I – O critério especial de determinação do valor da causa previsto no art. 298º do CPC para ações de despejo não vale em ação de outra natureza.
II – O STJ não pode apurar o valor de um imóvel a partir de presunção extraída do valor que cada uma das partes lhe teria atribuído em proposta de negócio que o teve por objeto.
III – Sendo o recurso de admitir ao abrigo da al. a) do nº 2 do art. 629º do CPC – nomeadamente com fundamento na ofensa de caso julgado –, o seu objeto fica limitado à apreciação da impugnação que esteve na base da sua admissão, não podendo alargar-se a outras questões.
IV – Salvo se respeitarem a parte da decisão recorrida que verse o fundamento (específico e excecional) da admissibilidade do recurso, a arguição de vícios formais da decisão recorrida envolve a formulação de questões que, por não se inscreverem naquele que é o objeto possível da revista, não podem ser conhecidas.
V – Não faz caso julgado material a decisão que julga extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide, sem que tivesse havido decisão de mérito sobre a questão de natureza substantiva que aí se discutia.
2ª SECÇÃO CÍVEL
I - AA intentou contra BB e outras esta ação declarativa, pedindo a condenação dos réus a procederem à entrega imediata das chaves da parte do prédio arrendado, entregando-a, também de imediato, livre e devoluta de pessoas e bens.
Alegou, em síntese nossa, que:
- É dona do prédio anteriormente denominado “Tapada CC”, ora designado apenas “Dª CC”, sito em …, parte do qual foi dado de arrendamento rural em 1 de Novembro de 1965 pela anterior proprietária a DD, falecido em 12 de Maio de 2015, no estado de viúvo;
- Não tendo sido exercido, por quem de direito, o respetivo direito de transmissão, o contrato caducou, nos termos do nº 1 do art. 15º e do art. 20º, nº 1, por interpretação a contrario, do Dec. Lei nº 294/2009, de 13 de Outubro;
- Deveriam os réus, sucessores do arrendatário, ter procedido à entrega do arrendado no final do ano agrícola, conforme uso, pelo S. … (29 de Setembro) ou, o mais tardar, até ao final de Dezembro de 2015 – art. 15º, nº 2 do Novo Regime do Arrendamento Rural -, o que não aconteceu.
Contestou apenas o primeiro réu.
Em síntese, deduziu as exceções de ineptidão da p. i. e do caso julgado, impugnou o valor da ação, sustentando que o mesmo deve ser fixado em € 37.500. Mais defendeu a falta de verificação dos pressupostos da caducidade do arrendamento; e, para o caso de se entender que esta operava, defendeu que só haveria lugar à restituição do locado no fim do ano agrícola de 2016, mais exatamente em 31 de Outubro de 2016.
Pediu a procedência das exceções ou, não se entendendo assim, a condenação na entrega do locado em 31.10.2016, e de todo o modo, com a fixação do valor da ação em € 37.500.
Foi proferido saneador sentença que considerou inexistentes aquelas duas exceções e julgou a ação procedente, condenando os réus no pedido.
Apelou o réu, tendo a Relação de … proferido acórdão que, na procedência parcial do recurso, revogou em parte o saneador-sentença e julgou a acção procedente, declarando o contrato de arrendamento discutido nos autos validamente resolvido pela senhoria, com efeitos desde o final do ano agrícola de 2016, determinando que os réus procedessem à imediata entrega do locado e respectivas chaves à autora, totalmente livre e devoluto de pessoas e bens.
Ainda inconformado, o réu interpôs o presente recurso de revista, tendo apresentado alegações onde pede a sua revogação, formulando, para tanto, as conclusões que passamos a transcrever:
A) - Com o presente processo é repetida a causa já dirimida através dos autos 642/14.7 T8CTB (Apenso).
B) - Nesse processo, o arrendatário opôs-se, sem êxito, à denúncia do contrato de arrendamento efectuada pela senhoria e levada ao conhecimento daquele em l5/l0/2014, em cumprimento de despacho judicial (Doc. nº 2).
C) - Com a extinção do processo Apenso, a denúncia operou seus efeitos pelo que o contrato de arrendamento findou definitivamente após o trânsito em julgado da sentença proferida em 25/5/2015.
D) - Pelo que a proprietária, tendo por base essa decisão, já tem reconhecido o direito a ser-lhe entregue o prédio, devendo, porém, respeitar as prerrogativas conferidas ao arrendatário pelo artigo 38 do NRAR.
E) - Apesar disso, intentou esta acção, fazendo exactamente o mesmo pedido que formulara na denúncia, coincidente até na data para a entrega do prédio referida na denúncia,
F) - Em ambos os processos a causa de pedir é a cessação do contrato sendo irrelevante a causa invocada para a sua extinção, por a definição já dada à relação controvertida dever ser acatada pelo Tribunal.
G) - Está pois vedado à A. pedir ao Tribunal que se pronuncie, de novo, sobre a cessação do referido contrato de arrendamento rural, uma vez que ele findou por denúncia e na sequência da extinção dos autos apensos.
H) - Procede por isso a excepção de caso julgado, devendo o Acórdão ser revogado por violação dos artigos 580 e 581, absolvendo-se os RR. da instância.
I) - 0 Acórdão recorrido determinou que o presente processo siga a forma comum por “ a A. visar apenas a confirmação da legalidade da resolução extrajudicial".
J) - No entanto, ao fixar o valor da causa em 100 euros aplicou as regras especiais correspondentes à acção de despejo.
L) - É por isso ilegal e contraditório nos seus fundamentos por adoptar os critérios previstos no artigo 298, em contraponto com o decidido quanto à forma do processo.
K) - Com efeito, por seguir a forma comum, os critérios previstos nos artigos 296, 297 e 302, são os legais, pelo que o valor da causa deve ser fixado tendo em atenção o valor do prédio reivindicado.
M) - Os factos admitidos por acordo foram referidos no Acórdão, mas tendo sido entendido aplicar os critérios do art. 298, eles não foram considerados relevantes para a fixação do valor da causa.
N) - Porém, nos termos do art 82, nº 1 e 684, o Supremo pode aplicar o regime que considere mais adequado aos factos provados.
O) - Assim, resulta dos factos admitidos por acordo que as partes atribuíram ao prédio, sensivelmente, o valor de 37 500 euros, deve pois, conforme preconiza o artigo 302, o valor da causa ser fixado em 37 500 euros.
P) - Quanto à questão de fundo, o Acórdão da Relação revogou a sentença da 1ª instância no que respeita aos fundamentos em que assentou a decisão de procedência da acção.
Q) - Impunha-se por isso, também a revogação da parte decisória da sentença, uma vez que não subsistindo os fundamentos do pedido da A. ele não pode proceder.
R) - Sendo certo que a apreciação da legalidade do pedido se reporta ao momento da propositura da acção, conforme dispõem os artigos 259 e 260.
S) - É portanto ilegal a parte decisória do Acórdão e nula por haver oposição dos fundamentos com a decisão tomada (art 615, nº l, c).
T) - E ainda existe nulidade por o Acórdão julgar em excesso de pronúncia ao "declarar validamente resolvido o contrato de arrendamento, com efeitos a contar do final do ano agrícola de 2016", pedido que a A. não fez e expressamente recusa ter feito.
U) - Foram assim violados os artigos 608, nº 2, 2ª parte e o artigo 609 que estatuem não poder o Tribunal apreciar questões não suscitadas, ou ir além do pedido ou condenar em objecto diverso do pedido.
V) - Verifica-se desse modo a nulidade prevista nas alíneas d) e e) do nº 1 do artigo 615, e a ilegalidade por exceder o âmbito do recurso que é a decisão recorrida, não sendo lícito ao Tribunal da Relação apreciar matéria nova não constante da decisão da sentença art 662.
X) - Assim, supridas as nulidades nos termos do art 684, deve o Acórdão ser revogado, absolvendo-se os RR. da instância, ou, se esse não for o entendimento deste Alto Tribunal, sejam os RR absolvidos do pedido declarando a improcedência da acção e fixando o valor da causa em 37 500 euros.
Y)- Sem prescindir do acima exposto, mas no caso de ser mantida a decisão recorrida, todavia, o Acórdão deve ser reformado quanto à condenação em custas.
Z) - Isso justifica-se por o Acórdão não ter tido em consideração que, na data em que foi instaurada a acção, e deduzida a oposição, o Réu tinha fundamento legal para o fazer.
Al) - Pelo que deve ser aplicado o nº 1 do artigo 611, repartindo em igualdade a responsabilidade por custas.
É, nestes termos, que se requer a V. Exas. o provimento do presente recurso.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Cumpre decidir.
Vêm suscitadas pelo recorrente as questões de saber se:
a) - existe violação de caso julgado (conclusões A) a H));
b) – é de fixar o valor da causa em € 37.500,00 (conclusões I) a O));
c) – existem as nulidades que vêm atribuídas ao acórdão (conclusões P) a V));
d) – é ilegal o acórdão recorrido por não ter revogado a sentença (conclusões P) a S);
e) – é de alterar a decisão recorrida quanto a custas (conclusões Y) a A1)).
II – Vêm descritos como provados os seguintes factos:
1. A Autora é dona e legítima proprietária do prédio anteriormente denominado “Tapada CC”, e ora designado apenas de D. CC, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 78, Secção AG, da freguesia e concelho de …, e descrito na Conservatória do Registo Predial de …, sob o n.º 5902, da freguesia de ….
2. Por contrato de arrendamento rural, celebrado em 01 de Novembro de 1965, mas reduzido a escrito em 28 de Fevereiro de 1976, EE, já falecida, mas então usufrutuária, deu de arrendamento a DD, parte do prédio supra descrito.
3. No dia 12 de Maio de 2015, o arrendatário, DD, faleceu no estado de viúvo.
4. Os sucessores do então arrendatário, no âmbito do processo n.º 642/14.7T8CTB, da Secção Cível J1, desta Instância Local, onde se discutia a denúncia do contrato de arrendamento rural não requereram a habilitação de herdeiros.
5. Nessa sequência, foi solicitado ao co-Réu, BB, pelas Mandatárias da Autora a entrega do locado.
6. Por carta datada de 06 de Junho de 2015, o co-Réu, BB, respondeu à interpelação da Autora, id. em 5., nos seguintes termos: «(…) Quanto à desocupação do prédio, como a senhora doutora sabe a lei refere que isso ocorra no final do ano agrícola posterior à sentença. Dado os muitos materiais, máquinas e animais que o meu pai deixou, é difícil pensar noutra data que não seja o dia 31/10/2016, por ser necessário tempo apropriado para promover a respectiva venda. (…)».
7. A Autora enviou ao co-Réu, BB, a carta datada de 18 de Junho de 2015, com o seguinte teor: «(…) Na sequência da carta do Sr. Dr., (…), vínhamos dizer o seguinte: atendendo ao despacho que colocou termo ao processo, verdadeiramente ele limita-se a declarar a instância extinta. Por isso, salvo o devido respeito, pensamos que não é de aplicar o espírito da lei que refere. Claro está, todavia, que é necessário desocupar o prédio, o que não se compadece com pressas. E assim sendo, vínhamos perguntar/pedir-lhe o favor de fazer um esforço no sentido de proceder à entrega do locado o mais brevemente possível, de preferência ainda ao longo do ano de 2015. (…)».
8. Em 15 de Outubro de 2014, por notificação judicial avulsa, a Autora denunciou o contrato de arrendamento rural descrito em 2. “para o termo da sua renovação que ocorreria em 01 de Novembro de 2015”.
9. O arrendatário opôs-se à denúncia no âmbito do processo n.º 642/14.7T8CTB (desta Instância Local Cível – J1).
10. No processo n.º 642/14.7T8CTB foi proferido, em 25 de Maio de 2015, despacho com o seguinte teor: «Atento o requerimento que antecede, declaro a presente instância extinta, atenta a sua impossibilidade superveniente, nos termos do disposto na al. e) do art.º 277º do CPC, dando-se assim, sem efeito, a audiência de julgamento agendada. (…)».
III – É agora altura de abordar, de entre as questões suscitadas, aquelas de que nos cabe conhecer.
Do valor da ação:
Defende o recorrente - até como fundamento de admissibilidade do presente recurso de revista - que o valor da causa deve ser fixado em 37.500,00, sendo, por isso, superior ao da alçada do tribunal de que recorre.
Sobre esta matéria consta do acórdão recorrido o seguinte:
“Quer o recorrente que o valor da causa seja fixado em € 37.500 por ser este o valor que resulta da média aritmética entre a proposta de venda da A. (€ 45.000) e a contra proposta que ele apelante e aqui R. BB lhe teria efectuado (€ 30.000).
Na decisão recorrida atribuiu-se à causa o valor patrimonial resultante da certidão fiscal junta: € 557.17.
Mas nem o valor propugnado pelo apelante nem o encontrado na decisão recorrida respeitam os critérios legais.
Com efeito, na presente acção, o que a A. quer fazer valer é a cessação de um contrato de arrendamento rural por virtude de uma assim qualificada caducidade decorrente da morte do arrendatário DD.
Não se tratando propriamente de uma acção de despejo, todavia, o efeito visado pela A. é o da declaração da cessação do arrendamento, pelo que o critério previsto no art.º 298, nº 1, do C. Civil é o que melhor se adequa ao caso. Ou seja, como se diz nesta norma, o valor da causa deve corresponder a dois anos e meio de renda, acrescidos das rendas eventualmente em dívida e, se for o caso, da indemnização requerida.
Como não vêm pedidas rendas nem indemnização, é aquele o valor a atender. Estando aceite (cfr. a carta de fls. 35 junta pelo R. apelante com a contestação, o art.º 27 da resposta da A. à contestação, e a contra-alegação da A. no vertente recurso) que a renda anual se cifrava em € 40,00, a aplicação do mencionado critério conduz-nos, deste modo, à quantia de € 100,00 (2,5 X a renda anual de € 40,00).
De sorte que se fixa agora o valor da causa em € 100,00.
A isto contrapõe o recorrente o que expõe nas conclusões I) a O), dizendo, mais explicitamente, na parte arrazoada das suas alegações o seguinte:
“De modo que, resultando dos factos admitidos por acordo (não foram contestados na Réplica e até foram implicitamente admitidos na contra-alegação) que a proprietária atribuiu ao prédio o valor de 45 mil euros para o vender ao ora recorrente e este ofereceu 30 mil, as regras da experiência ditam que o valor dele será, sensivelmente, 37500 euros.”
Considerando a causa de pedir invocada e o pedido formulado, entendemos, tal como considerou a 1ª instância, que o valor da causa deve ser fixado segundo a regra do art. 302º, nº 1, não tendo aplicação, salvo o devido respeito por opinião diversa, o critério especial previsto no art. 298º para as ações de despejo, pois que se não está perante ação dessa natureza.
Daí que, sabendo-se – por ter sido considerado como provado na decisão do incidente respetivo - que o valor patrimonial do imóvel, resultante da certidão fiscal junta, é de € 557.17, temos como acertado o valor da ação fixado nesse montante pela 1ª instância.
A tese do recorrente nunca poderia ser acolhida, desde logo porque pressuporia que este STJ, fora do que é o âmbito da sua cognição – art. 682º, nºs 1 e 2 -, julgasse como provado que o prédio em causa vale € 37.500,00 a partir de presunção extraída do valor que cada uma das partes teria atribuído ao imóvel em proposta de negócio que o teve por objeto.
Fixa-se, pois, o valor da ação em € 557,17.
Chegados a esta conclusão, temos que o valor da causa é muito inferior ao da alçada da Relação que está presentemente fixado em € 30.000,00 - art. 44º, nº 1 da Lei nº 62/2013, de 26 de agosto.
Por isso, salvo quanto à parte em que vem invocada a violação de caso julgado, fundamento que, independentemente do valor da causa e da sucumbência, viabiliza o acesso ao terceiro grau de jurisdição – art. 629º, nº 2, alínea a) –, por inadmissibilidade da impugnação, não se conhecerá das demais questões suscitadas, concretamente das que acima enunciámos sob as alíneas c), d) e e), visto serem absolutamente estranhas ao âmbito da invocada violação de caso julgado.
É solução que colhe abrigo no entendimento de Abrantes Geraldes[1] que, a propósito da admissibilidade especial do recurso de revista com fundamento na violação de caso julgado – art. 629º, nº 2, alínea a) -, escreve:
“A norma que amplia a recorribilidade apenas pode servir para confrontar o Tribunal Superior com a discussão da alegada ofensa de caso julgado, excluindo-se outras questões cuja impugnação fica submetida às regras gerais.”
Também Lebre de Freitas e de Armindo Ribeiro Mendes[2], ao comentarem o art. 678º, nº 2 do CPC, do anterior CPC – de conteúdo substancial idêntico ao do atual art. 629º, nº 2, alínea a) –, afirmam: “Quando o recurso for recebido nos termos do nº 2 ou o nº 3, o seu objeto fica limitado à apreciação da impugnação que esteve na base da sua admissão, não podendo alargar-se a outras questões (acórdão do STJ de 13.03.97, BMJ, 465, p. 477).”
E nesta linha vai igualmente a jurisprudência deste STJ, como o demonstram, a título de exemplo, os seus acórdãos de 13.03.97[3], 3.02.2011[4], 17.11.15[5], 15.02.17[6] e de 27.04.2017[7]
De entre estes arestos, assumem particular relevância para o caso em análise os citados em primeiro e segundo lugares, por expressamente se terem debruçado sobre o problema de saber se entre as questões excluídas do conhecimento do tribunal está a invocação de nulidades do acórdão recorrido, quando, em princípio, a apreciação destas se impõe por força do que dispõe o art. 615º, nº 4 .
Deste normativo e, bem assim, do art. 616º, nº 4, poderia colher-se a ideia segundo a qual, sendo admissível recurso ordinário, sempre caberia ao tribunal “ad quem” conhecer das nulidades que sejam invocados também como fundamento da revista e do pedido de reforma da decisão quanto a custas.
Cremos, todavia, não ser esta a interpretação mais correta.
Salvo se respeitarem a parte da decisão recorrida que verse o fundamento (específico e excecional) da admissibilidade da revista - no caso, a violação de caso julgado – a arguição de vícios formais da decisão recorrida envolve a formulação de questões que, por não se inscreverem naquele que é o objeto possível da revista, não podem ser conhecidas, sob pena de se postergar o espírito do nº 2 do dito art. 629º que amplia, mas apenas nos específicos casos que enuncia, a recorribilidade das decisões.
Admitir o conhecimento de nulidades atribuídas ao acórdão fora do dito circunstancialismo redundaria, a nosso ver, num alargamento indevido do objeto do recurso, tal como se acha definido na referida norma adjetiva.
Assim, no dito acórdão do STJ de 13.03.97 – onde, como dissemos já, a par da invocação de violação de caso julgado, vinham, além do mais, atribuídas ao acórdão recorrido nulidades, entre as quais, a de omissão e excesso de pronúncia – lê-se o seguinte:
“Uma vez admitido, com esse fundamento (violação de caso julgado), é óbvio que o recorrente só pode pretender que o tribunal de revista se pronuncie sobre a alegada violação de caso julgado.
Não pode aproveitar-se desse pretexto para levantar outras questões que não se incluam nesse fundamento.”
E no ponto I do respetivo sumário consta:
“Tendo sido interposto recurso para o STJ, com fundamento em violação do caso julgado, em ação cujo valor é inferior ao da alçada da Relação, não pode o recorrente suscitar outras questões que se não inscrevam no âmbito daquele fundamento.”
E no citado acórdão de 3.02.2011, onde, tendo a revista sido interposta com fundamento em violação de caso julgado e em contradição com jurisprudência uniformizada, o recorrente atribuía também nulidades ao acórdão recorrido, disse-se, a dado passo, o seguinte:
“Daqui decorre, em primeiro lugar, que não cabem no âmbito do presente recurso quaisquer questões que se não conexionem directamente com aqueles dois fundamentos específicos da (excepcional) recorribilidade – nomeadamente a pretensão de que este Supremo sindique nulidades do acórdão recorrido – no caso, a existência de «excesso de pronúncia»: na verdade, o único objecto possível e um recurso fundado na violação de caso julgado (nº2 do art. 678º) e na colisão com jurisprudência uniformizada circunscreve-se necessariamente à apreciação desses dois fundamentos, não podendo abranger quaisquer outros vícios ou pretensas ilegalidades imputadas à decisão recorrida.” (sublinhado nosso)
Passamos, pois, a conhecer da única questão que é ainda objeto possível deste recurso.
Da violação do caso julgado:
É matéria que o recorrente versa nas conclusões A) a H) e relativamente à qual assumem particular revelo os factos descritos sob os nºs 2, 3, 4, 8 a 10.
Os mesmos mostram que a autora, em 15 de Outubro de 2014, por notificação judicial avulsa, denunciou o contrato de arrendamento rural discutido nos autos “para o termo da sua renovação que ocorreria em 01 de Novembro de 2015”.
DD, arrendatário, opôs-se a tal denúncia no âmbito do processo n.º 642/14.7T8CTB (desta Instância Local Cível – J1).
Veio, todavia, a falecer no dia 12 de Maio de 2015, no estado de viúvo, tendo sido proferido em 25 de Maio de 2015 despacho com o seguinte teor: «Atento o requerimento que antecede, declaro a presente instância extinta, atenta a sua impossibilidade superveniente, nos termos do disposto na al. e) do art.º 277º do CPC, dando-se assim, sem efeito, a audiência de julgamento agendada. (…)».
Sabe-se que o caso julgado material – arts. 619º e 621º -, o que se forma sobre uma sentença ou um despacho saneador que conheçam do mérito da causa, possuindo efeitos dentro e fora do processo, comporta um efeito negativo e outro positivo, e constitui, na primeira dessas funções, obstáculo a que as questões por ele abrangidas possam ser de novo suscitadas, entre as mesmas partes, em ulterior ação; funcionando neste caso com exceção – proibição de repetição -, leva, caso se verifique, à absolvição da instância do réu – art. 576º, nº 2 e 577º, alínea i).
Já o efeito positivo dessa mesma realidade jurídica, a autoridade do caso julgado – proibição de contradição -, carateriza-se pela imposição da primeira decisão de mérito, “como pressuposto indiscutível de outras decisões de mérito” que venham a ser proferidas ulteriormente.[8]
Ou dito de outro modo, este efeito positivo do caso julgado material “implica o acatamento de uma decisão proferida em ação anterior cujo objeto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objeto de uma ação ulterior, obstando assim a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa.”[9]
Ainda no dizer de Teixeira de Sousa[10] “a exceção de caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objeto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a exceção de caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o tribunal decidir sobre o mesmo objeto duas vezes de maneira diferente (Zweierlei), mas também a inviabilidade de o tribunal decidir sobre o mesmo objeto duas vezes de maneira idêntica (Zweimal)”.
E, prosseguindo, escreve “quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspeto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade de caso julgado é o comando de ação ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjetiva à repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão antecedente».
Negando a existência da exceção de violação de caso julgado, escreveu-se no acórdão recorrido:
“(…) Salvo o respeito devido, não ocorre nem podia ocorrer qualquer caso julgado.
É que pressupondo estes, desde logo, identidade de causa de pedir e do pedido, é patente que não se constata a presença de qualquer delas, pois a causa de pedir em que assenta a oposição à denúncia tem uma natureza obviamente diversa da que motiva a resolução, visto esta se fundar na morte do arrendatário e não transmissão do arrendamento.
Além disso, aquela acção terminou com a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, sendo que a sentença que assim julga nem sequer se pronuncia sobre o mérito da pretensão aí formulada.
Donde que a declaração de improcedência desta excepção não mereça censura.”
É argumentação que, na sua essência, merece ser acolhida.[11]
De qualquer dos modos, importa destacar, enquanto fator que liminar e decisivamente exclui a hipótese da existência de caso julgado material que possa ter sido objeto de violação, a circunstância de a instância daquela ação - em que o falecido arrendatário se opunha à denúncia do contrato pela senhoria - ter sido julgada extinta por impossibilidade superveniente da lide, sem que tivesse havido decisão de mérito sobre a validade da denúncia, questão de natureza substantiva que aí se discutia.
Só essa decisão, a ter existido, teria procedido a uma certa definição da relação material controvertida que, por força do caso julgado material, se imporia, nas palavras de Manuel de Andrade[12], “a todos os tribunais (e até a quaisquer outras autoridades) – quando (…) a mesma relação (…) a título principal (repetição da causa em que foi proferida a decisão)” ou “(…) a título prejudicial (acção destinada a fazer valer outro efeito dessa relação)”, lhes fosse submetida. Todos teriam de “acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão.»
Sendo absolutamente estranha à relação substantiva em discussão e recaindo apenas sobre a relação processual, a dita decisão apenas é suscetível de gerar, nos termos do art. 620º, caso julgado formal, sendo absolutamente inidónea para formar caso julgado material sobre qualquer questão de natureza substantiva que, como pretende o recorrente, possa constituir impedimento a que nestes autos seja apreciada a invocada caducidade do arrendamento.
Não tem, pois, fundamento a invocada violação de caso julgado.
Não tendo este tribunal conhecido das invocadas nulidades do acórdão, nem do pedido de reforma quanto as custas por o objeto do recurso o não permitir, é caso de determinar, visto o que dispõem os arts. 615º, nº 4 e 616º, nº 3, a sua apreciação pelo Tribunal da Relação.
IV – Pelo exposto:
- Concede-se parcialmente a revista quanto ao valor da causa que se fixa em € 555,17 e mantém-se o decidido no acórdão recorrido quanto à inexistência de violação de caso julgado.
- Determina-se que no Tribunal da Relação sejam apreciadas as invocadas e nulidades e pedido de reforma do acórdão quanto a custas.
Custas da revista a cargo do recorrente e da recorrida, na proporção de 4/5 para o primeiro e 1/5 para a segunda.
Lisboa, 22.11.2018
Rosa Maria M. C. Ribeiro Coelho (Relatora)
Bernardo Domingos
João Bernardo
_________
[1] Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, pág.51
[2] Código de Processo Civil Anotado, 2003, vol. 3º, pág. 11
[3] BMJ nº 465, pág. 477, relator Cons. Almeida e Silva
[4] Proc. 190A/1999.E1.S1,relator Cons. Lopes do Rego, www.dgsi.pt [5] Proc. 34/12, relator Cons. Sebastião Póvoas, www.dgsi.pt
[6] Proc. nº 2623/11, relator Cons. Nunes Ribeiro, www.dgsi.pt
[7] Proc 1907/14.3TBCSC,L1.S1, relator Cons. Álvaro Rodrigues (sem publicação por nós conhecida)
[8] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 3ª edição, pág. 749
[9] Acórdão do STJ de 30.03.2017, relator Conselheiro Tomé Gomes, acessível em www.dgsi.pt
[10] “O Objeto da Sentença e o Caso Julgado Material”, BMJ 325, pág. 171-179
[11] Quer se considere que nesta ação está em causa a invocada caducidade do arrendamento, quer se entenda, como no acórdão recorrido, que a situação é de qualificar como de resolução contratual, é inequívoca a diversidade das causas de pedir nas ações em confronto.
[12]“Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1976, pág. 304