I - Como decorre do art. 69º, n.ºs 1 e 2, al. c), do CPP os assistentes têm a posição de colaboradores do MP, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo, salvas as excepções da lei, mas podem interpor recurso das decisões que os afectem mesmo que o MP o não tenha feito. Completando o quadro legal sobre a intervenção dos assistentes no processo – além de outras situações que não vêm ao caso – define-se no art. 401.º, n.º 1, al. b) que os assistentes têm legitimidade para recorrer de decisões contra eles proferidas mas, assim decorre do n.º 2 do artigo, a contrario, só o podem fazer se tiverem interesse em agir.
II - O interesse em agir do assistente, em sede de recurso, implica a necessidade de ele lançar mão desse meio para procurar modificar uma decisão que comporte para si uma desvantagem, que frustre uma sua expectativa ou interesse legítimos, a significar que ele só pode recorrer de uma decisão com esse alcance. Se a decisão não inflige uma desvantagem não tem o assistente interesse juridicamente protegido na sua correcção, não lhe assistindo, por isso, a possibilidade de recurso.
III - Então, o texto da al. b) do n.º 1 do art. 401.º já abrange o interesse em agir, ao exigir, para além da qualidade de assistente, que a decisão seja proferida contra ele, ou seja, que lhe cause prejuízo ou frustre uma expectativa ou interesse legítimos. O assistente tem interesse em pugnar pela modificação de uma decisão que não seja favorável às suas expectativas. Para ele poder recorrer, não haverá que fazer-lhe outras exigências para além das que o art. 401.º, n.º 1, al. b), comporta: que a decisão seja relativa a um crime pelo qual se constituiu assistente (legitimidade) e seja contra ele proferida (interesse em agir).
IV - Se, em abstracto, o assistente tem um interesse próprio e concreto na resposta punitiva do Estado esse interesse pode ter-se como satisfeito, neste caso, com a condenação do arguido pela prática do crime de homicídio na pessoa da filha da assistente diferente da proposta pela acusação formulada? Ainda que as finalidades da punição que justificam a espécie e a medida da pena, não visam dar satisfação ao ofendido pelo crime, usando a argumentação do AFJ 5/2011, que se abordoa, por seu turno, na lição da doutrina não pode escamotear-se que o assistente tem também um interesse próprio e concreto na resposta punitiva que é justaposto ao interesse comunitário na realização da justiça. Nessa justaposição entre o interesse comunitário na administração da justiça penal e o interesse concreto do assistente em que a justiça penal dê resposta adequada à ofensa causada é que deve ser encontrado «o fundamento para a possibilidade de recurso autónomo do assistente em matéria penal». Usando o ensinamento da doutrina crê-se que «enquanto assistente, ele tem o poder de procurar conformar a resposta à questão penal, que engloba quer a questão da culpa quer a questão da pena. Logo, se através da operação de determinação da medida da pena em sentido amplo o Tribunal chegar a uma decisão contrária à pretensão manifestada pelo assistente no processo e que ofenda o seu concreto interesse na justeza da punição (…), dessa decisão deverá o assistente ter a faculdade de recorrer de forma autónoma».
V - Por isso se podem colocar reticências à posição expressa no acórdão deste STJ de 2012-01-18 quando ali se afirma que a decisão que condene o arguido como autor de um crime de homicídio simples não poderá considerar-se proferida contra o assistente se houver discordância no estrito aspecto da qualificação jurídico-penal dos factos pois, em última análise, o assistente «não pretende propriamente uma discussão jurídica sobre a correcta qualificação dos factos mas sim o agravamento da pena através da alteração da qualificação» e «tal agravamento insere-se no exercício do “jus puniendi” do Estado que ao MP cabe promover, e cabendo a promoção de tal interesse ao MP, o assistente não pode recorrer por falta de interesse em agir».
VI - A correcta qualificação jurídica dos factos e a discussão que se faça a propósito é uma concreta e pertinente questão que interfere com a justiça da decisão ainda que paralela e concomitantemente acabe por interferir com a determinação da medida da pena. Não se afirmará decerto que é indiferente para o assistente – como para o interesse comunitário – que a dimensão do tipo de culpa ou do tipo de ilicitude, aferida essa dimensão pela qualificação, seja uma ou seja outra.
VII - No caso em apreço, de um modo singelo em benefício da clarificação da ideia, pode dizer-se que relativamente à imputação feita na acusação considerando qualificado o homicídio pelas als. b) e e) do art. 132.º, n.º 2, do CP terá havido uma absolvição relativamente a essa imputação da qualificação pela sobredita al. e). O que se afigura ser suporte bastante para a invocação pela assistente de um interesse próprio em agir sufragado até – pode afirmar-se – pela posição do MP que menosprezando o dever imposto pelo art. 53.º, n.º 1, de colaborar na realização do direito, obedecendo em todas as intervenções processuais a critérios de estrita objectividade, não recorreu de uma decisão de que discordou mas “aderiu” ao recurso da assistente.
VIII - Se há sempre desproporcionalidade flagrante entre o cometimento de um homicídio e a razão que o motiva, seja ela qual for, para se considerar a existência de um «motivo fútil» haverá de ponderar-se uma desproporcionalidade superlativa, perante um motivo acerca do qual se conclua ser insignificante; um motivo que estando na base da reacção de quem pratica o crime, não pode sequer com grau mínimo de inteligibilidade explicar a conduta levada a cabo, que não tem relevo algum. Refere a jurisprudência que «para se avaliar se um motivo é fútil tem que se relacionar a gravidade do comportamento com o móbil do crime. E então, se nenhum motivo justifica causar a morte de outrem (daí ser crime), a grande desproporção entre o que se elege como motivo da acção e aquilo em que esta se analisa, transforma a conduta, não só em algo intolerável, como também em algo absurdo, sem explicação, à luz das concepções éticas correntes, da sociedade. A razão do cometimento do crime tem um valor irrisório para o normal dos cidadãos, comparado com o mal que se provoca com este».
IX - Dir-se-á com recurso ao aforismo, de um modo porventura mais expressivo somente em abono da clarificação da ideia, que é merecedor de um juízo de especial censurabilidade quem «por dá cá aquela palha» age contra um terceiro com o propósito de lhe tirar a vida.
X - Ainda que se atenda à circunstância de a discussão ter sido encetada depois da recusa da vítima em manter relações sexuais a questão é a de precisar que desenvolvimentos teve essa discussão, como foi mantida pois nada teria impedido o arguido de logo após a atitude de recusa da vítima ter procedido como veio a proceder. Mas entretanto, outros desenvolvimentos houve, mormente uma agressão à vítima já durante a referida discussão. Os ciúmes do arguido é uma causa possível da discussão, mas disso não passa de possível. Como já afirmou a jurisprudência deste STJ mesmo que um determinado motivo possa ser lido nas entrelinhas não pode uma decisão abdicar do necessário grau de exigência que tem de verificar-se na operação de subsumir uma determinada conduta num tipo criminal. Sem esse nível de exigência sobra a dúvida e esta só pode favorecer o arguido.
1. – No âmbito do processo nº 292/16.3JAFAR.S1 do Juízo Central Criminal de …, Juiz …, da Comarca de Faro, AA foi julgado e condenado:
- pela prática de um crime de homicídio qualificado, dos artigos 14º, nº 1, 131º e 132º, nºs 1 e 2, alínea b), na pena de 19 anos de prisão;
- pela prática de um crime de profanação de cadáver, dos artigos 14º, nº 1 e 254º, nº 1, na pena de 6 meses de prisão.
- pela prática de um crime de coacção agravado, na forma tentada, dos artigos 14º, nº 1, 22º, 23º, 73º, 154º, nº 1, 155º, nº 1, al. a) por referência ao art. 131º, na pena de 6 meses de prisão.
As disposições citadas são do Código Penal.
Em cúmulo das penas referidas foi condenado na pena única de 19 anos e 4 meses de prisão.
Na procedência parcial do pedido civil de indemnização deduzido pela assistente BB foi condenado a pagar-lhe €100.000 a título de danos não patrimoniais, a que acrescem juros de mora de 4%, desde o trânsito em julgado até efectivo e integral pagamento.
A assistente BB interpôs recurso formulando na motivação as seguintes conclusões (transcrição):
1ª - O arguido vinha acusado, entre outros, pela prática de um crime de homicídio qualificado p.p. pelos artigos 131°, 132° n.° 1 e n.° 2 alíneas b) e e) do código penal.
2ª - Realizada a audiência de julgamento, face a factualidade provada e não provada e respetiva e motivação de facto e de direito, o tribunal " a quo" entendeu condenar o arguido pela prática de um crime de homicídio qualificado, mas apenas nos termos previstos nos artigos 131° e 132° n.° 1 e n.° 2 alínea b), considerando pois que o homicídio não é qualificado pelo exemplo padrão da alínea e) do n.° 2 do artigo 132° do Código Penal.
3ª - Discorda a assistente que a qualificação do crime de homicídio praticado pelo arguido se faça apenas pela alínea b) do n.° 2 do artigo 132° do código penal.
4ª - Aceita a assistente que não se provou que tenham sido os ciúmes do arguido que tenham levado a que este tirasse a vida à ofendida, ou, ainda que tal ficasse provado fosse suficiente para qualificar o crime de homicídio pela alínea e) do n.° 2 do artigo 132° do código penal.
5ª - Entende no entanto a assistente que o motivo impulsionador, que efetivamente veio a desencadear as ações do arguido que vieram por seu lado a provocar a morte de CC foi tão só a recusa desta em ter relações sexuais com o arguido. Com efeito, a não existir esta recusa, pelo menos naquela altura, não tinha tido lugar qualquer discussão e não teria ocorrido a morte CC nas circunstâncias em que ocorreu.
6ª - Considera ainda a assistente que a recusa em ter relações sexuais com o arguido é completamente desproporcional ao resultado pretendido e conseguido pelo arguido, ou seja a morte de CC.
7ª - A insignificância do motivo que levou a morte de CC, não pode, no modesto entendimento da assistente, deixar de constituir um motivo fútil.
8ª - Nessa medida, deverá o crime de homicídio praticado pelo arguido na pessoa de CC, ser qualificado quer pela alínea b) quer pela alínea e) do n.° 2 do artigo 132° do código penal.
9ª - Sendo certo que tal qualificativa importará um acréscimo de culpa do arguido, assim como acentuará as necessidades de prevenção geral e especial.
10ª - Importando por isso, levar em consideração na determinação da medida concreta da pena estes novos elementos.
11ª - Pelo exposto, e qualificando-se o crime de homicídio também pela alínea e) do n.° 2 do artigo 132° do código penal, deverá a pena de 19 anos prisão aplicada ao arguido, ser revista em alta, alterando-se a mesma para valores muito perto do limite máximo permitido pela moldura penal do crime em causa, ou seja dos 25 anos de prisão.
Ao condenar o arguido relativamente ao crime de homicídio qualificado apenas pelo exemplo padrão previsto na alínea b) do n.° 2 do artigo 132 do código penal, aplicando-lhe uma pena de 19 anos de prisão está o tribunal "a quo" a violar o disposto nos artigos 40° n.° 2, 71° e 132° n.° 2 alínea f) do código penal, uma vez que tais normas, em face dos pressupostos de que depende a sua aplicação justificam "in casu" a aplicação de mais severa condenação, o que se requer.
O magistrado do Ministério Público (que não recorreu) apresentou resposta ao recurso manifestando a sua concordância com o pedido.
Neste Supremo Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto deu o seguinte parecer (transcrição com excepção do breve relatório):
II. - Como se disse, apesar de admitido (376), entendemos deve rejeitado, por falta de interesse em agir da assistente.
1. Estabeleceu o AUJ n.º 8/99, publicado no DR 185/99 SÉRIE I-A, de 10.08.1999:
O assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir.
Vejamos o caso.
Como decorre das respectivas conclusões, visa a recorrente a condenação do arguido pelo crime de homicídio qualificado, também, pela alínea e), do n.º 2, do artigo 132.º, do Código Penal, o que, na sua perspectiva, «importará um acréscimo de culpa…», «Importando por isso, levar em consideração a medida concreta da pena…» que «deverá… ser revista em alta, alterando-se a mesma para valores muito perto do limite máximo permitido pela moldura penal do crime em causa, ou seja dos 25 anos de prisão».
Anote-se que, de forma expressa, a recorrente refere que o pedido de indemnização civil não é objecto do recurso – vide n.º s 36 a 48, de fls. 365.
2. Como primeira premissa, tem-se, pois, por assente, que a assistente, com fundamento em acrescida circunstância qualificativa que entende por verificada, pretende a agravação da pena que foi fixada ao arguido.
E assim sendo, apenas nos permitimos fazer apelo, a este propósito, o Acórdão deste STJ de 7-05-2009, publicado na CJ (STJ), 2009, Tomo II, pág. 203 [relator Souto de Moura], e assim sumariado em www.dgsi.pt:
«I - O princípio da oficialidade, que domina o nosso processo penal, faz do MP o detentor da acção penal, assumindo a queixa, ou a constituição de assistente e a dedução de acusação particular, a natureza de condições de procedibilidade, nos casos em que são exigidas para que haja procedimento criminal.
II - Por outro lado, a realização dos fins das penas é de interesse público, e está ao serviço, mesmo no caso dos crimes semi-públicos e particulares, de toda a comunidade. Não é uma pretensão que se identifique só ou prevalentemente com o interesse da vítima, do ofendido, ou de quem os represente. Daí que, desse carácter público do ius puniendi, se tenha que fazer eco o próprio processo penal.
III - O que dito fica não obsta a que o nosso sistema tenha integrado uma componente acusatória particular, através do assistente, mas que surge necessariamente numa posição subordinada em relação ao MP, e é apresentado como colaborador deste. Ou seja, como auxiliar do MP, na prossecução das finalidades que compete a este levar por diante, sob pena de se postergar o princípio da oficialidade acima invocado.
IV - É o que consagra o art. 69.º do CPP, no seu n.º 1, certo que se previnem aí situações pontuais, em que o assistente pode actuar com autonomia em relação ao MP. É o caso da hipótese da al. c) do nº 2 do preceito, em que se permite a interposição de recurso por parte do assistente, desacompanhado do Mº Pº, das decisões que o afectem.
V - O art. 401.º do CPP refere-se, no seu nº 1, à legitimidade dos vários sujeitos processuais para recorrer e, no seu nº 2, distingue esta legitimidade do interesse em agir. Afirma então que “Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir”. A propósito deste normativo, o Acórdão 9/99 do Pleno deste STJ, de 30-10-97 (DR II Série - A, de 10-08-99), considerou que “O assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir”.
VI - Não pode evidentemente extrair-se desse assento, a contrario, que haveria sempre interesse em agir, não estando em causa a espécie e medida da pena.
VII - Enquanto que a legitimidade do assistente se avalia para efeito de recurso, à partida, face ao seu posicionamento no processo perante a decisão proferida, assumindo pois um carácter mais subjectivo e formal, o interesse em agir resultará da análise da pretensão do recorrente, em concreto, quando confrontada com a respectiva necessidade ou indispensabilidade para fazer vingar um direito ou interesse seu. Em matéria de legitimidade averiguamos quem pode recorrer, e no domínio do interesse em agir apreciamos que interesse tem a pessoa que quer recorrer, em interpor aquele concreto recurso. É dizer, averiguamos se o direito ou interesse prosseguido pelo assistente é atendível para o efeito, tendo em conta o respectivo estatuto processual e, no limite, aquilo que se pretende com a punição.
VIII - A jurisprudência não tem, a este respeito, sido uniforme, e pode na verdade exigir-se, numa posição mais restritiva, que o assistente tem que demonstrar que só através do recurso assegura a tutela de um direito subjectivo seu. No extremo oposto estarão todos quantos entendem que a simples discordância do assistente em relação à justiça da decisão lhe atribui a possibilidade de recorrer confundindo-se legitimidade com interesse em agir. A nosso ver, a solução deverá situar-se, partindo da análise do caso concreto, num campo em que se evite a transposição pura e simples, para o domínio penal, da doutrina civilística dos pressupostos processuais, mas obviando também à subversão do princípio da oficialidade do processo penal bem como do papel do MP.
IX - O sancionamento penal dos delinquentes satisfaz um interesse colectivo que compete ao MP prosseguir. Não existe um direito pessoal público do assistente a uma certa punição, como única forma de reparação moral sua, de tal modo que lhe fosse permitido exigir determinada prestação do tribunal na satisfação desse desiderato. Prestação que se cifraria numa decisão, em que se considerassem provados certos factos, que implicassem certa qualificação, e a aplicação de certa pena, pretendida pelo assistente.
X - Se a punição do arguido está dominada por um interesse público, não pode competir ao assistente ser ele o intérprete do interesse colectivo, designadamente se conflituar com a posição assumida a esse respeito pelo MºPº. No que contende com o cerne do ius puniendi do Estado, o assistente não pode pois deixar de estar subordinado ao MP.
XI - Daí que, sempre que o assistente pretenda recorrer desacompanhado do MP, não interesse tanto discriminar as situações em que terá um interesse em agir relevante (na linha do assento, concreto e pessoal), mas tão só excluir da possibilidade de recurso aquelas situações em que o assistente se confina ao interesse geral da justiça da punição do delinquente, porque esse é um interesse colectivo, e não pessoal, seu. Assistente que nestes autos, sublinhe-se nem sequer foi vítima do crime».
É exactamente o mesmo entendimento adoptado na decisão sumária, de 7 de Março de 2014, processo 761/11.1PBVFX.L1.S1, em que as assistentes fundavam o recurso na «desadequada qualificação jurídica dos factos, a errada valoração das circunstâncias mencionadas no art. 71º para efeito da determinação da medida da pena».
Citando o acórdão acima referido, concluiu: «Ora, em crimes públicos, é ao Ministério Público que compete acautelar as exigências de prevenção e a ressocialização do delinquente.
Não se tratando, pois, de decisão contra os assistentes proferidas, falece-lhes interesse em agir, o que leva à rejeição do recurso por constituir causa que devia ter determinado a sua não admissão, face ao disposto nos arts. 420º nº 1 al b) por referência aos arts. 4141º nº 2 e 401º nº 1 al b) e nº 2, todos do Código de Processo Penal.»
Sublinhe-se que, no caso em apreço, o Ministério Público, embora concordando com a assistente, não recorreu.
III. - Em suma: Limitado o recurso à medida concreta da pena aplicada, ou seja, ao interesse geral da justiça da punição, interesse esse de índole colectiva, que não individual ou pessoal, e não demonstrado um concreto e próprio interesse em agir, carece a recorrente de interesse em agir, o que conduz à rejeição do recurso.
Foi cumprido o art. 417º, nº 2 CPP tendo a assistente apresentado resposta em que salienta a circunstância de a requerida alteração da pena ser consequência da incorrecta qualificação jurídica e de, na supressão dessa incorrecção, haver da sua parte um interesse próprio e concreto em agir pelo que o recurso deve ser admitido.
2. – O resultado do julgamento quanto aos factos provados foi o seguinte (transcrição cingida à parte criminal pois só esta está em causa no âmbito do recurso):
1. O arguido e CC iniciaram a relação de namoro em 2011, quando esta tinha apenas 16 anos de idade.
2. Quando iniciaram o namoro, o arguido e CC viviam em Beja.
3. Devido à diferença de idades do casal, cerca de 16 anos, a família de CC sempre se opôs ao relacionamento amoroso entre ambos.
4. Não obstante, o arguido e CC continuaram a namorar.
5. O relacionamento não foi ininterrupto, ficando, por vezes, separados.
6. Os motivos das interrupções do relacionamento amoroso entre o arguido e CC tinham que ver, sobretudo, com os ciúmes daquele.
7. Concretamente, o arguido não gostava que CC saísse com as suas amigas, conversasse com amigos e vestisse roupas curtas ou decotadas.
8. Em 17 de Março de 2016, o arguido e CC decidiram viver juntos, isto é, em comunhão de cama, mesa e habitação, na região do ….
9. Inicialmente viveram num quarto arrendado de um edifício situado na baixa da cidade de ….
10. Em data não apurada, mas em meados de Agosto de 2016, o arguido encontrava-se em casa com CC e uma amiga desta, DD.
11. Na sequência de CC lhe ter dito que iria sair com a amiga, o arguido proferiu, em tom de sério e calmo, na direcção desta a seguinte expressão: “é melhor levares o cão à rua antes de saíres, senão quando chegares ele está morto e tu também”.
12. No dia 1 de Setembro de 2016, o arguido e CC foram viver, temporariamente, para a residência de EE, amiga de CC, sita em Praceta …, Lote C, n.º …, 7.º esq., em ….
13. Durante o mês de Setembro de 2016, CC saiu de casa e dormiu pelo menos três noites fora, não dando qualquer explicação a EE.
14. No dia 27 de Setembro de 2016, cerca das 10h:00 horas., o arguido e CC estavam a dormir no quarto de ambos.
15. O arguido quis ter relações sexuais com CC, mas esta recusou-se.
16. Em ato contínuo, o arguido começou a discutir verbalmente com CC.
17. Após, o arguido, utilizando a sua força muscular, desferiu uma bofetada na face de CC, tendo esta caído para o chão.
18. O arguido colocou-se então sobre as costas de CC.
19. Nesse momento, o arguido puxou o fio eléctrico do aquecedor que se encontrava perto dos pés da cama e enrolou-o à volta do pescoço de CC, puxando o mesmo.
20. O arguido só parou de apertar o fio eléctrico à volta do pescoço de CC quando esta deixou de contorcer-se, isto é, evidenciar qualquer reacção.
21. Após, o arguido virou ao contrário o corpo de CC, tapou-o com duas mantas, umas toalhas e uma camisa e saiu do quarto.
22. Da conduta levada a cabo pelo arguido resultaram para CC várias lesões.
23. Ao nível do hábito externo:
a. - pescoço: escoriação, de fundo vermelho, rectangular, aproximadamente horizontal, que iniciava na face anterolaterial direita do pescoço, mantinha-se pela face lateral direita do pescoço e terminava na face posterior direita do pescoço, apresentando uma largura máxima de 4 mm;
b. membro superior direito: escoriação, de fundo vermelho e contornos irregulares, no terço inferior da face posterior do braço, com 2 cm por 1 cm;
c. membro superior esquerdo: duas equimoses arroxeadas no terço superior da face posterior do braço, medindo respectivamente 6 cm por 3 cm e 6 cm por 2,5 cm; e
d. membro inferior direito: quatro escoriações de fundo vermelho e contornos irregulares, no joelho direito, medindo a maior 2 cm por 0,5 cm.
24. Ao nível do hábito interno:
a. Cabeça: partes moles: edema do couro cabeludo; infiltração sanguínea na região parietoccipital esquerda ao nível da face interna do couro cabeludo e da aponevrose epicraniana; nas meninges: hemorragia subdural em toalha ao nível da região frontal e parietal bilateralmente e da região occipital à esquerda.
b. Pescoço:- músculos: infiltração sanguínea do músculo esternocleidomastóideo à direita, ao nível do seu terço inferior; infiltração sanguínea ao nível do terço médio dos músculos esternohioideus bilateralmente; estruturas cartilagíneas: infiltração sanguínea ao nível do corno inferior esquerdo da cartilagem tiroideia.
25. Estas lesões foram causa necessária e adequada da morte de CC, verificada apenas no dia 28 de Setembro de 2016, pelas 17:20 horas.
26. Desde as 12:00 horas do dia 27 de Setembro de 2016 até às 14h:00 horas do dia seguinte, o arguido saiu e entrou, pelo menos, duas vezes de casa e não comunicou a ninguém que o corpo de CC se encontrava já cadáver no interior do quarto.
27. No dia 27 de Setembro de 2016, cerca das 22:30 horas, o arguido disse mesmo a EE que CC não estava em casa.
28. Considerando a compleição física do arguido e a sua posição sobre o corpo de CC, este sabia que a força com que puxava as duas pontas do fio eléctrico enrolado ao pescoço causava necessariamente a sua morte.
29. Adicionalmente, vendo o arguido que CC se encontrava no chão sem representar qualquer ameaça para si, mesmo assim decidiu, com recurso a um fio eléctrico, asfixiá-la, até a deixar sem sinais vitais.
30. Sabia ainda o arguido que se tratava da sua companheira.
31. O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, com o propósito concretizado de tirar a vida a CC, bem sabendo que se tratava da pessoa com a qual tinha uma relação análoga à dos cônjuges.
32. O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, sabendo que com tal ocultava o cadáver de CC, sem autorização de quem de direito.
33. O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, com o propósito de limitar a liberdade de determinação pessoal de CC, querendo-a obrigar a ir passear o cão, através de uma ameaça com prática de um crime de homicídio e punível com pena superior a três anos de prisão.
34. O arguido agiu com foros de seriedade e por forma a perturbar o sentimento de segurança de CC.
35. Conhecia ainda o arguido a proibição e punição das suas condutas.
(…)
40. AA é o elemento mais novo de uma fratria de três, de um agregado familiar com um estrato socioeconómico mediano, tendo o seu percurso educativo sido assegurado, face ao falecimento da mãe quando tinha um ano de idade, pela figura paterna apoiada pelas avós.
41. A dinâmica relacional que rodeou o processo de desenvolvimento do arguido foi caracterizado como normativo em termos psicoafectivos, sem referências a história familiar de vitimação e/ou exposição a modelos de relação de controlo na família (sendo que durante a infância verificou-se adequada e mútua vinculação afetiva com a então companheira do pai), assumindo a figura paterna as suas responsabilidades parentais ao nível de assegurar o bem estar socioeconómico dos descendentes e da transmissão de valores sociais, como a fomentação de hábitos de trabalho.
42. Com um percurso escolar isento de problemáticas até à conclusão do 9º ano de escolaridade, AA viria posteriormente a registar absentismo e/ou desmotivação face aos conteúdos lectivos pelo que - e pese embora a frequência escolar até cerca dos 20 anos, a alteração da área de estudos/ estabelecimento de ensino e/ou integração em curso técnico-profissional - não conclui o 10° ano de escolaridade.
43. A referida atitude de desresponsabilização escolar viria a ser igualmente registada ao nível laboral, apresentado AA um percurso a esse nível pautado pela instabilidade, aparentemente decorrente da dificuldade em ser assíduo/ pontual ou ainda de adaptação a orientações da entidade patronal face a uma centralização na sua perspectiva/ interpretação de determinada situação.
44. Com efeito e pese embora ter iniciado actividade laboral com cerca de 17 anos de idade (durante férias letivas), na globalidade, as diversas experiências laborais (maioritariamente no sector da construção civil el ou da restauração e para diversas entidades patronais) decorreram sem vínculo contratual e durante curtos períodos de tempo, sendo, contudo, de referir que os períodos de inactividade laboral não eram igualmente de longa duração.
45. Tendo o próprio associado as situações de absentismo laboral ao consumo excessivo de bebidas alcoólicas (no horário pós laboral ou nos dias de folga), nos contactos efectuados pelos técnicos da DGRSP não foram detectados indícios suficientes no sentido do referido consumo consubstanciar um quadro aditivo, sendo o padrão de consumo de bebidas alcoólicas desvalorizado e/ ou enquadrado em contextos de convívio social.
46. O arguido referiu ainda o consumo de substância psicoativa - cocaína -desde há vários anos mas em moldes pontuais.
47. Em termos afetivos, AA vivenciou, entre 2004 e 2008, uma relação marital que foi caraterizada pela então companheira como isenta de quaisquer comportamentos de violência física/ verbal ou de coação psicológica, tendo a rutura decorrido da iniciativa daquela e por motivos de divergência dos respetivos projetos de vida (atendendo a perspetiva imediatista/ instabilidade laboral de AA), situação aceite em moldes adequados pelo arguido.
48. Preso preventivamente à ordem do presente processo em 29 de Setembro de 2016, AA cumpre, desde 31 de Março de 2017, pena de prisão de 5 anos e 6 meses de prisão, pelo crime de violação, sendo a ofendida a vitima nestes autos.
49. Não pormenorizando nas entrevistas com a DGRSP a relação de namoro com CC / ofendida (denotando, inclusive, alguma resistência a esse nível mas rejeitando comportamentos de controlo protagonizados por si relativamente à ofendida), AA assumiu uma mútua ligação amorosa -que era contrariada quer pela sua família quer pela família daquela, restabelecida decorridos poucos dias dos fatos subjacentes (em Junho de 2015) à referida condenação e mantida em segredo ("namoraram às escondidas vários meses"), sendo que o pai proibira entretanto as visitas da ofendida ao domicílio familiar.
50. Mantendo-se integrado no agregado de origem - constituído pelo pai, irmã, cunhado, duas sobrinhas menores e residente em … - o arguido usufruía de um enquadramento relacional assente em sentimentos de solidariedade/entreajuda (colaborando, inclusive, nalgumas tarefas domésticas e/ou respeitando as regras familiares) mas aparentemente num quadro de ausência de uma afetiva comunicação dialogante no que concerne às suas vivências/sentimentos quotidianos. A esse nível, o arguido foi caraterizado como um elemento reservado relativamente à partilha de vivências/sentimentos num contexto familiar de assumida atitude critica da sua irregularidade laboral em oposição aos hábitos/rotinas laborais dos restantes elementos do agregado, encontrando-se o pai já na situação de reformado.
51. Quando inativo laboralmente, AA permanecia maioritariamente no domicilio e/ou frequentando os cafés sitos no bairro social, referindo um consumo de bebidas alcoólicas mais relevante (esporadicamente associado ao consumo de cocaína), sem integrar um grupo especifico de pares e regressando ao domicilio a horas tardias.
52. Pese embora a prolongada relação de namoro entre o arguido e a ofendida - sendo que esta frequentava regularmente o domicilio familiar de AA -, aparentemente não se verificou uma aproximação relacional entre a ofendida e a família do arguido, permanecendo maioritariamente o casal em causa no quarto individual do arguido.
53. À data dos factos subjacentes ao presente processo, o arguido encontrava-se a residir no … havia cerca de 6 meses face ao estabelecimento da relação marital com a ofendida em Março/2016, sendo que desde Setembro/2015 (período em que reintegrara o mercado de trabalho em …) se deslocava regularmente (nos fins de semana) ao …, onde a ofendida se encontrava então a residir.
54. Nos meses que antecederam os factos subjacentes ao presente processo, o arguido e a ofendida alteraram de domicílio (quarto arrendado) por três vezes por pretenderem (segundo AA) otimizar as condições habitacionais, num sistema de divisão das despesas dado a sua entretanto integração (cerca de um mês após ter fixado residência no …) no mercado de trabalho local, na área da restauração.
55. Segundo o arguido, os conflitos relacionais apenas surgiram nas últimas semanas de vivência marital - tendo a ofendida abandonado o domicilio durante alguns dias no início de Setembro/2016, atribuindo AA as divergências a alterações comportamentais da ofendida (eventualmente na sequência do estabelecimento de novas relações de amizade por parte daquela) ao nível das rotinas domésticas e/ou da partilha dos tempos livres com o arguido, nomeadamente acompanhar este na ida ao café, no horário pós laboral.
56. Nesse ínterim, AA assumiu o consumo de bebidas alcoólicas mais acentuado, associado a cocaína e num contexto de vazio relacional.
57. Em meio prisional, o arguido tem registado um padrão comportamental coadunante com as normas vigentes, usufruindo ao apoio da família de origem.
58. Denotando inicialmente uma atitude de apatia no que concerne às atividades fomentadas pelo Estabelecimento Prisional-EP (eventualmente na sequência da medicação que começou a efetuar após ter sido presente a consulta de psiquiatria face à tentativa de suicídio que protagonizara ainda antes da entrada no EP), AA regista na atualidade uma atitude pro ativa (continuando a efetuar medicação do foro da psiquiatria), inscrevendo-se/disponibilizando-se para integrar ação formativa ou desenvolver atividade laboral, o que até ao momento ainda não se verificou por motivos alheios à sua vontade/padrão comportamental do arguido.
59. Relativamente aos factos subjacentes ao processo no âmbito do qual cumpre pena de prisão, Miguei Silva apresentou tendencialmente uma perspetiva de minimização dos mesmos face à (segundo o mesmo) entretanto concordância da ofendida e enfatizando o posterior restabelecimento da relação amorosa com a mesma.
60. Nos contactos efetuados em meio prisional com a técnica da DGRSP, o arguido sempre priorizou os factos subjacentes à prisão preventiva, verbalizando arrependimento, o que também fez em sede de audiência de julgamento, e apresentando consciência do desvalor da sua conduta e/ou existência de vitima.
61. A um outro nível, e pese embora a notória atitude critica/rejeição do agregado familiar do arguido relativamente aos factos subjacentes ao processo, o mesmo mantém disponibilidade para o apoiar, quer em meio prisional, quer quando em meio livre.
62. No âmbito do processo comum coletivo n° 161/15.4JAFAR, do Tribunal Judicial da Comarca de … - Juízo Central Cível e Criminal, foi condenado por factos praticados em 3 de Junho de 2015, por acórdão transitado em julgado em 1 de Março de 2017, pela prática de um crime de violação, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão.
O Sr. Procurador-Geral Adjunto considerou, contudo, no seu parecer, que não existe da parte da assistente um concreto e próprio interesse em agir pelo que o recurso deve ser rejeitado.
É sabido em que termos a questão se põe.
Como decorre do art. 69º, nºs 1 e 2, al, c) CPP (diploma a que pertencem as normas adiante referidas sem menção de origem) os assistentes têm a posição de colaboradores do Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo, salvas as excepções da lei, mas podem interpor recurso das decisões que os afectem mesmo que o Ministério Público o não tenha feito.
Completando o quadro legal sobre a intervenção dos assistentes no processo – além de outras situações que não vêm ao caso – define-se no art. 401º, nº 1, al. b) que os assistentes têm legitimidade para recorrer de decisões contra eles proferidas mas, assim decorre do nº 2 do artigo, a contrario, só o podem fazer se tiverem interesse em agir.
Como esclarece a doutrina[1] «A posição processual do assistente é a de colaborador do MP; (…) sendo o MP o órgão constitucional a que compete a realização dos interesses a prosseguir através do exercício da acção penal – a efectivação da pretensão punitiva do Estado, segundo critérios de legalidade e por meios processualmente adequados – a intervenção do assistente que representa interesses convergentes, só se compreende como auxiliar e colaborador do MP na prossecução, pelo processo, de interesses que, no rigor, são comuns».
A propósito de uma específica questão o Acórdão para Fixação de Jurisprudência (AFJ) nº 8/99 estabeleceu que «O assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena aplicada salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir».
Não é contraditória com esta a doutrina estabelecida no AFJ nº 5/2011 segundo a qual «Em processo por crime público ou semi-público, o assistente que não deduziu acusação nem aderiu à acusação pública pode recorrer da decisão de não pronúncia, em instrução requerida pelo arguido, e de sentença absolutória, mesmo não havendo recurso do Ministério Público».
Porquê?
Como se argumentou no citado AFJ nº 5/2011 – seguindo-o de perto – o assistente, sendo imediata ou mediatamente atingido pela prática de um crime adquire esse estatuto em função de um interesse próprio ou colectivo. Mas a sua intervenção no processo penal, legitimada embora pela ofensa desse interesse, contribui ao mesmo tempo para a realização do interesse público da boa administração da justiça, cabendo-lhe, em função da ofensa a esse interesse próprio, o direito de submeter à apreciação do tribunal os seus pontos de vista sobre a justeza da decisão, substituindo o Ministério Público, se entender que esse sujeito processual não tomou a posição processual mais adequada, ou complementando a sua actividade, com o que se não desvirtua o carácter público do processo penal.
Só tendo legitimidade para recorrer das decisões contra ele proferidas, dessas pode sempre recorrer independentemente da posição do Ministério Público. A circunstância de haver ou não recurso do Ministério Público não interfere com as possibilidades de recurso do assistente pois a única exigência da lei para poder recorrer de uma decisão é que esta seja proferida contra si. Não há que procurar outras a coberto do chamado interesse em agir, a que alude o nº 2 do artigo 401º.
O interesse em agir do assistente, em sede de recurso, implica a necessidade de ele lançar mão desse meio para procurar modificar uma decisão que comporte para si uma desvantagem, que frustre uma sua expectativa ou interesse legítimos, a significar que ele só pode recorrer de uma decisão com esse alcance[2]. Se a decisão não inflige uma desvantagem não tem o assistente interesse juridicamente protegido na sua correcção, não lhe assistindo, por isso, a possibilidade de recurso.
Então, conclui-se, o texto da alínea b) do nº 1 do artigo 401º já abrange o interesse em agir, ao exigir, para além da qualidade de assistente, que a decisão seja proferida contra ele, ou seja, que lhe cause prejuízo ou frustre uma expectativa ou interesse legítimos. O assistente tem interesse em pugnar pela modificação de uma decisão que não seja favorável às suas expectativas. Para ele poder recorrer, não haverá que fazer-lhe outras exigências para além das que o artigo 401º, nº 1, alínea b), comporta: que a decisão seja relativa a um crime pelo qual se constituiu assistente (legitimidade) e seja contra ele proferida (interesse em agir).
Podendo considerar-se pacífico este entendimento, o nó górdio reside na questão de precisar o que seja o interesse que o assistente pretende realizar com a sua intervenção no processo, por isso se lhe impondo o ónus processual de demonstrar um concreto e próprio interesse em agir.
Se, em abstracto, o assistente tem um interesse próprio e concreto na resposta punitiva do Estado, como já assinalado, esse interesse pode ter-se como satisfeito, neste caso, com a condenação do arguido pela prática do crime de homicídio na pessoa da filha da assistente diferente da proposta pela acusação formulada?
Ainda que se tenha como pacífico[3] que as finalidades da punição que justificam a espécie e a medida da pena, não visam dar satisfação ao ofendido pelo crime, usando de novo a argumentação do AFJ nº 5/2011, que se abordoa, por seu turno, na lição da doutrina[4] não pode escamotear-se que o assistente tem também um interesse próprio e concreto na resposta punitiva que é justaposto ao interesse comunitário na realização da justiça. Nessa justaposição entre o interesse comunitário na administração da justiça penal e o interesse concreto do assistente em que a justiça penal dê resposta adequada à ofensa causada é que deve ser encontrado «o fundamento para a possibilidade de recurso autónomo do assistente em matéria penal».
Usando de novo o ensinamento da doutrina crê-se que «enquanto assistente, ele tem o poder de procurar conformar a resposta à questão penal, que engloba quer a questão da culpa quer a questão da pena. Logo, se através da operação de determinação da medida da pena em sentido amplo o Tribunal chegar a uma decisão contrária à pretensão manifestada pelo assistente no processo e que ofenda o seu concreto interesse na justeza da punição (…), dessa decisão deverá o assistente ter a faculdade de recorrer de forma autónoma»[5]
Por isso se podem colocar reticências à posição expressa no acórdão deste STJ de 2012.01.18[6] quando ali se afirma que a decisão que condene o arguido como autor de um crime de homicídio simples não poderá considerar-se proferida contra o assistente se houver discordância no estrito aspecto da qualificação jurídico-penal dos factos pois, em última análise, o assistente «não pretende propriamente uma discussão jurídica sobre a correcta qualificação dos factos mas sim o agravamento da pena através da alteração da qualificação» e «tal agravamento insere-se no exercício do “jus puniendi” do Estado que ao MP cabe promover, e cabendo a promoção de tal interesse ao MP, o assistente não pode recorrer por falta de interesse em agir».
A correcta qualificação jurídica dos factos e a discussão que se faça a propósito é uma concreta e pertinente questão que interfere com a justiça da decisão ainda que paralela e concomitantemente acabe por interferir com a determinação da medida da pena. Não se afirmará decerto que é indiferente para o assistente – como para o interesse comunitário – que a dimensão do tipo de culpa ou do tipo de ilicitude[7], aferida essa dimensão pela qualificação, seja uma ou seja outra.
No caso em apreço, de um modo singelo em benefício da clarificação da ideia, pode dizer-se que relativamente à imputação feita na acusação considerando qualificado o homicídio pelas alíneas b) e e) do art. 132º, nº 2 do C. Penal terá havido uma absolvição relativamente a essa imputação da qualificação pela sobredita alínea e).
O que se afigura ser suporte bastante para a invocação pela assistente de um interesse próprio em agir sufragado até – pode afirmar-se – pela posição do Ministério Público que menosprezando o dever imposto pelo art. 53º, nº 1, de colaborar na realização do direito, obedecendo em todas as intervenções processuais a critérios de estrita objectividade, não recorreu de uma decisão de que discordou mas “aderiu” ao recurso da assistente.
Está claro que devia ser o inverso.
Posto isto.
4. – A decisão recorrida, depois de discorrer sobre as circunstâncias que são descritas na alínea e) do nº 2 do art. 132º C. Penal socorrendo-se de abundantes doutrina e jurisprudência concluiu que face à factualidade provada não poderia ter-se como verificada a existência de um motivo torpe ou fútil e, por conseguinte, afastou a qualificação.
A tese da recorrente, por seu turno, é a de que «o motivo impulsionador, que efetivamente veio a desencadear as ações do arguido que vieram por seu lado a provocar a morte de CC foi tão só a recusa desta em ter relações sexuais com o arguido. Com efeito, a não existir esta recusa, pelo menos naquela altura, não tinha tido lugar qualquer discussão e não teria ocorrido a morte CC nas circunstâncias em que ocorreu» (cfr conclusão 5ª).
O que está provado é que em momento anterior ao crime, o arguido quis ter relações sexuais com CC e tendo esta recusado, acto contínuo iniciou-se uma discussão no decurso da qual o arguido deu uma bofetada na vítima o que fez com que esta caísse ao chão logo o arguido iniciando o processo de estrangulamento. (cfr factos 15 a 18).
Perante estes factos o tribunal considerou que desconhecendo-se o teor da discussão que o casal manteve e que levou o arguido a desencadear a sua conduta que culminou com a morte da vítima não poderia extrair-se qualquer conclusão sobre o motivo da dita conduta.
Nenhum reparo há a fazer a esta posição.
Se há sempre desproporcionalidade flagrante entre o cometimento de um homicídio e a razão que o motiva, seja ela qual for, para se considerar a existência de um «motivo fútil» haverá de ponderar-se uma desproporcionalidade superlativa, perante um motivo acerca do qual se conclua ser insignificante; um motivo que estando na base da reacção de quem pratica o crime, não pode sequer com grau mínimo de inteligibilidade explicar a conduta levada a cabo, que não tem relevo algum.
Refere a jurisprudência que «para se avaliar se um motivo é fútil tem que se relacionar a gravidade do comportamento com o móbil do crime. E então, se nenhum motivo justifica causar a morte de outrem (daí ser crime), a grande desproporção entre o que se elege como motivo da acção e aquilo em que esta se analisa, transforma a conduta, não só em algo intolerável, como também em algo absurdo, sem explicação, à luz das concepções éticas correntes, da sociedade. A razão do cometimento do crime tem um valor irrisório para o normal dos cidadãos, comparado com o mal que se provoca com este»[8].
Procurando realçar o que se vem afirmando dir-se-á com recurso ao aforismo, de um modo porventura mais expressivo somente em abono da clarificação da ideia, que é merecedor de um juízo de especial censurabilidade quem «por dá cá aquela palha» age contra um terceiro com o propósito de lhe tirar a vida.
Ora, no caso, ainda que se atenda à circunstância de a discussão ter sido encetada depois da recusa da vítima em manter relações sexuais a questão que logo se coloca é a de precisar que desenvolvimentos teve essa discussão, como foi mantida pois nada teria impedido o arguido de logo após a atitude de recusa da vítima ter procedido como veio a proceder. Mas entretanto, outros desenvolvimentos houve, mormente uma agressão à vítima já durante a referida discussão. Os ciúmes do arguido é uma causa possível da discussão, mas disso não passa de possível. Em rigor desconhece-se a motivação concreta que levou à conduta homicida. Como já afirmou a jurisprudência deste Supremo Tribunal[9] mesmo que um determinado motivo possa ser lido nas entrelinhas não pode uma decisão abdicar do necessário grau de exigência que tem de verificar-se na operação de subsumir uma determinada conduta num tipo criminal. Sem esse nível de exigência sobra a dúvida e esta só pode favorecer o arguido, como é por demais sabido.
São os factos em si mesmos – os provados, naturalmente – que hão-de permitir a conclusão tanto quanto possível rigorosa e não as premissas hipotéticas que eles possibilitem. Só perante os factos se faz o cotejo com as normas aplicáveis e os que estão apurados não autorizam, com o rigor necessário, a conclusão que a recorrente deles pretende extrair sobre a futilidade do motivo.
Eis porque a pretensão da recorrente não pode ser acolhida.
5. – Em face do que se decide negar provimento ao recurso interposto pela assistente BB.
Pagará esta 5 UC de taxa de justiça (art. 515º, nº 1, al. b)).
Feito e revisto pelo 1º signatário.
Lisboa, 25 de Outubro de 2018
Nuno Gomes da Silva (Relator)
Francisco Manuel Caetano
________
[1] Cfr Código de Processo Penal Comentado, de Henriques Gaspar et all., 2ª ed., pag 219-220.
[2] Cita o AFJ a propósito a doutrina de Figueiredo Dias exposta na RLJ, ano 128, pag 348, que por sua vez se apoia na de Roxin.
[3] Cfr Acórdão STJ de 2012.01.18, proc 1740/10.1JAPRT.P1.S1.
[4] Cfr, Cláudia Cruz Santos, RPCC, 2008, pag. 159-160
[5] Cfr aut. e ob. cit, pag 165.
[6] Citado supra na nota 3 invocando, por sua vez o Acórdão STJ de 2005.06.29, proc 2041/05.
[7] Consoante o alinhamento pelas diferentes posições doutrinárias.
[8] Cfr v.g. Acórdãos STJ de 2010.05.27, e de 2015.03.12, proc 185/13.6GCALQ.L1.S1.
[9] Cfr acórdão de 2017.06.29, proc 661/15.6PBLRS.L1.S1