a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada, sendo que o intérprete não pode considerar o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, devendo presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

Impõe-se, pois, a identificação e consideração dos elementos de interpretação relevantes, em função deste critério, que, como é bem sabido, a doutrina inclui em duas grandes categorias de “factores hermenêuticos” – o elemento gramatical (isto é, o texto ou a “letra da lei”) e o elemento lógico (“espírito da lei”), neste último se incluindo o elemento racional (ou teleológico, que permite apreender a razão de ser da lei, a sua ratio, e o fim visado pelo legislador, em que releva a motivação da decisão legislativa, a occasio legis), o elemento sistemático (o “contexto da lei”, na consideração de outras disposições que contribuem para o “complexo normativo” em que se integra, postulando a sua “coerência intrínseca”) e o elemento histórico (que “compreende todos os materiais relacionados com a história do preceito”, nomeadamente a história do regime jurídico em causa, as fontes da lei e os trabalhos preparatórios), tendo sempre presente que todos estes elementos se devem utilizar conjuntamente na busca da “intencionalidade normativa” e do “sentido global da realização do direito” (assim, Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 2012, pp. 181-184, e Castanheira Neves, Metodologia Jurídica – Problemas Fundamentais, Studia Iuridica 1, Coimbra Editora, 1993, pp. 97- 106, para que se remete, sem necessidade de maiores desenvolvimentos sobre o tema).

10.1. Dispõe o artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, incluído na Secção I (“Atribuição, direitos e cessação do estatuto de vítima”) do Capítulo IV (“Estatuto de vítima”), que:

“1 – À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável.

2 - Para efeitos da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser”.

Esta disposição teve origem no artigo 21.º da Proposta de Lei n.º 248/X, que reproduz com pequenas alterações formais no n.º 1, a qual, lê-se na exposição de motivos, para além de levar em conta o sistema de protecção internacional dos direitos humanos, em particular a evolução do direito internacional e a acção e os esforços desenvolvidos no âmbito das Nações Unidas, do Conselho da Europa e da União Europeia contra a violência doméstica enquanto violação grave dos direitos fundamentais, e ainda as medidas adoptadas ao nível interno, nomeadamente em matéria penal (com destaque para a tipificação do crime de violência doméstica), visou estabelecer “pela primeira vez, a configuração do «estatuto de vítima» no âmbito da violência doméstica”, “tomando como base inspiradora os princípios constantes na Decisão-Quadro n.º 2001/220/JAI do Conselho da União Europeia, de 15 de Março de 2001, relativa ao estatuto da vítima em processo penal, e na Recomendação Rec(2006) 8 do Conselho da Europa, de 14 de Junho de 2006, relativa à assistência a vítimas de crime”, de que se “adoptaram” as “definições e os princípios gerais”, em que a “vontade da vítima assume uma importância fundamental”, “consagrada como princípio enformador e como condição da intervenção junto da vítima, opção que assenta na ponderação” das “necessidades de protecção da vítima”.

A “nota técnica” anexa ao Parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias sobre esta iniciativa legislativa (in DAR II-A, n.º 68, 12.2.2009) sublinha que deve ser salientada “a definição como regra do direito à reparação (n.º 2 do artigo 21.º, que remete para o artigo 82.º-A do Código de Processo Penal), que permite ao tribunal, em caso de condenação, fixar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos”.

10.2. O artigo 9.º da Decisão-Quadro 2001/220/JAI, baseando-se, para além do mais, nas conclusões do Conselho Europeu de Tampere (Outubro de 1999), que reconhecia a necessidade de serem elaboradas “normas mínimas sobre a protecção das vítimas da criminalidade, em especial sobre o seu acesso à justiça e aos seus direitos de indemnização por danos” (conclusão 32, na parte respeitante a “melhor acesso à justiça na Europa”), visou assegurar o direito a indemnização no âmbito do processo, incluindo no processo penal, estabelecendo que “cada Estado-Membro assegura às vítimas de infracção penal o direito de obter uma decisão, dentro de um prazo razoável, sobre a indemnização pelo autor da infracção no âmbito do processo penal, salvo se a lei nacional prever que em relação a determinados casos, a indemnização será efectuada noutro âmbito” (do preâmbulo).

Destinada a aproximar disposições legislativas dos Estados-membros em determinados domínios de direito penal material – vinculando-os quanto aos resultados a alcançar, mas deixando a seu cargo a forma e os meios de os conseguir, nos termos dos artigos 31.º, al. e), e 34.º, n.º 2, al. b), do Tratado da União Europeia, na redacção introduzida pelo Tratado de Amesterdão –, a decisão-quadro não visava, porém, nem poderia visar, a aproximação de legislação processual penal (diferentemente do que, em determinados aspectos, actualmente sucede com as directivas, na vigência do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia – artigo 82.º, n.º 2).

A incorporação dos elementos dessa Decisão-Quadro no direito interno não implicaria, pois, modificações da legislação processual penal, a não ser em aspectos relacionados com o reconhecimento dos direitos da vítima em obter indemnização por danos no processo penal, sem prejuízo de estes direitos serem assegurados noutro âmbito (note-se, a este propósito, que, sendo Portugal o autor da iniciativa que conduziu à adopção deste instrumento jurídico – cfr. o texto desta iniciativa no Jornal Oficial C 243 de 24.8.200, p. 4 –, tal possibilidade, diferentemente do que sucedia com outros Estados, encontrava-se já assegurada no actual CPP, não tendo havido necessidade de proceder a qualquer alteração legislativa, no prazo determinado, até 22 de Março de 2002).

10.3. A Recomendação Rec(2006)8 do Comité de Ministros do Conselho da Europa sobre a assistência às vítimas de crimes, que também inspirou a redacção do artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, não fornece qualquer indicação de soft law que devesse conduzir a qualquer alteração legislativa ao regime vigente em matéria de indemnização das vítimas no processo penal. O ponto 7 desta Recomendação, relativo ao “direito de acesso efectivo a outras vias de recurso” apenas recomenda que os Estados tomem as medidas necessárias para assegurar o recurso à justiça para obtenção de indemnização em processo civil e para estabelecerem procedimentos para que as vítimas possam pedir indemnização em processo penal. O que, no caso português, se mostrava garantido, nomeadamente nos termos do CPP.

10.4. A possibilidade de a vítima obter indemnização por danos causados pelo crime no âmbito do processo penal encontra a sua base jurídica nos artigos 129.º do Código Penal (que remete para o direito civil) e nos artigos 71.º e segs. do CPP (que, com as excepções previstas, obriga à dedução do pedido e à fixação no processo penal).

Rompendo com o modelo anterior e pondo termo à controvérsia doutrinária então instalada a propósito da sua natureza jurídica, tendo em conta o disposto no artigo 75.º, § 3.º, do Código Penal de 1886 – segundo o qual o condenado incorria “na obrigação de indemnizar o ofendido do danos causado” – e o princípio, então vigente, de obrigatoriedade de o tribunal “arbitrar aos ofendidos” “uma quantia como reparação por perdas e danos, ainda que lhe não tenha sido requerida”, nos termos do artigo 34.º, § 2.º, do CPP de 1929 – a determinar “segundo o prudente arbítrio do legislador, que atenderá à gravidade da infracção, ao dano material e moral por ela causado, à situação económica e à condição social do ofendido e do infractor” –, o regime instituído pelo Código Penal e pelo Código de Processo Penal actuais veio alterar profundamente a situação no que diz respeito ao carácter oficioso e aos critérios do arbitramento da indemnização.

Muito sumariamente, o que importa agora salientar é que, como é sabido, a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime, na vigência do Código Penal de 1886 e do CPP de 1929, era considerada, segundo parte da doutrina, um efeito penal da condenação, uma “parte da pena” ou uma sanção penal reparatória, que não se identificava com a indemnização civil; hoje, porém, a questão releva exclusivamente do direito civil (artigo 129.º do Código Penal). Mantendo-se o princípio de adesão obrigatória, nos termos do artigo 71.º do CPP, a condenação em indemnização só pode ocorrer na procedência de um pedido do lesado, isto é, da pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime (artigo 74.º do CPP), formulado no processo penal, com observância do disposto nos artigos 73.º e segs. do CPP (sobre este ponto, para maiores desenvolvimentos, cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2011, em particular §§ 13, 64 e 72, bem como, por todos, o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 1/2013, DR 1.ª série, pp. 58-62). Como se lê neste acórdão 1/2013: “Passando a ser determinada de acordo com os pressupostos e critérios, substantivos, da lei civil, por força da norma do art. 128.º do CP de 1982 (reproduzida posteriormente, no art. 129.º, do CP/95), a reparação passou a considerar-se, como pura indemnização civil que, sem embargo de se lhe reconhecer uma certa função adjuvante, não se confunde com a pena. No plano do direito adjectivo, o actual Código de Processo Penal (CPP), mantendo o sistema de adesão, veio conferir àquela acção de indemnização pela prática de um crime, formalmente enxertada no processo penal, a estrutura material de uma autêntica acção cível, acolhendo, inequivocamente, os princípios da disponibilidade e da necessidade do pedido (arts. 71.º, 74.º a 77.º e 377.º, do CPP) ”.

10.5. A revisão do CPP de 1998, operada pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, introduziu, porém, uma nova disposição – o artigo 82.º-A – na parte final do Título VI (“Das partes civis”) do Livro I, com o seguinte teor:

«Artigo 82.º-A (Reparação da vítima em casos especiais)

1 - Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham.

2 - No caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório.

3 - A quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em acção que venha a conhecer de pedido civil de indemnização».

A inserção sistemática desta disposição no Título relativo às “Partes Civis” (artigos 71.º a 84.º do CPP) não teve, todavia, o efeito de alterar os princípios e o regime de fixação da indemnização civil no processo penal anteriormente descrito.

Incluído na linha da política legislativa e nas concepções de política criminal que moldam e estruturam o actual sistema penal, assim acolhendo o conceito de “reparação” do dano com expressão em institutos que dizem respeito às “consequências jurídicas do facto” (Título III do Livro I, Parte Geral, do Código Penal) – que lhe conferem relevância, nomeadamente, no âmbito da suspensão da execução da pena e do regime de prova (artigos 51.º, n.º 1, e 54.º, n.º 3), da atenuação especial da pena (artigo 72.º, n.º 2), da dispensa de pena (artigo 74.º, n.º 2) – ou com efeitos ao nível da redução da pena (atenuação especial) nos crimes patrimoniais – nomeadamente nos crimes de furto, de abuso de confiança, de dano e de burla (artigos 206.º, n.º 2, 212.º, n.º 4, e 217.º, n.º 4) –, o artigo 82.º-A, pretendeu, declaradamente, reconhecer-lhe a natureza de “efeito penal da condenação”, de natureza substancialmente diversa da indemnização puramente civil. Conferiu-lhe, porém, uma característica de exigibilidade, por virtude da sentença que constitui o condenado na obrigação de efectuar o pagamento da quantia arbitrada, que não se encontra presente, noutros institutos, nomeadamente, no regime de suspensão da pena de prisão (como se salienta, por exemplo, no acórdão de 29.10.1997, em www.dgsi.pt, onde se lê: “[na suspensão de execução da pena] o beneficiário [da reparação] não fica na situação de credor, não fica adstrito ao cumprimento de uma prestação, com todas as consequências derivadas do incumprimento pontual)

Esta natureza da “reparação” é evidenciada na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 157/VII (altera o Código de Processo Penal), que esteve na origem da Lei n.º 59/98, em que se lê (DAR II, de 29.1.1998, p. 485):

“O regime do pedido de indemnização civil é objecto de alterações significativas, com respeito pelo princípio do pedido, no sentido de melhorar a protecção do lesado no âmbito do processo penal. (…)

Novidade da actual revisão constitui a possibilidade de o tribunal oficiosamente poder arbitrar, como efeito penal da condenação, uma reparação pelos prejuízos sofridos quando o imponham particulares exigências de protecção da vítima (artigo 82.º-A). Preserva-se a autonomia e a natureza civil do pedido de indemnização, mas não se posterga a protecção das vítimas carenciadas, através de um processo que não exige qualquer formalidade. Recupera-se, assim, uma medida abandonada com a entrada em vigor do Código Penal de 1982, quando parte da doutrina nacional já então insistia em fazer da reparação um «terceiro degrau» do sistema sancionatório – ideia que hoje vem sendo defendida por vozes autorizadas da doutrina nacional e estrangeira –, estabelecendo-se, nesta conformidade, que a quantia arbitrada deverá ser levada em conta em acção que conheça autonomamente do pedido civil de indemnização”.

A este propósito, escreveu Figueiredo Dias (em 1993): “Esta concepção [de atribuir à reparação do dano proveniente do crime natureza especificamente sancionatória de carácter penal, em que a reparação surgiria como um efeito penal da condenação] logrou – e talvez o facto deva ser lamentado – consagração legislativa muitíssimo limitada em termos de direito comparado. O próprio sistema português – um dos poucos que dela havia colhido, em todo o caso, o essencial, nos arts. 29.º e ss. do CPP de 1929 – abandonou-a, com a entrada em vigor do CP de 1982 e o seu art. 128.º [actual artigo 129.º]. E abandonou-a – o que não deixa de conter em si alguma ironia – precisamente quando uma parte da doutrina, sobretudo alemã, começou a apresentar, com insistência, a proposta de fazer da reparação nada menos que um terceiro degrau do direito penal, ao lado do da pena e do da medida de segurança!” (loc. cit. § 64). E noutro local: “a questão da indemnização de perdas e danos emergente de um crime releva hoje, pois, em exclusivo, do direito civil e do direito processual penal. (…) Isto se diz sem ignorar ou minimizar o extenso requisitório de uma parte da doutrina internacional mais recente no sentido de conferir relevo penal à indemnização emergente do crime. Até ao ponto de não faltarem autores a pôr em evidência os méritos político-criminais de uma doutrina que substituísse a actual concepção bipolar das consequências jurídicas do crime (penas e medidas de segurança) por uma concepção tripolar: penas, medidas de segurança e indemnização (ou reparação) do dano. A proposta deve merecer a maior atenção, sobretudo da parte de uma legislação e de uma doutrina, como as portuguesas, que durante décadas assumiram um lugar pioneiro na valorização da indemnização emergente de um crime como elemento fundamental da política criminal. Hoje, porém, (…) um tal requisitório só pode ser tomado em conta no plano do direito a constituir (…)” (ibidem, §14). Foi, pois, nesta perspectiva, que o legislador de 1998 interveio (como se vê do texto da Exposição de Motivos da Lei 58/98).

11. O que acaba de se expor impõe que seja feita uma distinção quanto às consequências jurídicas do crime, entre as de natureza civil, que geram o dever de indemnizar, pela prática de acto ilícito, em conformidade com as disposições aplicáveis do Código Civil (artigos 483.ºss e 562ss) e com o artigo 129.º do Código Penal, sempre dependente de pedido do lesado (artigos 71.º, 73.º e 74.º do CPP), e as consequências de natureza penal, em que se inclui o arbitramento oficioso de reparação à vítima pelos prejuízos causados, como efeito penal da condenação, nos termos do artigo 82.º-A do CPP, sempre que particulares exigências de protecção o requeiram (assim, também, nomeadamente, Simas Santos / Leal Henriques, Código de Processo Penal anotado, 2008, p. 550).

Esta “reparação” da vítima, saliente-se, requer a determinação dos “prejuízos causados” que mereçam ser compensados (indemnizados) mediante uma soma em dinheiro, como se evidencia da própria letra do preceito, o que obriga a convocar conceitos da lei civil (e justificou a inclusão da “reparação” no Título do CPP respeitante à “indemnização” – cfr. Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 157/VII, supra, 10.4), mas o seu quantitativo não tem que corresponder ao montante desses prejuízos (da “indemnização”), como resulta do respectivo n.º 3, segundo o qual a quantia arbitrada é levada em conta na indemnização.

Participando das finalidades das penas (protecção do bem jurídico ofendido e reintegração – artigo 40.º do Código Penal), a “reparação”, que impõe uma obrigação de pagar uma quantia monetária à vítima, terá de considerar as “particulares exigências de protecção” da vítima do crime praticado que, por essa via, se visa realizar, tendo em conta os danos patrimoniais e não patrimoniais que esta sofreu em resultado do concreto facto típico, nas suas próprias circunstâncias, e os critérios de necessidade, adequação e proporcionalidade que presidem à determinação das reacções criminais (que resultam do artigo 18.º da Constituição. Cfr. Germano Marques da Silva, Direito Penal Português III, Verbo, 1999, p. 24).

A “reparação” a que se refere o artigo 82.º-A do CPP situa-se, assim, numa zona de intercepção de fronteiras do direito civil e do direito penal, visando efeitos de natureza penal – contribuindo para a realização dos fins das penas, em particular pelo seu efeito ressocializador, que obriga o autor a enfrentar as consequências do crime e a reconhecer os interesses da vítima (ROXIN, apud “A Suspensão Parcial da Pena de Prisão e a Reparação do Dano”, J. A. Vaz Carreto, Almedina, 2017, nota 251) – através da compensação da vítima pelos danos causados. Daí que, como de há muito se vem sublinhando na jurisprudência deste Tribunal (ainda que a propósito da suspensão da execução da pena de prisão), se deva considerar que a “reparação não constitui uma verdadeira indemnização, mas uma compensação destinada principalmente ao reforço do conteúdo reeducativo e pedagógico da pena e dar satisfação suficiente às finalidades da punição, respondendo nomeadamente à necessidade de tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias”, o que justifica “que o montante arbitrado não tenha de corresponder ao que resultaria da fixação da indemnização segundo os critérios estabelecidos na lei para a responsabilidade civil e para a obrigação de indemnizar (artigos 483.º e segs. e 562.º e segs. do Código Civil” (acórdão de 11.6.1997, Colectânea de Jurisprudência, acórdãos do STJ, ano V, T. 2, pp. 226ss).

12. É, pois, neste quadro, que deve entender-se o estatuído no artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, havendo que distinguir as situações do n.º 1 e do n.º 2 deste preceito, na incompletude das suas normas, cujo sentido apenas se pode obter por recurso a outras normas. Enquanto o n.º 1 se limita a declarar que “à vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável”, sem alterar o regime processual estabelecido no CPP quanto ao estatuto e intervenção das partes civis, titulares do direito à indemnização, no processo penal, o n.º 2 vem acrescentar algo de novo, ao estipular que, “para efeitos da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser”.

12.1. A interpretação deste n.º 2, sobre o qual, de acordo com a informação conhecida, este Tribunal não se tem debruçado, não é, porém, isenta de controvérsia, que se revela na significativa jurisprudência dos Tribunais da Relação frequentemente chamados a decidir sobre a sua aplicação. Em termos gerais, a perspectiva de análise dominante subjacente às decisões conhecidas, apesar das divergências, parece assumir, porém, pelo menos implicitamente, que a “reparação” a que se refere o artigo 82.º-A assume natureza estritamente civil, sem enfatizar a de efeito penal da condenação.

Tem-se entendido que, no caso de condenação pelo crime de violência doméstica, o tribunal não pode deixar de arbitrar uma indemnização, pois, nessa situação, as particulares exigências de protecção da vítima resultam da própria opção legislativa constante da Lei nº 112/2009, dada a utilização do advérbio “sempre”, a não ser que esta expressamente se oponha a esse arbitramento (cfr. designadamente, entre outros, os seguintes acórdãos, em www.dgsi.pt: de 15-04-2015, Proc. 303/13.4PPLSB.L1-3, e de 16-09-2015, Proc. 67/14.42S2LSB.L1-3 (Relação de Lisboa); ; de 19-05-2015, Proc. 150/11.8GAVNO, de 22-9-2015, Proc. 671/14.0PBFAR.E1, de 24-05-2016, Proc. 253/14.7PBEVR.E1, e de 04-04-2017, Proc. 66/15.9GBABF.E1 (Relação de Évora); de 16-10-2013, Proc. 670/11.4PDVNG.P1 (Relação do Porto); de 07-03-2016, no Proc. 697/14.4GAVNF.G1 (Relação de Guimarães). No mesmo sentido, refere Pinto de Albuquerque (Código de Processo Penal Anotado, Católica, 4.ª ed., pág. 245) que o “direito à indemnização previsto no art.º 21.° da Lei n.º 112/2009, prejudica as regras do art.º 82.°-A, uma vez que consagra o carácter obrigatório do arbitramento oficioso de indemnização. As únicas condições de reparação oficiosa da vítima são, nestes casos, a prova de danos causados à vítima, a condenação do arguido pelo crime imputado e a não oposição da vítima à reparação.”

Em sentido divergente, entende-se que o que resulta da lei não é a obrigação de fixar indemnização, mas apenas de se ponderar a sua atribuição nos termos daquele artigo 82.º-A, do CPP, mantendo-se a necessidade de verificar o requisito da existência de particulares exigências de protecção da vítima; não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil, o tribunal está obrigado a analisar a situação com vista a verificar se no caso concreto há ou não lugar a condenação no pagamento de indemnização (neste sentido, o acórdão da Relação de Coimbra de 24-06-2015, no Proc. 94/12.6GAACB.C1).

Optando por outra solução, entende-se noutros casos, que, havendo sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82º-A do CPP, para que seja arbitrada tal indemnização é necessário que se verifiquem os pressupostos legais da responsabilidade civil extracontratual e do dever de indemnizar e que, verificados estes, não havendo oposição expressa do titular do direito correspondente, o tribunal está vinculado a ponderar a atribuição de uma indemnização, não podendo negá-la com o argumento de que a vítima não beneficia de particulares exigências de protecção, pois que, pelo facto de ter sido vítima de crime de violência doméstica, a lei atribui-lhe esse estatuto; o que, assim, haverá de apurar é o valor da indemnização adequada pelos danos (patrimoniais ou não patrimoniais) face aos factos provados (assim, no acórdão da Relação do Porto de 15-12-2016, no Proc. 192/15.4GBVFR.P1).

13. O que vem de se expor, na consideração dos elementos de interpretação convocados (supra, 10), permite firmar a conclusão de que a reparação a que se refere o artigo 82.º-A do CPP não tem natureza estritamente civil, de “indemnização”, comportando uma dimensão penal, de efeito penal da condenação, apesar de convocar elementos de caracterização provenientes do direito civil. Foi, esta, como se viu, a intenção legislativa expressa nos trabalhos preparatórios da Lei n.º 58/98, que aditou esta disposição, com carácter de novidade, na linha e em coerência com as opções de política criminal estruturantes do sistema, respondendo à necessidade, sentida e manifestada pelos estudos vitimológicos e pela doutrina mais autorizada, de conferir atenção à posição da vítima.

No desenvolvimento desta linha de política criminal, lançada em 1998, consagraram-se posteriormente na lei significativos resultados da acção de organismos internacionais com papel de relevo no aperfeiçoamento e protecção do sistema de direitos humanos, que conduziriam, no seu estádio mais recente, à atribuição do estatuto de sujeito processual à vítima de crime (Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro, que adita o artigo 67.º-A do CPP e aprova o Estatuto da Vítima, transpondo a Directiva 2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25.10.2012, que estabelece normas relativas aos direitos, ao apoio e à protecção das vítimas da criminalidade e substitui a Decisão-Quadro 2001/220/JAI, anteriormente mencionada, que inspirou a Lei n.º 112/2009).

É assim que a Lei n.º 130/2015, em disposição de redacção idêntica à do artigo 21.º da Lei 112/2009, veio dispor no artigo 16.º:

«1 - À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão relativa a indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável.

2 - Há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal em relação a vítimas especialmente vulneráveis, excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser».

De notar, todavia, que a reparação a que se refere o artigo 82.º-A do CPP se limita, neste regime, às “vítimas especialmente vulneráveis”, que, na definição da alínea b) do n.º 1 do artigo 67.º-A do CPP são aquelas “cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social”.

13.1. A propósito desta evolução legislativa, em reforço da posição e da protecção da vítima no processo penal, merecem referência, em particular, o artigo 82.º, n.º 2, do TFUE, que prevê o estabelecimento de regras mínimas para facilitar o reconhecimento mútuo das sentenças e decisões judiciais e a cooperação policial e judicial nas matérias penais com dimensão transfronteiriça, em especial no que diz respeito aos direitos das vítimas da criminalidade; a Directiva 2011/99/UE, de 13.12.2011, relativa à decisão europeia de protecção; a Directiva 2011/36/UE de 5.4.2011, relativa à prevenção e luta contra o tráfico de seres humanos e à protecção das vítimas; a Directiva 2011/93/UE, de 13.12.2011, relativa à luta contra o abuso e a exploração sexual das crianças e a pornografia infantil; a Convenção do Conselho da Europa contra o tráfico de seres humanos, de 2005, centrada na protecção e salvaguarda dos direitos das vítimas; a Convenção do Conselho da Europa, de 2007, para a protecção das crianças contra a exploração sexual e os abusos sexuais; a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, de 2011; o protocolo adicional à Convenção das Nações Unidas contra a criminalidade organizada, de 2000, sobre tráfico de pessoas, em especial de mulheres e crianças, contendo medidas de protecção das vítimas). Todos eles modelando uma nova dimensão do sistema penal a que o artigo 82.º-A do CPP deu a primeira expressão normativa.

14. Por força do disposto no n.º 2 do artigo 21.º da Lei n.º 112/2009 e do n.º 2 do artigo 16.º da lei n.º 130/2015, há, pois, “sempre lugar à aplicação do artigo 82.º-A do Código de Processo Penal” relativamente às vítimas de crimes de violência doméstica – considerando como “vítima” “a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou uma perda material, directamente causada por acção ou omissão, no âmbito do crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal” (na definição da alínea a) do artigo 2.º daquele diploma) – e “às vítimas especialmente vulneráveis”, já não a todas as vítimas, de qualquer crime, na acepção da alínea b) do n.º 1 do artigo 67.º-A do CPP, considerando-se “vítima”, para estes efeitos (em formulação semelhante da alínea a) deste preceito), “a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou um dano patrimonial, directamente causado por acção ou omissão, no âmbito da prática de um crime”.

É, pois, neste contexto, tendo em conta a natureza e o conteúdo da “reparação” prevista no artigo 82.º-A, bem como a definição de “vítima” constante da alínea a) do artigo 2.º da Lei n.º 112/2009, que há que definir o sentido dos termos da remissão operada pelo artigo 21.º deste diploma, segundo o qual “há sempre lugar à aplicação o artigo 82.º-A do Código de Processo Penal”.

15. A formulação do texto do artigo 82.º-A do CPP, ao estabelecer que, não havendo pedido de indemnização, “o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham”, obriga, por si mesma, pela imperatividade da norma, a que o tribunal, nessas circunstâncias, averigúe, sempre que seja caso disso, acerca destas “exigências de protecção”. Pelo que, buscando o sentido útil da remissão do artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, este só pode ser outro que não o coincidente com essa obrigação, sob pena de, sendo a ela limitada, a remissão se mostrar desnecessária e vazia de conteúdo.

Assim sendo, em atenção aos elementos a considerar na definição do seu sentido normativo (supra, 10), esse sentido só poderá ser o de que, tendo em conta a natureza jurídica da “reparação”, o tribunal deverá condenar (“sempre”) na “reparação pelos prejuízos causados”, como efeito penal da condenação (da aplicação da pena) pela prática de crime de violência doméstica da previsão do artigo 152.º do Código Penal. Isto, sublinhe-se, desde que, verificados os respectivos pressupostos formais – não dedução de pedido de indemnização e não oposição à reparação –, a pessoa ofendida pelo crime tenha sofrido “um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou uma perda material, directamente causada por acção ou omissão” que constitua esse crime, ou seja, desde que essa pessoa seja uma “vítima” do crime na acepção da alínea a) do artigo 2.º da Lei n.º 112/2009.

A caracterização e conteúdo desta “reparação”, de natureza pecuniária, sem se confundir com a indemnização civil, remete, porém, como antes se sublinhou, para conceitos que lhe são próprios, nomeadamente quanto ao “dano” ou “prejuízos”, mas já não quanto à “quantia” a fixar, a qual, como antes se afirmou (supra, 11) não tem que coincidir com o montante da indemnização.

É neste quadro normativo que deve ser apreciada e decidida a questão que constitui o objecto do recurso.

16. Condenado pela prática de um crime de violência doméstica da previsão do artigo 152.º do Código Penal, alega o recorrente, em síntese, que, não tendo a ofendida deduzido pedido de indemnização civil e não se tendo oposto ao arbitramento de indemnização, como consta dos autos, a “indemnização arbitrada” nos termos “dos artigos 21.º da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro, 82.º-A do Código de Processo Penal, 129.º do Código Penal e 483.º, 494.º e 496.º n.ºs 1 e 3, do Código Civil”, no montante de 45.000 euros, “a título de indemnização pelos danos não patrimoniais”, corresponde a “um quantum indemnizatório totalmente desadequado, injusto e desproporcional”, violando o disposto nos artigos 483.º, 494.º e 496.º, n.ºs 1 e 3, do Código Civil. Pelo que, por apelo a estas disposições legais, tendo em conta, designadamente, a sua situação patrimonial e as suas condições pessoais, afigura-se-lhe “justa a fixação de uma indemnização a esse título que não ultrapasse os €5.000,00”.

Como anteriormente se demonstrou, não tendo havido pedido deduzido pelo lesado, não deve o arguido ser condenado no pagamento em “indemnização” nos estritos termos da lei civil, mas sim no pagamento de uma reparação à vítima do crime, nos termos do artigo 82.º-A do CPP, em conformidade com o disposto no artigo 21.º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009. Participando das finalidades da pena aplicada (supra, 11), esta reparação, na falta de fixação de critério próprio no artigo 82.º-A do CPP, deve levar em conta os danos não patrimoniais causados e a situação da vítima, como expressão da gravidade das consequências do crime, as condições pessoais do agente e a sua situação económica, numa ponderação conjunta dos critérios da lei civil, nomeadamente dos artigos 494.º e 496.º, n.º 4, do Código Civil, convocados pela natureza compensatória da reparação, e dos critérios da lei penal de fixação da reacção criminal atendíveis por via da culpa e da prevenção, nos termos das alíneas a) e d) do n.º 2 do artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal.

Recorde-se, a este propósito, que, como acima se referiu, pretendendo “recuperar” a reparação como efeito penal da condenação, “uma medida abandonada com a entrada em vigor do Código Penal de 1982” (artigo 75.º, § 3.º, do Código Penal de 1886), o artigo 82.º-A do CPP não inseriu disposição idêntica à do artigo 34.º § 2.º do Código de Processo Penal de 1929, que mandava que o seu quantitativo fosse determinado “segundo o prudente arbítrio do legislador, que atenderá à gravidade da infracção, ao dano material e moral por ela causado, à situação económica e à condição social do ofendido e do infractor” (supra, 10.4). Não deixa, porém, de, na sua essência, continuar a ser este o critério a seguir, na consideração dos factores mencionados, seguindo-se Germano Marques da Silva, ao afirmar que “a quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos (…), porque não se confunde com a indemnização civil pelos danos, é fixada a critério do julgador” (op. cit. p. 190).

17. Da matéria de facto provada (supra, 7) resulta, para além do mais, que a vítima sofreu danos (prejuízos) não patrimoniais, pois que o arguido “agiu deliberada, livre e conscientemente, com o propósito, concretizado, de molestar BB, sua mãe, no seu corpo e na sua saúde, causando-lhe dores”, “agiu, ainda, do mesmo modo, pois sabia que as expressões que dirigia à sua mãe a ofendiam na sua honra e consideração, mas ainda assim não se coibiu de a diminuir enquanto pessoa e prejudicar o seu bem-estar”, “da mesma forma actuou o arguido pois sabia que com as expressões que dirigia à sua mãe lhe provocava medo e inquietação e actuou querendo isso mesmo”, “visava criar permanente medo, perturbação e um clima de terror nocivo à estabilidade emocional daquela, sabendo que é pessoa doente e de idade avançada e que com a sua actuação agravava o seu estado de saúde”.

O arguido, que é consumidor de produtos estupefacientes, com problemas de toxicodependência, é auxiliar de acção médica, embora não esteja a trabalhar, mas não estando impossibilitado de o fazer, sendo que, como se diz no acórdão recorrido, “a situação de desemprego pode entretanto cessar – será mesmo desejável que comece a trabalhar e tudo faça o arguido nesse sentido – bem como pode a qualquer momento da sua vida futura vir a ter um património e rendimentos que lhe permitam o pagamento da indemnização que ora fosse arbitrada à ofendida”.

Na determinação da pena, o tribunal recorrido concluiu “por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente, de tal modo que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades de punição”, pelo que suspendeu a execução da pena de prisão pelo período de três anos, com obrigação de tratamento.

Assim, ponderando estas circunstâncias, para determinação da compensação a título de reparação dos prejuízos causados, em conformidade com os critérios e factores a ter em conta nos termos anteriormente expostos (supra, 16), considera-se adequado arbitrar a quantia de 7.500 euros a favor da vítima a título de reparação pelos prejuízos sofridos, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 21.º da Lei n.º 112/2009 e 82.º-A, n.º 1, do Código de Processo Penal, assim se alterando a decisão recorrida.

Termos em que, embora com fundamentos diversos, se deve conceder provimento parcial ao recurso.

Quanto a custas

18. De acordo com o estabelecido no artigo 513.º do CPP (responsabilidade do arguido por custas), só há lugar ao pagamento da taxa de justiça quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso. 

Não havendo decaimento, não há lugar a pagamento de taxa de justiça.

III. Decisão

19. Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:

a) Revogar o acórdão recorrido na parte em que condenou o arguido a pagar à ofendida BB a quantia de € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais a esta causados; e

b) Condenar o arguido AA a pagar a quantia de € 7.500 (sete mil e quinhentos) à vítima BB, a título de reparação pelos prejuízos sofridos, que se arbitra nos termos das disposições conjugadas dos artigos 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, e 82.º-A, n.º 1, do Código de Processo Penal,

Mantendo-se, no mais, o acórdão recorrido.

Sem custas.

Supremo Tribunal de Justiça, 2 de Maio de 2018.

Lopes da Mota (Relator)

Vinício Ribeiro