RECURSO DE REVISTA
OFENSA DO CASO JULGADO
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
OBJECTO DO RECURSO
OBJETO DO RECURSO
CASO JULGADO MATERIAL
LIMITES DO CASO JULGADO
MATÉRIA DE FACTO
Sumário

I - O recurso de revista interposto ao abrigo do disposto no art. 629.º, n.º 1, al. a), do CPC – por recair sobre acórdão da Relação que não conheceu do mérito da causa nem pôs termo ao processo, cf. art. 671.º, n.º 1, do CPC – circunscreve o seu âmbito à ofensa do caso julgado.
II - O caso julgado material, pelo seu efeito e funcionalidade processual, tanto pode ser dimensionado como exceção ou como autoridade: no primeiro caso, de efeito (dominantemente) negativo, exigindo uma tríplice identidade – art. 581º do CPC; no segundo, apenas de efeito positivo, não.
III - O instituto do caso julgado, a par de manifestas razões de economia processual, bem como da associação ao prestígio dos tribunais, funda-se nos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança.
IV - O tema dos limites objetivos do caso julgado é diversamente equacionado, tanto na jurisprudência, como na doutrina; pode reter-se, na generalidade, a jurisprudência reiterada deste tribunal no sentido de que o âmbito objetivo do caso julgado se estende à apreciação das questões preliminares que constituam antecedente lógico necessário da parte dispositiva da decisão.
V - Delimitar a abrangência da coisa julgada é, antes do mais, uma questão de política legislativa, que envolve a interpretação dos princípios fundamentais do processo e o sopesamento das vantagens e desvantagens de cada uma das alternativas possíveis.
VI - No que respeita à interpretação e aplicação do direito, a questão visa a definição, quanto ao alcance com força de caso julgado da sentença, dos «precisos limites e termos em que julga» (CPC, arts. 619º, nº 1 e 621º), não havendo para o caso que convocar a norma atualmente contida no nº 2 do art. 91º do CPC, norma cuja previsão apenas irá abranger as questões e incidentes que não estejam (por si) já alcançados pela força do caso julgado.
VII – A não transposição para os códigos de 61 e de 2013 do regime contido no § único do art. 660º e na alínea b) do artigo 96º do anterior código de processo civil de 1939 não comporta qualquer diretiva ou sinal orientador para o intérprete e aplicador do direito.
VIII - Referida, na generalidade, a extensão ao âmbito objetivo do caso julgado da apreciação sobre questões preliminares que constituam antecedente lógico necessário da parte dispositiva da decisão, importa quanto a ela distinguir entre a sua dimensão interpretativa, comumente aceite e a sua relevância autónoma – com respostas divergentes, na jurisprudência e na doutrina –, (i) podendo, relativamente a outros litígios entre as mesmas partes, designadamente quando se verifique uma relação de prejudicialidade, ser-lhe concedida força de caso julgado ou (ii) negando-lha liminarmente, subsumindo-se a decisão que sobre elas incidira à previsão do nº 2 do art. 91º do CPC, cit.
IX - Admite-se, como regra geral, que os fundamentos de facto da sentença não estarão cobertos pelo caso julgado, dito de outro modo, os fundamentos de facto da sentença, quando dela autonomizados, não adquirem valor de caso julgado.
X - Em vista à resolução do concreto caso dos autos, há que determinar em que termos deve ser configurada a relação de prejudicialidade em causa, para que os fundamentos de facto da anterior decisão judicial, autonomamente considerados, possam projetar-se, com valor e força de caso julgado, neste processo entre as mesmas partes e com diferente objeto, impondo-se como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito (como exceção à regra geral aludida em IX).
XI – Importa destrinçar, no plano de atuação extraprocessual da sentença, entre o valor, a esse título, das provas produzidas – art. 421º do CPC – e a extensão ao âmbito objetivo do caso julgado da decisão sobre matéria de facto, nos termos considerados em X (rejeitada no CC de 66 a tese do STJ da autoridade do caso julgado como meio de prova, com fundamento no art. 2502º do Código de Seabra).
XII - A base jurídica para os efeitos considerados em X será sempre a constante do art. 619º, nº 1 do CPC, interpretado o art. 621º do mesmo código, como devendo ser aplicado, não apenas restringido à parte injuntiva da sentença, mas podendo abarcar os respetivos fundamentos de facto.
XIII - Presentes o princípio dispositivo e o da substanciação da causa de pedir [CPC, arts. 5º, nº 1, 552º, alínea d), 581º, 608º, nº 2, 609º, nº 1, 615º, nºs. 1, alíneas d) e e) e 2], hão-de os fundamentos de facto da sentença proferida em anterior processo, fundamentos aos quais se pretende autonomamente atribuir força de caso julgado neste processo, reportarem-se aos que nesse outro foram trazidos pelo autor, que não pode sobre os mesmos procurar nova decisão judicial, com proporcionalidade e respeito por aqueles princípios, se evitando que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior – sempre salvaguardadas as exigências de justiça e de verdade quanto à decisão anteriormente proferida, nos termos facultados pelo art. 696º do CPC.
XIV - No caso dos autos, sendo as mesmas as partes no processo, não se verificando identidade do pedido, nem da causa de pedir, é «no essencial, o mesmo conjunto de facto concretos» trazidos pela Autora ao tribunal na anterior ação e na presente, nesta o pedido deduzido por via reconvencional, nos termos previstos no art. 266º do CPC.
XV - A decisão proferida no anterior processo sobre os factos referidos em XIV (não importando que a decisão tenha sido no sentido de os dar por provados, ou não; ela vale, enquanto resposta aos fundamentos de facto invocados pela Autora no pedido formulado) deverá vincular o tribunal neste processo, resultando precludida a possibilidade de nova demanda, visando diferente resposta relativamente aos mesmos factos, a fundar a pretensão.

Texto Integral

Acordam, na 1ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:

I

1. AA e marido, BB, intentaram ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra CC, pedindo que esta seja condenada a pagar-lhes a quantia de € 11 107,91, acrescida de juros de mora vencidos, no valor de € 2 484,55, e dos vincendos, até integral pagamento.

Alegam – em síntese – que, em 27 de Julho de 2010, outorgaram escritura de doação, nos termos da qual a Ré lhes doou o prédio misto, na petição devidamente identificado, com reserva de usufruto para a doadora e com a obrigação de os donatários a tratarem e acompanharem na saúde e na doença; na sequência da escritura, a Autora passou a viver na casa usufruída pela Ré, fazendo a limpeza e as compras, prestando àquela todos os cuidados, acompanhando-a ao médico e levando-a a passear; por essa altura, e por indicações do advogado da Ré, foi aberta uma conta bancária conjunta da Autora e da Ré, para aquela ir pagando as despesas da casa e quaisquer outras que a Ré determinasse; em Setembro de 2010, a Ré solicitou ao Autor que lhe emprestasse a quantia de € 2 000,00, em vista ao pagamento de um imposto de selo, tendo este, aceitando tal pedido, depositado essa quantia na conta bancária acima aludida; em Outubro de 2010, a Ré recebeu a notificação fiscal para pagamento do imposto de selo em causa, no valor de € 9 107,91, a pagar até final do ano, dispondo, nessa altura, a dita conta bancária apenas de saldo € 3 219,02; a solicitação da Ré, a Autora pediu emprestado a DD o valor do imposto de selo a pagar, depositando tal montante na mesma conta; em 23 de Novembro de 2010, a Autora emitiu a favor do IGCP um cheque, no valor de € 9 107,91, para pagamento do dito imposto de selo; em 25 de Novembro de 2010, a Ré impediu a Autora de continuar a residir na habitação; nesse mesmo dia, a Autora solicitou, sem sucesso, a devolução dos indicados valores de € 2 000.00 e € 9 107,91.

Contestou a Ré, impugnando a totalidade da matéria de facto da petição inicial, com exceção da celebração da referida escritura de doação; relativamente à quantia de € 2 000,00, diz ela respeito ao subsídio por morte, no montante de € 2 500,00, que a Ré recebeu da Segurança Social, através de vale, e que o Autor se prontificou a depositar na conta bancária acima referida, apropriando-se, todavia, do remanescente de € 500,00; relativamente ao depósito, no valor de € 9 107,91, teve ele, por causa, a circunstância de os AA. saberem que a Ré teria que pagar uma quantia de igual valor nos Serviços de Finanças, relativa ao imposto devido pela herança que recebeu do seu irmão e, por fundamento, a ocultação da inexistência de saldo na conta, provocada pelos variados levantamento a que haviam procedido.

Deduziu reconvenção, alegando que, apesar das obrigações contraídas e exaradas na doação, os AA. deixaram de lhe prestar os cuidados de higiene, limpeza, tratamento de roupas e fornecimento de refeições e se apropriaram de valores em dinheiro existentes em contas suas e de objetos em ouro e valores que encontraram na sua casa; especifica que os AA. passaram a efetuar movimentos bancários, através de cheques e cartão multibanco associados à conta acima referida, para pagamento de despesas próprias e sem o seu consentimento, no valor global de € 32 371,06; as obrigações assumidas pelos AA. na doação correspondiam à prestação de serviços através de trabalhos pessoais ou de terceiros, em valor nunca inferior ao do salário mínimo nacional; desde 25/11/2010, tem acumulado danos de montante não inferior a € 31 500,00, a que acrescerão os vincendos, até que cesse o incumprimento dos AA.; por força das obrigações assumidas na doação, os AA. têm obrigação de pagar as despesas de saúde, designadamente as já suportadas por si, no valor de € 863,56, bem como as respeitantes à habitabilidade do imóvel, designadamente as dos consumos e alugueres de contadores da EDP, no valor de € 4 001,07; o seu estado de saúde foi agravado pelo descrito comportamento dos AA., provocando-lhe humilhação, ansiedade, nervosismo e preocupações, danos para cuja compensação reclama o pagamento de € 9 450,00; detém, nesta data, em vista do exposto, um crédito sobre os AA. de € 78 185,69, a que haverá que deduzir, por efeito de compensação, o valor indicado na petição de € 9 107,91; conclui, pedindo (i) que a ação seja julgada não provada e improcedente, sendo absolvida do pedido e (ii) que a reconvenção seja julgada provada e procedente, sendo os AA. condenados a pagar-lhe a quantia de € 78 185,69 ou, deduzido por compensação o valor de € 9 107,91, a quantia de € 69 077,78, acrescida de juros de mora, bem como as demais quantias que se vencerem, a partir desta data e até que cesse o incumprimento dos AA., a liquidar em execução de sentença.

Replicaram os AA., impugnando a totalidade dos factos constantes da contestação e da reconvenção.

Aduzem ainda que tais factos já foram alegados e discutidos na ação ordinária n.º 461/13.8TBBCL, do Tribunal da Comarca de ... e no processo crime n.º 372/11.1TABCL, do então Juízo Criminal do Tribunal de ...; concluem, pedindo que se decida pela inadmissibilidade da reconvenção quanto aos factos já discutidos e julgados na ação ordinária anterior e que se decida pela inadmissibilidade da reconvenção quanto aos novos factos invocados pela Ré, uma vez que os mesmos derivam e estão diretamente relacionados com aqueles outros.

Proferido despacho a admitir a reconvenção e, em sede despacho saneador, julgou-se improcedente a exceção de caso julgado invocada pelos AA., tendo-se, todavia, no mesmo despacho, admitido «que se poderá questionar oportunamente e aquando do conhecimento do mérito (…) a existência ou não da autoridade de caso julgado, já que esta pode funcionar independentemente da verificação da tríplice identidade referida, pressupondo sempre que a decisão de determinada questão não pode voltar a ser discutida» e determinada a notificação das partes, em vista do disposto no nº 3 do art. 3º do CPC, para se pronunciarem sobre tal questão. Definiu-se o objeto do litígio e fixaram-se os temas da prova.

Na sequência da referida notificação, vieram os AA. requerer que, em obediência à autoridade do caso julgado, fossem eliminados os pontos 3 a 7 dos temas da prova fixados, todos respeitantes ao pedido reconvencional formulado, já anteriormente examinados na sentença proferida no processo 461/13.8TBBCL; opôs-se a R., alegando que os factos em causa foram no anterior processo dados como não provados, pelo que «não existe risco de qualquer contradição ou produção de decisão contraditória»; por despacho, ditado na abertura da audiência de julgamento, foram mantidos os temas de prova e relegado para sentença o conhecimento da questão, nos termos equacionados no despacho saneador.

Proferida sentença a julgar a ação totalmente improcedente e a reconvenção parcialmente procedente, com a condenação dos AA. a pagar à Ré a quantia de € 31 500,00, devida até ao momento da apresentação da reconvenção, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4 %, a contar da notificação da reconvenção e até efetivo e integral pagamento, bem como a quantia mensal de € 500,00 a partir dessa data e até que cesse o incumprimento dos AA. Mais condenou os AA. a pagar à Ré a quantia por esta gasta a título de despesas de saúde, desde 25 de Novembro de 2010 e até que cesse o incumprimento dos AA., cujo montante se relegou para liquidação.

Assinalou-se na sentença, quanto aos factos enquadrados nos temas de prova 3 a 7, que «os mesmos foram considerados não provados [no anterior processo 461/13.8TBBCL] e como tal (…) não se formou a força de caso impeditiva dos mesmos serem novamente discutidos» (fls. 189, v.).

2. Apelaram os AA., dissentindo da sentença da 1ª instância quanto à não verificação da autoridade do caso julgado, à fixação da matéria de facto e à interpretação da cláusula modal da doação.

O acórdão proferido pela Relação manteve integralmente a matéria de facto fixada pela 1ª instância e decidiu «anular a sentença recorrida, por ser indispensável a ampliação da matéria de facto para esta passar a incluir a factualidade vertida nos artigos 8º, 9º e 18º da contestação/reconvenção da Ré, sem prejuízo de uma eventual alteração da demais matéria factual, caso se revele necessário para evitar contradições».

A parte do acórdão respeitante à questão da autoridade do caso julgado será adiante examinada (infra, 8).

3. Pedem revista os AA.

A final da sua alegação, formulam as seguintes conclusões:

«1ª - As questões relativas ao invocado "incumprimento das condições da doação pelos recorrentes", "apropriação de objetos de ouro", "abandono da casa da recorrida" e "dependência da recorrida do apoio da família" nas quais a recorrida fundamenta o pedido reconvencional da presente ação, foram já apreciadas na ação anterior nº 461/13.8TBBCL, que considerou toda essa factualidade "não provada", não podendo, por isso, o tribunal "a quo" voltar a apreciar e decidir de forma diferente tais factos (…).

2ª – Constitui grave incongruência de julgados dar a essas questões fundamentais e necessariamente comuns para a definição dos pedidos que representam o objeto de ambas as ações, solução divergente da que foi estabelecida na anterior ação transitada em julgado (…).

3ª – Há, pois, ofensa da autoridade do caso julgado quanto aos factos dos pontos 1.° a 15.°, 19.°, 20.°, 43.° a 45.° e 52.° a 58.° da contestação, não podendo o tribunal "a que" decidir de forma contraditória e incompatível com a anterior decisão proferida na ação nº 461/13.8TBBGL (…).

[4ª] – O tribunal "a quo" na decisão sobre a alteração da matéria de facto do ponto 28. não considerou o documento de fls. 160 a 163, que implica necessariamente decisão diversa da proferida, uma vez que a recorrida não se opôs ao teor dessa comunicação.

[5ª] – O tribunal "a quo" não se pronunciou sobre a questão da exigência do cumprimento dos encargos previstos na doação como pressuposto para o pagamento de uma eventual indemnização à recorrida, verificando-se, por isso, a nulidade do acórdão proferido (…)»

A Ré não apresentou contra-alegação.

4. Vistos os autos, cumpre decidir.

II

5. Há, liminarmente, que delimitar o objeto do recurso.

5.1. O acórdão da Relação, do qual vem pedida revista, não conheceu do mérito da causa, nem pôs termo ao processo – não deveria, pois, em vista da regra geral contida no nº 1 do art. 671º do CPC, ser objeto de recurso.

A admissibilidade do presente recurso comporta-se no específico fundamento estabelecido na parte final da alínea a) do nº 2 do art. 629º do CPC, fundamento esse delimitador do respetivo âmbito: ofensa de caso julgado.

Não será, deste modo, possível conhecer das questões indicadas nas duas últimas conclusões da alegação dos Recorrentes, que em nada ao tema respeitam.

5.2. Tem-se, portanto, como única questão a decidir, a verificação, ou não, de ofensa de caso julgado, mais precisamente, no caso dos autos, da autoridade do caso julgado.

6. À questão a decidir apenas interessam os seguintes pontos da matéria de facto fixada pelas instâncias:

«(…)

7.       A Ré instaurou acção de processo comum contra os aqui Autores, a qual correu termos na 1ª Secção Cível da Instância Central de ... com o nº 461/13.8TBBCL, a qual foi julgada totalmente improcedente por sentença proferida em 24/04/2015, confirmada por Acórdão da Relação de ... de 19/11/2015, conforme consta da certidão de fls. 77 e seguintes cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

8.         Na acção referida no número anterior a Ré peticionava que fosse decretada resolução da doação por si efectuada a favor dos Autores ou, em alternativa, a sua revogação, e ainda o cancelamento do registo de aquisição a favor dos Réus e posteriores

(…)»

Tal matéria de facto deve ser integrada pelo que acima, no relatório inicial, se deixou consignado e ainda pelo que consta das referidas decisões da 1ª instância e da Relação, proferidas no Proc. 461/13.8TBBCL, cujas certidões foram mandadas juntar aos autos (fls. 77/87).

Cabe precisar, relativamente à anterior ação proposta pela ora R.:
· Na anterior ação, como fundamento do pedido de resolução, ou revogação, da doação, fora alegado que os aqui AA. tinham deixado de cumprir as obrigações estipuladas na escritura da doação e que os mesmos se tinham apropriado de bens e valores da ora R., designadamente objetos em ouro, bem como, em proveito próprio, de dinheiro depositado no BPI.

7. O caso julgado material – ponto comummente assinalado na jurisprudência e na doutrina[1] –, pelo seu efeito e funcionalidade processual, tanto pode ser dimensionado como exceção ou como autoridade: no primeiro caso, de efeito (dominantemente) negativo[2], exigindo uma tríplice identidade (art. 581º do CPC); no segundo, apenas de efeito positivo, não.[3] [4]

Suposta, obviamente, também quanto à autoridade do caso julgado, a identidade subjetiva (exigida, desde logo, pelo princípio do contraditório – art. 3º do CPC).

No caso dos autos, o despacho saneador, ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 1 do art. 595º do CPC, apenas conheceu do efeito do invocado caso julgado na primeira dimensão apontada e, sem melhor explicitação, entendendo que, apenas aquando do conhecimento de mérito, se poderia dilucidar a questão, na segunda dimensão referida (conformá-la-ia o acórdão da Relação como exceção dilatória inominada de autoridade do caso julgado), relegou para final sobre ela a decisão – entendimento esse confirmado no despacho ditado na abertura da audiência de julgamento, tendo mantido os pontos 3 a 7 dos temas da prova fixados, os quais alegadamente integravam matéria alcançada pela autoridade do caso julgado (despacho de que não cabia recurso – nº 4 do mesmo artigo).

Vejamos como a questão foi examinada no acórdão da Relação, em resultado do recurso interposto da decisão final da 1ª instância.

8. Compaginando o pedido principal no anterior processo com o nestes autos deduzido por via reconvencional, começa o acórdão da Relação por estabelecer que estamos perante «causas de pedir baseadas, no essencial, no mesmo conjunto de facto concretos, mas com pedidos diversos. Ou seja, tratam-se de causas de pedir distintas e autónomas entre si»: «(…) no processo anterior (461/13.8TBBCL) a aqui Ré pediu que fosse decretada a resolução da doação do imóvel ou, em alternativa, declarada a sua revogação, invocando como fundamento da sua pretensão que os Réus deixaram de cumprir as suas obrigações, apropriando-se de bens e valores da Ré, designadamente objetos em ouro e usaram dinheiro da Ré existente no BPI em proveito próprio. Diversamente, nos presentes autos, a Ré, em sede de reconvenção, alega - da mesma forma – que os Autores abandonaram a sua casa e deixaram de lhe prestar os cuidados de higiene, limpeza, tratamento de roupas e fornecimento de refeições, tendo-se apropriados de diversas quantias monetárias, mas pede – diversamente - que os Autores sejam condenados a pagar-lhe a quantia de € 78 185,69 ou, deduzida por compensação a quantia de € 9 107,91, a quantia de € 69 077,78, acrescida de juros de mora, à taxa anual e legal, contados desde a data da notificação para contestar e até integral pagamento, bem como as demais quantias que se vencerem, a partir desta data e até que cesse o incumprimento dos Autores, a liquidar em execução de sentença (quantias estas referentes a valores monetários apreendidos pelos Autores, valor monetário da prestação de serviços assumida pelos Autores, despesas de saúde e de energia eléctrica e indemnização por danos morais)».

Considera, seguidamente, que «o que os Recorrentes invocam nas alegações de recurso é que na ação anterior n.º 461/13.8TBBCL resultaram “não provados” os factos nos quais a recorrida fundamenta o pedido reconvencional da presente ação (…) Temos, portanto, que o caso aqui trazido não se prende com a autoridade de caso julgado decorrente da decisão final na ação anterior, mas da possibilidade de os factos considerados não provados em tal sentença serem susceptíveis de assumir o estatuto de factos definitivos, por virtude da autoridade de caso julgado».

Examinando e decidindo a questão, nesses termos formulada, diz: «(...) o elenco dos factos provados e não provados está, como é evidente, na base da decisão de direito, mas não condiciona, de alguma forma, a apreciação jurídica dos mesmos (…) Por inerência, uma certa decisão jurídica com base num certo conjunto de factos poderá validamente ocasionar diferente decisão jurídica numa nova ação com base nos mesmos factos. Assim sendo, a conclusão final, é a de que as exceções em apreciação “somente” têm aplicação às questões fáctico-jurídicas concretas já decidas anteriormente, ficando fora do seu campo de aplicação os meros factos (provados ou não provados). Conclui-se, por inerência, pela improcedência deste específico fundamento de recurso».

9. A questão a decidir no presente recurso, tal como se enunciou (supra, 5.2), pode agora ser precisada, com referência aos limites objetivos da autoridade do caso julgado, no que respeita aos fundamentos, aos fundamentos de facto, da anterior decisão transitada.

9.1. A par de manifestas razões de economia processual, bem como da associação ao prestígio dos tribunais, funda-se o instituto do caso julgado nos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança: «Embora o princípio da intangibilidade do caso julgado não esteja previsto, expressis verbis, na Constituição, ele decorre de vários preceitos do texto constitucional (…) e é considerado como subprincípio inerente ao princípio do Estado de direito na sua dimensão de princípio garantidor de certeza jurídica. As excepções ao caso julgado deverão ter, por isso, um fundamento material inequívoco (exs.: «revisão de sentença», no caso de condenação injusta ou «erro judiciário»; …). É diferente falar em segurança jurídica quando se trata de caso julgado e em segurança jurídica quando está em causa a uniformidade ou estabilidade da jurisprudência».[5]

Subordinadamente, dispõe o CPC, em matéria de garantia de acesso aos tribunais (art. 2º, nº 1), que «A proteção jurídica através dos tribunais implica o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar».

Com o trânsito em julgado, sem prejuízo de poder vir a ser objeto de revisão, nos restritivos termos dos arts. 696º e ss. do CPC, «a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele» e passa a constituir «caso julgado nos precisos limites e termos em que julga» (CPC, arts. 619º, nº 1 e 621º).

O art. 580º do CPC, reportando-se à exceção, quer da litispendência, quer do caso julgado, ambas pressupondo a repetição de uma causa, as mesmas «têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior» (nº 2 do preceito).

9.2. O tema dos limites objetivos do caso julgado, da amplitude da sua abrangência e alcance, embora parecendo presentemente ultrapassada a tese que restringia, rígida e exclusivamente, à parte decisória da sentença o âmbito do caso julgado[6], é diferentemente equacionado na jurisprudência e na doutrina, podendo reter-se, na generalidade, a jurisprudência reiterada deste tribunal no sentido de que o âmbito objetivo do caso julgado se estende à apreciação das questões preliminares que constituam antecedente lógico necessário da parte dispositiva da decisão. [7]

Delimitar a abrangência da coisa julgada é, antes do mais, uma questão de política legislativa, que envolve a interpretação dos princípios fundamentais do processo e o sopesamento das vantagens e desvantagens de cada uma das alternativas possíveis.[8]

No que respeita à interpretação e aplicação do direito, a questão visa a definição, quanto ao alcance com força de caso julgado da sentença, dos «precisos limites e termos em que julga» (arts. 619º, nº 1 621º, cits.[9]), não havendo para o caso que convocar a norma atualmente contida no nº 2 do art. 91º do CPC, norma cuja previsão apenas irá abranger as questões e incidentes que não estejam (por si) já alcançados pela força do caso julgado.

Questão originariamente suscitada com a entrada em vigor do CPC de 1961 (em idênticos termos mantida no atual, de 2013), pela não subsistência expressa do regime contido no § único do art. 660º e na alínea b) do artigo 96º do anterior código de 1939, disposições à luz das quais era de sustentar estar admitida a extensão do caso julgado à decisão das questões cuja resolução fosse necessária ao conhecimento do objeto da ação. [10]

A verificada omissão legislativa não comporta qualquer sinal orientador para o intérprete e aplicador do direito. Cuidou-se, confessadamente, de consignar no anteprojeto do diploma o propósito de «não tocar no problema e deixar à doutrina o seu estudo mais aprofundado e à jurisprudência a sua solução, caso por caso, mediante os conhecidos processos de integração da lei».[11]

9.3. Referida, na generalidade, a extensão ao âmbito objetivo do caso julgado das questões preliminares que constituam antecedente lógico necessário da parte dispositiva da decisão, importa quanto a ela distinguir entre a sua dimensão interpretativa, comumente aceite[12] e a sua consideração autónoma com respostas divergentes, na jurisprudência e na doutrina –, (i) podendo, relativamente a outros litígios entre as mesmas partes, designadamente quando se verifique uma relação de prejudicialidade, ser-lhe concedida força de caso julgado ou (ii) negando-lha liminarmente, subsumindo-se a decisão que sobre elas incidira à previsão do nº 2 do art. 91º do CPC, cit.[13]

É aquela possibilidade de extensão do caso julgado a relações de prejudicialidade que, para a resolução do caso, importará seguidamente examinar.

Admite-se, para tanto, como regra geral, que os fundamentos de facto da sentença não estarão cobertos pelo caso julgado, dito de outro modo, os fundamentos de facto da sentença, quando dela autonomizados, não adquirem valor de caso julgado.[14] [15]

Regra geral que comportará exceções, à luz da estabelecida relação de prejudicialidade: «(…) também se verificam situações em que os fundamentos de facto, considerados em si mesmos (e, portanto desligados da respectiva decisão), adquirem valor de caso julgado. Esses fundamentos possuem um valor próprio de caso julgado sempre que haja que respeitar e observar certas conexões entre o objecto decidido e um outro objecto (…). Essas conexões podem ser várias: sem excluir outras possíveis, (…) as relações de prejudicialidade (…)».[16] [17]

9.4. Importa, deste modo, tendo em vista a resolução do concreto caso dos autos, determinar em que termos deve ser configurada a relação de prejudicialidade em causa, para que os fundamentos de facto da anterior decisão judicial, autonomamente considerados, possam projetar-se, com valor e força de caso julgado, em outro processo entre as mesmas partes e com diferente objeto, impondo-se como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito (aludido efeito positivo da autoridade do caso julgado).

A base jurídica em que se assenta será sempre determinada pelo art. 619º, nº 1 do CPC, interpretado o art. 621º do mesmo código, como devendo ser aplicado, não apenas restringido à parte injuntiva da sentença, mas podendo abarcar os respetivos fundamentos de facto (supra, 9.2).[18]

Presentes o princípio dispositivo[19], que, gradualmente mitigado, rege o nosso sistema processual civil e o da substanciação da causa de pedir, cabendo ao autor fornecer os factos necessários dos quais emerge a sua pretensão, factos esses nuclearmente delimitadores do âmbito de cognição do tribunal, a eles podendo acrescer outros de natureza instrumental, complementar, notória, ou de conhecimento oficioso, devendo a sentença confinar-se ao objeto do processo, integrado pelo pedido e pela causa de pedir [arts. 5º, nº 1, 552º, alínea d), 581º, 608º, nº 2, 609º, nº 1, 615º, nºs. 1, alíneas d) e e) e 2], hão-de os fundamentos de facto da sentença proferida em anterior processo, fundamentos aos quais se pretende autonomamente atribuir força de caso julgado neste processo, reportarem-se e responderem aos que nesse outro foram trazidos pelo autor, que não pode sobre os mesmos procurar nova decisão judicial[20], com proporcionalidade e inteiro respeito pelo princípio dispositivo, se evitando que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior – sempre salvaguardadas as exigências de justiça e de verdade quanto a essa decisão anteriormente proferida, nos termos facultados pelo art. 696º do CPC.

9.5. No caso dos autos, como vem referido no acórdão da Relação, sendo as mesmas as partes no processo, não se verificando identidade do pedido, nem da causa de pedir, é «no essencial, o mesmo conjunto de facto concretos» trazidos pela Autora ao tribunal na anterior ação e na presente (na anterior ação a Autora havia alegado que os RR. tinham deixado de cumprir as obrigações estipuladas na escritura da doação e que os mesmos se tinham apropriado de bens e valores da ora R., designadamente objetos em ouro e de dinheiro depositado no BPI), nesta o pedido deduzido por via reconvencional, nos termos previstos no art. 266º do CPC.

Na anterior ação o tribunal conheceu dos factos alegados pela Autora e, tendo-os dado por não provados, absolveu os RR. do pedido (não importando que a decisão tenha sido no sentido de os dar por provados, ou não; ela vale, enquanto resposta aos fundamentos de facto invocados pela Autora no pedido formulado).

São essencialmente esses mesmos factos, agora fundando pedido diverso, que a Reconvinte vem apresentar ao tribunal pretendendo que, através de nova decisão, seja a resposta a eles modificada.

A decisão sobre eles proferida no anterior processo deverá vincular o tribunal neste processo (supra, 9.4), resultando precludida a possibilidade de nova demanda ao tribunal, visando diferente resposta relativamente aos mesmos factos, a fundar a pretensão.

A Relação, ao manter a decisão da 1ª instância quanto à matéria de facto, na parte em que fora de modo diverso decidido no Proc. 461/13.8TBBCL, incorreu em violação do caso julgado formado sobre a decisão anteriormente proferida, nos termos definidos no presente acórdão: deve, em consequência e em conformidade com aquela decisão, ser alterada, mantendo-se ou não no mais o decidido, conforme venham ou não a ser entendidas como necessárias outras modificações, em resultado da produzida.

III

Nos termos expostos, acorda-se em conceder revista, anulando-se o acórdão recorrido, enquanto no mesmo foram dados como provados pontos da matéria de facto com violação do caso julgado formado sobre a sentença anteriormente proferida no Proc. 461/13.8TBBCL, nos termos definidos no presente acórdão, devendo o processo voltar à Relação para, nessa parte, à luz da apontada vinculação, e no que entendido for por consequente, ser reapreciada a decisão, pelos mesmos juízes, sendo possível.

Custas, a final.

Lisboa, 4 de Dezembro de 2018.

J. Cabral Tavares (Relator)

Fátima Gomes

Acácio das Neves

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[1] Resenha jurisprudencial e doutrinária em Mariana França Gouveia, A causa de Pedir na Acção Declarativa, 2004, pp. 394 e ss. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, III, pp. 92-93, tivera como doutrina inadmissível, à época, a jurisprudência do STJ de que «são figuras jurídicas distintas, pela dissemelhança das suas funções, o caso julgado excepção e a autoridade do caso julgado, meio de prova. (…) O Supremo socorre-se do art. 2502º do Cód. Civil para desenhar a figura “autoridade do caso julgado”; esquece que o art. 2503º, tal como o art. 502º do Cód. de Proc., exige para o caso julgado meio de prova, e, portanto, para a figura que o Supremo descreve sob o título – força e autoridade do caso julgado – precisamente as identidades de objecto, de causa de pedir e de litigantes» - V., infra, notas nºs. 2, 4 e 15.

[2] Circunscrita, em regra, a esse efeito, a exceção de caso julgado poderá, cumulativamente, em consonância com a finalidade assinalada no nº 2 do art. 581º do CPC, ter efeito positivo (de dupla negativa), de obstar à contradição do decidido em causa anterior. Nas palavras de Alberto dos Reis, cit., «quando funciona por exceção, por detrás desta está sempre a força e autoridade do caso julgado». Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, 1968, pág. 51: «(…) De iure condito, a excepção de caso julgado, quando peremptória nos termos do art.º 496.º, alínea a) [exceção dilatória, com a revisão de 95/6, atualmente contida na alínea i) do art. 577º], desenvolve igualmente a função positiva do caso julgado».

[3] Entre outros, ASTJ de 13.12.2007, 6.3.2008, 20.6.2012, 23.11.2013, 15.1.2013, 21.3.2013, 12.9.2013, 29.5.2014, 18.6.2014, 7.3.2017, 30.3.2017, 28.6.2018, 27.9.2018, 12.10.2018, todos, bem como os adiante citados, disponíveis em www.dgsi.pt.

[4]  Falando, quanto a essa dupla função (tendo entendido que tanto a exceção como a autoridade de caso julgado ficam sujeitas à tríplice identidade referida), em duas faces da mesma figura, Alberto dos Reis, loc. cit.

[5] Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., 1997, pp. 264/5.

[6] Perspetiva aberta, nas próprias palavras de Alberto dos Reis, cit., pág. 143 (realce acresc.): «(…) Pela nossa parte, aceitando em principio a teoria romanista ou limitativa, somos também de parecer que se torna necessário sujeitá-la na prática, a grandes restrições (…) Regra: o caso julgado material forma-se unicamente sobre a decisão relativa ao objecto da acção. Mas em certos casos deverá abranger também as decisões preliminares e preparatórias». Expressando uma posição restritivamente rígida na matéria, com declaração de voto, ASTJ de 18.2.99 (assinalando a existência de duas orientações ou correntes, anotação produzida ao mesmo acórdão, BMJ 484-324/5). Defendendo uma posição mitigadora, propendendo a um certo regresso à doutrina de Savigny (declaração de voto no citado acórdão de 18.2.99) e apelando a um critério eclético, que viria a ser genericamente acolhido na jurisprudência, Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, III, 3ª ed., 2001, pp. 200/1.

[7] Mariana França Gouveia, cit., pp. 397 e ss. Vejam-se, entre outros, ASTJ de 15.1.2013, 23.11.2011, 12.7.2011. 13.7.2010, 14.3.2006, 23.3.2004, 28.1.2003, 7.11.2002.

[8] Castro Mendes, cit., pág. 79.

[9] Referindo-se à tautologia, tantum judicatum quantum judicatum, Castro Mendes, cit., pág. 211.

[10] Rodrigues Bastos, cit., pág. 200.

[11] Rodrigues Bastos, cit., pp. 180/2 e 200/1. V., na matéria, ASTJ de 8.3.2007.

[12] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, edição atualizada por Antunes Varela em 1963, com adaptação da edição de 1956 ao código de 1961, pág. 294: «(…) se possa e deva recorrer à parte motivatória da sentença para interpretar a decisão (para reconstruir e fixar o seu verdadeiro conteúdo); neste sentido é a communis opinio». Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., 1985, pág. 715: «(…) é ponto assente na doutrina que os fundamentos da sentença podem e devem ser utilizados para fixar o sentido e alcance da decisão contida na parte final da sentença, coberta pelo caso julgado». Mais abrangentemente, portador de uma visão holística, M. Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., 1997, pp. 578/9: «Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão».

[13] Neste último sentido, Manuel de Andrade, obra e local cits. (realce acresc.): «(…) o caso julgado só se forma em princípio sobre a decisão contida na sentença. O que adquire a força e autoridade de caso julgado é a posição tomada pelo juiz quanto aos bens ou direitos (materiais) litigados pelas partes e à concessão ou denegação da tutela jurisdicional para esses bens ou direitos. Não a motivação da sentença (…)»; sobre as «restrições porventura de grande transcendência» ao referido princípio, infra, nota nº 17. Castro Mendes, cit., pág. 117: «(…)  só deve revestir força de caso julgado a solução da questão central do processo, para cujo esclarecimento convirjam todos os esforços, que seja no processo o tema primário, absoluto, de investigação; não as soluções de questões que no processo só interessem relativamente, como simples meio de esclarecimento daquela». Antunes Varela, cit., pp. 712, 716 e 717: «(…) A força do caso julgado cobre apenas a resposta dada a essa pretensão e não o raciocínio lógico que a sentença percorreu, para chegar a essa resposta (…) Os factos considerados como provados nos fundamentos da sentença não podem considerar-se isoladamente cobertos pela eficácia do caso julgado, para o efeito de extrair deles outras consequências, além das contidas na decisão final (…) As reservas formuladas quanto à eficácia do caso julgado sobre os factos subjacentes à decisão procedem de igual modo, mutatis mutandis, quanto às relações jurídicas prejudiciais (...)».

[14] M. Teixeira de Sousa, cit., pp. 579/80.

[15] Indo mais longe e linearmente atribuindo valor de caso julgado aos factos provados na sentença, ASTJ de 15.1.2013. Partindo de entendimento contrário e situando como questão diversa, a respeitante ao valor extraprocessual das provas produzidas em anterior processo (art. 421º do CPC), ASTJ de 5.5.2005: «Não pode é confundir-se o valor extraprocessual das provas produzidas (que podem ser sempre objecto de apreciação noutro processo) com os factos que no primeiro foram tidos como assentes, já que estes fundamentos de facto não adquirem valor de caso julgado quando são autonomizados da respectiva decisão judicial. (…) Transpor os factos provados numa acção para a outra constituiria, pura e simplesmente, conferir à decisão acerca da matéria de facto um valor de caso julgado que não tem, ou conceder ao princípio da eficácia extraprocessual das provas uma amplitude que manifestamente não possui». Eventuais dificuldades na destrinça dos planos de atuação de uma sentença radicarão na apontada confusão genética da autoridade do caso julgado como meio de prova (supra, nota nº 1), rejeitada por Vaz Serra nos trabalhos preparatórios do CC de 1966, considerando não ser o caso julgado «um meio de prova, mas um instituto respeitante à tutela jurisdicional dos direitos, por força do qual o conteúdo de uma decisão judicial adquire uma particular eficácia» (Maria José Capelo, A Sentença entre a Autoridade e a Prova, 2015, pp. 29/31).

[16] M. Teixeira de Sousa, cit., pág. 580.

[17] Manuel de Andrade, obra e edição citadas, pp. 302/4, ao examinar as restrições porventura de grande transcendência ao princípio de que o caso julgado só se forma sobre a decisão contida na sentença, prevenidas páginas atrás (supra, nota nº 13), confrontando o problema do caso julgado sobre os motivos da decisão final, refere que o mesmo (realces acrescs.) «verdadeiramente só interessa quanto a pontos susceptíveis de discussão e apreciação em processo à parte – no qual, sem dúvida, se formaria sobre eles o caso julgado com a sua autoridade  normal»; quanto à sentença «certamente, há-de valer como caso julgado, pelo menos, até onde contenha a resposta do tribunal ao pedido do Autor, quando mesmo se lhe deva negar, sempre e inalteravelmente, um tal valor aos antecedentes lógicos dessa resposta - aos vários juízos preliminares (sobre pontos de facto e de direito) com que o tribunal a tenha motivado»; já a afirmação categórica, muitas vezes transcrita, de que, de iure constituto, os limites objectivos do caso julgado se mostram confinados à parte injuntiva da decisão, conforme consta a pp. 334/5 ou 335/6, respetivamente, nas novas edições de 1976 e 1993, é da autoria do revisor [cf., pág. 310 na edição de 1963 e supra, 9.2, em matéria de vigência do § único do art. 660º e alínea b) do art. 96º no código de 1939].
[18] Castro Mendes, cit., confinados os limites objetivos do caso julgado à parte injuntiva da decisão, tratando-se de problema delicado, considera o citado enquadramento normativo, nos seguintes termos (pp. 51/2, realce acresc.): «(…) base jurídica para afirmarmos que, havendo caso julgado e levantando-se num processo civil seguinte inter easdem personas a questão sobre a qual este recaiu, mas levantando-se como questão fundamental ou instrumental e não como thema decidendum (não sendo, pois, de usar a excepção de caso julgado), o juiz do processo novo está vinculado à decisão anterior, é apenas o artigo 671.º n.º 1 [619º, nº 1, no CPC de 2013], na medida em que fala de força obrigatória fora do processo, sem restrição, e ainda a ponderação das consequências a que essa falta de vinculação conduziria (…) o respeito pelo caso julgado posto em causa num processo posterior, não como questão central, mas como questão fundamental, ou instrumental, representa uma conquista da ciência processual que vem já dos tempos de Roma. Não nos parece estar em causa no direito português. Só nos parece inconveniente que o seu fundamento seja apenas o vago e genérico art.º 671.º n.º 1 [619º, nº 1]. A vinculação do juiz ao caso julgado quando a questão respectiva seja levantada como fundamental ou instrumental baseia-se, evidentemente, na função positiva do caso julgado».

[19] À verificada eliminação da referência ao princípio, constante da epígrafe do art. 264º do CPC de 1961, na epígrafe do correspondente art. 5º do código atual não deverá ser atribuído real alcance (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, I, 3ª ed., 2014, pág. 13; Mariana França Gouveia, O Princípio Dispositivo e a Alegação de Factos em Processo Civil, ROA, 73, 2013, pág. 604)

[20] Versando sobre as funções realizadas pela causa de pedir na individualização da pretensão material, na delimitação do âmbito de conhecimento do tribunal e da preclusão extraprocessual operada através do caso julgado, M. Teixeira de Sousa, Algumas questões sobre o ónus de alegação e impugnação em processo civil, SI, 332, 2013, pág. 404 (realce acresc.): «(…) Como consequência, a causa de pedir também define o âmbito da preclusão decorrente do trânsito em julgado da decisão, isto é, também delimita os factos que, na hipótese de o autor não ter obtido ganho de causa, não podem ser invocados por esse autor numa acção posterior». Reportando-se à opção legislativa contida no art. 498º do CPC [art. 581º do código atual], A. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, I, 2.ª ed., 1998, pp. 192/3 (realce acresc.): «(…) Já a opção pela teoria da substanciação implica para o autor a necessidade de articular os factos de onde deriva a sua pretensão, formando-se o objecto do processo e, por arrastamento, o caso julgado, apenas relativamente aos factos integradores da causa de pedir invocada».