CONCURSO DE INFRACÇÕES
CONCURSO DE INFRAÇÕES
CONHECIMENTO SUPERVENIENTE
CÚMULO JURÍDICO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
PENA ÚNICA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Sumário


I - O STJ pode analisar, e eventualmente alterar, a qualificação jurídica dada aos factos provados, ainda que sempre com respeito pelo princípio da “reformatio in pejus”.
II - Constitui um elemento preponderante, para que se possa integrar os factos no âmbito do tipo legal de crime de tráfico de estupefacientes agravado, constante do art. 24.º, al. c), do DL 15/93, que se tenha concluído serem os transportadores os donos da droga a auferir o previsível rendimento proveniente da venda de tão avultadas quantidades de droga.
III - Uma vez que no caso concreto foi dado como provado apenas que os arguidos organizaram o transporte da droga sem que ficasse provado que seriam os aqui arguidos aqueles que iriam vender a droga; não estando dado como provado a quem se destinava a droga, sendo certo que também não foi provado que os aqui arguidos fossem os últimos elementos da cadeia que iriam receber a droga, tanto mais que apenas se provou que o seu propósito era somente o de transportar a droga "com o fim de a introduzir na Europa", sem que se tivesse provado que seriam os arguidos que a iriam integrar no mercado europeu, somos forçados a concluir não estar preenchida a agravante, pelo que os arguidos devem ser punidos pelo crime de tráfico de estupefacientes, previsto no art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93.
IV - Ponderando que os arguidos participaram e organizaram uma atividade de transporte de uma grande quantidade de produto estupefaciente, demonstrando alguma perícia na forma como a esconderam na embarcação, apresentando alguma sofisticação de meios, suscitando o crime praticado fortes exigências de prevenção e sendo igualmente elevadas as exigências de prevenção especial, considera-se como sendo adequada a aplicação das penas de:
- pena de prisão de 10 anos ao arguido D;
- pena de prisão de 9 anos ao arguido S;
- pena de prisão de 8 anos ao arguido I;
- pena de prisão de 8 anos ao arguido N e
- pena de prisão de 8 anos ao arguido S.

Texto Integral

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:


I

Relatório


1. Na Comarca dos ... (Instância Central, 2.ª secção cível e criminal de ... — J 3) no âmbito do processo comum coletivo n.º 172/15.0JAPDL, por acórdão de 20.12.2016, foram julgados e condenados:

- o arguido AA pela prática, em co-autoria, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, nos termos dos arts.  21°, n.° 1 e 24°, c), do Decreto-lei n.° 15/93, de 22.01, na pena de 13 (treze) anos de prisão;

- o arguido BB pela prática, em co-autoria, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, nos termos dos arts.  21°, n.° 1 e 24°, c), do Decreto-lei n.° 15/93, de 22.01, na pena de 12 (doze) anos de prisão;

- o arguido CC pela prática, em co-autoria, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, nos termos dos arts.  21°, n.° 1 e 24°, c), do Decreto-lei n.° 15/93, de 22.01, na pena de 11 (onze) anos de prisão;

- o arguido DD pela prática, em co-autoria, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, nos termos dos arts.  21°, n.° 1 e 24°, c), do Decreto-lei n.° 15/93, de 22.01, na pena de 11 (onze) anos de prisão;

-  arguido EE pela prática, em co-autoria, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado nos termos dos arts.  21°, n.° 1 e 24°, c), do Decreto-lei n.° 15/93, de 22.01, na pena de 11 (onze) anos de prisão.

2. Inconformados recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 22.06.2017, julgou “improcedente o recurso interposto por AA, BB, CC, DD e EE”.

3. Ainda inconformados, recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão de 16.12.2017, decidiu “conceder provimento ao recurso interposto pelos arguidos AA, BB, CC, DD e EE, e em decidir declarar nulo o acórdão recorrido, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. a), do CPP, ex vi art. 425.º, n.º 4, do CPP, devendo o acórdão ser substituído por outro que supra as nulidades referidas.

4. Uma vez no Tribunal da Relação de Lisboa foi novamente proferida decisão que, por acórdão de 18.01.2018, decidiu da mesma forma “julgar improcedente o recurso interposto por AA, BB, CC, DD e EE”.

5. Inconformados vieram todos os arguidos recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça e em ato único apresentaram a motivação do recurso tendo concluído nos seguintes termos:

«1º — Os arguidos AA, BB, CC, DD, e EE, não se conformando com a douta decisão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, dela interpõem recurso por considerarem excessivas as penas aplicadas.

2º — Aos ora recorrentes, foram aplicadas, respetivamente as penas de 13 anos AA, 12 anos BB, e 11 anos aos restantes, pela prática de um crime de tráfico de droga agravado.

 4º — Resultante de um transporte marítimo que acabaram por efetuar, pressionados pelas redes internacionais que ameaçavam as suas famílias. Por medo, tiveram que aderir, quando a sua ida às caraibas se prendia apenas com a recolha de uma embarcação comprada pelo AA.

5º — Confessaram e mostraram-se arrependidos pelos factos sucedidos. São primários à luz do direito nacional e internacional.

6º  —   O lucro obtido, baseava-se na mais valia com a compra ao longo de um ano da embarcação, que valeria o dobro aquando da sua chegada à Servia.

 7º — As penas aplicadas, não transparecem a clemencia dos Tribunais portugueses.

 8º —  No computo das penas matéria de direito da qual se recorre, não foram tomadas em conta, à luz do artº 71º  nºs 1 e 2,  o qual se mostra violado, todas as circunstâncias que depuseram a favor ou contra os agentes, nomeadamente as ameaças aos mesmos e suas famílias, o mar criminoso das caraíbas, as redes internacionais de droga que matam em qualquer parte do mundo, e outros fatores assustadores e ainda:

 9º — O grau de culpa dos agentes, que não tinham alternativa visível, face aos perigos a que se expunham em águas caribenhas, e, ou, internacionais.

10º —  Por último e em abono do supra referido, assinale-se a matéria dada como provada, transcrita nos pontos 19 a 75 do douto acórdão  “ad quo”, resultante do apuramento das condições sociais aos arguidos, a qual se dá aqui como reproduzida.

 11º  — Aí se verifica que os mesmos de um modo geral, são primários e sem cadastro, têm todos formação escolar significativa, trabalho permanente, e grau cultural elevado.

 12º — Dos factos não provados, constantes de fls 11 da douta decisão, resulta não provado que os arguidos se dedicavam ao tráfico de estupefacientes, que desenvolviam atividade internacional e dentro da europa, que não era conhecida qualquer atividade profissional, sendo o comércio de estupefacientes o seu modo de vida.

 13º — Outrossim se deseja acrescentar, que todos os tanques de lastro da embarcação, não provado que se destinassem ao acondicionamento de droga, eram para serem para lastrados com água doce em sacos de água, e os restantes com mantimentos, e não droga. Esta, como os mesmos referiram veio a ser acondicionada em detrimento daqueles bens necessários ao consumo, aquando da abordagem que todos relataram de uma forma clara e esclarecedora.  

Assim sendo, e sem mais demora, não desejando ser fastidioso para V. Exªs, entende-se que o doutíssimo Tribunal “ ad quo “, ao decidir como o fez e aplicando penas tão gravosas aos arguidos, violou os nºs 1 e 2 do art. 71º do Código Penal, pelo que V. Exª.s ao decidirem por punição mais leve, rondando o limite médio aplicável, por clemência, tradição ficarão satisfeitas exigências de prevenção e punição, obtendo-se deste modo, a tão costumada, Justiça.»

6. O recurso foi admitido por despacho de 22.02.2018 (cf. fls. 1523).

7. Ao motivado e concluído pelos recorrentes, o Ministério Público no Tribunal da Relação de Lisboa, respondeu concluindo pela improcedência do recurso, considerando que a decisão recorrida se deve manter “nos seus precisos termos” (cf. fls. 1526 e ss).

8. Uma vez subidos os autos, a Senhora Procuradora Geral-Adjunta emitiu parecer “no sentido da improcedência dos recursos interpostos pelos arguidos” e considerando que:

«O recurso dos arguidos não merece provimento.

Dando aqui por reproduzida, com a devida vénia, a resposta do MP no Tribunal a quo, apenas se nos oferece sublinhar a elevadíssima quantidade de estupefaciente, cocaína, 1140,5kg, peso bruto, divido por 997 embalagens, que os arguidos detinham e transportavam em embarcação à vela e motor, com a intenção de a introduzirem, venderem e distribuírem a terceiros, na Europa, mediante pagamento, não apurado.

Face ao grau de pureza, o estupefaciente permitia fornecer as seguintes médias individuais diárias.

- 148 placas, com o peso líquido de 148.677,716grs, com o grau de pureza de 69,17% é suficiente para 518.146 doses;

- 849 placas, com o peso líquido total de 856.812,34grs., com o grau de pureza de 66,7% é suficiente para 2.854,474 doses.

Reconhecem ter realizado o transporte do estupefaciente, mas não se provou o arrependimento, nem a confissão (cfr. factos 27, 40, 49, 60, 70), nem que agiram sob as ameaças de morte feitas por um tal "..." — cfr. motivação da convicção do Tribunal.

As atenuantes provadas a favor dos arguidos não são suficientes para permitir uma diminuição das penas aplicadas, respectivamente a cada um dos arguidos, atentos o dolo directo, a culpa intensa e o elevadíssimo grau de ilicitude dos factos praticados.

O tráfico de droga é uma praga dos nossos dias que importa combater com eficácia, tais os danos que provoca na saúde pública, na paz pública, no seio familiar e comunitário.

São prementes as necessidades de prevenção geral e especial.

O abastecimento e disseminação da quantidade da cocaína apreendida eram elevadíssimos, com efeitos perniciosos nos consumidores, reduzidos a farrapos humanos por "traficantes da morte", como alguém já apelidou os traficantes de droga.

Importa atender, assim, às elevadíssimas exigências de defesa dos bens jurídicos protegidos, impondo-se a aplicação de penas que reafirmem o valor das normas violadas.

Considerando o nível de responsabilidades assumidas por cada um dos elementos do grupo, as penas de prisão aplicadas satisfazem os ditames contemplados nos arts. 40.° e 71.0, ambos do CP, devendo manter-se a pena de 13 anos de prisão para AA, a pena de 12 anos de prisão para o arguido BB e de 11 anos de prisão para cada um dos arguidos CC, DD e EE.»

9. Notificados os arguidos, nos termos do art. 417.º, n.º 2, do CPP, responderam, em peça única, alegando, em súmula, que estão presos há cerca de 3 anos e meio sem que ainda tenham uma decisão transitada em julgado, afirmando que confessaram e estão arrependidos, atuaram sob pressão e o produto estupefaciente não foi “disseminado”, e concluindo que as penas aplicadas são “exageradas e penosas face aos objectivos de prevenção e punição exigíveis”.

10. Colhidos os vistos em simultâneo, e não tendo sido requerida a audiência de discussão e julgamento, o processo foi presente à conferência para decisão.


II

Fundamentação

A. Matéria de facto

           

            1. Na decisão recorrida, são dados como provados os seguintes factos:

     «1. No dia 28105/2015, pelas 12 h e 30 m, na Marina da ..., os arguidos detinham no interior da embarcação denominada "...", de matrícula ..., pavilhão dos Estados Unidos da América, ali atracada, 997 embalagens de forma rectangular, vulgo pacotes, envoltos em fita adesiva, contendo no seu interior cocaína com o peso bruto total de 1140,5 quilogramas.

            2. Tal produto, face ao seu grau de pureza permitia fornecer as seguintes médias individuais diárias:

            - 148 placas com o peso líquido de 148.677,716 g, com o grau de pureza de 69,7% é suficiente para 518.146 doses;

            - 849 placas com o peso líquido total de 856.812,34 g, com o grau de pureza de 66,7% é suficiente para 2.857.474 doses.

          3. O produto estupefaciente apreendido encontrava-se astuciosamente dissimulado por detrás de paredes falsas, previamente construídas na zona central da embarcação (urna parede de cada lado) e de forma particularmente elaborada, com vista a não ser detectado pelos órgãos de polícia criminal.

           4. Os arguidos entraram na posse de tal produto estupefaciente em Trinidad e Tobago, de forma e mediante entrega por pessoas concretamente indeterminadas, e pretendiam transportá-lo para a Europa, onde o mesmo se destinava a ser cedido, vendido e distribuído a terceiros que se mostrassem interessados na sua aquisição.

   5. A embarcação de nome Amsterdamer, que, em 12.05.2015, foi interceptada em Espanha contendo no seu interior cerca de 700 quilogramas de Cocaína.

    6. Também os arguidos AA, BB e CC fizeram parte da tripulação da embarcação de nome Aligator, a qual rumou entre a América do Sul e a Europa e dela fez parte um outro individuo, de nome FF, o qual foi detido em Espanha na sequência da intercepção referida em 5) .

    7. Aquando da viagem dos arguidos entre a Sérvia e Trinidad, os arguidos encontram FF no aeroporto de Frankfurt, tendo viajado no mesmo avião até Trinidad, lugar onde aquele seguiu o seu percurso e os arguidos seguiram os seus.

    8. Os arguidos actuaram da forma descrita, com reflexão sobre o meio empregado, mediante um plano previamente traçado por AA, a que todo aderiram, de forma conjunta e concertada, em colaboração mútua, plenamente cientes da natureza do produto estupefaciente que detinham e transportavam, bem sabendo que ao transportar e deter a referida substância estupefaciente, em medida muito superior ao consumo médio individual pelo período de 10 dias, com o fim de a introduzir na Europa, onde a mesma seria cedida, distribuída e vendida a terceiros, agiam contra o Direito, o que representaram mentalmente e quiseram realizar, cientes de que não tinham autorização legal para esse efeito .

    9. Os arguidos agiram com consciência de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

 10. Em 2013, AA deslocou-se a Trinidad com vista à aquisição de uma embarcação "..." .

    11. Uma vez aí viu a embarcação e chegou, mesmo, a experimentá-la.

            12. Em 2014, AA e BB, seu familiar, a quem o mesmo pediu que o acompanhasse para o ajudar na execução de obras na referida embarcação, dirigiram-se a Trinidad onde aquele comprou a embarcação "...".

    13. Ambos os arguidos executaram obras na referida embarcação até Outubro de 2014, data em que regressaram à Sérvia.

            14. Durante esse período, entre o mais, os dois arguidos construíram as paredes por trás das quais foi acondicionada a droga apreendida.

            15. Em Março de 2015, AA, com vista a constituir uma equipe que lhe permitisse a navegação daquela embarcação, solicitou a BB, a CC, a DD e a EE que o acompanhassem e que integrassem a sua equipa o que estes acederam.

    16. Para tanto, AA propôs-lhe o pagamento de quantia não concretamente apurada.

   17. CC é o namorado da filha de AA, DD e a EE, são trabalhadores de AA na sua fábrica de betão como motoristas, e têm experiência na área de mecânica.

   18. Todos os arguidos acondicionaram os pacotes de cocaína por trás das paredes referida em 3), de modo e por forma não concretamente apurados.

   19. AA é filho único, tendo nascido num contexto familiar tido como estruturado e harmonioso, reportando uma dinâmica familiar coesa e de entreajuda, exercendo os progenitores a profissão de alfaiate.      

            20. Referencia um percurso escolar sem dificuldades, tendo ainda frequentado a licenciatura em Direito por cerca de 3 anos, mas que não chegou a concluir, a pretexto da degradação da situação económica da família e da necessidade de iniciar trabalho, bem como da pretensão em garantir autonomia económica, não tendo retomado o percurso escolar .

   21. Nesse sentido constituiu uma empresa de panificação, atividade em que trabalha actualmente a filha, de 26 anos de idade e licenciada em gestão .

            22. Detém igualmente uma loja de fotografia onde trabalha a esposa,

            23. Em 2009 constituiu uma empresa de fabrico de betão, que manteve por cerca de 5 anos, entretanto falida na sequência da diminuição do mercado da construção civil.

            24. O arguido casou com cerca de 28 anos, relação da qual tem uma filha, descrevendo o contexto conjugal e familiar como estável e gratificante, e como de adequado suporte durante o período em prisão preventiva, contactando regularmente com a filha e a esposa .

   25. Referencia uma condenação judicial na sequência de acidente rodoviário, não descrevendo outras situações criminais, considerando deter na comunidade onde reside, uma adequada inserção e imagem, decorrente sobretudo do percurso profissional.

  26. 0 arguido enfatiza um percurso estruturado, com a inserção social e profissional, a dedicação à família, ocupando os tempos livres com a prática de desporto e ocasionalmente com a construção de mobília própria.

            27. Após a conclusão do actual processo judicial, perante o qual não assume responsabilidade, AA considera poder retomar o percurso de vida que detinha antes da prisão preventiva, denotando contudo alguma ambiguidade nos projectos profissionais a que se poderá dedicar.

 28. Em contexto prisional evidencia uma adequada adaptação, com a adesão e disponibilidade para as actividades propostas, sobretudo desportivas, área em que considera ter um papel dinâmico, incentivando outros reclusos.

            29. O arguido padece de diabetes, considerando a situação totalmente controlada e devidamente apoiada em termos clínicos.

            30. CC é um indivíduo com 29 anos. Nasceu num contexto familiar estruturado e equilibrado, com adequadas condições económicas, trabalhando ambos os progenitores, o pai como técnico químico e a progenitora como técnica numa empresa de construção civil, actividades que ambos mantêm.

  31. Para além do arguido, o contexto familiar é actualmente composto pelos progenitores, irmã e avó materna. CC sempre residiu com os pais, não prevendo autonomizar-se de imediato, ainda que tenha planos para a constituição de agregado familiar próprio, mantendo uma relação de namoro.

  32. Realizou um percurso escolar sem dificuldades, concluindo formação profissional na área de electrotecnia.

 33. Até cerca dos 20 anos jogou futebol profissional, actividade que abandonou na sequência duma lesão.

            34. Iniciou entretanto trabalho na empresa em que trabalha a progenitora, tendo em 2006 constituído a sua própria empresa de construção civil.

            35. Com a ocorrência dum problema de saúde de natureza oncológica, que implicou tratamento e acompanhamento clínico de forma intensa, a empresa cessou a actividade, cerca de 4 anos depois da sua constituição.

            36. Mais recentemente o arguido constituiu nova empresa, em sociedade com a mãe e a irmã, licenciada em engenharia civil, que se dedica a actividades na área da construção civil.

  37. CC considera que o problema de saúde poderá estar ultrapassado, embora tenha de manter acompanhamento clínico regular, enfatizando o suporte que lhe foi dado a esse nível em contexto prisional.

            38. Em meio prisional tem evidenciado um comportamento adequado às regras internas, estando ocupado em actividades de faxina desde há cerca de cinco meses, de forma alternada, de acordo com disponibilidade de tarefas da Instituição prisional, não indiciando dificuldades de adaptação.

  39. Descreve um percurso pessoal isento de comportamentos desviantes ou ilícitos  criminais.

   40. Em relação ao presente processo, não considera ter qualquer responsabilidade, não se revendo na acusação, perspectivando apenas a não condenação .

   41. O arguido mantém contacto telefónico regular com os progenitores e irmã, cujo suporte vivencia como fundamental neste período.

   42. Pretende em meio livre retomar o trabalho na empresa que possui com a mãe e irmã e constituir entretanto agregado familiar próprio.

   43. BB é um indivíduo com 48 anos de idade, que nasceu num contexto familiar descrito como estruturado e harmonioso e garante de todas as necessidades do arguido e do irmão, dedicando-se actualmente os pais a uma agricultura de subsistência, actividade em que o arguido também participa e com maior regularidade após a separação conjugal, dado ter regressado ao agregado familiar de origem.

  44. O arguido realizou formação profissional na área de electrónica, electrotecnia e computação, sendo nessa área que tem mantido o percurso profissional, iniciado com cerca de 20 anos, trabalhando para várias entidades, mas também por conta própria, estando à data da reclusão a trabalhar numa estação de televisão.

            45. Descreve um percurso profissional integrado, realizando outras actividades complementares, nomeadamente como carpinteiro e 'fotografo, consoante as oportunidades de trabalho, sendo os tempos livres utilizados igualmente em atividades da área de electrotecnia e como forma de aumentar o seu rendimento.

            46. Nesse sentido considera deter uma situação económica equilibrada quanto à satisfação das necessidades básicas e de suporte económico à filha.

 47. Manteve um casamento por cerca de dez anos, que terminou há cerca de dois anos, da qual tem uma filha, entregue aos cuidados da mãe após a separação, mas com guarda partilhada, tendo com a ex-mulher um relacionamento adequado do ponto de vista das responsabilidades parentais,

            48. A circunstância da prisão preventiva e o impacto desta nos direitos enquanto progenitor, são a principal preocupação de BB,

 49. O arguido descreve um percurso pessoal ausente de comportamentos aditivos ou delinquentes, sempre tendo estado inserido em termos sociais e profissionais, postura que mantém em relação ao presente processo judicial, perante o qual não assume qualquer responsabilidade, ainda que aceitando a intervenção judicial.

            50. No contexto prisional não se registaram dificuldades de adaptação ou de cumprimento das regras internas, enquadrando-se em actividades ocupacionais propostas, nomeadamente em termos desportivos.

 51. O arguido referencia no entanto dificuldades no acompanhamento em termos de saúde, queixando-se de arritmia cardíaca.

            52. BB prevê em termos futuros retomar o trajecto de vida que detinha antes da ocorrência da prisão preventiva, nomeadamente em termos profissionais e sobretudo em termos de suporte familiar aos progenitores, atenta a idade destes (75 e 70 anos), bem como de acompanhamento do processo de desenvolvimento da filha.

            53. EE nasceu na Alemanha, onde residiu até aos 5 anos de idade, tendo entretanto emigrado para a Sérvia, onde ficou aos cuidados dos avós paternos, por razões económicas dos progenitores, que permaneceram na Alemanha. Refere um contacto irregular com estes, condicionado sobretudo pelas dificuldades económicas, sendo com os avós, entretanto falecidos, com quem manteve um relacionamento afectivo mais próximo.

   54. Realizou um percurso escolar regular, concluindo o ensino secundário e formação profissionalizante na área da engenharia mecânica, tendo iniciado um percurso profissional no início da idade adulta.

  55. Descreve um percurso profissional integrado, essencialmente como motorista, por vezes por conta própria e de acordo com as solicitações de trabalho, mas sobretudo como motorista em transportes internacionais, tendo inclusive trabalhado para AA, co-arguido neste processo.

   56. Com cerca de 18 anos estabeleceu uma relação conjugal da qual tem 4 filhos, com idades compreendidas entre os 20 e os 24 anos.

  57. Com a ocorrência da separação conjugal, os filhos ficaram ao seu cuidado, mantendo-se, ainda6 no mesmo agregado, tendo os 3 mais velhos iniciado já actividade profissional, que contudo pela irregularidade e consequente instabilidade económica, se constitui como a principal preocupação do arguido, tido como a fonte de rendimento da família até à ocorrência da prisão preventiva.

 58. Paralelamente descreve ainda sequelas económicas resultantes de cheias ocorridas em 2014 na zona onde reside, com repercussões na habitação e que ainda se encontra a reabilitar e equipar.

   59. EE refere um percurso pessoal isento de problemáticas desviantes ou ilícitas, com exceção duma condenação por falsificação de documentos, ocorrida há cerca de 20 anos.

  60. Tem em relação ao presente processo uma postura de distanciamento, não se revendo na acusação.

61. Em contexto prisional revela adequado cumprimento das regras internas, sem dificuldades comportamentais e com adesão às atividades ocupacionais propostas.

            62. DD nasceu em Sarajevo (Bósnia), num contexto familiar tido como organizado e estável, trabalhando ambos os progenitores.

            63. Quando o arguido tinha cerca de 11 anos iniciou-se a guerra dos Balcãs, o que determinou uma situação vivenciada como muito crítica em termos de sobrevivência, tendo por esse motivo a família se deslocado entretanto para a Sérvia,

   64. O arguido frequentou a escola, apresentando um percurso sem dificuldades, concluindo o percurso escolar com formação como serralheiro-mecânico numa escola profissional.

   65. Ao início da idade adulta obteve entretanto carta de condução de veículos pesados, iniciando um percurso profissional como motorista.

  66. DD descreve um percurso profissional integrado, sem períodos de inatividade, sendo as mudanças de empregador relacionadas com a melhoria de condições de trabalho e de remuneração, enfatizando uma cultura de trabalho pela necessidade de ter uma situação económica e familiar equilibrada.

            67. Contraiu matrimónio com cerca de 27 anos, relação da qual tem dois filhos, com 8 e 6 anos respectivamente, descrevendo como harmonioso o contexto familiar.

            68. A esposa exerce funções como auxiliar num hospital.

   69. O arguido manifesta preocupação com o presente processo pelo impacto emocional e nas condições de vida da família, atenta a débil situação económica atual, dependente apenas do vencimento da esposa.

  70. DD não se revê no conteúdo da acusação, considerando-se alheio ao processo judicial.

            71. Perspetiva em teimas futuros o retomar do trabalho como motorista, tendo garantias de trabalho quando regressar, bem como a consolidação e estabilidade da situação económica da família.

            72. Em contexto prisional evidencia uma postura adequada e de colaboração, trabalhando desde há cerca de seis meses em actividades de faxina na cozinha.

            73. Os arguidos não registam condenações pela prática de crimes.

            74. O dinheiro apreendido a AA destinava-se a ser utilizada na realização daquele transporte.

            75. O GPS e o telefone satélite são utilizados durante a navegação para orientação desta e contacto de e para a embarcação.»

            2. Foram dados como não provados os seguintes factos:

            «A. Os arguidos se dedicavam, desde data concretamente não apurada, com carácter de habitualidade, a este tipo de actividade de tráfico.

            B. Os arguidos desenvolviam essa actividade delituosa em Portugal e em todo o espaço da União Europeia, fazendo parte de um grupo altamente organizado que se dedica ao tráfico internacional de estupefacientes.

 C. Não é conhecida qualquer ocupação estável e profissional aos arguidos, sendo que a venda de produtos estupefacientes constitui o seu modo de sobrevivência e um negócio com o qual obtinham avultados ganhos monetários e outras vantagens patrimoniais.

   D. O produto estupefaciente estava acondicionado no interior dos tanques de lastro da embarcação.

           E. Quando se criou aqueles compartimentos nunca se pensou em transporte de droga.»

          3. Consta da fundamentação da matéria de facto, e relevante atento o recurso apresentado, que

            - “Não nos mereceu credibilidade a versão apresentada pelos arguidos quanto a terem agido a coberto de ameaças de morte feitas por um tal ...” (cf. p. 11 do acórdão recorrido a fls. 1506);

            - “embora não se tenha provado que a droga pertencia aos arguidos - a qualquer um deles - provou-se que eles entraram na sua posse e a transportavam e que houve uma preparação para esse transporte, realizada peles arguidos AA e BB” (cf. p. 13 do acórdão recorrido a fls. 1507);

            - “Finalmente, resulta, de igual modo, do que se deixa dito, que o grande investidor e mentor do plano, foi AA. Foi ele quem aliciou, nos vários momentos, os restantes arguidos e os arregimentou; foi ele quem comprou o barco e custeou as reparações/remodelações; quem suportou as despesas com a tripulação; quem lhes iria pagar; quem tinha o ascendente no barco, sendo encarado, por todos, como o líder.” (idem).
B. Matéria de direito
1. A partir das conclusões apresentadas aquando da interposição do recurso pelos arguidos, e que delimitam o objeto de recurso e o âmbito dos poderes de cognição deste Tribunal, verificamos que apenas foi interposto recurso quanto à medida concreta da pena aplicada a cada um dos arguidos.

2.1. Todavia, consideramos que cabe ainda a este Supremo Tribunal de Justiça uma palavra sobre a qualificação jurídica dos factos.

Neste âmbito, assume particular importância o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 4/95, de 7 de junho (DR, I série-A, de 06.07.1995, p. 4298).

Pronunciando-se sobre se “o Supremo Tribunal de Justiça poderá ou não alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal dos factos recolhidos na instância recorrida e sobre os quais esta erigiu a decisão que, uma vez proferida, subiu em recurso à instância superior” (acórdão cit., p. 4298-9), entendendo que o que “está em debate é a admissibilidade ou não da qualificação jurídica dos factos feita na instância em caso de recurso, quando a mesma qualificação não esteja em debate, ou seja, não constitua objecto de impugnação” (acórdão cit., p. 4299), concluiu, e fixou jurisprudência, este Supremo Tribunal no sentido de que

“O tribunal superior pode, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efetuada pelo tribunal recorrido, mesmo que para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus”.

Isto mesmo veio a ser confirmado em legislação posterior. Na verdade, por força do disposto no art. 424.º, n.º 3, do CPP, introduzido pela Lei n.º 48/2007, de 29.08, “Sempre que se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na decisão recorrida ou da respectiva qualificação jurídica não conhecida do arguido, este é notificado para, querendo, se pronunciar no prazo de 10 dias.” Assim sendo, o legislador acabou por consagrar a possibilidade de alteração da qualificação jurídica em sede de recurso, pese embora seja necessário assegurar o competente direito de defesa, na linha do que vinha sendo defendido pelo Tribunal Constitucional — cf. acs. n.ºs 22/06, 596/96, 279/95 e 518/98).

Na verdade, apenas se tornou claro através da letra da lei aquilo que a doutrina há muito vinha defendendo:

- “o tribunal é livre na qualificação jurídica dos factos que são levados a juízo e sobre os quais tem e deve, fundamentadamente (art. 210.º, n.º 1 CRP), que decidir. (...) Não se alterando pois o objecto do processo, a qualificação jurídica pelo tribunal é totalmente livre” (Frederico Isasca, Alteração substancial dos factos e sua relevância no processo penal português, Coimbra: Almedina, 1992, p. 101 e 104-5);

- “o objecto do processo não deixará de ser o mesmo só porque a sua qualificação jurídica tenha variado (...) É pois indiferente o nomem iuris” (Castanheira Neves, Sumário de Processo Criminal (1967-1968), ed. policopiada Coimbra, 1968, p. 223);

- “não obstante o tribunal de recurso poder alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efectuada pelo tribunal recorrido, ainda que para crime mais grave, não pode agravar a sanção aplicada ao arguido pela sentença recorrida. (...) pode oficiosamente alterar a qualificação jurídico-penal e até agravar a incriminação, mas não pode, contudo, agravar a sanção que já fora aplicada” (Mara Lopes, O princípio da proibição da Reformatio in Pejus como limite aos poderes cognitivos e decisórios do tribunal — sentido e verdadeiro alcance, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, Vol. III, Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 983 e 985);

- ou mais recentemente: “a qualificação jurídica dada aos factos na acusação fixa o limite quantitativo da pena a aplicar no processo, ou seja, o tribunal não pode aplicar pena mais grave do que a que resultaria se a qualificação na acusação fosse correta. O tribunal pode qualificar diversamente os factos, desde que não se altere o sentido da acusação, mas do mesmo modo que a alteração não substancial dos factos (...) não envolve alteração da medida da pena aplicável, também assim deve ser com a mera alteração da qualificação jurídica.” (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal português, Vol. I, 2.ª ed., Lisboa: UCP, 2017, p. 387).

Por tudo isto, entendemos que este Supremo Tribunal pode analisar, e eventualmente alterar, a qualificação jurídica dada aos factos provados, ainda que sempre com respeito pelo princípio da reformatio in pejus.

Vejamos.

2.2. Os arguidos vêm condenados por crime de tráfico de estupefacientes agravado por, nos termos do art. 24.º, al. c), do Decreto Lei n.º 15/93, se considerar que procuravam obter avultada compensação económica.

Na verdade, pese embora não se tenha conseguido apurar se o produto estupefaciente pertencia a algum dos arguidos (cf. fundamentação da matéria de facto transcrita supra), o certo é que foi dado como provado que os arguidos entraram na posse da droga e que esta se destinava a ser cedida, vendida e distribuída a terceiros (cf. facto provado 4), com vista a ser introduzida no mercado europeu (cf. facto provado 8); para tanto os arguidos realizaram todos os atos de transporte até à Europa (Portugal) (cf. factos provados 4, 8 e 18). Em parte alguma da matéria de facto provada se refere que o lucro proveniente da venda do produto estupefaciente a terceiros reverteria para os aqui arguidos, nem sequer ficou provado que eram os donos da droga. Apenas ficou provado que organizaram o transporte do produto estupefaciente.

Ora, tendo em conta que este mesmo coletivo de Juízes Conselheiros em anterior acórdão (de 12.04.2018, no âmbito do processo n.º 140/15.1T9FNC.L1.S1), e aderindo ao já exposto em outra decisão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 07.11.2016, prolatada no âmbito do processo n.º 145/14.0JAFUN.L1.S1 (Relatora: Conselheira Isabel Pais Martins), considerou que constitui um elemento preponderante, para que se possa integrar os factos no âmbito do tipo legal de crime de tráfico de estupefacientes agravado, constante do art. 24.º, al. c), do Decreto Lei n.º 15/93, que se tenha concluído serem os transportadores os donos da droga a auferir o previsível rendimento proveniente  da venda de tão avultadas quantidades de droga, e uma vez que foi dado como provado apenas que os arguidos organizaram o transporte da droga e por isso tinham na sua posse o produto estupefaciente, e porque foi expressamente referido que não se deu como provado que a droga pertencesse aos arguidos ou a qualquer um deles (cf. transcrição supra), somos forçados a concluir não estar preenchida a agravante, pelo que os arguidos devem ser punidos pelo crime de tráfico de estupefacientes, previsto no art. 21.º, n.º 1, do Decreto Lei n-º 15/93.

Na verdade, não existe na matéria de facto provada qualquer comprovação de que os arguidos tivessem realizado o transporte tendo em vista obter ou procurar obter os proventos decorrentes da venda da droga; e tendo sido considerado que apenas organizaram o transporte, sendo um dos arguidos (AA) o mentor deste plano, mas sem que ficasse provado que eram os donos da droga, necessariamente temos que concluir não estar preenchida a agravante.

Tal como foi decidido no acórdão deste Tribunal de 07.11.2016 (e seguido de perto num mais recente acórdão de 12.04.2018) “Todos os arguidos foram condenados pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes com a agravação da alínea c) do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro [«O agente obteve ou procurava obter avultada compensação remuneratória»].

De reter que a agravante reclama que o agente obtenha ou procure obter uma avultada compensação remuneratória, para si, não se preenchendo a mesma quando o agente não obtém ou não procure obter, para si, mas para terceiro, uma avultada compensação remuneratória.

 Outra interpretação não respeitaria o princípio da legalidade. Para que o âmbito da circunstância fosse alargado à obtenção, concretizada ou tentada, de avultada compensação remuneratória, para terceiro, seria necessário que a circunstância o previsse, por exemplo, com a redacção «o agente obteve ou procurava obter, para si ou para outrem, avultada compensação remuneratória”.

É certo que a quantidade de produto estupefaciente apreendido, com algum grau de pureza, permite-nos considerar que que se tratou de uma atividade de considerável dimensão, e que permitiria a obtenção de avultada compensação económica quando se procedesse à sua comercialização na Europa e/ou em Portugal. Aliás, ficou mesmo provado que se pretendia introduzir esta droga no mercado europeu (cf. factos provados 4 e 8). Porém, também aqui (à semelhança dos casos julgados no âmbito dos processos supra referidos) teremos que concluir que isto “não é o mesmo que afirmar que todos e cada um dos arguidos beneficiaram dos elevados lucros obtidos, com a comercialização dos (...) Kg de cocaína, e/ou beneficiariam dos elevados lucros que seriam proporcionados pela comercialização dos (...) Kg de cocaína, obtendo, cada um deles, para si, uma valiosa compensação remuneratória ou visando obter, cada um deles, para si, uma valiosa compensação remuneratória. (...)

Certamente que, com as actividades descritas, obtiveram e visavam obter compensações remuneratórias(...). Mas coisa diferente seria caber-lhes os lucros da venda da cocaína.”

Não nos restam dúvidas que com a atividade desenvolvida os arguidos iriam obter algum rendimento, tal como foi dado como provado no facto 16. Mas, nem mesmo o principal arguido, que teria organizado o transporte (cf. facto provado 8) e que iria pagar aos restantes arguidos que participaram naquele (cf. facto provado 16), foi considerado como o dono da droga e aquele que iria auferir os rendimentos da venda do produto estupefaciente.

Por fim, deve ainda considerar-se que “a agravação não pode inferir-se unicamente da grandeza do negócio pois claramente depende da posição que o agente ocupe no mesmo e sempre careceria da prova positiva da compensação remuneratória obtida ou procurada. (...) [N]ão é isso que resulta dos factos provados.” (acórdão do STJ, de 2016, supra citado)

Ora, também nos presentes autos verificamos que os arguidos apenas organizaram o transporte do estupefaciente sem que ficasse provado que seriam os aqui arguidos aqueles que iriam vender a droga; não está dado como provado a quem se destinava a droga, sendo certo que também não foi provado que os aqui arguidos fossem os últimos elementos da cadeia que iriam receber a droga, tanto mais que apenas se provou que o seu propósito era somente o de transportar a droga “com o fim de a introduzir na Europa” (cf. facto provado 8), sem que se tivesse provado que seriam os arguidos que a iriam integrar no mercado europeu.

De tudo o exposto consideramos não estar preenchida a agravante prevista no art. 24.º, al. c), do Decreto Lei n.º 15/93, pelo que concluímos que os arguidos AA, BB, GG, DD e EE praticaram, em co-autoria, um crime de tráfico de estupefacientes, previsto no art. 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22.01,e pelos quais devem ser condenados, e determinada a pena no âmbito da moldura legalmente prevista, isto é, entre 4 e 12 anos de prisão.

3. A determinação da pena, realizada em função da culpa e das exigências de prevenção geral de integração e da prevenção especial de socialização (de harmonia com o disposto nos art. 71.º, n.º 1 e 40.º do CP), deve, no caso concreto, corresponder às necessidades de tutela do bem jurídico em causa e às exigências sociais decorrentes daquela lesão, sem esquecer que deve ser preservada a dignidade humana do delinquente. Para que se possa determinar o substrato da medida concreta da pena dever-se-á ter em conta todas as circunstâncias que depuserem a favor ou contra os arguidos, nomeadamente, os fatores de determinação da pena elencados no art. 71.º, n.º 2 do CP. Nesta valoração o julgador não poderá utilizar as circunstâncias que já tenham sido utilizadas pelo legislador aquando da construção do tipo legal de crime, e que tenha tido em consideração na construção da moldura abstrata da pena (assegurando o cumprimento do princípio da proibição da dupla valoração).

Nos presentes autos verificamos que os arguidos participaram e organizaram uma atividade de transporte de uma grande quantidade de produto estupefaciente, demonstrando alguma perícia na forma como a  esconderam na embarcação. Ora, o crime praticado suscita fortes exigências de prevenção. Como se sabe estamos perante um crime de perigo abstrato, protetor de diversos bens jurídicos pessoais, como a integridade física e a vida dos consumidores, mas em que o bem jurídico primariamente protegido é o da saúde pública. Ou, mais precisamente, “o escopo do legislador é evitar a degradação e a destruição de seres humanos, provocadas pelo consumo de estupefacientes, que o respectivo tráfico indiscutivelmente potencia. Assim, o tráfico põe em causa uma pluralidade de bens jurídicos: a vida, a integridade física e a liberdade dos virtuais consumidores de estupefacientes; e, demais, afecta a vida em sociedade, na medida em que dificulta a inserção social dos consumidores e possui comprovados efeitos criminógenos” (ac. do TC n.º 426/91, http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19910426.html); ou nas palavras de Lourenço Martins (Droga e direito, Lisboa: Æquitas/Ed. Notícias, 1994, p. 122) “o bem jurídico primordialmente protegido pelas previsões do tráfico é o da saúde e integridade física dos cidadãos vivendo em sociedade, mais sinteticamente a saúde pública. (…) Em segundo lugar, estará em causa a protecção da economia do Estado, que pode ser completamente desvirtuada nas suas regras (…) com a existência desta economia paralela ou subterrânea erigida pelos traficantes”.

Tendo em conta a quantidade de produto estupefaciente que transportaram, assim como a sua relativa pureza, e a forma como tentaram ocultar o seu transporte na embarcação, apresentando alguma sofisticação de meios — “como declararam de forma unânime os Inspectores da Polícia Judiciária, a droga estava acondicionada por trás de paredes falsas, existentes em ambos os lados da embarcação (...)e  a referida abertura, se existia, foi tapada e dissimulada de forma tão perfeita (com camadas de gesso, tinta, ou mesmo com o mesmo material do resto da parede - fibra de vidro, depois pintada) que, quem olhasse para ela não encontraria (como não encontrou) qualquer abertura, tendo sido necessário recorrer a um endoscópio para 'descobrir' a droga, como referiram de forma unânime todos os inspectores da P.J.” (cf. fundamentação da matéria de facto, p. 12 do acórdão a fls. 1506/verso) —, revela uma atitude marcadamente contra o direito, a determinar um limite da pena elevado imposto pela culpa dos arguidos.

Para além disto, as exigências de prevenção geral são elevadas; mas também são elevadas as exigências de prevenção especial. Todavia, neste ponto cabe-nos salientar que nenhum dos arguidos apresenta antecedentes criminais, e pareciam estar integrados na sociedade, pese embora as dificuldades que apresentavam. Além disso, todos apresentam bom suporte familiar e bom comportamento no estabelecimento prisional.

Tendo em conta estes elementos consideramos como sendo adequada a aplicação de

- pena de prisão de 10 (dez) anos ao arguido AA,

- pena de prisão de 9 (nove) anos ao arguido BB,

- pena de prisão de 8 (oito) anos ao arguido CC,

- pena de prisão de 8 (oito) anos ao arguido DD  e

-  pena de prisão de 8 (oito) anos ao arguido EE .


III

Conclusão


Nos termos expostos, acordam em conferência na secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça conceder parcial provimento ao recurso interposto e, revogando a decisão recorrida, condenar os arguidos AA, BB, CC, DD e EE pela prática de um crime de estupefacientes, nos termos do art. 21.º, do Decreto Lei n.º 15/93, de 22.01, nas seguintes penas:

- pena de prisão de 10 (dez) anos para o arguido AA,

- pena de prisão de 9 (nove) anos para o arguido BB,

- pena de prisão de 8 (oito) anos para o arguido CC,

- pena de prisão de 8 (oito) anos para o arguido DD  e

-  pena de prisão de 8 (oito) anos para o arguido EE .

No mais mantém-se a decisão recorrida.

Não são devidas custas.

Supremo Tribunal de Justiça, 21 de junho de 2018

Os juízes conselheiros,

Helena Moniz

Nuno Gomes da Silva