CHEQUE
REVOGAÇÃO
Sumário

I - Se o cheque for apresentado a pagamento dentro do prazo previsto no artº 29º da LUC, o banco sacado deve pagar o cheque, ainda que o sacador tenha dado ordem de revogação do mesmo.
II – Se o banco sacado recusar o pagamento do cheque com fundamento na referida revogação, responde por perdas e danos.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:


RELATÓRIO

B………………… intentou, no Tribunal Cível da Comarca do Porto, onde foi distribuída à respectiva ..ª Vara, a presente acção com processo ordinário contra:
- C………………, S.A., pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de € 282.000,00, acrescida de juros moratórios, à taxa legal de 4%, contados desde as datas de apresentação a pagamento de cada um dos cheques e sobre as quantias nos mesmos inscritas, e nos juros vincendos até integral e efectivo pagamento.
Alegou, para tanto, em resumo, que é dono e legitimo portador de quatro cheques sacados sobre o Réu, nos montantes de € 50.000,00, 175.000,00, 40.000,00 e 17.000,00; tais cheques foram sacados pelo legal representante de D…………………, Lda., à ordem de terceira pessoa, que por sua vez os endossou ao aqui Autor, cheques esses que, embora apresentados a pagamento dentro do prazo de oito dias a contar das datas da respectiva emissão, o Réu se recusou a pagar, apondo nos três primeiros a declaração de revogado por coacção moral e no último a de cheque revogado e apresentado fora de prazo; conclui o Autor por afirmar que o Réu violou o disposto no artº 32º da Lei Uniforme sobre Cheques (LUC) e com essa conduta causou-lhe danos, pois a importância inscrita nos referidos cheques jamais lhe foi paga.
Contestou o Réu, alegando, também em resumo, que a demanda carece de fundamento; impugnou, no essencial, os factos alegados na petição inicial, referindo que a empresa titular dos cheques em causa deu ordem ao Réu para anular tais cheques, proibindo-o de proceder ao pagamento dos mesmos, por motivo de coacção moral, pelo que o Réu, ao não proceder ao pagamento dos cheques, agiu de forma legítima e justificada; termina, por isso, pedindo a improcedência da acção.
O Réu, por requerimento com a mesma data da contestação, requereu a intervenção principal provocada de D………………, e E………………, gerente daquela, para que, caso o Réu venha a ser condenado ao pagamento solicitado pelo Autor, sejam também condenados solidariamente os intervenientes, porque foram quem deram a ordem de revogação dos cheques.
Foi apresentada réplica pelo Autor, alegando que desconhece se a empresa titular dos cheques solicitou ao Réu a revogação dos mesmos e qual o motivo invocado.
Foi admitida a requerida intervenção principal provocada, tendo sido citados os chamados, os quais não contestaram.
Proferiu-se o despacho saneador, consignaram-se os factos tidos como assentes e organizou-se a base instrutória, sem reclamações.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, finda a qual se respondeu à matéria da base instrutória, também sem reclamações.
Finalmente, verteu-se nos autos sentença que, julgando a acção procedente, condenou o Réu a pagar ao Autor a importância de € 282.000,00, acrescida de juros moratórios, vencidos e vincendos, à taxa legal sucessivamente em vigor, contados desde as datas de apresentação a pagamento de cada um dos cheques e sobre as quantias nos mesmos inscritas, até efectivo pagamento.
Inconformado com o assim decidido, interpôs o Réu recurso para este Tribunal, o qual foi admitido como de apelação e efeito suspensivo.
Alegou, oportunamente, o apelante, o qual finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:

1ª – “Na determinação da matéria relevante para a boa decisão da causa tribunal a quo desconsidera por completo factos descritos, de forma credível e coerente pelas testemunhas F………………., funcionário do Recorrente – depoimento registado na cassete nº 341, volta 798 a 1874, G………………….., funcionário do Recorrente – depoimento registado na cassete nº 341, volta 1875 a 2174, H…………….., funcionário do recorrente – depoimento registado na cassete nº 341, volta 2175 e 2556;
2ª – Não restam dúvidas face ao depoimento das testemunhas supra mencionadas que a intenção do banco Réu era proceder à devolução do mesmo por falta de provisão, uma vez que a conta sobre a qual o mesmo foi sacado encontrava-se, à data de apresentação a pagamento, com saldo devedor, sendo que o motivo aposto do cheque de “apresentação fora de prazo” se deveu a mero lapso dos serviços administrativos;
3ª – Este erro do banco réu, mesmo que o tribunal a quo o possa ter considerado como grosseiro, não consubstancia, de forma alguma, acto ilícito passível de criar obrigação do mesmo indemnizar os autores, nos termos do artº 483º do C.P.C., nem, objectivamente, existe qualquer nexo de causalidade em a conduta do banco réu (o erro) e o prejuízo dos autores;
4ª – Quanto aos restantes três cheques de € 50.000,00, € 175.000,00 e € 40.000,00, não resulta da matéria de facto valorada pelo tribunal a quo que a recusa de pagamento dos cheques por parte do réu possa constituir a prática de um facto ilícito, sendo que tal prova caberia ao autor, que não o fez, mais resultando do depoimento das testemunhas do réu, supra identificadas, que a conduta deste se pautou pela máxima licitude;
5ª – De acordo com o depoimento das testemunhas G…………… e H…………….., resulta que se os cheques em causa nos autos não tivessem sido cancelados e devolvidos pelo motivo de revogação por coacção moral teriam sido necessariamente devolvidos por falta de provisão pois as contas da D……………., Lda sobre as quais os mesmos foram sacados tinha saldo devedor, sendo que ao apor no verso dos cheques o motivo de devolução como sendo o de revogação por coacção moral se limitaram a seguir a instrução do Banco de Portugal nº 125/96;
6ª – O facto de os cheques em causa nos presentes autos não terem provisão é elemento essencial para a determinação da existência ou não de nexo de causalidade adequada entre a conduta do réu (recusa de pagamento dos cheques pelo motivo de coacção moral) e o prejuízo dos autores;
7ª – O tribunal a quo desconsiderou, ainda, matéria de facto que deveria ter dado como assente pelo depoimento das testemunhas F……………., funcionário do Recorrente – depoimento registado na cassete nº 341, volta 798 a 1874, G……………., funcionário do Recorrente – depoimento registado na cassete nº 341, volta 1875 a 2174, H..............................., funcionário do recorrente – depoimento registado na cassete nº 341, volta 2175 e 2556, e, se dúvidas restassem, em abono da verdade material, deveria ter dispensado o banco réu do dever de sigilo bancário, permitindo a junção aos autos do extracto dos movimentos das contas de que era titular a D..............................., Lda, e sobre as quais foram sacados os cheques em causa nos autos;
8ª – A recusa de pagamento dos cheques em causa nos presentes autos no valor de € 50.000,00, € 175.000,00 e € 40.000,00, foi lícita, uma vez que o mandato de pagamento incorporado nos mesmos foi revogado com justa causa – vício da vontade do mandante (coacção moral), nos termos do preceituado no nº 2 do artº 1170º do Código Civil;
9ª – A actuação do banco réu ao recusar o pagamento dos referidos cheques por motivo de revogação por coacção moral nunca seria adequada ao dano do autor relativo ao valor titulado pelos cheques, uma vez que estes seriam sempre devolvidos por falta de provisão;
10ª – No caso vertente a actuação do banco réu não pode ser reconduzida a nenhum dos pressuposto das responsabilidade civil extracontratual: a sua conduta foi lícita, cumprindo o disposto no artº 1170º do C.P.C., agiu sem culpa, de acordo com as instruções do seu cliente, o mandante, as quais teve o cuidado de confirmar pessoalmente, e a conduta do réu não foi causa do dano do autor referente facto de se ver desapossado do valor titulado pelos cheques, até porque os mesmos seriam sempre devolvidos por falta de provisão;
11ª – A decisão do tribunal a quo está em manifesta e evidente contradição a matéria de facto relevante, assim como a lei, uma vez que não estão preenchidos os requisitos essenciais da obrigação de indemnizar – a existência de uma conduta ilícita, culposa, bem a exigência de que o comportamento do Recorrente seja adequada desse dano (artºs 483º e 563º do Código Civil)”.

Contra-alegaram os apelados, pugnando pela manutenção do julgado.

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O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, nos termos do disposto nos artºs 684º, n.º3, e 690º, n.º 1, do C. de Proc. Civil.
De acordo com as apresentadas conclusões, as questões a decidir por este Tribunal são as de saber se é de alterar a decisão da matéria de facto da 1ª instância e se estão reunidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, para poder ser responsabilizado o apelante pela reparação dos danos sofridos pelos apelados com o não pagamento dos cheques em causa.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre decidir.
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OS FACTOS

Na sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos:

1º - O Autor é portador de quatro cheques, sacados sobre o Banco Réu, com as importâncias inscritas de € 50.000,00, € 175.000,00, € 40.000,00 e € 17.000,00, com as datas de emissão, respectivamente, de 2003/01/31, 2003/02/05, 2003/04/30 e 2003/07/31;
2º - Os referidos cheques foram sacados pelo legal representante de D……………., Lda, à ordem de terceira pessoa que, por sua vez, os endossou ao Autor, mediante a respectiva assinatura no verso dos títulos cambiários;
3º - O Autor, em 2003/02/05, 2003/02/10, 2003/05/05 e 2003/08/01, respectivamente, apresentou os cheques a pagamento no estabelecimento da …………, na cidade do Porto, do Banco sacado;
4º - O Banco Réu recusou o pagamento dos cheques, devolvendo-os ao Autor com o respectivo carimbo, e inscrevendo-lhes a declaração, no caso dos dois primeiros cheques, de “revogado c/justa causa/coacção moral” e, no terceiro dos cheques, a declaração do banco limita-se a justificar a devolução do cheque por “ por coacção moral”;
5º - No caso do último cheque a declaração do banco, datada de 1 de Agosto de 2003, comunica que a devolução se deveu a cheque revogado e apresentado fora de prazo;
6º - A importância global inscrita nos referidos cheques, de € 282.000,00, jamais foi paga ao Autor;
7º - A empresa D……………., Lda, titular dos referidos cheques, deu ordem ao Réu para anular os cheques nº 6660056034 da importância de € 175.000,00, nº 0660056073 da importância de € 40.000,00 e nº 5360056057 da importância de € 50.000,00 alegando o motivo de coacção moral/fim do contrato.
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O DIREITO

O apelante tece críticas à decisão da matéria de facto da 1ª instância. Lendo as conclusões da sua alegação recursiva, constata-se facilmente que o apelante não concretiza quais os factos que o Tribunal “a quo” deveria ter dado como provados ou como não provados. Veja-se, a título meramente exemplificativo, a forma como se mostra redigida a conclusão 7ª, em que o apelante refere que o Tribunal “a quo” desconsiderou, ainda, matéria de facto que deveria ter dado como assente, sem dizer que matéria concreta foi essa.
Nas entrelinhas das conclusões e do arrazoado da alegação do apelante colhe-se, porém, que a apelante pretende que se dê também como provado que a devolução do cheque de € 17.000,00 com o fundamento invocado de “apresentação fora de prazo” se ficou a dever a mero lapso dos seus serviços administrativos; que as contas sobre as quais os cheques foram sacados tinham saldo devedor; e que, ao apor nos três primeiros cheques referidos no item 1º dos factos o motivo de devolução como sendo por coacção moral, se limitou a seguir a instrução do Banco de Portugal nº 125/96.
A crítica que o apelante faz à decisão da matéria de facto conduz-nos necessariamente ao modo como foi organizada a base instrutória dos autos.
Esta peça processual, contra a qual o ora apelante não reclamou, comporta somente dois quesitos e a que foi dada a seguinte redacção:
1º - A importância global inscrita nos referidos cheques, de € 282.000,00 jamais foi paga ao autor?
2º - A empresa D………………., Lda, titular dos referidos cheques, deu ordem ao réu para anular tais cheques, proibindo o réu que procedesse ao pagamento dos mesmos, por motivo de coação moral?
O quesito 1º veio a obter a resposta de «provado», ao passo que o quesito 2º veio a obter a resposta de «provado apenas que, a empresa D.................., Lda, titular dos referidos cheques, deu ordem ao Réu para anular os cheques nº 6660056034 da importância de € 175.000,00, nº 0660056073 da importância de € 40.000,00 e nº 5360056057 da importância de € 50.000,00 alegando o motivo de coacção moral/fim do contrato».
Lendo a matéria da base instrutória, facilmente se colhe que os factos que o apelante pretende se considerem como provados não caberiam na resposta a nenhum dos quesitos que ela comporta.
Isso levou-nos a perscrutar a apresentada contestação no sentido de aí serem lobrigados os factos que o apelante pretende ver como provados. Mas o certo é que, lendo e relendo a contestação (fls. 19), único articulado produzido pelo Réu/apelante nestes autos, e no qual o Réu devia deduzir toda a sua defesa (artº 489º do C.P.C.), constatou-se que nenhum desses factos foi alegado pelo Réu. E o Autor também os não alegou nos articulados que produziu, nem faria sentido que o fizesse.
Se tais factos tivessem sido alegados, não tendo sido incluídos na base instrutória, existia razão para anular o efectuado julgamento e mandar ampliar a matéria de facto (artº 712º, nº 4, do C.P.C.).
Não tendo sido alegados tais factos, como não foram, não colhe a pretensão do apelante em que sejam considerados como provados.
Na verdade, às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções, sendo os articulados o momento próprio para a efectuar essa alegação. E o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo do disposto nos artºs 514º e 665º e da consideração, mesmo oficiosa, dos factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa (artº 264º, nºs 1 e 2, e 664º do C.P.C.).
Aqueles artºs 514º (factos notórios ou de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções) e 665º (uso anormal do processo) não se aplicam manifestamente ao caso em apreço. E também não estamos em presença de factos instrumentais que resultassem da instrução e discussão da causa. Que assim não é resulta da própria alegação do apelante, o qual refere que “o facto de os cheques em causa nos presentes autos não terem provisão é elemento essencial para a determinação da existência ou não de nexo de causalidade adequada entre a conduta do réu (recusa de pagamento dos cheques pelo motivo de coacção moral) e o prejuízo dos autores” (vide conclusão 6ª).
Em suma, ainda que pudessem ser eventualmente considerados como provados os factos a que o apelante se refere, designadamente, que os cheques sempre seriam devolvidos por as contas sobre que foram emitidos terem saldo devedor, o certo é que, não tendo sido oportunamente alegados tais factos, esta Relação não pode dá-los como provados e servir-se deles para alicerçar a decisão.
Assim, esta Relação, porque os factos considerados provados na 1ª instância não sofrem de deficiência, obscuridade ou contradição, considera tais factos como definitivamente fixados.
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O Réu/apelante recusou ao Autor, legítimo portador de quatro cheques sacados sobre aquele, o respectivo pagamento, devolvendo-os com as menções de “revogado c/justa causa causa/coacção moral”, “por coacção moral” e “cheque revogado e apresentado fora de prazo”, não obstante tais cheques terem sido apresentados a desconto dentro dos oito dias seguintes à respectiva data de emissão.
O cheque consubstancia um título de crédito que enuncia, como a letra, uma ordem de pagamento, mas que se dirige a um banqueiro, no estabelecimento do qual existe um fundo depositado pelo emitente do título (cfr. Ferrer Correia, in Lições de Direito Comercial, III, pág. 22, apud Abel Delgado, Lei Uniforme sobre Cheques - Anotada, pág. 12).
Assim, uma convenção de cheque vigente entre uma pessoa e uma instituição bancária pressupõe a existência de uma relação de provisão (depósito, abertura de crédito, conta corrente, desconto, etc.) titulada pelo primeiro (emitente) e em poder do segundo.
Essa relação deverá permitir à instituição bancária o cumprimento da ordem de pagamento dada, ou seja, a conta deverá estar provisionada na medida necessária ao pagamento do montante inscrito no cheque.
Por outro lado, o sacador deverá ter em atenção o montante que mantém depositado quando emite tal ordem de pagamento, o qual não deverá ultrapassar.
Só quando estejam reunidas estas condições é que o cheque estará habilitado a realizar a sua função de título de crédito e de meio de pagamento, sendo merecedor de confiança pelos operadores económicos e pelas pessoas em geral.
Nestes termos, na medida em que o sacador do cheque emite uma ordem de pagamento dirigida ao banco onde dispõe da provisão a mobilizar, fica aquele obrigado, como garante, ao pagamento da quantia titulada pelo cheque.
A obrigação correspondente ao direito a uma prestação pecuniária incorporado no título, cabe apenas ao sacador, por a ordem de pagamento que emite e de que é garante dever ser satisfeita com fundos que lhe pertencem, depositados no sacado. Daí que, necessariamente, a falta de pagamento implique a sua responsabilização.
O regime jurídico especial a que estão sujeitos os cheques reflecte-se na consagração de alguns princípios subjacentes, como sejam o da incorporação da obrigação no título; a literalidade da obrigação; a abstracção da obrigação (o cheque é independente da “causa debendi”); independência recíproca das várias obrigações incorporadas no título; e a autonomia do direito do portador.
Com efeito, o cheque traduz-se ainda num título de crédito literal, autónomo e completo, representativo do numerário e de que se lança mão para se fazer um pagamento. A emissão dum cheque supõe a existência de uma provisão disponível, isto é, de fundos previamente depositados no estabelecimento bancário. No entanto, a falta de provisão não o invalida, mas o sacador pode incorrer em acção de perdas e danos, nos termos do artigo 3º da Lei Uniforme sobre Cheques (LUCh).
O cheque supõe, em rigor, o depósito feito pelo emitente, de certa quantia, em poder daquele a quem é dada a ordem de pagamento – o banqueiro – mas representa, essencialmente, o meio ou processo de levantamento parcial ou total desse depósito, nas condições previamente ajustadas entre depositante e depositário ou devedor; e, como tal, é um título pelo qual o depositante dispõe dos fundos depositados, quer em seu próprio benefício (cheque a favor do depositante), quer a favor de terceiro (P. Coelho, Lições, 2º, 1ª parte, 29).
O cheque é um título cambiário, à ordem ou ao portador, literal, formal, autónomo e abstracto, contendo uma ordem incondicionada, dirigida a um banqueiro, no estabelecimento do qual o emitente tem fundos disponíveis, ordem de pagar à vista a soma nele inscrita (F. Correia e A. Caeiro, RDE, 1978, 457).
O cheque é sempre pagável à vista e é sacado sobre um banqueiro que tenha fundos à disposição do sacador (Ac. S.T.J. de 11/10/50, B.M.J. n.º 30.º, 139).
Como estabelece o artigo 29º, n.º 1, da LUCh, o cheque deve ser apresentado a pagamento no prazo de oito dias, sendo certo que a apresentação do cheque a uma câmara de compensação equivale à apresentação a pagamento, atento o disposto no artigo 31º do diploma supra citado.
Segundo o artigo 40º do mesmo diploma o portador pode exercer os seus direitos de acção contra os endossantes, sacador e outros co-obrigados, se o cheque, apresentado em tempo útil não for pago e se a recusa de pagamento for verificada por um dos meios que aí se indicam.
Assim, o direito de acção civil contra o sacador nasce com a apresentação do cheque a pagamento em tempo útil e com a verificação da recusa em forma legal (nomeadamente pela declaração datada duma câmara de compensação constatando que o cheque foi apresentado em tempo útil e não foi pago).
Por outro lado, nos termos do artigo 28º da referida lei, o cheque é pagável à vista, considerando-se como não escrita qualquer menção em contrário, sendo mesmo pagável no dia da apresentação, ainda que apresentado a pagamento antes do dia indicado como data da emissão.

No caso presente, o que está, porém, em causa é a responsabilidade do Réu, enquanto banco sacado, pelo ressarcimento dos prejuízos causados ao Autor, portador dos cheques que foram apresentados atempadamente a pagamento e não foram pagos, com a invocação de que se tratava de cheques revogados por coacção moral e revogado por ser apresentado fora de prazo.
Não se discute que os cheques em causa foram todos apresentados a pagamento dentro dos oito dias subsequentes à respectiva emissão (cit. artº 29º, nº 1), como decorre dos factos vertidos nos itens 1º e 3º, pelo que a causa invocada pelo Réu para devolução do cheque de € 17.000,00 (revogado e apresentado fora de prazo), é de todo insubsistente. A recusa de pagamento de tal cheque é infundada e ilícita e nem o apelante questiona verdadeiramente a sua responsabilidade pelo pagamento da quantia correspondente a esse cheque (vide conclusão 8ª).
Mas o certo é que também em relação aos demais cheques existe responsabilidade do Réu/apelante pelos danos causados com o seu comportamento, como bem decidiu a douta sentença recorrida.
Segundo o disposto no art. 32º da LUCh “a revogação do cheque só produz efeito depois de findo o prazo de apresentação” (nº 1). “Se o cheque não tiver sido revogado, o sacado pode pagá-lo mesmo depois de findo o prazo” (nº 2).
A revogação do cheque só produz, pois, efeito depois de findo o prazo da respectiva apresentação a pagamento.
Aquele artº 32º, nº 1, decreta a ineficácia da revogação do cheque durante o prazo de apresentação a pagamento, permitindo ainda que o sacado satisfaça a importância respectiva, esgotado aquele prazo e desde que não surja revogação (vide Parecer da P.G.R., de 17/10/57, in B.M.J. nº 71º, 358).
De acordo com o disposto no art. 14º do Decreto nº 13 004, de 12/01/1927, “a revogação do mandato de pagamento conferido por via do cheque ao sacado, só obriga este depois de findo o competente prazo de apresentação estabelecido no art. 12º do presente decreto com força de lei. No decurso do mesmo prazo, o sacado não pode, sob pena de responder por perdas e danos, recusar o pagamento do cheque com fundamento na referida revogação” (carregado nosso).
É na interpretação daquelas duas normas, como bem refere a sentença recorrida, que se divide a jurisprudência e a doutrina, como de forma esclarecedora se pode ler no Ac. da R. de Guimarães de 7-12-2005, (in www.dgsi.pt/).
Há duas correntes jurisprudenciais e doutrinais sobre a responsabilidade do sacado perante o acatamento da ordem de revogação de cheques por parte do sacador durante o prazo legal de apresentação a pagamento.
Uma defende que o sacado não é responsável perante o portador, mas antes face ao sacador, seja qual for a posição que tome perante a revogação de cheques, no período de apresentação, assentando na revogação tácita do art. 14º do Dec. Lei nº 13 004, de 12/01/1927, com a entrada em vigor da LUCh, a qual, no seu artigo 32º, regulou a matéria desse normativo, e que deve ser interpretado no sentido de que o sacado pode livremente aceitar ou não a revogação dos cheques (neste sentido, vide Ac. R. P. de 5-4-90, CJ 1990, Tomo II, 227; Filinto Elísio, Revista “O Direito”, ano 100, 450 e ss; Ferrer Correia e António Caeiro, Revista “Direito e Economia”, nº 4, 1978).
A outra corrente, que se vem sedimentando como maioritária, vai no sentido de que o artigo 32º da LUCh não revogou, tacitamente, a 2ª parte do corpo do artigo 14º do Dec. Lei nº 13 004, o qual deve ser interpretado no sentido de que o sacado lhe deve obediência, cuja violação implica acto ilícito, porque ilegal, já que, segundo aquele normativo, a revogação é ineficaz, o que significa que não produz efeitos, tudo se passando como se não fosse emitida.
Porém, se o banco sacado a acatar, recusando-se a pagar o cheque, frustrando a ordem de pagamento, está a transformar um acto que se quer ineficaz em eficaz, isto é, a produzir os efeitos não queridos pela norma. E, como esta norma visa proteger a circulação do cheque, patenteada na tutela da confiança do portador do cheque, que espera que o mesmo seja pago pelo sacado, salvo falta de provisão, a sua violação, sem qualquer sanção, implica a negação do próprio sistema, que tem como finalidade última, a circulação do cheque como moeda.
Colocaria, pois, no arbítrio do banco sacado o pagamento ou não do cheque emitido, com consequências nefastas para a segurança da circulação do cheque, como título de crédito, que necessita de credibilidade. E não é aceitável que o sistema bancário, no exercício da sua actividade, possa pôr em crise a segurança geral do cheque de forma lícita e impune, para proteger clientes.
Daí que, durante o período de apresentação do cheque a pagamento, a revogação do sacador não possa ser acatada pelo banco sacado, sob pena de praticar um acto ilícito, gerador de responsabilidade civil extracontratual se se verificarem todos os seus pressupostos.
Esta segunda corrente é a que melhor se adequa aos fundamentos da tutela do cheque, para criar a confiança do portador, no sentido do dinamismo das relações comerciais.
No mesmo sentido, considerando-se a jurisprudência mais recente, que segue de forma mais uniforme a segunda das posições mencionadas, podem ver-se os Acs. R. P. de 24-4-90, CJ, 1990, Tomo II, 238; Assento nº 4/2000, DR, I Série-A, de 17/2/2000; Ac. S.T.J. de 6-2-97, www.dgsi.pt/; Ac. R. C. de 28-11-2000, CJ, 2000, Tomo V, 24; Ac. S.T.J. de 5-7-2001, CJ (STJ) 2001, Tomo II, 146; Ac. R. P. de 19-2-2004, www.dgsi.pt/; e mais recentemente o Ac. S.T.J. de 15-3-2005, no mesmo endereço electrónico.
Como, em jeito de conclusão, se refere naquele Assento nº 4/2000: “Em suma: tratando-se de uma norma, materialmente, do direito comum – responsabilidade civil extracontratual –, sobre matéria que a Convenção se absteve de tratar, precisamente, para a deixar sob o império exclusivo do direito comum, a 2.ª parte do corpo do artigo 14º do Decreto nº 13 004 não resultou revogada por efeito da entrada em vigor da LUC” (carregado nosso).
Não existe justificação plausível para deixar no livre arbítrio do banco sacado a possibilidade de pagar, ou não, um cheque revogado quando lhe for apresentado a pagamento dentro do prazo legal. De outro modo, os bancos podiam pagar a determinados portadores de cheques e já não a outros que estivessem nas mesmíssimas condições, não tendo nunca de dar justificações das opções tomadas em cada caso concreto, chamando a si um poder totalmente discricionário que colocaria em sério risco a relação de confiança que tem de existir entre o público em geral perante um título de crédito de uso tão generalizado, como é o cheque.
Por isso, tal como a decisão recorrida, sufragamos o entendimento de que, se apresentado a pagamento dentro do prazo previsto no artº 29º da LUCh, o banco sacado deve pagar o cheque, ainda que o sacador tenha dado ordem de revogação do mesmo.
Deste modo, é de concluir que a actuação do ora apelante, ao recusar o pagamento dos cheques que lhe foram apresentados pelo Autor, é ilícita e culposa, já que o apelante não podia ignorar que, mantendo-se em vigor a 2ª parte do artº 14º do Decreto nº 13004, não podia recusar o pagamento dos cheques ao Autor com fundamento na referida revogação, sob pena de responder por perdas e danos.
O não pagamento dos cheques em causa originou danos ao Autor, já que o mesmo ainda não logrou ser pago da quantia titulada pelos cheques (item 6º).
A actuação do apelante é causal do dano sofrido pelo Autor, já que a sua recusa injustificada em pagar os cheques foi adequada a produzir os danos na esfera patrimonial do Autor, já que se o Réu pagasse, como era sua obrigação, os cheques, tal dano não se verificaria. Não estamos sequer a considerar a hipótese de os cheques não terem cobertura, o que não foi, como supra se deixou dito, sequer alegado e muito menos provado.
Como se escreveu no citado Ac. do S.T.J. de 15/3/2005 (Proc. 05A380), o Banco não pode exonerar-se da obrigação de indemnização, no todo ou em parte, invocando a causa virtual que produziria o mesmo dano, resultante da inexistência de fundos para o pagamento do cheque cuja revogação se operou no prazo da apresentação a pagamento.
Com efeito, diz o mesmo aresto, a revogação do cheque, operada pelo Banco, é, por si só, causa adequada do dano, ainda que viesse a ocorrer um outro facto (inexistência de fundos) susceptível de conduzir ao mesmo resultado.
É que a causa virtual não possui a relevância negativa de excluir a causalidade, pois em nada afecta o nexo causal entre o facto operante e o dano, já que sem o facto operante o lesado teria dano idêntico, mas não aquele preciso dano.
Verificam-se, pois, todos os requisitos da responsabilidade civil por factos ilícitos, nos termos do artº 483º, nº 1, do Código Civil, pelo que a sentença recorrida, ao condenar o Réu em conformidade com o pedido, não merece censura.
Improcedem, assim, as conclusões da alegação do apelante, pelo que a douta sentença recorrida terá de se manter.
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DECISÃO

Nos termos expostos, decide-se julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.

Porto, 18 Junho de 2007
Emídio José da Costa
António Luís Caldas Antas de Barros
Mário de Sousa Cruz
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(1) Falecido na pendência da acção, tendo sido habilitados como seus herdeiros I……………, seu cônjuge sobrevivo, e J……………., L…………………, M…………… e N……………, seus filhos.