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OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA NEGLIGENTE
PENA ACESSÓRIA
PROIBIÇÃO CONDUÇÃO VEÍCULOS COM MOTOR
PRESSUPOSTOS
LEI 77/2001 DE 13.07
ARTº 69º DO CPP
Sumário
1. Quando o legislador de 95 instituiu no art. 69º do Código Penal a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, sujeitou a sua aplicação a determinados pressupostos formais e a um pressuposto material, verificando-se este quando o exercício da condução se revelasse especialmente censurável, atendendo às circunstâncias do facto e da personalidade do agente.
2. A lei 77/2001 de 13.07 ao alterar a redação do art. 69º do Código Penal, fazendo desaparecer da alínea a) do nº 1 o conceito de grave violação das regras de trânsito rodoviário, para o substituir pela referência à prática de concretos crimes, afastou o pressuposto material.
3. Desde aí, a pena de proibição de conduzir veículos com motor, embora formalmente acessória, ficou colocada a um nível sancionatório semelhante ao da pena principal, revelando-se como uma nova modalidade punitiva.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães.
I.
No processo comum singular que, com o nº 81/16.5GDVCT, corre termos no Juiz Local Criminal de Viana do Castelo foi o arguido J. C. condenado pela prática de um crime à integridade física por negligência, previsto e punido pelo artigo 148º, nº 1 do Código Penal, na pena de 40 (quarenta) dias de multa, à taxa diária de 6€ (seis euros) e, de harmonia com o disposto no artigo 69º, nº 1, alínea a) do Código Penal, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, pelo período de 3 (três) meses.
Inconformado com a sentença apenas na parte relativa à pena acessória, dela recorreu o arguido para este Tribunal, concluindo o seu recurso do seguinte modo (transcrição):
1- O Arguido não pretende questionar a condenação no crime de ofensa à integridade física p.e.p. pelo n.° 1 do artigo 148º do Código Penal em cuja previsão se subsume os factos em que o Tribunal "a quo" assentou, e do que está profunda e sentidamente arrependido e se penitencia. II - O Arguido não se conforma e insurge-se tão-só contra a condenação na pena acessória - proibição de conduzir veículos com motor, pelo período de 3 meses - art.° 69, n. 1 a) do C.P., merecendo nesta parte, atentos os factos dados como provados, o favor do direito e a dispensa da aplicação de tal preceito. III - Tratando-se de pena acessória, a sanção prevista no preceito em referência não é de aplicação automática. IV - A pena acessória tem como pressuposto a condenação numa pena principal pela prática dos ilícitos e um efeito de prevenção geral de intimidação que só pode funcionar dentro do limite da culpa e deve contribuir, em medida significativa, para a emenda cívica do condutor imprudente ou leviano. V - A sua aplicação exige a verificação de um pressuposto formal, que no caso estará verificado - a condenação do arguido pela prática do crime p. e p. pelo artigo 148º, n.° 1, do C.P. VI - E de um pressuposto material, que não é de aplicação automática, como na fundamentação de Direito da douta sentença parece fazer-se crer, porquanto remete apenas para o elemento formal - mostrarem-se preenchidos os requisitos do artigo 148.º n.° 1 do Código Penal, com violação de regras estradais. VII - Impondo-se a devida fundamentação para a aplicação da sanção acessória, padecendo a sentença de falta de fundamentação nessa parte, em violação dos artigos 374º n.° 2 e 375º n.° 1 do Código de Processo Penal, sendo nula (nessa parte) nos termos do n.° 3 do artigo 410º do Código de Processo Penal. VII - E mesmo que assim não se entenda, sempre enferma a sentença de erro de julgamento, porquanto não se verifica o pressuposto material de aplicação da sanção acessória de inibição de conduzir, impondo-se a sua dispensa. VIII - A pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados tem por pressuposto material a circunstância de o exercício da condução se revelar especialmente censurável, consideradas as circunstâncias do facto e da personalidade do agente. IX - Ora, atentos os factos provados designadamente o item 6, resulta que o Recorrente apenas invadiu o limite direito da faixa de rodagem e embateu no Assistente, por se ter desviado de um carro que lhe apareceu do seu lado esquerdo, a fazer marcha atrás. X - Esclarece o ponto 11 dos factos provados que "A via, no local, configura um caminho municipal com traçado retilíneo, em patamar, sendo a faixa de rodagem composta por duas vias de trânsito, sem marcas rodoviárias, com largura máxima transitável de 4,30m, pavimentada a paralelepípedos em granito, sem bermas ou passeios." (Sendo o sublinhado nosso) XI - O Recorrente ao desviar a viatura para o lado direito, reagiu evitando um possível embate do lado esquerdo, não o conseguindo, porém, evitar do lado direito, dada a largura transitável da via, 4,30m. XII - Certo que atendendo à largura média de um veículo automóvel, cerca de 2 metros, ao facto da movimentação de um outro automóvel do lado esquerdo em risco de colisão com o do Recorrente, e à localização do peão/Assistente era impossível ao Arguido evitar o embate, pelo qual vem condenado. XIII - Ao que acresce o facto de não existir passeio na via e o peão/Assistente estar imobilizado no limite direito da via, tendo o embate ocorrido "no limite direito da faixa de rodagem a cerca de 0,60 cm do início do muro" - Cf. pontos 3 e 7 dos factos provados. XIV - Ficou, ainda, assente que o ora Recorrente tinha acabado de arrancar, pelo que a velocidade seria reduzida, o que justifica a ausência de rastos de travagem - cf. itens 6.º e 12.º dos factos provados e que o Arguido/Recorrente ficou transtornado e preocupado com o Assistente, tendo a sua companhia de seguros assumido a responsabilidade e indemnizado-o na íntegra. XV - Atendendo a tudo isto nunca por nunca a conduta do Arguido merecerá especial censura e aplicação da sanção de inibição de conduzir, sendo certo que o homem médio do tipo social do Arguido, em circunstâncias idênticas, não lhe seria exigível reagir de forma diferente, não tendo manifestado imprudência ou leviandade na condução. XVI - CF. cópia do auto de contraordenação n.° 255377746, de 17/7/2016, levantado pela GNR contra o ora Recorrente, pela infração cometida - condução sob o efeito de álcool, junto em 24/01/2018, a fls..., o Arguido foi condenado em pagamento de coima no valor de €500,00, bem como em sanção acessória de inibição de condução por período a fixar de 2 a 24 meses (art.° 147 Código da Estrada). XVII - Pese a presença de álcool na amostra de sangue colhida ao Arguido, este não teve influência especial nos factos ocorridos, que ocorreram fruto de manobra indevida de um terceiro, com vista a uma não colisão de veículos. XVIII - Tendo-se considerado nos factos provados que esse consumo "...poderá ter alterado significativamente as suas capacidades sensoriais..." (cf. item 13.0), não resulta inequívoco que o fez e que foi essencial para a ocorrência do evento, não ficando provado o nexo de causalidade. Bem pelo contrário, parece ao Recorrente que reagiu rapidamente a uma ameaça do lado esquerdo, não contando (infelizmente) com a presença do Assistente do lado direito. XIX - Sendo que, em momento algum da fundamentação de direito da sentença há qualquer referência à existência de álcool no sangue do arguido, como fundamento para a aplicarão da sanção acessória. XX - Sendo o Arguido condenado em sanção acessória de inibição de condução, estará a ser condenado duas vezes pela prática dos mesmos factos, posto que foi já sancionado na mesma sanção, no âmbito da contraordenação. XXI - Situação que lhe trará, ainda, retirada de pontos da carta de condução em duplicado, sobre a prática dos mesmos factos, pela condenação do crime rodoviário de que se ora se recorre e pela condenação no âmbito da contraordenação referida. XXII - Sendo extremamente injusto sujeitá-lo a castigo nesse sentido duas vezes, pela prática dos mesmos factos. O que prefigura(rá) situação violadora do princípio Ne bis in idem, com manifesto e declarando erro de julgamento nesta parte. Termos em que e nos melhores de Direito, e suprido o omitido, deverá ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida na parte posta em crise e absolvido o Recorrente da sanção acessória de inibição de condução e legais efeitos, como propugnado.
JUSTIÇA
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Respondeu o Ministério Público junto da Primeira Instância defendendo que o recurso deve ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.
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Idêntica posição que veio a ser tomada no Parecer do Exmo PGA junto deste Relação.
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Foi ordenado o cumprimento do artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal.
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Colhidos os vistos, realizou-se Conferência.
II.
Cumpre decidir, tendo em conta que, nos termos do artigo 412 nº 1 do Código de Processo Penal a apreciação do recurso é balizada pelas conclusões do recorrente, - sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, - e que, analisando-as, a única questão a solver é a de saber se deve, ou não, ser mantida a decisão de impor a pena acessória de proibição de condução ao recorrente.
É a seguinte a matéria de facto assente na primeira instância e respetiva motivação (transcrição):
1 - No dia 17 de Julho de 2016, após as 14h, o assistente José circulava, apeado, conjuntamente com cinco pessoas, suas amigas, no Caminho Marginal do Rio Lima, em (...), nesta comarca, no limite do lado direito da faixa de rodagem, no sentido Sudoeste/Nordeste (Zona História - Capela da Sra. das Candeias); 2 - Ao aproximarem-se do estabelecimento comercial denominado Bar X, ali existente, o grupo parou para nele entrar; 3 - Cerca das 14h45m, o grupo retomou a marcha, no mesmo sentido, tendo o assistente permanecido no limite direito da faixa de rodagem, junto ao muro, ali existente, a aguardar a sua esposa, L. M.; 4 - Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar e no mesmo sentido, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula QO, de queé proprietário; 5 - Ao aproximar-se do parque de estacionamento que serve o estabelecimento comercial denominado Bar X, o arguido imobilizou momentaneamente o veículo para permitir a saída de um passageiro; 6 - Em seguida, o arguido retomou a marcha e, após ter percorrido 10 a 15 metros, por razões que não se logrou apurar, mas que se prendem com a marcha atrás de um veículo, estacionado do lado esquerdo do arguido, atento o seu sentido de marcha, invadiu o limite direito da faixa de rodagem em que circulava e colheu o assistente, embatendo com a parte lateral direita da frente do veículo nos seus membros inferiores, e colidindo, ainda, com o muro ali existente; 7 - O embate ocorreu no limite direito da faixa de rodagem a cerca de 0,60cm do início do muro; 8 - Em consequência deste embate, o assistente José sofreu múltiplas escoriações nas duas pernas, sobretudo, na esquerda, apresentando, aquando da sua sujeição a exame pericial no GML de Viana do Castelo, no membro inferior esquerdo, mancha melânica de 8x4cm na face posterior da perna, lesões que lhe determinaram 48 dias de doença, com afectação em 2 dias para o trabalho geral e com 48 dias de afectação da capacidade de trabalho profissional; 9 - O arguido foi conduzido ao ULSAM, onde lhe foi recolhida uma amostra de sangue para rastreio de álcool e substâncias psicotrópicas; 10 - Submetida a análise laboratorial, realizada pela Delegação do Norte do INML, nela foi detectada a presença de etanol, quantificado em 1,03g/1. 11 - A via, no local, configura um caminho municipal, com traçado rectilíneo, em patamar, sendo a faixa de rodagem composta por duas vias de trânsito, sem marcas rodoviárias, com largura máxima transitável de 4,30m, pavimentada a paralelepípedos em granito, sem bermas ou passeios. O tempo estava bom, a superfície da faixa de rodagem apresentava-se seca e o local é de boa visibilidade. No local, à data, em virtude de possuir uma zona de piqueniques, havia grande concentração de peões e veículos; 12 - No local do embate, não foram encontrados quaisquer rastos de travagem; 13 - O arguido não usou, como podia, da prudência, atenção e cuidados devidos na condução, na medida em que se encontrava sob a influência de álcool, facto que poderá ter alterado significativamente as suas capacidades sensoriais, razão pela qual, sendo o local de boa visibilidade, deveria ter-se apercebido, com a devida antecedência, da presença do assistente José no limite direito da faixa de rodagem em que circulava; 14 - A ausência de rastos de travagem indicia que o arguido conduzia com falta de atenção na medida em que não efetuou qualquer manobra evasiva para evitar o embate; 15 - Ao agir conforme o descrito, o arguido não observou as precauções exigidas pela mais elementar prudência e cuidado de que era capaz de adoptar e que deveria ter adotado para impedir a verificação dos resultados que, de igual forma podia e devia prever, o que não fez, tendo confiado que este não se produziria, adotando uma conduta temerária, e demitindo-se dos mais elementares cuidados na condução, tornando assim, inevitável a colisão; 16- O arguido não tem antecedentes criminais; 17- Confessou integralmente os factos; 18- É casado e tem uma filha maior; 19- Vive com a esposa, a filha e uma neta, em casa arrendada, pagando de renda cerca de 48 euros mensais; 20- É funcionário público/assistente administrativo numa escola, encontrando-se atualmente de baixa médica e a aguardar a concessão da reforma, recebendo 787 euros mensais; 21- Tem o 6° ano de escolaridade.
Factos Não Provados: - Nenhuns.
Motivação:
O tribunal formou a sua convicção, relativamente aos factos provados e não provados, para além do co-relacionamento de toda a prova produzida:
- no teor das declarações do arguido, que descreveu, em síntese, a forma como ocorreu o acidente, admitindo e confessando a integralidade dos factos, referindo o que o motivou a fazer o desvio e a colher o peão (uma manobra de marcha-atrás de outro veículo, estacionado do seu lado esquerdo), aludindo a como ficou transtornado e preocupado com o peão e como a sua companhia de seguros assumiu e já indemnizou integralmente o ofendido; esclareceu ainda sobre alguns aspetos da sua atual situação pessoal, familiar e económica; e, - no teor dos documentos, exames e fotografias juntos, designadamente, de fls.6 e s., 19 a 21, 28 e s., 64es., 90a 92, 124 a 129, 252 a 265, 281, 299 e s. e 310.
Tais declarações confessórias do arguido, conjugadas com o teor dos documentos, fotografias e exames juntos aos autos, analisados todos criticamente e em conformidade com as regras de experiência comum, levaram o tribunal a convencer-se quanto aos factos que apurou, incluindo que, considerando a configuração do local (constante das fotografias juntas) e a reduzida velocidade a que circulava o arguido (tinha acabado de arrancar a escassos metros do ponto de embate), o mesmo circulava distraído, tendo sido nesse mesmo momento de distração que foi colher o peão.
Fundamentação de Direito (trancrição do segmento respeitante à pena acessória):
Vem o arguido acusado por factos suscetíveis de o constituírem na prática, como autor material, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelos arts.148º, nº.1 e 69º, nº 1, al. a) do C.P..
(...) A determinação da medida concreta da pena deve operar-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo ainda às circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra aquele (cfr. art.71º do C.P.).
Ora, considerado o grau de ilicitude dos factos que é mediano, a reduzida gravidade das suas consequências, o grau de violação dos deveres impostos ao arguido, as circunstâncias que rodearam a prática dos factos, a condição social e económica do arguido, a ausência de antecedentes criminais do mesmo e a sua confissão integral, sem esquecer também, as prementes exigências de prevenção geral que nestas situações se fazem sentir, dado o elevado número de acidentesde viação que ocorrem nas nossas estradas, afigura-se-nos adequada à conduta do arguido a pena de 40 (quarenta) dias de multa, à taxa diária de 6 euros, o que perfaz a quantia de 240 euros, pela prática do crime de ofensa à integridade física por negligência do art.148º, nº.1 do C.P..
Nos termos do art.69°, nº 1, ala) do C.P.: "É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e 3 anos quem for punido: por crimes de ( ... ) ofensa à integridade física cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário ( ... )".
Ora, verifica-se da matéria fáctica apurada que haverá que aplicar ao arguido a referida pena acessória, a que alude o art.69º do C.P., por se mostrarem preenchidos os respetivos requisitos (o arguido cometeu o crime do art.148°, n°.1 do C. P., com violação de regras estradais).
Face aos limites da aludida pena acessória e atendendo designadamente às circunstâncias já referidas, afigura-se-nos dever aplicar a mesma pelo período de 3 meses, o que se fará. (…).
Apreciando.
O recorrente não contesta a decisão da matéria de facto, nem a aplicação de direito feita em primeira instância que determinou a sua condenação pela prática do crime de ofensa à integridade física por negligência, nem mesmo a pena principal em que foi condenado.
Discorda, tão só, da aplicação da pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados.
Assim sendo, antes de entrar na apreciação da questão trazida à decisão deste Tribunal impõe-se dizer o seguinte:
Como se disse, o recorrente aceitou integralmente a fixação da matéria de facto resultante do julgamento em primeira instância e, bem assim, a condenação pelo crime de ofensa à integridade física por negligência.
Ocorre que da matéria de facto provada consta, nos pontos 9 e 10, que “o arguido foi conduzido ao ULSAM onde lhe foi recolhida uma amostra de sangue para rastreio de álcool e substâncias psicotrópicas” e que “submetida a análise laboratorial, realizada pela Delegação do Norte do INML, nela foi detetada a presença de etanol, quantificado em 1,03 gr/l”.
Mais consta no ponto 13 que “o arguido não usou, como podia, de prudência, atenção e cuidados devidos na condução, na medida em que se encontrava sob a influência do álcool, facto que poderá ter alterado significativamente as suas capacidades sensoriais, razão pela qual, sendo o local de boa visibilidade, deveria ter-se apercebido, com a devida antecedência, da presença do assistente José no limite direito da faixa de rodagem em que circulava”.
Ao fazer a subsunção jurídica da factualidade apurada, o Tribunal a quo omitiu, totalmente, qualquer referência à circunstância de o arguido ser portador de uma taxa de álcool de 1,03gr/l, não estabelecendo qualquer nexo de causalidade entre a condução sob influência de álcool e o acidente. Da afirmação que ficou a constar do ponto 13 da matéria de facto provada – a que não será alheia a circunstância de o arguido ter confessado integralmente e sem reservas e de ter sido vertido na sentença ipsis verbis o texto da acusação – de que o facto de se encontrar sob a influência do álcool “poderá ter alterado” significativamente as suas capacidades sensoriais, não se retira, inequivocamente, o nexo de causalidade. Isto é, tal afirmação não permite a conclusão, segura, de que o comportamento ilícito do arguido se ficou a dever à influência de álcool. E assim é porque, de tal ponto da matéria provada consta, não um facto, mas tão só uma afirmação da probabilidade, não convertida em certeza, que o tribunal a quo ignorou, opção com a qual o recorrente concordou expressamente.
Ao Tribunal de Relação cabe, mesmo no caso em que o recurso se restringe à matéria de direito, a cognição dos vícios previstos no nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
Ao dar como provada uma mera possibilidade da taxa de álcool influenciar a condução do recorrente, o Tribunal a quo incluiu na matéria de facto uma proposição conclusiva que, em conjugação com os pontos 9 e 10 e com as regras da experiência comum, poderia consubstanciar o vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão (artigo 410º, nº 2 alínea a) do Código de Processo Penal) vício este que seria suscetível de ferir da nulidade a sentença. Ocorre que o Tribunal a quo não se serviu de tal proposição para desenvolver a fundamentação jurídica. Nela não assentou o esquema lógico da sua fundamentação. Omitiu-a e, embora não o dizendo, tudo se passou como se a considerasse não escrita.
Este Tribunal é chamado a pronunciar-se sem que o julgamento da matéria de facto tenha sido impugnado. Tratando-se de uma proposição conclusiva e decorrendo dos autos que a concreta questão da condução sob influência de álcool deu origem a um outro processo, considera-se que, para estes autos e para esta decisão, a afirmação feita no ponto 13 dos factos provados é inócua e, nessa medida, insuscetível de tornar nula a sentença.
Posto isto,
O recorrente foi condenado na pena acessória de proibição de veículos motorizados previsto no artigo 69º, nº 1, alínea a) do Código Penal. Dispõe esta norma que:
1 - É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido:
a) Por crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário e por crimes previstos nos artigos 291º e 292º;
b) Por crime cometido com utilização de veículo e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante; ou
c) Por crime de desobediência cometido mediante recusa de submissão às provas legalmente estabelecidas para deteção de condução de veículo sob efeito de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo.
(...)
Trata-se de um preceito que se insere no capítulo III, do título III, do livro I do Código Penal, o qual é dedicado às consequências jurídicas dos crimes.
Inicia-se a matéria (o capítulo I) com o artigo 40º que constitui a pedra angular da aplicação de qualquer pena, continua (no capítulo II) com a descrição das penas principais e de substituição e chega (no capítulo III) às penas acessórias.
O artigo 69º do Código Penal prevê, portanto, pelo menos formalmente, uma pena acessória.
Penas acessórias são, como o nome indica, aquelas que só podem ser decretadas em conjunto com uma pena principal.
E se, nos termos do artigo 65º, nº 1 do Código Penal – que reproduz o nº 4 do artigo 30º da Constituição da República Portuguesa – nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de direitos civis, profissionais ou políticos, também é certo que, tal como prevê o nº 2 do mesmo artigo 65º, a lei pode fazer corresponder a certos crimes a proibição do exercício de determinados direitos ou profissões.
E é, então, assim que, pela prática de crimes de homicídio e ofensa à integridade física, quando cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário, de condução perigosa de veículo, de condução em estado de embriaguez, também pela prática de crimes cometidos com utilização de veículo e cuja execução tiver sido por esta facilitada de forma relevante ou, ainda, pela prática de crime de desobediência mediante recusa de submissão às provas legalmente estabelecidas para detenção de condução sob o efeito do álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, a lei prevê também a condenação na proibição de conduzir veículos com motor, por um período fixado entre três meses e três anos.
Como pena que é, a imposição de uma pena acessória deve, à semelhança do que ocorre com a aplicação de uma pena principal respeitar os princípios da culpa, da tipicidade, da proporcionalidade e da necessidade.
E se com as penas principais visa o legislador a proteção dos bens jurídicos titulados pela incriminação e a reintegração do agente na sociedade, com as penas acessórias pretende reforçar e obter de forma mais incisiva e prática os objetivos visados com as penas principais.
Para perceber a natureza e essência da pena em apreço impõe-se recordar, rapidamente, a evolução do artigo 69º do Código Penal.
A fonte inspiradora da pena acessória, nascida em 1995 e prevista no artigo 69º do Código Penal, foi o ensinamento do Professor Figueiredo Dias que veio a ficar plasmado na obra Direito Penal Português – As consequências Jurídicas do Crime – Aequitas – Editorial Notícias, 1993, §205.
Nessa altura, instituiu o legislador uma verdadeira pena acessória sujeita a determinados pressupostos formais (nº 1 do artigo 69º na primitiva redação) e a um pressuposto material (semelhante ao que o recorrente fez apelo na conclusão VIII) que, embora não aparecendo de forma expressa, não podia deixar de concluir-se dos qualificativos vários que decorriam do pressuposto formal (neste sentido F. Dias, ob. Cit. Nota 24, pág. 165).
Mas a necessidade de reduzir os índices de sinistralidade e de aumentar a segurança rodoviária levou a que o legislador de 2001, pela Lei 77/2001 de 13/07, alterasse a redação do artigo 69º fazendo desaparecer da alínea a) o conceito de “grave violação das regras de trânsito rodoviário” para o substituir pela referência à prática de concretos crimes (ao tempo, o crime de condução perigosa, previsto no artigo 291º e o crime de condução em estado de embriaguez, previsto no artigo 292º).
A pena, antes acessória, afastado que foi o pressuposto material, ficou colocada ao mesmo nível sancionatório da pena principal (Cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 16/12/2002 in www.dgsi.pt), não obstante ter sido mantida a inserção sistemática.
No dizer da Professora Fernanda Palma, citada no referido acórdão, o sistema abria-se “a novas modalidades punitivas” reforçando o critério legitimador de adequação da espécie da pena à natureza do ilícito (cfr. Casos e Materiais de Direito Penal, 1ª edição Almedina, Coimbra, página 37).
Apesar do discutível acerto legislativo, o certo é que o caminho assim iniciado não mais parou e, com a Lei 19/2013 de 21.02, abriu-se o leque de tipos de crime que passaram a estar previstos na alínea a) do nº 1 do artigo 69º do Código Penal. Se tal ocorreu porque passou a haver, após 2001, jurisprudencialmente o entendimento de que a pena acessória da proibição de conduzir não era aplicável – o que parecia chocante - aos crimes estradais de homicídio por negligência ou ofensa à integridade física, se a conduta não integrasse os crimes antes elencados na alínea a) (cfr a título de exemplo Ac. RL de 26/01/2016), ou se foi porque as exigências de segurança rodoviária se sentiam e sentem cada vez mais como prementes, o certo é que o legislador de 2013 acrescentou à alínea a) do nº 1 do artigo 69º do Código Penal a prática de novos crimes, quais sejam os de homicídio e de ofensa à integridade física, cometidos no exercício da condução do veículo motorizado.
Merece, portanto, inteira concordância a opinião de quem afirma que esta opção legislativa se traduz, efetivamente, na criação de mais uma pena para punir os crimes previstos na alínea a) do artigo 69º do Código Penal, que só formalmente aparece com a designação da pena acessória (Cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 16/12/2002 já citado).
Pena esta que, dizendo de outro modo, se configura como uma parte de uma pena compósita, como se de mais uma pena principal de tratasse (Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional 53/97, recordado no Acórdão 630/2004 do mesmo tribunal e publicado no DR 291/2004 de 14.12) e que, como está umbilicalmente ligada à prática do crime, não pode ser afastada pelo julgador.
Mas mesmo que assim se não entenda e se considere que se está perante uma pena acessória tout court, cuja aplicação depende da aplicação da pena principal não obstante a atual inexigência do pressuposto material, o certo é que na sua aplicação, o juiz tem uma margem de apreciação e de ponderação da culpa do agente, das circunstâncias do caso e das exigências de prevenção, uma vez que a fixação do quantum da pena, está – ou deve estar – submetida aos princípios gerais da aplicação das penas e aos critérios de ponderação previstos no artigo 71º do Código Penal.
É por essa razão que se pode afirmar que a imposição necessária, mas não automática, da pena de proibição de conduzir, prevista no artigo 69º do Código Penal não é violadora do nº 4 do artigo 30º da Constituição da República Portuguesa. É o que repetidamente, há mais de vinte anos, vem dizendo o Tribunal Constitucional (cfr. Acórdãos 400/10, 291/95, 53/97, 149/01, 79/09 a propósito de questões em tudo semelhantes).
Ora, na sentença sub iudice o Tribunal a quo aplicou a pena acessória de proibição de conduzir por três meses, isto é, pelo mínimo legal.
Uma vez que, como já se explicou, longe está o tempo em que a aplicação da pena acessória obedeceria ao pressuposto material (referido na conclusão VIII do recorrente) qual seja “a circunstância de o exercício da condução se revelar especialmente censurável consideradas as circunstâncias do facto e da personalidade do agente”, e não sendo, ao Tribunal a quo, possível aplicar menor pena acessória, qualquer que fosse a consideração que fizesse ao abrigo 71º do Código Penal, forçoso é concluir que não obstante a exiguidade da fundamentação nenhuma nulidade foi cometida, falecendo assim os juízos vertidos nas conclusões III a XV.
Uma outra vertente do recurso (conclusões XVI a XIX) diz respeito à presença de álcool no sangue do arguido, presença esta que, como já se disse, não está em causa nestes autos e que deu origem a um outro processo, situação contra a qual o recorrente não se insurgiu, aceitando-a expressamente.
Assim sendo, não se percebe como pode agora dizer (conclusão XX) que está a ser condenado duas vezes pela prática dos “mesmos factos”. Estaria efetivamente a ser condenado pelos mesmos factos, em situação violadora do princípio ne bis in idem (a que faz referência nas conclusões XXI e XXII), se na sentença recorrida tivesse sido estabelecido um nexo de causalidade entre a condução sob influência de álcool e a ocorrência do acidente que viesse a dar origem à aplicação de sanção de inibição de condução no processo de contraordenação de que foi alvo e na pena acessória de proibição de condução, nestes autos.
Mas tal não ocorre, fruto de uma opção processual discutível, mas expressamente aceite pelo arguido e inalterável por este Tribunal.
Tanto basta para que o recurso não possa obter provimento.
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DECISÃO.
Em face do exposto acordam os juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, mantendo a sentença recorrida.
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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 Ucs.