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CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
VELOCÍPEDES COM MOTOR
FALTA DE TITULO BASTANTE
ARTºS 3º
Nº 1
DO DL Nº 2/98 E 130º
NºS 1
AL. A) E 7
DO CE
Sumário
I) As antigas licenças de condução de velocípedes com motor emitidas pelas Câmaras Municipais que não tenham sido trocadas por licença de condução de ciclomotor até 30-06-2000 junto dos serviços competentes da Câmara Municipal, deixaram de constituir título bastante para habilitar à condução de ciclomotores.
II) Assim, a conduta de quem conduz um ciclomotor nessas circunstâncias integra o crime de condução sem habilitação legal, previsto pelo art. 3º, n.º 1, do DL n.º 2/98, e não a contraordenação prevista no art. 130º, n.ºs 1, al. a), e 7, do Código da Estrada.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:
I. RELATÓRIO
1. No processo especial sob a forma sumária que, com o NUIPC 158/18.2GACBT, corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, no Juízo de Competência Genérica de Celorico de Basto, realizado o julgamento, foi proferida sentença oralmente, no dia 25-06-2018, com o seguinte dispositivo ditado para a ata (transcrição [1]):
«Face ao exposto, decido:
a) condenar o arguido F. M., como autor material e na forma consumada, pela prática, no dia 4-06-2018, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3º/1 e 2 do D. Lei 2/98, de 3 de janeiro do Código Penal, e 121º e 124º do Código da Estrada, praticado em 04.06.2018, na pena de 50 dias de multa, à taxa de € 6,00; b) Condenar o F. M., como autor material e na forma consumada, pela prática, no dia 20-06-2018, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3º/1 e 2 do D. Lei 2/98, de 3 de janeiro do Código Penal, e 121º e 124º do Código da Estrada, praticado em 20.06.2018, na pena de 80 dias de multa, à taxa de € 6,00. c) Nos termos do Artº 77º, nº 1 do C. Penal, em cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas em a) e b) aplicar ao arguido F. M. a pena única de 115 (cento e quinze) dias à taxa diária de € 6,00 (seis euros) o que perfaz o montante global de € 690,00 (seiscentos e noventa euros).» 2. Não se conformando com essa decisão, o arguido interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
«I - Encontra-se o recorrente, F. M., acusado pela prática de dois crimes de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 1 e n.º 2 do Decreto Lei 2/98,de 03-01, e artigo 121.° e 124.° do Código da Estada; II- Do desenvolvimento dos autos, com o n.º 158/18.2GACBT e n.º 174/18.4GACBT, foi condenado o recorrente, pela prática de dois crimes de condução de veículo sem habilitação legal, na pena de 115 (cento e quinze) dias de multa, à taxa diária de € 6 (seis euros), o que perfaz o quantitativo global de € 690,00 (seiscentos e noventa euros); III - Ao decidir nos termos da Douta Decisão em recurso, andou mal o Tribunal de Primeira Instância, e com tal decisão não se conforma o recorrente que vem submetê-la à reapreciação deste Tribunal da Relação de Guimarães; IV - Na verdade, a Douta Decisão em recurso, perante o teor da acusação e a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, nunca deveria ter levado à revogação automática da decretada suspensão provisória do processo, condenando o recorrente na pena de 115 (cento e quinze) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros); V - Desde logo, entende o recorrente que a Douta Decisão em recurso não está devidamente fundamentada, não fazendo a necessária enumeração dos factos provados e não provados, bem como a igualmente necessária exposição dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam essa Decisão; VI - Ao omitir uma descrição clara e elucidativa dos factos provados e não provados, e dos motivos fundamento da decisão, incumpriu o Tribunal a quo o seu dever de fundamentar a decisão, sendo certo que a enumeração dos factos é, em bom rigor, a sua menção, um a um; VII - É necessária uma narração metódica dos factos que resultaram provados e dos factos que não resultaram provados, tendo por base os que constavam da acusação e da contestação, e ainda os que, com relevo para a decisão, resultaram da discussão da causa; VIII - O que incontornavelmente não sucede na Douta Decisão em recurso; IX - Portanto, por força do disposto nos artigos 374.°, n.º 2; 379.°, n.º 1 aI. a) e 389.º-A, n.º 1 do Código de Processo Penal, a mesma é nula por não conter os elementos de fundamentação, i.e., a enumeração dos factos provados e não provados, uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que funde mentaram a convicção do Tribunal a quo; X - Nulidade que fere a validade da Douta Decisão em recurso e que aqui se argui, para todos os devidos e legais efeitos; XI - Por outro lado, perante fenómenos de pequena e média criminalidade, o Ministério Público deve privilegiar soluções de consenso e de oportunidade, dando cumprimento a opções claras de política criminal, no sentido da desjudicialização e flexibilização (cf. Diretiva 1/2014 da Procuradoria Geral da República). Desde a reforma de 2007 do CPP, ficou claro que a decisão do MP é uma decisão vinculada, no sentido de que verificados os pressupostos deve propor a suspensão com regras de conduta e injunções adequadas ao caso (in Rui do Carmo, «A Suspensão Provisória do Processo no Código de Processo Penal Revisto Alterações e Clarificações»), Revista do CEJ, IX, pp. 324); XII - Preenchidos os pressupostos para a aplicação da suspensão provisória do processo, com o n.º 158/18.2GACBT, foram propostas ao recorrente injunções, a cumprir no período de suspensão de 3 (três) meses, que o mesmo aceitou, sendo advertido de que não poderia cometer ilícitos da mesma natureza durante o período de suspensão; XIII- Sendo certo que caso cumpra as injunções e as regras de conduta, o MP arquiva o processo, não podendo ser reaberto (cf. Artigo 282°, n.º 3 do CPP). Diversamente, se não cumprir as injunções e as regras de conduta a que estava sujeito ou se, durante o prazo de suspensão do processo, cometer crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado, o processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas (cf. Artigo 282.°, n.º 4 als. a) e b) do CPP); XIV - O recorrente não cometeu crime da mesma natureza que obste à referida suspensão; XV - Considera não ter praticado o crime de que vem acusado nos autos do processo com o n.º 174/18.4GACBT, uma vez que é detentor de licença de condução de velocípedes com motor desde 24 de outubro de 1991 (cfr. doc. 1 junto à contestação apresentada aceite pelo Tribunal a quo, e que aqui se dá por reproduzido para os devidos efeitos legais); XVI - Não existe, portanto, fundamento de facto e de direito para que sejarevogada a decretada suspensão provisória do processo, com o n.º 158/18.2GACBT, pois detém título que o habilita à condução de velocípedes com motor (ciclomotores), apesar de caducado porque expirada a sua validadeà data dos factos em causa; XVII- Ora, esta situação fáctica cabe não no disposto nos artigos 3.°, n.º 1 e 2 do Decreto Lei 2/98,de 03-01, e nos artigos 121.° e 124.° do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto Lei 114/94, de 03-05, conforme considerou o Tribunal a quo, mas sim na hipótese típica do artigo 130.°, n.º 1, aI. a) e n.º 7 do Código da Estrada; XVIII - Estamos, assim, perante um erro na qualificação jurídica dos factos pelo Tribunal a quo; XIX - A conduta do recorrente não constitui crime, mas, sim, uma mera contraordenação uma vez que à data dos factos o mesmo tinha licença de condução, porém, caducada por falta de renovação; XX - Salvo melhor e mais visado saber, não existindo fundameno de facto e de direito para que seja revogada a decretada suspensão provisória do processo, com o n.º 158/18.2GACBT, o recurso merecerá provimento, devendo ser decretada a absolvição do recorrente e a consequente remessa dos autos, a seu tempo, para a autoridade administrativa competente para o conhecimento da contraordenação de natureza estradal indiciada; XXI - Por fim, não foi provado que o recorrente soubesse que não podia conduzir, que a sua conduta era proibida por lei; XXII - Sempre conduziu ciclomotor na convicção de que era detentor de licença de condução válida, crente de que podia conduzir e não estava a praticar um crime, sendo que tinha conhecimento de que, caso não tivesse um título de condução válido, não poderia conduzir e estaria a praticar um crime; XXIII - Devemos, portanto, concluir que o recorrente atuou em defeito de conhecimento acerca da sua real situação de condutor sem habilitação para tal, conhecendo que conduzir sem licença de condução válida constituía um crime, assim incorrendo em erro intelectual, o conhecimento de um elemento (falta de licença) que era necessário para que a sua consciência moral estivesse na posse de todos os dados necessários para se colocar e resolver o problema da ilicitude, para representar a ilicitude da sua atuação; XXIV - Agiu com consciência ético jurídica reta, uma atitude geral de fidelidade ao Direito, só que frustrada por circunstâncias especiais que o fizeram errar. Orientou-se em circunstâncias supostas, e que a verificarem-se, confeririam licitude à sua conduta, mas acabou por erro, por preencher pressupostos objetivos de um tipo de crime, assim configurando um erro sobre as circunstâncias de facto; XXV - Se a ignorância da lei nunca pode ter eficácia excluidora da culpa, já supra se referiu que uma vez dada relevância ao erro sobre a factualidade típica, há a respetiva exclusão do dolo e pode haver a exclusão da punição do agente, quando a lei não preveja o crime a título de negligência. Faltando a representação do facto, a correspondente representação do desvalor do facto e da ameaça legal não aparece aos olhos do agente e, portanto, a conclusão de que ele atuou com dolo não tem um apoio; XXVI - A ignorância do recorrente da ilicitude do facto que cometeu porque agiu em erro sobre um estado de coisas que, se existente, excluiria o dolo, embora permita a formulação de um juízo de censura por negligência, afasta a punição por crime doloso e não sendo o crime previsto no artigo 3.º, n.º 1 e 2 do Decreto Lei 2/98, de 03-01, expressamente previsto a título de negligência, nos termos do previsto nos artigos 16.°, n.º 1 e 13.° do CP, não deve o recorrente ser punido.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e, em consequência, a) ser decretada a nulidade da Douta Sentença em recurso, por não conter os impostos elementos de fundamentação, ou, b) ser revogada a douta sentença recorrida para outra que absolva o recorrente da prática de crime de condução de veículo sem habilitação e assim nada obste à decretada suspensão provisória do processo, com o n.º 158/18.2GACBT.
Assim decidindo, farão V. Exas., Venerandos Desembargadores, habitual JUSTIÇA!» 3. A Exma. Procuradora-Adjunta na primeira instância respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência, porquanto, em suma:
- A sentença foi proferida oralmente, em conformidade com o art. 389.º-A do Código de Processo Penal, e cumpriu todas as formalidades previstas no art. 389.º-A/1, incluindo nas alíneas a) e b) invocadas no recurso, bastando a audição da gravação para comprová-lo;
- A suspensão provisória do processo foi revogada com fundamento no cometimento de um crime no decurso da suspensão, conduta esta que é crime, pois esse foi o crime que o Ministério Público imputou ao arguido quando lhe propôs a suspensão;
- A eventual ilicitude do despacho de revogação e dedução de acusação nunca tem por efeito repristinar a suspensão do inquérito.
- O eventual desconhecimento de que a sua licença não habilitava o arguido a conduzir um ciclomotor não se enquadra em erro sobre a factualidade típica, mas no erro sobre a ilicitude, previsto no art. 17º do Código Penal;
- Decorridos 18 anos sobre a alteração da lei e tendo o arguido sido fiscalizado mais do que uma vez pela polícia ao volante do motociclo, não se concede que não soubesse que a licença não era válida. Se por algum motivo não se tivesse atualizado, o seu erro seria censurável pois já tinham decorrido praticamente duas décadas;
- As licenças de velocípedes com motor deixaram de ter validade para ciclomotores por diploma de 1998, que estabeleceu um regime transitório, com um prazo para trocar esse título por uma licença de condução de ciclomotor, que foi prorrogado e findou em 2000;
- Como os tribunais superiores já tiveram oportunidade de esclarecer, situações como as do arguido não se enquadram na "caducidade" da licença da condução, pelo que a sua conduta não se traduz na contraordenação prevista no art. 130.º do Código da Estrada, conforme o mesmo sustenta. 4. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em desenvolvido parecer, concluiu que «existe uma nulidade processual que importa reparar, nulidade absoluta que se aconchega na alínea f) do art. 119º do Código de Processo Penal - "O emprego de uma forma de processo especial fora dos casos previstos na lei", pois que foi deduzida uma acusação contra o arguido recorrente em processo sumário sujeitando-o a um julgamento sob esse especial regime, sem que estivessem preenchidos os requisitos legais que o permitissem; consequentemente, deve tal nulidade ser decretada e declarar, por via disso, inválida a acusação nessa deduzida e os seus termos subsequentes, determinando-se, do mesmo passo, a separação do processo n.º 158/18.2GACBT nos termos do art. 30º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal, processo em que havia sido decidida a revogação da suspensão provisória do processo e em relação ao qual se verificou a mencionada nulidade; a decisão condenatória do arguido expurgada da parte afetada pela nulidade referida não está ferida de nulidade já que plenamente fundamentada, tendo observado na sua elaboração o regime previsto no art. 389º-A do Código de Processo Penal - "1 - A sentença é logo proferida oralmente …", fundamentação constante da gravação da audiência; a conduta do arguido possuidor de uma licença de condução de velocípede com motor emitida pela Câmara Municipal, em 1991, e já caducada, é penalmente relevante sendo subsumível ao art. 3º, n.º 1, do DL n.º 2/98, pois que não tendo, até 30-06-2000, pedido a troca daquela licença, nos termos do art. 4º do DL n.º 315/99, de 11/08, deixou de possuir habilitação legal para a condução do ciclomotor que a 20-06-2018 dirigia na via púbica; inexistem factos provados reveladores de qualquer erro do arguido recorrente sobre a factualidade típica, pelo que a sua condenação pela condução de tal ciclomotor na pena de 80 dias de multa à taxa diária de 6 euros se apresenta fora de qualquer censura.» 5. No âmbito do disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não houve resposta a esse parecer. 6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c), do mesmo código.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal que “a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.
Daí o entendimento unânime de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecer oficiosamente [2].
No presente recurso, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente e o teor do parecer do Exmo. Procurador-Geral Adjunto, as questões a decidir, elencadas de acordo com as consequências da sua eventual procedência, são as seguintes:
a) - A nulidade processual prevista na al. f) do art. 119º do Código de Processo Penal;
b) - A nulidade da sentença recorrida por falta de fundamentação, traduzida na ausência de enumeração dos factos provados e não provados e da exposição dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão (conclusões V a X);
c) – A errada revogação da suspensão provisória do processo aplicada no âmbito do processo n.º 158/18.2GACBT, por o arguido não ter praticado outro crime da mesma natureza (conclusões XI a XVI);
d) - O erro na qualificação jurídica dos factos relativos à conduta do arguido no dia 20-06-2018 (processo n.º 174/18.4GACBT), por não constituírem crime, mas mera contraordenação (conclusões XVII a XX);
e) – A existência de erro sobre elementos de facto, situação que exclui o dolo por parte do arguido (conclusões XXI a XXVI).
2. DA SENTENÇA RECORRIDA
Na sentença recorrida foi dada como provada a seguinte factualidade (tal como se ouve no registo da audiência de julgamento, que se transcreve, com numeração agora introduzida):
«1 - Todos os factos que constam da acusação pública, descritos a fls. 42 e que por uma questão de economia processual se dão por integralmente reproduzidos. 2- O arguido não tem antecedentes criminais registados. 3 - Confessou parcialmente os factos, designadamente os relativos à 1ª ocorrência, ocorrida no dia 04 de junho de 2018. 4 - Tem o 4º ano de escolaridade, é casado, vive em casa de um filho, tem 4 filhos maiores e independentes, trabalha na agricultura para um particular, auferindo cerca de € 200 mensais e ainda géneros que pontualmente a proprietária dessa quinta onde trabalha lhe faculta. 5 - É proprietário da mota descrita na acusação, KIMCO YUP 50. 6 - O arguido foi titular de licença de condução de velocípede n.º ..., emitida pela Câmara Municipal X no dia 24 de outubro de 1991. 7 - A esposa atualmente está a viver com dois filhos no Porto, onde se encontra a ser tratada devido a um problema de saúde, tem 61 anos de idade, não aufere qualquer pensão de reforma.»
3. APRECIAÇÃO DO RECURSO
3.1 – Da nulidade processual prevista no art. 119º, al. f), do Código de Processo Penal
3.1.1 - Para a apreciação desta questão, suscitada pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, importa ter presentes os seguintes elementos e ocorrências processuais:
- No dia 04-06-2018, foi o arguido fiscalizado e detido pela GNR, por se encontrar a conduzir na via pública um veículo ligeiro de passageiros sem ser titular de carta de condução que o habilitasse à condução desse veículo, factos esses suscetíveis de integrar a prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelos arts. 3º, n.ºs 1 e 2, do DL n.º 2/98, de 3 de janeiro, e 121º e 124º do Código da Estrada, dando, assim, origem ao processo com o NUIPC 158/18.2GACBT (presentes autos – cf. fls. 3 a 17 dos mesmos).
- Nessa mesma data, obtida a concordância do arguido, o Ministério Público proferiu despacho a suspender provisoriamente o processo, pelo período de três meses, mediante o cumprimento das injunções e regras de conduta de entregar € 150 a uma IPSS à sua escolha e de prestar 50 horas de serviço de interesse público em instituição a designar pela DGRSP (fls. 21 a 23 e 25 a 26).
- A Mm.ª Juíza deu a sua concordância a essa suspensão provisória do processo, nos precisos termos promovidos (fls. 28 a 29).
- O arguido foi notificado da suspensão provisória do processo por via postal simples com prova de depósito, depositada no dia 08-06-2018 (fls. 31).
- No dia 20-06-2018, foi o arguido novamente fiscalizado e detido pela GNR, por se encontrar a conduzir na via publica um ciclomotor, sem ser titular de carta de condução que o habilitasse à condução desse veículo, o que deu origem ao processo com o NUIPC 174/18.4GACBT (fls. 3 a 20 desses autos).
- Por despacho do Ministério Público de 21-06-2018, foi ordenada a apensação deste último processo aos presentes autos (processo n.º 158/18.2GACBT), nos termos do art. 25º do Código de Processo Penal, por se tratar de inquérito contra o mesmo agente, cujo julgamento compete ao mesmo juízo local (fls. 25 do processo apenso).
- Nos presentes autos (158/18.2GACBT) e na mesma data foi proferido despacho a revogar a suspensão provisória nele decretada, com fundamento no cometimento de um crime da mesma natureza durante o período da suspensão provisória do processo, e determinado o prosseguimento do processo, com a dedução de acusação, em processo sumário, pelos crimes cometidos no dia 04-06-2018 e no dia 20-06-2018 (fls. 37).
- Ainda nesse dia 21-06-2018 foi deduzida acusação contra o arguido, para julgamento do mesmo em processo sumário, pela prática dos dois crimes de condução sem habitação legal, previstos e punidos pelo art. 3º, n.ºs 1 e 2, do DL n.º 2/98, de 3 de janeiro, e 121º e 124º do Código da Estrada (fls. 42 a 43).
- Realizado o julgamento, em processo sumário, no dia 25-06-2018, foi proferida a sentença recorrida (fls. 52 a 56).
3.1.2 - Feita esta resenha da tramitação processual subsequente aos dois comportamentos em apreço do arguido, constata-se o seguinte:
Em primeiro lugar, o Ministério Público procedeu à revogação da suspensão provisória do processo e determinou o prosseguimento deste, relativamente aos factos praticados pelo arguido no dia 04-06-2018, com fundamento no cometimento pelo mesmo, no dia 20-06-2018, de um novo crime da mesma natureza.
Porém, fê-lo imediatamente após a notícia desta nova conduta criminosa, sem haver julgamento do arguido pela mesma e, consequentemente, sem aguardar pelo trânsito em julgado da eventual condenação que viesse a ser proferida.
Tal decisão contraria o disposto no art. 282º, n.º 4, al. b), do Código de Processo Penal, diploma a que pertencem os preceitos doravante citados sem qualquer referência, segundo o qual, em caso de o Ministério Público se ter decidido pela suspensão provisória do processo, como sucedeu nos presentes autos relativamente à conduta do arguido perpetrada no dia 04-06-2018, “o processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas: (…) se, durante o prazo de suspensão do processo, o arguido cometer crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado”.
Parece, pois, claro que não basta a notícia da prática de um outro crime, da mesma natureza daquele relativamente ao qual o processo foi suspenso provisoriamente, para se poder revogar tal suspensão e se determinar o prosseguimento do processo, com dedução de acusação, sendo necessária a existência de condenação transitada em julgado pelo novo crime, por só assim se ter como definitivamente assente a prática do mesmo no período da suspensão provisória do processo, pressuposto da revogação desta.
Essa decisão pode ser sindicável pelo arguido, mediante o requerimento de abertura de instrução.
Todavia, não sendo esta fase processual consentida nas formas de processo especiais (cf. art. 286º, n.º 3), como é o caso dos presentes autos, ao arguido resta a solução de questionar a bondade da decisão do Ministério Público em deduzir acusação, pondo termo à suspensão provisória do processo, de forma a poder ser apreciada em sede de julgamento, nomeadamente introduzindo-a na contestação que venha a apresentar.
Todavia, independentemente da intempestividade da decisão de revogação da suspensão provisória do processo decretada nos presentes autos, constata-se, em segundo lugar que, na sequência dessa decisão revogatória, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido, para julgamento do mesmo em processo sumário, imputando-lhe a prática de ambos os crimes, quer daquele de que acabara de ter conhecimento (cometido no dia 20-06-2018), quer do relativo aos factos ocorridos no dia 04-06-2018 e relativamente à qual revogara a suspensão provisória do processo com fundamento na mera notícia daquele outro crime.
Ora, dispõe o art. 384º, n.º 4, que “nos casos previstos no n.º 4 do artigo 282.º, o Ministério Público deduz acusação para julgamento em processo abreviado no prazo de 90 dias a contar da verificação do incumprimento ou da condenação”.
Constitui, assim, opção legislativa expressa que, no caso de revogação da suspensão provisória decretada no âmbito de um processo sumário, o processo siga a forma abreviada.
Significa isto que a conduta do arguido relativa ao dia 04-06-2018 foi objeto de acusação e de julgamento em processo sumário fora das condições legalmente previstas, uma vez que a lei impunha a utilização da forma abreviada.
Nos termos da al. f) do art. 119º constitui nulidade insanável, que deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento, “o emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei”.
Como refere Henriques Gaspar [3], «Trata-se de uma invalidade derivada de uma particular modalidade de erro na forma do processo: o erro consiste no emprego de uma das foras de processo especial fora dos pressupostos em que as formas especiais são admissíveis;»
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Impõe-se, assim concluir, tal como faz o Exmo. Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, pela verificação da nulidade processual aí invocada.
Essa nulidade apenas afeta a acusação deduzida contra o arguido pelos factos ocorridos no dia 04-06-2018, como ato a ter que ser repetido (com a dedução de acusação para julgamento em processo abreviado), bem como todos os atos que dele dependem e que podem ser afetados, como sejam o julgamento em processo sumário, a sentença e o recurso interposto pelo arguido (art. 122º, n.º 1).
Já a acusação pelos factos ocorridos no dia 20-06-2018 não está ferida de qualquer vício, mantendo a sua validade, bem como o subsequente julgamento, sentença e recurso interposto da mesma, que cumpre apreciar.
A declaração dessa nulidade tem como efeito necessário a separação dos processos, uma vez que o processo n.º 174/18.4GACBT, relativo aos factos do dia 20-06-2018, foi apensado aos presentes autos (n.º 158/18.2GACBT), que tiveram origem na prática dos factos do dia 04-06-2018.
Uma vez que toda a tramitação processual subsequente a essa apensação teve lugar nos presentes autos, com a dedução da acusação em processo sumário, a realização do julgamento, a prolação da sentença e a interposição do recurso, torna-se ainda necessário extrair certidão de todo o processado a partir da acusação (fls. 42) até ao momento em que se efetuar a separação, a fim de ser junta ao processo a separar (n.º 174/18.4GACBT).
Após essa separação, será, então, no âmbito do processo n.º 158/18.2GACBT que o arguido poderá, se ainda for o caso, dependendo do desfecho do presente recurso, sindicar a ordenada revogação da suspensão provisória do processo nele decretada.
Delimitado que está o objeto do recurso à conduta do arguido pelos factos do dia 20-06-2018, apreciemos as questões nele suscitadas pelo recorrente.
3.2 - Da nulidade da sentença por falta de fundamentação
Ao longo das conclusões V a X sustenta o recorrente que a sentença recorrida padece de falta de fundamentação, por não conter a enumeração dos factos provados e não provados e a exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, o que a torna nula nos termos das disposições conjugadas dos arts. 374º, n.º 2, 379º, n.º 1, al. a), e 389º-A, n.º 1.
Porém, esta linha de argumentação traduz-se num exercício que não tem em conta a concreta forma de processo que os presentes autos seguem – processo especial sumário.
Senão vejamos:
De acordo com o disposto no n.º 1 do art. 205º da Constituição, as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
Concretizando essa estatuição, o Código de Processo Penal, no n.º 5 do art. 97º, impõe que os atos decisórios dos juízes sejam sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.
Especificamente quanto à sentença proferida em processo sumário, como é o caso dos autos, necessariamente mais sucinta do que em processo comum, o art. 389º-A, n.º 1, estabelece os respetivos requisitos, dispondo, nomeadamente e no que agora releva, que a mesma contém: "a) A indicação sumária dos factos provados e não provados, que pode ser feita por remissão para a acusação e contestação, com indicação e exame crítico sucintos das provas; b) A exposição concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão; (…)".
O referido exame crítico «consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção (…). O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte» [4].
Para além de indicar os meios de prova utilizados, torna-se necessário explicitar o processo de formação da convicção do tribunal, a partir desses meios de prova, com apelo às regras de experiência e aos critérios lógicos e racionais que conduziram a que a convicção se formasse em determinado sentido. Só assim será possível comprovar se foi seguido um processo lógico e racional na apreciação da prova ou se esta se fundou num subjetivismo incomunicável que abre as portas ao arbítrio.
Mais concretamente, através do exame crítico das provas, o julgador enuncia as razões de ciência dos vários meios de prova, explicita a razão da opção por uma e não por outra das versões em confronto e indica os motivos da credibilidade que atribuiu a depoimentos, a documentos e a exames.
Por sua vez, o art. 379º, n.º 1, ao estabelecer a consequência da inobservância dos requisitos previstos na lei para a sentença, dispõe na sua al. a), que, em relação à sentença proferida em processo sumário, é a mesma nula se não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas als. a) a d) do n.º 1 do art. 389º-A, acrescentando o seu n.º 2 que as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso.
A propósito da exigência de fundamentação em análise, a doutrina vem entendendo que só a sua falta absoluta é que conduz à nulidade da decisão. A fundamentação insuficiente, deficiente ou não convincente não constitui nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso [5].
Também a jurisprudência se orienta no mesmo sentido, defendendo que só a falta absoluta de fundamentação, «por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira» determina a nulidade do despacho/sentença. A «insuficiência ou a mediocridade da motivação [que] é espécie diferente [da falta absoluta de motivação] afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade» [6].
Todavia, de acordo com o disposto no art. 389º-A, n.ºs 1, 2 e 3, a sentença é proferida oralmente, sendo, sob pena de nulidade, documentada nos termos dos arts. 363º e 364º, acrescentando que o respetivo dipositivo é sempre ditado para a ata, como efetivamente sucedeu no caso dos autos.
De acordo com aqueles preceitos, a referida documentação da sentença é efetuada, em regra, através de registo áudio ou audiovisual, só podendo ser utilizados outros meios, designadamente estenográficos ou estenotípicos, ou qualquer outro meio técnico idóneo a assegurar a reprodução integral daquela, quando aqueles meios não estiverem disponíveis.
Significa isto que a sentença recorrida não é constituída apenas pelo dispositivo que foi ditado para a ata e que aí ficou reproduzido por escrito, mas também pela parte proferida oralmente e que ficou documentada através da respetiva gravação áudio.
Ora, procedendo à audição desse registo magnetofónico, constata-se que a Mm.ª Juíza começou por elencar discriminadamente os factos que considerou provados, que transcrevemos supra, o que, na parte relativa à conduta do arguido, fez por remissão para o teor da acusação, com arrimo na al. a) do n.º 1 do art. 389º-A, sendo certo que não houve factos não provados.
Mais se constata dessa audição que, de seguida, a Mm.ª Juíza procedeu à explicitação do processo de formação da sua convicção quanto a tais factos, indicando os meios de prova em que se estribou e as razões pelas quais os mesmos relevaram nesse processo.
Concretamente, e no que agora interessa (a conduta do arguido relativa ao dia 20-06-2018, na decorrência da verificação da nulidade conhecida supra, no ponto 3.1), o tribunal atendeu às declarações do arguido, na parte em que confirmou encontrar-se a conduzir o ciclomotor no circunstancialismo em preço. E tendo o mesmo sustentado estar convencido de que a licença de condução de velocípedes com motor que possuía o habilitava à condução de ciclomotores, a Mm.ª Juíza explicitou por que motivos não atribuiu credibilidade a essas declarações, nomeadamente por terem decorrido mais de 18 anos desde que as antigas licenças de condução de velocípedes com motor deixaram de habilitar à condução de ciclomotores, bem como por terem sido contrariadas pelo depoimento do militar da GNR que procedeu à fiscalização, ao afirmar que, aquando da primeira situação (no dia 04-06-2018), logo advertiu o arguido de que a referida licença já não tinha qualquer validade, sendo que, na segunda situação (20-06-20189, o mesmo lhe afirmou já estar a tratar de regularizar a situação, depoimento esse que a Mm.ª Juíza considerou isento e objetivo, tendo até sido feita uma acareação entre a testemunha e o arguido. Quanto à situação pessoa deste, a julgadora atendeu às declarações do mesmo, valorando ainda o teor do certificado de registo criminal junto aos autos.
Seguidamente, a Mm.ª Juíza procedeu ao enquadramento jurídico dos factos dados como provados, subsumindo-os à previsão dos arts. 3º, n.º s 1 e 2, do DL n.º 2/98, e 121º e 124º do Código da Estrada, bem como procedeu à escolha e determinação da pena concreta aplicada, elencando os factos a que atendeu, nomeadamente as elevadas exigências de prevenção geral, a ausência de antecedentes criminais, a inserção social, familiar e profissional, fundamentando igualmente a taxa diária da pena de multa que fixou, por referência à concreta situação económico financeira do arguido.
Conclui-se, assim, que a sentença, oralmente proferida, em estrito cumprimento do disposto no art. 389º-A, n.º 1, contém a indicação dos factos provados, sendo certo que inexistem factos não provados, bem como a indicação e exame crítico sucintos das provas e a exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, pelo que, manifestamente, não padece da nulidade de falta de fundamentação, prevista na al. a) do nº 1 do art. 379º, que o recorrente lhe assaca.
Assim, improcede este segmento do recurso.
3.3 - Da errada revogação da suspensão provisória do processo
Nas conclusões XI a XVI defende o recorrente não existir fundamento de facto e de direito para lhe ter sido revogada a suspensão provisória do processo decretada nos presentes autos (processo n.º 158/18.2GACBT), relativamente à sua conduta do dia 04-06-2018, com fundamento no cometimento, no dia 20-06-2018, de um novo crime da mesma natureza, por não ter praticado este segundo crime.
Sucede que a apreciação deste segmento do recurso se mostra prejudicado pela verificação da nulidade insanável prevista no art. 119º, al. f) e do que, consequentemente, ficou decidido supra, no ponto 3.1.
Com efeito, pelas razões aí expostas, na decorrência na invalidade da acusação deduzida para julgamento do arguido em processo sumário pelos factos ocorridos no dia 04-06-2018 e da tramitação subsequente, caso venha a ser deduzida acusação contra ele para julgamento em processo abreviado, poderá então o mesmo, se ainda for o caso, sindicar a ordenada revogação da suspensão provisória do processo.
3.4 – Do erro na qualificação jurídica dos factos
Nas conclusões XVII a XX invoca o recorrente a existência de erro na qualificação jurídica dos factos relativos à sua conduta do dia 20-06-2018, alegando que os mesmos não integram o crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelos arts. 3º, n.ºs 1 e 2, do DL n.º 2/98, de 3 de janeiro, e 121º e 124º do Código da Estrada, conforme considerou o tribunal a quo, que o condenou por esse crime, mas sim a contraordenação prevista e punida pelo art. 130º, n.ºs 1, al. a), e 7, do Código da Estrada, uma vez que é titular de licença de condução de velocípedes sem motor, emitida pela Câmara Municipal em 24 de outubro de 1991, embora caducada por falta de renovação.
A questão a dirimir consiste em saber se as antigas licenças de condução de velocípedes com motor emitidas pelas Câmaras Municipais constituem título bastante para habilitar à condução de um ciclomotor e, no caso de resposta negativa, se a conduta de quem conduz um ciclomotor nessas circunstâncias integra um crime de condução sem habilitação legal, conforme decidiu o tribunal a quo, ou antes uma mera contraordenação, como sustenta o recorrente.
Trata-se de uma questão que tem sido apreciada e decidida nesse primeiro sentido pelos tribunais superiores, inclusivamente pelo Supremo Tribunal de Justiça [7].
Com efeito, de acordo com o disposto no art. 47º, n.ºs 1 e 2, do Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir, aprovado pelo DL n.º 209/98, de 15 de julho, durante o prazo de um ano, a contar da entrada em vigor desse diploma, os titulares de licença de condução de velocípedes com motor estavam habilitados a conduzir ciclomotores e podiam requerer a troca da licença de velocípedes com motor por licença de condução de ciclomotor, na Câmara Municipal da sua área de residência.
Resulta destas disposições legais que a pessoa que estivesse habilitada com licença de condução de velocípedes com motor, a partir da entrada em vigor daquele diploma legal estava também habilitada a conduzir ciclomotores: durante um ano a partir daquela entrada em vigor com a simples licença de condução de velocípedes com motor e, após um ano, se tivesse requerido a troca do título junto da câmara municipal da área da sua residência.
O referido prazo de um ano foi prorrogado até ao dia 30 de junho de 2000 pelo art. 4º do DL n.º 315/99, de 11 de agosto.
Conclui-se, assim, que o arguido foi titular de uma licença de condução de velocípedes sem motor, emitida pela Câmara Municipal em 24-10-1991, que o habilitou a conduzir o ciclomotor em questão até 30-06-2000.
Porque, entretanto, não procedeu à troca dessa licença nos serviços competentes da Câmara Municipal, ficou sem licença para conduzir ciclomotores.
Tal situação não é equiparável às situações de caducidade de títulos de condução, designadamente por falta de revalidação, o que afasta a hipótese defendida pelo recorrente, de enquadrar a sua conduta na contraordenação prevista no art. 130º, n.ºs 1, al. a), e 7, do Código da Estrada.
Na verdade, de acordo com este preceito “o título de condução caduca se não for revalidado, nos termos fixados no RHLC, quanto às categorias abrangidas pela necessidade de revalidação, salvo se o respetivo titular demonstrar ter sido titular de documento idêntico e válido durante esse período”, sendo punível com coima quem conduzir veículo com título caducado.
Versando sobre um caso com contornos idênticos aos do presente, o Supremo Tribunal de Justiça, precisamente no acórdão citado na motivação do recurso [8], considerou que, «o recorrente, a partir de 30 de junho de 2000, deixou, assim, de ter título que lhe permitisse conduzir ciclomotores, não porque o título tivesse caducado, mas porque deixou de vigorar o preceito que permitia a condução de um ciclomotor pelo titular de licença de condução de velocípede com motor, ou seja, que habilitava o titular desta licença a conduzir um ciclomotor. E, por isso, praticou atos integradores do crime do art. 3º nº 1 do Decreto-Lei n.º 2/98, por que veio a ser condenado».
Pelo exposto, é de concluir que com a conduta protagonizada no dia 20-06-2018, o arguido incorreu num crime de condução sem habitação legal, porquanto não se encontrava habilitado para a condução de ciclomotores, como acertadamente considerou a primeira instância, nesta parte improcedendo o recurso.
Porém, já não se mostra correta a integração dessa conduta no n.º 2 do art. 3º do DL n.º 2/98, de 2 de janeiro, porquanto, conforme resulta dos factos provados, o veículo conduzido nessa ocasião pelo arguido na via pública revestia as características de um ciclomotor, facto esse comprovado pelo teor dos documentos juntos a fls. 6 e 7 do processo apenso (impressão da consulta do veículo efetuada ao IMT, onde, para além da categoria de "ciclomotor", consta que o mesmo tem 49 cm3 de cilindrada).
Com efeito, dispõe o citado artigo:
"1 - Quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias. 2 - Se o agente conduzir, nos termos do número anterior, motociclo ou automóvel a pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias."
Ora, o art. 107º do Código da Estrada considera motociclo "o veículo dotado de duas rodas, com ou sem carro lateral, com motor de propulsão com cilindrada superior a 50 cm3, no caso de motor de combustão interna, ou que, por construção, exceda em patamar a velocidade de 45 km/h" (n.º 1) e como ciclomotor "o veículo dotado de duas ou três rodas, com uma velocidade máxima, em patamar e por construção, não superior a 45 km/h, e cujo motor: a) No caso de ciclomotores de duas rodas, tenha cilindrada não superior a 50 cm3, tratando-se de motor de combustão interna ou cuja potência máxima não exceda 4 kW, tratando-se de motor elétrico; b) No caso de ciclomotores de três rodas, tenha cilindrada não superior a 50 cm3, tratando-se de motor de ignição comandada ou cuja potência máxima não exceda 4 kW, no caso de outros motores de combustão interna ou de motores elétricos."
Dúvidas não podem, pois, restar que a conduta em apreço do arguido é subsumível ao n.º 1 e não ao n.º 2 do art. 3º do DL n.º 2/98, de 3 de janeiro, conforme foi considerado na sentença recorrida.
Por conseguinte, impõe-se corrigir esse erro de direito, o que, sem prejuízo do que vier a ser decidido a propósito da derradeira questão suscitada pelo recorrente e a apreciar infra, tem necessariamente reflexo na determinação da pena de multa aplicada pela prática desse crime, uma vez que a respetiva moldura abstrata tem como limite máximo 120 e não 240 dias, como considerou o tribunal a quo, conforme resulta da audição da gravação da sentença oralmente proferida.
Pese embora esta questão não venha suscitada no recurso, o tribunal superior pode sempre conhecer da qualificação jurídica, estando em causa matéria de direito, desde logo pelas implicações que tal pode ter na medida da pena, ressalvada a proibição da reformatio in pejus, e sem necessidade de qualquer comunicação prévia desde que tal alteração não prejudique a defesa do arguido [9].
Pronunciando-se sobre se “o Supremo Tribunal de Justiça poderá ou não alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal dos factos recolhidos na instância recorrida e sobre os quais esta erigiu a decisão que, uma vez proferida, subiu em recurso à instância superior” entendendo que o que “está em debate é a admissibilidade ou não da qualificação jurídica dos factos feita na instância em caso de recurso, quando a mesma qualificação não esteja em debate, ou seja, não constitua objeto de impugnação”, o Plenário das Secções Criminais concluiu e fixou jurisprudência no sentido de que “o tribunal superior pode, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efetuada pelo tribunal recorrido, mesmo que para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus” [10].
Inexiste, assim, qualquer obstáculo legal a que se conheça oficiosamente da questão do enquadramento jurídico da conduta do arguido.
Posto isto, considerando os fatores a atender na determinação da pena concreta que, corretamente, foram ponderados pela Mmª. Juíza, nomeadamente as elevadas exigências de prevenção geral que se fazem sentir relativamente e este tipo de crime, pela frequência com que é cometido, a perigosidade associada à condução sem habilitação legal, a atuação do arguido com dolo direto, a ausência de antecedentes criminais, a sua inserção social, familiar e profissional e a circunstância de não ter assumido a plenitude do seu comportamento, ao sustentar estar convicto de que possuía habilitação para conduzir ciclomotores, o que não resultou provado, afigura-se-nos correta a pena de 50 dias de multa, em substituição dos 80 dias fixados pela primeira instância, nessa parte impondo-se alterar oficiosamente a decisão recorrida.
3.5 - Da existência de erro sobre as circunstâncias do facto
Por fim, invoca o recorrente que, relativamente ao crime pelo qual foi condenado com base nos factos praticados no dia 20-06-2018, atuou em erro sobre as circunstâncias do facto, o que, nos termos previstos no art. 16º, n.º 1, do Código Penal, exclui o dolo, devendo ser absolvido.
Para tanto, alega que sempre conduziu o ciclomotor na convicção de que era detentor de licença de condução que o habilitava a tal, crente de que o podia fazer e que não estava a praticar um crime, atuando, pois, em defeito de conhecimento acerca da sua real situação de condutor sem habilitação legal, incorrendo em erro sobre o conhecimento de um elemento (falta de licença) necessário para tomar consciência da ilicitude do facto (conclusões XXI a XXVI).
Na resposta à motivação do recorrente, o Ministério Público sustenta que a situação não se deve enquadrar no erro sobre a factualidade típica, previsto no art. 16º do Código Penal, mas sim no erro sobre a consciência da ilicitude, regulado no art. 17º do mesmo código.
Afigura-se-nos, porém, que sem razão.
A diferente subsunção numa ou outra dessas disposições legais é relevante, na medida em que o erro sobre proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto, previsto no art. 16º, n.º 1, do Código Penal, ainda que censurável, afasta o dolo, ficando ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais. Por seu turno, o erro sobre a consciência da ilicitude, previsto no art. 17º, exclui a culpa se não for censurável (n.º 1), e, se o for, pode a pena aplicável ao crime doloso respetivo ser especialmente atenuada (n.º 2).
Referindo-se ambos os preceitos ao erro sobre a falta de consciência da ilicitude, o campo de aplicação de cada um deles pode ser delimitado da seguinte forma:
O art. 16º, n.º 1, refere-se a proibições equiparadas a elementos do tipo, ou seja, aquelas proibições cujo conhecimento é razoavelmente indispensável para haver consciência da ilicitude e que exigem uma especial falta de informação ou esclarecimento, sem o qual a consciência jurídica comum não as tomará como proibições penais. O conhecimento destas proibições é relevante para que o agente tome consciência da ilicitude do facto que pratica. Daí a sua equiparação ao regime dos demais elementos do tipo, relativamente aos quais o erro, ainda que censurável, afasta o dolo, conformando o específico tipo de censura da negligência.
Por seu lado, o art. 17º refere-se a proibições que todos devem conhecer (não matar, não roubar, não agredir, etc.), em que o conhecimento da proibição legal é irrelevante para que o agente tome consciência da ilicitude. Em caso de erro, estamos perante uma deficiência da própria consciência ético-jurídica do agente, que não permite apreender corretamente os valores jurídico-penais, e que por isso, quando censurável, conforma o específico tipo de censura do dolo.
Em face do exposto, de acordo com a alegação do recorrente, a situação seria suscetível de ser subsumida à previsão do art. 16º, n.º 1, porquanto o mesmo não teria a informação bastante para poder saber que o título que possuía - licença de condução de velocípedes com motor - podia ser trocado por um título que o habilitaria a conduzir ciclomotores, o que revelaria a existência de erro sobre um dos elementos do tipo, ou seja, a não titularidade de habilitação legal, por falta de conhecimento das regras sobre a troca da licença de condução.
Todavia, como o Exmo. Procurador-Geral Adjunto salienta no seu parecer, inexistem factos provados que suportem tal alegação, na medida em que, de acordo com essa factualidade, definitivamente dada como assente, não resulta que o arguido estivesse convencido que com o título de condução que possuía não estava a cometer qualquer crime, mas sim que, ao invés, agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que não possuía título que o habilitasse à condução do ciclomotor na via pública e que a sua conduta era proibida e penalmente punida por lei, o que revela a existência de dolo. Improcede, pois, o recurso nesta parte.
III. DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido F. M., e, em consequência, decidem:
A) - Declarar verificada a nulidade processual prevista na al. f) do art. 119º do Código de Processo Penal, traduzida na dedução de acusação para julgamento do arguido em processo sumário pelos factos do dia 04-06-2018 (que deram origem ao processo n.º 158/18.2GACBT), bem como toda a tramitação subsequente relativa a essa conduta, permanecendo válida a acusação, o julgamento, a sentença e o recurso na parte relativa aos factos do dia 20-06-2018 (que originaram o processo n.º 174/18.4GACBT). B) - Consequentemente, ordenar a separação dos dois referidos processos, que passarão a ter uma tramitação autónoma, devendo ser extraída certidão de todo o processado dos presentes autos (n.º 158/18.2GACBT) a partir da referida acusação (fls. 42) até ao momento em que se efetuar essa separação, e ser junta ao processo a separar (n.º 174/18.4GACBT). C) - Relativamente aos factos praticados pelo arguido no dia 20-06-2018, proceder oficiosamente à alteração da respetiva qualificação jurídica, no sentido de os mesmos integrarem não o crime de condução sem habilitação legal previsto e punido pelo n.º 2 do art. 3º do DL n.º 2/98, de 3 de janeiro, absolvendo-o deste ilícito, mas sim o crime de condução sem habitação legal previsto e punido pelo n.º 1 do referido artigo, condenando-o pela prática deste crime na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária fixada pela primeira instância (seis euros), o que perfaz € 300 (trezentos euros). D) - Confirmar, no mais, a sentença recorrida.
Sem tributação em custas (art. 513º, n.º 1, a contrario, do Código de Processo Penal).
*
(Elaborado pelo relator e revisto por todos os signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)
Guimarães, 17 de dezembro de 2018
(Jorge Bispo)
(Pedro Miguel Cunha Lopes)
[1]- Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo a correção de gralhas evidentes, a ortografia e a formatação utilizadas, que são da responsabilidade do relator. [2]- Conforme jurisprudência uniformizada pelo acórdão n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série, de 28-12-1995). [3]- In Código de Processo Penal Comentado, 2014, Almedina, pág. 390. [4]- Cf. o acórdão do STJ de 25-01-2006 (processo n.º 05P3460), disponível em http://www.dgsi.pt. [5] - Vd. Alberto do Reis, Código de Processo Civil, anotado, vol. 5, pág. 140; Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Vol. III (1972), pág. 246; Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, pág. 669 e Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 221. [6] - Cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 26-03-2014 (processo n.º 15/10.0JAGRD.E2.S1), disponível em http://www.dgsi.pt., e de 30-04- 2014, (processo n.º 330.08.3PATNV.C2.S1), disponível na Coletânea de Jurisprudência online, com a referência 8895/2014. [7] - Cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 23-10-2008 (processo n.º 08P2821), do TRP de 08-11-2016 (processo n.º 0643232) e do TRG de 25-05-2015 (processo n.º 542/12.5GEGMR.G1), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt. [8] - Proferido no processo n.º 08P2821 e mencionado na nota anterior. [9] - Cf. os acórdãos do STJ de 15-01-2015 (processo n.º 92/14.5YFLSB.1), de 10-09-2014 (processo n.º 714/12.2JABRG.S1) e de 24-02-2010 (processo n.º 59/06.7GAPFR.P1.S1), bem como do TRP de 06-05-2009 (processo n.º 104/03.8GAVFR.P1), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt. [10] - Acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 4/95, de 7 de junho, Diário da República, I série-A, de 06-07-1995, pág. 4298 e ss..