CRIME DE ABUSO SEXUAL DE CRIANÇA
IMPORTUNAÇÃO SEXUAL
APALPAÇÃO SEIO
RELACIONAMENTO PAI FILHA MENOR
ARTºS 171º
NºS 1 E 3
A) E 177
Nº 1
A)
DO CP
Sumário


1. Não tendo o legislador esclarecido quais as modalidades típicas da ação que pretendia incriminar como contacto de natureza sexual com relevo penal, cabe ao intérprete fazê-lo, tendo em conta o circunstancialismo de lugar, de tempo, as condições que o rodeiam e que o façam ser reconhecível pela vítima como sexualmente significativo.

2. Se há atos em relação aos quais não há dúvida de que têm o relevo exigido pela lei, outros há que se situam numa zona de fronteira entre o abuso sexual e a importunação sexual ou, ainda, entre esta e o mau gosto ou a boçalidade.

3. Na afirmação de atos desta natureza constata-se alguma mutabilidade fruto da própria historicidade existencial do ser humano, dos elementos culturais, hábitos, costumes, convicções.

4. No entanto tal mutabilidade não ocorre quando está em causa, sob o ponto de vista sexual, o relacionamento entre pais e filhos. Entre pais e filhos não pode, nem nunca pôde, existir relacionamento sexual.

5. Quando são os que têm o dever de vigilância e de especial respeito para com a vítima - como é o caso dos pais para com os filhos – que abusam, o abuso é intolerável pela perversidade que encerra, pela confusão de sentimentos que origina.

6. O pai que estando na cama com a filha de 10 anos – cujo corpo começava a transformar-se – lhe apalpa um seio e, não obstante a criança lhe ter pedido para estar “ quieto”, repete o gesto, sempre em silêncio, comete o crime de abuso sexual de criança previsto no art. 171 nº1, agravado nos termos do art. 177 nº 1 a) ambos do Código Penal e não o crime de abuso sexual de criança - na vertente de importunação sexual - previsto no art. 171 nº 3 a) do mesmo Código.

Texto Integral


Acordam, em Conferência, os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I.
No processo comum com intervenção do Tribunal Singular que, com o nº 216/15.5T9AVR, corre termos no Juízo Local Criminal de Ponte da Barca foi decidido:

A) Condenar o arguido J. L. pela prática, em autoria material e na forma consumada na pessoa da ofendida L. F., de um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos artigos 171.°, n.° 1 e 177.°, n.° 1, al a), ambos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão.
B) Suspender, pelo período de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, a execução da pena de prisão aplicada nos termos da alínea que antecede, ao abrigo do disposto nos artigos 50.°, n.°s 1 e 5, 53º e 54.°, todos do Código Penal, e artigo 494.° do Código de Processo Penal, subordinada ao cumprimento pelo arguido de um regime de prova assente num plano de reinserção social (que deve conter os objetivos de ressocialização a atingir pelo condenado, as atividades que este deve desenvolver, o respetivo faseamento e as medidas de apoio e vigilância a adotar pelos serviços de reinserção social) a elaborar pela DGRS e a ser homologado pelo Tribunal (com especial incidência para a consciencialização dos deveres do arguido perante a lei e das consequências para os bens jurídicos pessoais que surgem para a ofendida em consequência da conduta do arguido punida nestes autos e seja motivador do arguido a manter-se afastado da prática do mesmo tipo de crime ou de outros),
C) Fixar a pena acessória de inibição do exercício de responsabilidades parentais relativamente à ofendida L. F. pelo período de 5 (cinco) anos, nos termos do artigo 69.°-C, n.° 3 do Código Penal.
D) Condenar o arguido nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (três unidades de conta), nos termos dos artigos 513.° e 514.°, ambos do Código de Processo Penal, e do artigo 8.°, n.° 9 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa ao mesmo.
E) Declarar cessada, após trânsito, qualquer medida de coação imposta ao arguido, à exceção do termo de identidade e residência que só se extinguirá com a extinção da pena (artigo 214.°, n.° 1, al. e), do Código de Processo Penal).

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Inconformado com a condenação, recorreu o arguido para este Tribunal da Relação concluindo o recurso do seguinte modo (transcrição):

A. O Tribunal recorrido nunca deveria ter dado como provados os pontos 1.6, 1.7, 1.8, 1.10, 1.11 e 1.12. da matéria de facto dada como provada, havendo os mesmos de serem excluídos do rol de factos provados;
B. Existe nulidade da sentença, por vício de fundamentação, ou, em alternativa, a existência de vício de erro notório na apreciação da prova ou ainda vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, por não existir suporte testemunhal claro e inequívoco que esclareça de que forma é que ocorreu o suposto toque no corpo da menor, por quanto tempo e com que intensidade e intuito, sendo completamente estéril a sentença na densificação do contexto lascivo que se exige nestes casos;
C. Inexiste contexto fáctico apurado que, pelo menos ao nível da prova indirecta, logre inserir a conduta do arguido, ora recorrente, numa querença libidinosa indesmentível perante a filha, como alvo de puro prazer momentâneo ou reiterado;
D. Todos os demais elementos apurados em sede de audiência, em termos de estilo de viva e convivência do arguido, bem como personalidade do mesmo, militam a favor de uma completa ausência de desejo libidinoso em relação às suas filhas, levando em apreço que, normalmente, a reiteração de comportamentos lascivos e insistência doentia na sua perpetração é sintomática de uma verdadeira conduta criminosa;
E. A mãe das crianças - testemunha M. G. - teve uma performance testemunhal aquém do desejado, deveras inconsistente, ao contrário do asseverado na sentença recorrida, chegando a afirmar que as suas filhas estavam presentes quando soube do sucedido em primeira mão, através da sua prima P. C., quando esta disse claramente que não estavam, para além de outras incongruências supra denunciadas na motivação recursal;
F. A testemunha L. A. afirmou sem peias em Tribunal, quando interpelada pelo Mm° Juiz para se aquilatar se tinha de algum modo sido instruída pela testemunha P. C., para corroborar a versão da sua irmã (fls. 241/verso; min. 11:54 até 12:20) ter sido instruída pela testemunha P. C., tendo confessado o seguinte, verdadeiramente sintomático de adestramento prévio: "Ela só me disse que vínhamos aqui dizer isto para depois não chegarmos aqui e pensarmos que iam dizer outras coisas e assim já estávamos preparadas para dizer isto 1";
G. Todas as testemunhas arroladas pela acusação confirmaram que o arguido dormiu com as menores e deu-lhes banho uma miríade de vezes, sem nunca ter sucedido algo anómalo;
H. A testemunha G. F. salientou o denodo, aprumo e espírito de sacrifício do arguido em cuidar das filhas, múnus descurado pela progenitora, pessoa a quem aponta "má formação", que poderá ter estado na origem do presente processo, para que a guarda das crianças em momento algum pudesse ser confiada ao ora recorrente, atenta a cupidez da mãe das menores em relação ao estipêndio público, através da percepção de prestações sociais pagas pela Segurança Social às crianças;
I. Chegada a altura do momento previsto no artigo 361.° do Código de Processo Penal, (faixa do CD n.° 20180319103745, mm. 0:50 até mm. 20:41), temos que, surpreendentemente, o Mmo Juiz a quo, colocando o arguido num ordálio inelutável, comunica-lhe que chegou o momento de dizer a verdade, pois está convicto de que o recorrente tocou na filha, sendo que, "a forma como tocou é que está aqui em coisa" (mm. 0:29 até 0:32);
J. Tendo o Mm° Juiz a quo proferido tais palavras, no último momento da audiência de julgamento, já depois de auscultados os depoimentos de todas as testemunhas arroladas, manifesta claramente as suas dúvidas sobre o contexto em que terá ocorrido o redito "toque", sendo que esta dúvida não foi crismada no texto da sentença como se impunha ao Tribunal e valorado a favor do recorrente, no sentido da sua absolvição que se impunha, de modo que o Tribunal a quo violou o princípio in dubio pro reo;
K. A matéria de facto apurada, por si só, é insuficiente para integrar o ilícito p. e p. pelo n.° 1 do artigo 171º do Código Penal, pois não está demonstrado um ato grave susceptível de ser considerado ato sexual de relevo, uma vez que até o mero apalpar momentâneo ou o "roçar" não são suscetíveis de integrar tal conceito, pelo que deve o arguido ser absolvido também por esta via;
L. A discordar-se da absolvição do recorrente por via da violação do princípio in dubio pro reo ou por via do simples não preenchimento do tipo p. e p. pelo artigo 171.°, n.° 1, em ultima ratio, e subsidiariamente, sempre se dirá, que haverá lugar tão só à punição do recorrente por via da alínea a), do n.° 3, do artigo 171.°, que transpõe para a ampla previsão deste preceito o ilícito de importunação, «fattispecie» prevista no precedente artigo 170.º, chamado a regular as situações com menores de 14 anos, no caso do artigo 171.°, pelo que, neste concernente, se imporá a convolação para esta forma típica menos grave.

Nestes termos, deve dar-se provimento ao presente recurso, e,como consequência, determinar-se:

a) a absolvição do arguido, atentos os considerandos de facto e de direito supra explanados; Caso assim não se entenda, deverá tão só ser condenado o arguido/recorrente pelo subtipo de ilícito menos grave, relativo à fattispecie" de importunação, p. e p. pela alínea a), do n.° 3, do artigo 171.°, assim se fazendo a acostumada Justiça!

Respondeu o Ministério Público junto da primeira instância pugnando pela manutenção do decidido.
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Idêntica posição veio a ser tomada pelo Ministério Público junto deste Tribunal.
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Foi cumprido o disposto no nº 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal.
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Após os vistos, prosseguiram os autos para Conferência.
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II.
Cumpre agora apreciar e decidir tendo em conta que o objeto o recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (artigo 412º do CPP), sem prejuízo dos vícios ou nulidades de conhecimento oficioso.
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As questões que o recorrente traz à apreciação deste Tribunal são as seguintes:

-Erro do julgamento dos pontos 1.6, 1.7, 1.8, 1.10, 1.11 e 1.12 da matéria de facto provada.
-Nulidade da sentença por falta de fundamentação, erro notório na apreciação da prova ou insuficiência da matéria de facto para a decisão.
-Subsidiariamente, a subsunção dos factos ao ilícito típico previsto no artigo 171º, nº 3, alínea a) do Código Penal.
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É a seguinte a matéria de facto fixada em primeira instância e respetiva fundamentação:

1.1. - O arguido J. L. contraiu casamento civil com M. G. no dia ... de ... de ..., casamento que foi dissolvido por divórcio decretado por sentença datada de ... de ... de ... e dessa relação nasceu L. A., nascida a … e L. F., nascida a ….
1.2. - No âmbito dos autos de divórcio, foi regulado o exercício das responsabilidades parentais, ficando as menores a residir com a mãe e quinzenalmente a passar os fins de semana com o progenitor, aqui arguido, desde sexta-feira depois do jantar até às 20h00 de Domingo.
1.3. - Desde Maio de 2015 até final de Novembro de 2015, o arguido passou então a contactar com as suas filhas L. A. e L. F. aos fins de semana, de forma quinzenal, quando as mesmas se deslocavam à residência dos pais do arguido, avós paternos das menores, sita no lugar de ..., Arcos de Valdevez, aí pernoitando, de sexta para sábado e de sábado para domingo, dormindo na mesma cama do progenitor, num dos quartos sitos no primeiro andar daquela residência.
1.4. - Sucede que, em dia não concretamente apurado, mas entre o final do mês de Outubro de 2015 e o fim de semana compreendido entre o dia 6 e 8 de Novembro de 2015, em hora não concretamente apurada, mas ao início da noite, após o jantar, as menores encontravam-se no quarto com o pai, onde habitualmente pernoitavam com este.
1.5. - A menor L. A. encontrava-se a brincar, e a menor L. F. encontrava-se sentada em cima da cama, junto aos "pés da cama", e do seu lado esquerdo encontrava-se o pai, na mesma posição, ou seja sentado aos "pés da cama", encontrando-se todos vestidos.
1.6. - De repente, o arguido, com a mão direita aberta, e por cima da roupa que a filha L. F. trajava, colocou a mão em cima da mama esquerda da filha, e apertou-a, apalpando desta forma a mama esquerda da filha L. F..
1.7. - Ato contínuo, a filha L. F. mostrou o seu desagrado ao arguido e retirou a mão do progenitor de cima da sua mama esquerda, dizendo-lhe para parar e estar quieto.
1.8. - Contudo, o arguido voltou a insistir, e novamente colocou a sua mão por cima da mama esquerda da sua filha, apertando-a, apalpando-a novamente.
1.9. - Perante o sucedido, e em estado de pânico a menor L. F. saiu de cima da cama, e abandonou o quarto refugiando-se na casa de banho.
1.10. - O arguido agiu da forma supra descrita com o propósito de satisfazer os seus desejos sexuais e libidinosos, o que representou e conseguiu, e com perfeito conhecimento da idade da sua filha L. F. aquando da prática dos factos, o que não podia ignorar, bem sabendo que a mesma, em razão da sua idade, não tinha a capacidade e o discernimento necessários a tomar qualquer decisão, livre e pessoal, quanto à prática de qualquer acto de natureza sexual como aqueles que praticou sobre a mesma e ainda de que com a sua conduta prejudicava o livre e são desenvolvimento da sua personalidade, aproveitando-se ainda da circunstância ser sua filha e, assim, da confiança que mantinha com a menor e bem assim da sua tenra idade e consequente ingenuidade e fragilidade.
1.11. - O arguido sabia que lhe cabia, na qualidade de pai, cuidar e zelar pelo bem-estar das suas filhas e contribuir para o seu são desenvolvimento psicoafectivo, num ambiente harmonioso e sadio, e não obstante atuou da forma supra descrita em violação daqueles deveres.
1.12. - Em todos os momentos acima indicados, o arguido agiu de modo livre, deliberado e consciente, e com pleno conhecimento de que os seus comportamentos eram proibidos e punidos por lei, e, mesmo assim, não se absteve de assim atuar.
1.13. - O arguido está divorciado; é empregado de mesa auferindo mensalmente o salário mínimo nacional; reside com uma companheira, a qual aufere o salário mínimo nacional; paga 300 euros mensais para amortização de empréstimo bancário; tem 39 anos de idade e o 6.° ano de escolaridade.
1.14. - O arguido não tem antecedentes criminais registados.

2. Factos não provados.

O Tribunal não se pronuncia quanto a juízos conclusivos e/ou de direito e/ou repetidos. Na audiência de julgamento não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a decisão.

3. Motivação da convicção do Tribunal.

Nos termos do disposto no artigo 127.° do Código de Processo Penal, a prova é apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador.

A convicção do Tribunal fundou-se em todos os meios de prova produzidos e examinados em audiência de julgamento, nomeadamente, nas declarações do arguido J. L., nos depoimentos das testemunhas L. F., L. A., M. G., P. C. e G. F..

Não foi feita prova bastante que afaste a genuinidade dos documentos juntos aos autos, pelo que relativamente aos documentos não autênticos (cfr. artigo 169.° do Código de Processo Penal, o qual refere que "consideram-se provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa"), o seu teor pode ser valorado livremente pelo Tribunal, conjugando os mesmos com a demais prova produzida e as regras de experiência.
Assim sendo, o Tribunal teve em consideração os documentos juntos aos autos (designadamente, Auto de ocorrência de fls. 4 e 5; Certidão de fls. 25 a 28; impressão de fls. 147 e 148; informação de fls. 198 dos autos; Certidão de fls. 200 a 217; o teor das consultas na base de dados de registo de bens móveis, na Repartição de Finanças, na Segurança Social e na Conservatória do Registo Predial de fls. 281-283 e plataforma citius, cujo conteúdo se considera aqui integralmente reproduzido; relatório do Órgão de Policia Criminal quanto à situação económico-financeira do arguido e dos seus encargos pessoais de fls. 285 e o certificado do registo criminal junto aos autos a fls. 288).

Valorou-se positivamente a prova pericial junta, i. e., o Relatório de Perícia Psicológica de fls. 139 a 142.

O Tribunal tomou em consideração o teor do relatório social de fls. 159 e 160, elaborado pela DGRS, quanto à inserção familiar e socioprofissional do arguido, com o objetivo de auxiliar no conhecimento da personalidade do arguido - artigos 1º, n.° 1, al. g) e 370.°, ambos do Código de Processo Penal.

Teve-se em consideração o teor da jurisprudência plasmada no Ac. do STJ de 31/05/2006, proc. n.° 06P1412, in www.dgsi.pt, de acordo com a qual "Os documentos juntos aos autos não são de leitura obrigatória na audiência, considerando-se nesta produzidos e examinados, desde que se trate de caso em que a leitura não seja proibida." e no Ac. do TRC de 06/01/2010, proc. n.° 20/05.9TAAGD.C1, in www.dgsi.pt, segundo a qual "É permitida, mas não obrigatória, a leitura em audiência de julgamento dos documentos existentes no processo, independentemente dessa leitura, podendo o meio de prova em causa ser objeto de livre apreciação pelo tribunal, sem que resulte ofendida a proibição legal prevista no art. 355.° do Código de Processo Penal".

Note-se que a prova produzida deve ser analisada atenta a segurança oferecida por cada elemento probatório (considerado individualmente, nomeadamente, quanto à sua credibilidade, isenção e fundamentação da razão de ciência), e bem assim ponderada de acordo com o seu confronto com os demais elementos de prova constantes nos autos (v.g., prova documental, pericial e testemunhal), por forma a que o resultado final não produza uma decisão injusta, insuficientemente segura em termos de corroboração factual, ou incoerente com a realidade e o normal acontecer dos factos.

De referir ainda que a lei não exige que em relação a cada facto se autonomize e substancie a razão de decidir, como também não exige que em relação a cada fonte de prova se descreva como a sua dinamização se desenvolveu em audiência, sob pena de se transformar o ato de decidir numa tarefa impossível (cfr. Ac. do Tribunal Constitucional n.° 258/2001: "não é inconstitucional a norma do n.º 2 do art. 374.º do CPP, quando interpretada em termos de não determinar a indicação individualizada dos meios de prova relativamente a cada elemento de facto dado por assente").

Concretizando, quanto ao arguido J. L., o mesmo referiu que foi acusado injustamente pois "é a mãe, a minha ex-mulher porque eu não pago pensão de alimentos e ela queria".

Negou ter colocado a sua mão no seio da sua filha. Confrontado com as declarações das suas filhas prestadas antecipadamente em inquérito (cfr. declarações para memória futura constantes nos suportes digitais e transcritas a fls. 230 a 253), o mesmo disse que as ouvira e que não correspondem à verdade. Questionado porque razão é que as suas filhas mentiram (no entendimento do arguido), afirmou que foi a mãe delas que as terá influenciado/instruído para dizer o que disseram.

As declarações do arguido foram quase todas sempre no sentido de se queixar do mau relacionamento com a sua ex-esposa, quase olvidando que o julgamento não era sobre isso. As respostas do arguido começaram por ser muito lacónicas e depois de alertado pelo julgador e pelo defensor do arguido para a circunstância que seria benéfico para a sua defesa e para o apuramento da verdade que o mesmo explicasse as suas respostas, o arguido lá foi explicando o seu entendimento sobre os factos, mas sempre a custo e centrando-se quase em absoluto no dito mau relacionamento (com o divórcio e depois com a regulação das responsabilidades parentais e a pensão de alimentos, que não paga há vários anos), e quase nada referindo por iniciativa própria acerca dos factos que constam na acusação.

Nada disse em sua defesa quanto ao telefonema que teve com a sua filha L. F. (ouvido pela testemunha P. C.) em que ela o confrontou com o facto de ter apalpado por duas vezes o seu seio.

Por fim, e sempre respondendo a perguntas diretas, o arguido afirmou que foi verdade que depois do jantar foram os três (o arguido e as suas filhas) para o quarto verem televisão mas que nada do que foi acusado aconteceu. Acrescentou um facto que não foi confirmado (nem sequer referido) por ninguém: "a minha mãe sentou-se aos pés da cama".

Afirmou outro facto que foi contrariado pelos demais: "depois deste fim de semana não notei diferença nas meninas". Ora, tal é contrariado pelo seguinte:

- pelo teor do telefonema que teve com a L. F., em que esta justificando a razão porque não queria ir para a casa do arguido mais a sua irmã, mencionou a circunstância do arguido a ter apalpado no seio, o que não foi negado na altura pelo arguido, antes confirmado, pois referiu que não tinha qualquer mal por ser pai;
- pela circunstância do próprio arguido dizer que depois do fim de semana em causa no início de Novembro e até Maio de 2016 as meninas não voltarem a sua casa (quando até aí passavam todos os fins de semana em sua casa de quinze em quinze dias).

O arguido prestou declarações mas sempre quase telegraficamente. Apresentou-se em julgamento com uma clara vontade de dizer o mínimo possível e com uma firme vontade de se defender da sua ex-esposa, esquecendo ou (no mínimo) menosprezando o facto de apalpar por duas vezes a sua filha. Apresentou sempre um olhar fixo e sereno.

O arguido não foi minimamente convincente nas suas declarações, as quais demonstram uma débil tentativa desresponsabilizadora da sua conduta, pois foram contrariadas frontalmente pelos depoimentos das suas filhas, as quais se mostraram plenamente credíveis nos termos infra expostos.

Foram valoradas positivamente as declarações para memória futura prestadas pelas menores L. F. e L. A. (cfr. fls. 175 e 176, e respetivos suportes digitais e transcritas a fls. 230 a 253), nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal.

De salientar que as referidas declarações foram prestadas presencialmente perante o julgador signatário, o qual percepcionou na sua plenitude o modo como foram prestadas.

Ambas as crianças descreveram, ao seu modo, de forma relativamente tranquila e muito pormenorizada os factos que ocorreram no quarto. Os mencionados depoimentos para além de serem coerentes em si mesmo (ou seja, com toda a versão da testemunha), também foram coerentes entre si (ou seja, analisados ambos os depoimentos, constata-se que não se contrariam), não foram decorados (o que também seria quase impossível considerando as idades das crianças) nem se mostraram influenciados por terceiros (os sentimentos demonstrados enquanto falavam foram genuínos).

Apesar de muito questionadas pelo julgador, pelo Ministério Público e pelo defensor do arguido, as meninas sempre mantiveram o mesmo relato.

De salientar as seguintes declarações da L. F.: "Porque ainda na altura que nós ainda dormíamos lá, tínhamos acabado de jantar e estávamos na cama, no meu quarto, onde nós dormíamos, e depois o meu pai esteve lá muito tempo e a minha irmã mais ou..., eu não me lembro bem se era aos pés da cama, ou em cima aos pés, mas estava mais acima do que o meu pai, e, depois, ele começou-me a pôr assim mão na minha mama, na mama esquerda, e eu estava do lado direito e eu tirei e ele voltou a pôr e, depois, eu saí da beira dele e saí com a minha irmã.

Entretanto fomos à casa de banho e voltamos a ir para a cama, porque já era tempo de estar a dormir, e o meu tio..., o quarto dele era ao lado saiu da cama e disse para o meu pai ir dormir lá e ele fui para o sofá e eu e a minha irmã dissemos ao meu pai que..., como o meu tio tinha saído de lá que podia ir dormir para lá, para o outro quarto ( ... )".

Note-se que o arguido apalpou (ato de apertar com todos os dedos de uma mão o seio da L. F.) por duas vezes (em momentos distintos) a mama da L. F. sem nada dizer (apesar da L. F. lhe dizer para estar quieto; de ser esta a retirar a mão do arguido do seio daquela e não o arguido por iniciativa própria), sem ser em ambiente de jogo/brincadeira e sem ser em situação de acidente (i.e., toque casual ou de raspão).

Mais referiu a L. F. que "Depois chegamos a casa e depois de termos passado aquilo tudo com o meu pai, chegamos a casa e dissemos à minha tia e ela depois disse à minha mãe e a minha mãe foi dizer ao advogado e nós deixámos de ir para o meu pai e passado algum tempo o meu pai..., a minha mãe falou com o meu pai e ele ligou-nos para saber o que é que se estava a passar e ele ligou e disse: - "Ai, o que é que se anda a passar?! Eu ouvi aí dizer que vós não quereis vir ao pai!" E nós dissemos-lhe... E eu disse-lhe, ao meu pai, eu disse que não! Não e tu sabes bem porquê! E ele: - "Ai, porquê?!" Eu contei-lhe e ele vai assim: - "Ai, isso tem algum mal, isso faz algum mal?! Eu sou vosso pai!!".

Por seu turno a L. A. referiu, em síntese, que "Eu lembro-me que nós estávamos na cama e estávamos a brincar, eu estava a brincar com uns bonecos da minha irmã... A minha irmã e o meu pai estavam mais acima e eu em baixo a brincar com os brinquedos e ele estava... Eles estavam a ver televisão e, depois, nós estávamos lá e o meu pai pôs a mão na maminha da minha irmã, na esquerda, e a minha irmã tirou e ele pôs outra vez: Depois a minha irmã saiu e eu fui atrás dela e, depois, nós fomos outra vez para a cama e nós fomos dormir e o meu pai disse que iam..., que ele ia ficar lá para ver televisão, a novela, e nós dissemos que ele..., que ele podia ir para o outro quarto porque o meu tio tinha saído e deixado o quarto vazio que era para ele e ele disse que ao fim de ver a novela que ele se ia embora! Depois ao fim da novela nós dissemos que ele podia se ir embora e, depois, ele disse que só ia esperar para nós começarmos a dormir e, depois, no dia a seguir nós acordamos e ele estava deitado ao nosso lado de boxers. . ."; "...Depois fomos para a casa da minha mãe e dissemos à minha madrinha e depois a minha madrinha telefonou à minha mãe e disse à minha mãe"; ". . .Ele tinha a mão aberta e pôs-lha na mama, e a minha irmã tirou-a, e ele pôs outra vez na mama e nós saímos".

Mais referiu que "Depois a minha mãe ligou para o advogado e o advogado..., e a minha mãe disse ao advogado que ele fez isso à minha irmã e, depois, ela também disse ao advogado que nós não queríamos ir para o meu pai e, depois, nós telefonamos..., nós telefonamos ao meu..., nós quando fomos para o meu pai, o meu pai disse: - "Ah, eu ouvi dizer que vós que não querias vir para o pai!" E nós dissemos que: sim! E ele disse: - "Ai, e porquê?!" E a minha irmã disse: - "Tu bem sabes porquê, tu sabes o que é que me fizeste!" E ele disse: - "O quê L. F.?!" E a minha irmã disse-lhe: - "Ai não sabes que me apalpaste a maminha e, depois, eu tirei-te e tu voltaste a apalpar!"... "Ai, mas eu sou vosso pai e podia fazer isso!" "... Tínhamos um bocado de medo que ele tornasse a fazer isso!".

P. C. (divorciada, doméstica, residente em …, Arcos de Valdevez), disse conhecer o arguido, mas que está zangada com ele "porque ele é malcriado e tentou me agredir"; mais referiu que "estou com as meninas, porque a mãe as pôs na minha casa, a mãe bebia, não cuidava das miúdas em condições"; "foi a própria L. F. que me contou no primeiro fim de semana de novembro, ele disse que o pai lhe tinha apalpado a maminha, quis falar comigo sozinha"; a testemunha reproduziu gesticulando o que na altura a L. F. também fez para lhe mostrar como o ora arguido tinha feito ("ele pôs a mão esquerda na maminha... ela tirou-lhe a mão, ele voltou a por a mão e ela tirou"); mais lhe contou a L. F. que depois do pai lhe apalpar segunda vez levantou-se e foi para a casa de banho.

Mais referiu que "elas não gostam de ir para o pai porque ele está sempre a dizer mal da mãe"; "ela ficou com medo do pai, mesmo medo, não queria ir", "ela com 10 anos já tinha um bocadinho de peito", "elas começaram a resmungar por o pai querer dormir na mesma cama, ele disse-lhes que só queria acabar de ver a telenovela, elas adormeceram e quando acordaram o pai estava na cama de boxers".

Mais relatou uma situação que presenciou (e que confirma os factos que lhe foram contados previamente pela L. F.): o ora arguido telefonou para a L. F., que atendeu em alta voz, e quando ele lhe perguntou porque não queria ir para a casa deste, a L. F. disse-lhe prontamente que ele bem sabia porquê, porque lhe apalpara a maminha, o que não foi negado pelo ora arguido (que nem sequer tentou explicar ou transmitir um enfoque não sexual ao ato físico de apalpar a mama), antes referindo que isso não tinha mal pois era pai.

Esta testemunha prestou um depoimento sereno, transmitindo ao tribunal apenas o que sabia, sem cair na tentação de dizer mais do que isso, nem relatando factos que demonstrassem apenas uma vontade de prejudicar o arguido. Foi plenamente credível.

M. G. (divorciada, empregada de balcão, residente na Rua …, Arcos de Valdevez; disse ser ex-esposa do arguido) referiu que "ver eu não vi, eu só sei o que elas me contaram", "elas primeiro contaram à minha prima, a P. C., e a minha prima contou-me" (tal foi confirmado pelas testemunhas L. F., L. A. e P. C.).

Relatou ao tribunal o que as suas filhas na altura lhe contaram, descrevendo pormenorizadamente os factos e a sucessão temporal dos mesmos, o que se mostra no essencial compatível não só com os depoimentos das meninas L. F. e L. A. mas também com o relato de P. C..

Esta testemunha resolveu desabafar em julgamento, contando o mau relacionamento que teve e tem com o arguido (não só enquanto esposo mas também depois do divórcio). Referiu que enquanto eram casados o arguido "ele queria ter relações todos os dias... ele apalpava-me à frente das miúdas as partes genitais e o peito..

Mais referiu que ouviu o telefonema que o arguido fez para a L. F., por estar em alta voz. Tal foi pouco tempo depois do fim de semana em causa nos presentes autos. 0 arguido queria saber porque as filhas não queriam ir passar o fim de semana na casa dele, ao que a L. F. lhe respondeu que era porque o que ele fizera, por ter apalpado a mama. O arguido não negou e respondeu que não tinha mal por ser o pai.

Referiu que as meninas estão ao cuidado da sua prima P. C. porque teve problemas com o consumo de álcool assim como o seu companheiro e o arguido não se interessava pelas crianças. Mais referiu uma declaração deveras infeliz: que não podia ter as filhas pois tem um emprego das 13h às 20h.

G. F. (casada, reformada, residente na Rua …, Braga), disse conhecer bem o arguido e que dos factos nada sabe; acha que se trata "de um plano engendrado pela mãe [das crianças] e talvez da pessoa com quem as meninas estão"; sabe que a progenitora tem problemas de alcoolismo; acha que o arguido é um homem trabalhador e muito cuidadoso em relação às filhas.

A dúvida sobre a responsabilidade é a razão de ser do processo. Efetivamente o processo nasce porque uma dúvida está na sua base. No caso concreto, após a realização do julgamento nenhuma dúvida razoável persiste sobre os elementos essenciais do crime em análise. Com efeito, dos depoimentos conjugados resultou, no essencial, o apuramento seguro dos factos que constam no elenco dos factos provados (circunstâncias de modo de ocorrência, tempo e lugar), e a identidade do delinquente.

É certo que o arguido J. L. faltou à verdade, mas a mentira, a ocultação de factos ou o depoimento parcial são realidades que, infelizmente, o tribunal presencia quotidianamente em audiência de julgamento, pelo que a ocorrência das mesmas não obsta (nem pode obstar), só por si, a que o tribunal decida com justiça no caso concreto, desde que filtre a contradições e aproveite os factos que com segurança sejam transmitidos e se coadunem com a realidade e as regras de experiência, por forma que a matéria fáctica não fique inquinada com dúvida relevante ou falta de prova.

Dos depoimentos conjugados das supra mencionadas testemunhas que o tribunal plenamente credíveis resultou, no essencial, a confirmação das circunstâncias espácio temporais em que o abuso sexual ocorreu, a dinâmica do mesmo e as consequências psicológicas.

No que concerne ao elemento subjetivo, a comprovação do mesmo em qualquer ilícito faz-se, ou pela confissão do agente, ou pela existência de elementos fácticos objetivos dos quais aquele elemento se extrai por aplicação das regras da experiência e do normal acontecer dos factos.

No caso concreto em análise a comprovação do elemento subjetivo resultou, sobretudo, da conjugação das declarações do arguido (em especial no que se refere às suas contradições) e dos depoimentos das testemunhas L. F., L. A., M. G. e P. C., dos demais elementos documentais constantes nos autos (em especial o Relatório de Perícia Psicológica de fls. 139 a 142), e das regras de experiência e do normal acontecer dos factos, uma vez que se afigura sobejamente conhecido que a ação do arguido ao abusar do corpo da ofendida do modo com está exarado nos factos provados implica o preenchimento do crime em questão.

A comprovação da situação pessoal, familiar e profissional do arguido decorreu das declarações deste; do relatório do Órgão de Policia Criminal quanto à situação económico-financeira do arguido e dos seus encargos pessoais, e do teor das consultas na base de dados de registo de bens móveis, na Repartição de Finanças, na Segurança Social e na Conservatória do Registo Predial.

A respeito da inexistência de antecedentes criminais do arguido, foi determinante o teor do certificado do registo criminal junto aos autos.

Finalmente, na parte em que os factos não resultaram provados, tal circunstância deve-se quer à inexistência ou insuficiência de prova produzida, quer à circunstância de se terem provado factos contrários.
*
Apreciando.

O arguido, que negou a acusação, entende que foram mal julgados os pontos que constituem o cerne da condenação e que respeitam ao facto de ter apalpado por duas vezes, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, um dos seios da sua filha L. F., ao tempo com 10 anos. Defende que os mesmos não deveriam ter sido julgados provados, quer porque “não existe suporte testemunhal claro e inequívoco que esclareça como é que ocorreu o suposto toque no corpo da menor, com que intensidade e intuito”; quer porque a conduta do arguido não pode ser inserida numa “querença libidinosa de vida e indesmentível perante a filha; quer porque todas as circunstâncias de vida e personalidade do arguido militam a favor da completa ausência de desejo libidinoso em relação às filhas que chegou a dormir com as filhas e a dar-lhes banho sem que algo de anómalo acontecesse”.

Analisa depois, a favor do seu entendimento, os depoimentos da mãe da menor, da testemunha L. A., da testemunha G. F. e, bem assim, o comportamento processual do julgador, embora deles não retire concretamente as razões pelas quais se impunha, no seu entender, decisão diversa.

Antes de mais, impõe-se dizer que os atos pelos quais o arguido foi condenado, a terem ocorrido, foram entre ele e a filha. Portanto, mais importante que considerações ou depoimentos laterais aos factos, importa analisar quer o que disse o arguido, quer o que disse a filha e, bem assim, o modo como o fizeram, apreciados à luz da experiência da vida e das relações familiares e demais circunstâncias trazidas aos autos.

O arguido negou os factos e, em resumo, descreveu o que foi a sua boa relação com as filhas “com quem dormia abraçado” a “quem chegou a dar banho” “que eram muito agarradas a ele, com que depois deixou de ter o contacto de antes, porque elas deixaram de ir para o pai e a quem não vê desde Agosto”.

Refere ainda que tudo isto é uma vingança, v.g. da sua ex-mulher porque ele não paga pensão de alimentos, ou então da pessoa com quem as meninas estão a viver (madrinha da mais nova) que não tem filhos e queria ficar com as crianças, que, por isso, terão sido manipuladas.

O depoimento do arguido foi, com pormenor, referido na fundamentação da matéria de facto da sentença recorrida pelo que não se impõe, aqui, repeti-lo. Certo é que no entender do arguido, as crianças não tinham razão de queixa do pai e que a motivação para a denúncia não partiu delas, v.g. da filha L. F., mas de terceiros.

Ocorre, contudo, que a versão do arguido é contrariada por outros elementos do processo, que se impõe escalpelizar.

Desde logo o facto de a opinião das crianças maxime da filha mais velha sobre o pai não ser a que ele transmitiu no julgamento. Veja-se o que consta do relatório da perícia médico-legal de fls 139 e ss, onde é patente que a ofendida vê o pai como alguém que é violento “ele costumava bater à minha mãe na nossa frente e nós a vermos… puxava-lhe os cabelos… às vezes dava-lhe murros nas costas, no peito, nós dizíamos para parar (…) atirou o telemóvel da minha mãe ao chão (…) bateu-lhe dentro do carro (…)”.
“Ele chamava nomes, … filha da puta… porca, vaca e esses nomes”
“Ele chegou a bater à minha irmã”.

Não é fácil para uma criança desenvolver sentimentos de sólido afeto para com alguém que exerce violência, mesmo que não seja sobre si mesma. E também não é fácil para um pai violento desenvolver uma relação de cumplicidade afetuosa com as filhas.

Percebe-se, pois, a afirmação da criança quando diz “quando vamos lá para cima ele nunca está connosco… não gosto de ir ao pai … ele vai para o quarto dele e não brinca connosco… põe-se a ver televisão e a dormir…

Acresce que, como foi dito pelo pai em julgamento, não paga pensão de alimentos às filhas. Portanto, nem as filhas cresceram em condições de desenvolver um sentimento de sólido afeto para com o pai, nem este demonstra na prática, sentimentos genuínos de interesse paternal para com as filhas. Um pai que se interessa verdadeiramente pelo bem estar das filhas não exerce violência sobre elas ou à frente delas, nem fica anos sem pagar pensão de alimentos, por muito poucas possibilidades que tenha (e acredita-se que pudesse ter dificuldades, até porque estando a fazer uma casa – como foi dito em julgamento – certamente todos os rendimentos se tornam exíguos.)

Mas também a sua versão de que “tudo isto” é uma vingança ou da mãe das menores, ou da pessoa com quem elas estão, não tem fundamento.

Desde logo porque, até mais que pelo pai, pela mãe é transmitida uma imagem de desinteresse pelas menores. Com a desculpa de que o horário de trabalho (das 13h às 20h) não lhe permite estar com as menores, entregou-as a outra pessoa para delas cuidar. Não é preciso ser mãe para perceber o quanto isto é chocante!

E não só não cuida, como nem sequer cumpre com rigor o regime das visitas (fls 56).

Assim sendo, como de facto, infelizmente, é, esta mãe, apesar de ter apresentado queixa, nunca se daria ao trabalho de inventar os factos em apreço, já que a vida e o crescimento das filhas junto de si, é-lhe indiferente.

Vejamos, agora, a tese de vingança pela perspetiva da pessoa a quem as menores foram confiadas, especialmente, no dizer do recorrente, com o intuito de obter alguns meios financeiros.

Desde logo há a considerar o facto de não ter sido deduzido pedido de indemnização civil nos autos, não se percebendo, portanto, que haja qualquer tipo de interesse financeiro a motivar a queixa apresentada.

Por outro lado, a situação financeira provada do arguido também não permite afirmar que ele disponha de uma capacidade financeira que resulte apelativa para quem quer que seja. Acresce que, se algum dinheiro pudesse ser obtido, ele não chegaria sequer para compensar os vários anos e vários milhares de euros em falta a título de pensão de alimentos.

Certo é que ouvido o depoimento da testemunha P. C. percebe-se nela genuinidade, já que não esconde que não gosta do arguido, que o acha “violento”, “mal educado” e que “está zangada com ele desde 2012”. Não se revela uma pessoa dissimulada e explica, claramente, por que razão acabou por ficar com as meninas a seu cargo.

Quanto aos factos, retira-se, também, do seu depoimento que não deixou de, inicialmente, questionar a menor sobre se estava a mentir por ser “muito grave” o que ela dizia, até que ouviu o telefonema em voz alta em que, confrontado pela filha com o que lhe tinha feito, ouviu o arguido dizer “Isso tem algum mal?”. E esclareceu que não foi só ela que ouviu, como se percebera já do depoimento da mãe das menores, que também referiu o telefonema.

É, aliás, neste contexto que se percebe que tivesse dito às menores que só iam a Tribunal relatar os factos, não com o sentido que o recorrente lhe atribuiu de induzir o depoimento de crianças, mas de as tranquilizar, uma vez que não havia motivo para ficarem ansiosas ou nervosas com a ida a Tribunal. Aliás, a menor também disse que a madrinha lhes disse que “era para dizer sempre a verdade”.

Por outro lado, ouvida a menor, percebe-se que o que disse não foi inventado. O depoimento da menor mostrou-se totalmente credível, porque se afigurou espontâneo, genuíno, coerente nada havendo que permita duvidar da sua veracidade, como, aliás, foi referido pelo Tribunal de 1ª instância.

A propósito do valor a atribuir ao depoimento da menor e afastado que está no nosso ordenamento jurídico o aforismo “testis unus, testis nullus”, há que ter em conta que em matéria de crimes sexuais as declarações do ofendido têm um valor especial, dado o ambiente de segredo que rodeia o cometimento dos crimes (quase sempre em privado e sem testemunhas) e muitas vezes - como é o caso - sem deixar vestígios que permitam a realização de uma perícia (cfr Acórdão da Relação de Guimarães de 12.04.2010 in www.dgsi.pt; Acórdão da Relação do Porto de 06.03.1991, in CJ, XVI, Tomo 2, 287; Acórdão da Relação de Coimbra de 09.03 .2005 in CJ XXX, tomo 2, 36).

E as declarações da ofendida mereceram esse valor especial, valor, aliás, reconhecido pelo recorrente ao classificá-lo de “irrepreensível” na sua motivação de recurso. É certo que faz a afirmação da irrepreensibilidade do depoimento para afirmar que foi preparado, mas tal não resulta minimamente consistente, como já atrás ficou dito.

Portanto, pelo exposto, não há razão para que excluir da matéria de facto provada os pontos 1.6, 1.7, 1.8, 1.10, 1.11 e 1.12, como pretendido pelo recorrente.

De igual modo, pelo que fica dito se vê, também, que os invocados vícios determinantes da nulidade da sentença por falta da fundamentação, por erro notório na apreciação da prova ou por insuficiência da matéria de facto para a decisão, também se não verificam.

A falta de fundamentação manifestamente não existe. O Tribunal a quo explicou a razão pela qual fundou a sua convicção, fê-lo de forma coerente e detalhada. É certo que o recorrente discorda da fundamentação, mas tal não permite afirmar a que a fundamentação seja inexistente ou insuficiente.

Como insuficiente também não é a matéria dada como provada.

O vício constante da alínea a) do artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal ocorre quando os factos apurados e constantes de sentença impugnada são insuficientes para a aplicação do direito – segundo as várias soluções plausíveis para a decisão – apesar de terem sido alegados pela acusação, pela defesa, ou resultarem da discussão da causa.

Não alega o recorrente em que é que no seu entender se traduz a invocada insuficiência da matéria de facto, mas não se descortina que faltem quaisquer factos integrantes dos elementos objetivo e/ou subjetivo do tipo de crime - como melhor adiante se verá - ou das condições pessoais, ou outros necessários à decisão.

Como igualmente não se reconhece que haja erro notório na apreciação da prova. O erro (notório) na apreciação da prova (artigo 410º , nº 2, alínea c) do Código Processo Penal) é aquele que “se vê logo”, que é facilmente detetado pelo homem médio. É o erro que evidencia que as regras da experiência e da lógica normal de vida, foram violadas pelo raciocínio exposto no texto da decisão. Mas o vício terá que constar do teor da própria decisão, não da motivação dessa decisão, ou da fundamentação de direito (Ac. STJ de 02.02.2011 in ww.dgsi.pt).

Tal como relativamente ao vício anteriormente invocado também o recorrente não diz em que se traduz o erro notório na apreciação da prova. E ele, de facto, não existe. O raciocínio é exposto de forma lógica. Lendo a sentença recorrida, qualquer pessoa percebe a condenação.

Não ocorre, portanto, qualquer vício que determine na nulidade da sentença recorrida.
*
Passemos, então, à apreciação do último segmento do recurso para que, a final, se perceba se é correta a qualificação jurídica feita pelo Tribunal a quo e se estamos perante um crime de abuso sexual de menor ou, antes, se se verifica uma situação de importunação sexual de menor de 14 anos, como pretende o recorrente.

O recorrente foi condenado pela prática de um crime de abuso sexual de menor previsto e punido pelo artigo 171º nº 1 e 177 nº 1 a) do Código Penal.

Dispõem estas normas que:

1. Quem praticar ato sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
2. (...)
O crime é agravado nos termos do artigo 177º de 1/3 nos seus limites mínimo e máximo se a vítima for ( ... ) descendente.

Os crimes sexuais são crimes contra as pessoas e contra o valor da liberdade e autodeterminação sexual e assim passaram a sê-lo após a revisão do Código Penal de 1995. Efetivamente até aí eram considerados crimes contra valores e interesses da vida em sociedade.

O crime imputado ao arguido destina-se também ele a proteger a autodeterminação sexual sob uma forma particular, a da conduta de natureza sexual que, em face da pouca idade da vítima, pode, mesmo sem coação, prejudicar o livre desenvolvimento da sua personalidade (cfr. F. Dias in Comentário Conimbricense, 541).

A lei presume que a prática de atos sexuais com menor, em menor ou por menor de certa idade, prejudica o seu desenvolvimento enquanto pessoa porque o exercício da sexualidade, nos primeiros anos de vida condiciona, ou pode condicionar, o seu desenvolvimento equilibrado. Na infância, as experiências sexuais são sempre de evitar, porque a infância é tempo para ser criança. As manifestações de afeto das crianças nada têm de sensual e é na sua pureza que têm de ser respeitados e retribuídos pelos adultos.

Importa, então, definir o que se deve entender por ato sexual e por ato sexual de relevo. Trata-se de conceitos que acarretam, na sua definição, alguma polémica. No dizer do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.10.1996 in CJ, STJ, IV, tomo 3, 170, que se refere a título de exemplo, "ato sexual é aquele que tem uma relação com o sexo (relação objetiva) se reveste de certa gravidade e é praticado com intenção de satisfazer apetites sexuais" .

De todo o modo, o tipo está limitado pelo uso de expressão restritiva de relevo, até porque o direito criminal, como ratio ultima implica que só seja tutelada a liberdade sexual contra ações que revistam certa gravidade.

No Comentário Conimbricense (Tomo 1, 447 a 449) o Professor Figueiredo Dias diz que, na determinação deste conceito três posições, a este respeito, podem ser defendidas: a interpretação objetivista, também defendida por Paulo Pinto de Albuquerque, segundo a qual constitui ato sexual de relevo típico aquele que, atenta a sua manifestação externa, revela uma conexão com a sexualidade; uma outra que exige, não só a conotação objetivista, como ainda a subjetivista, traduzida na intenção do agente de despertar ou satisfazer, em si ou em outrem, excitação sexual, que o mesmo é dizer, libidinosa; uma última conceção, menos exigente, defende que o conceito pode ser integrado tanto pela sua aceção objetivista como subjetivista.

Ultrapassando polémicas, o professor Figueiredo Dias define ato sexual como todo aquele que de um ponto de vista predominantemente objetivo, assume uma natureza, um conteúdo ou um significado diretamente relacionados com a esfera da sexualidade e, consequentemente, com a liberdade de determinação sexual de quem o sofre ou o pratica" ( ... ) e explica que ao exigir que o ato sexual seja de relevo a lei impõe ao intérprete que afaste da tipicidade não apenas os atos insignificantes ou bagatelares, mas que investigue do seu relevo na perspetiva do bem jurídico protegido (...); é dizer, que determine - ainda aqui de um ponto de vista objetivo - se o ato representa um entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima". Ficam, pois, excluídos do tipo, seguindo os ensinamentos do insigne Professor, atos que, embora passados e em si significantes por impróprios, desonestos, ou de mau gosto, todavia, pela sua pequena quantidade, ocasionalidade ou instantaneidade não entravem de forma importante a livre determinação sexual da vítima.

Como o legislador, na reforma penal de 2007, não esclareceu quais as modalidades típicas de ação que pretendia incriminar como contacto de natureza sexual com relevo penal, fica à mercê do intérprete, - usando palavras da Professora Anabela Miranda -“…estabelecer a fronteira entre o contacto de natureza sexual com e sem relevância penal”. E, assim sendo, relevante para a determinação do conteúdo e significado do caráter sexual do ato pode ser também o circunstancialismo de lugar, de tempo, das condições que o rodeiam e que o faça ser reconhecível pela vítima como sexualmente significativo.

É interessante verificar – uma vez que se está perante uma situação de abuso no seio familiar - que à luz da LPCJP (Lei 147/99 de 01.09) o abuso sexual pode ser caracterizado como um tipo de práticas que o menor, dado o seu estádio de desenvolvimento não consegue apreender e para as quais não está preparado, às quais é incapaz de dar o seu consentimento informado e que violam a lei, os tabus sociais e as normas familiares, atos estes que estão fora do carinho e afeto que deve existir na família, que ultrapassam a fronteira entre ternura e abuso e que visam tão só a satisfação ou gratificação do adulto.

E se há atos em relação aos quais não há quaisquer dúvidas de que tenham o relevo exigido pelo art. 171 do Código Penal, outros há que se situam numa zona de fronteira entre o abuso sexual e a importunação sexual, ou mesmo, na fronteira entre a importunação e o mau gosto ou a boçalidade.

Certo é que até na apreciação de gestos desta natureza, se constata alguma mutabilidade resultante do facto de os pressupostos essenciais para a vida em sociedade se irem modificando com o decorrer dos tempos, fruto afinal da própria historicidade existencial do homem (cfr. Karl Prelhaz Natscheradetz in O Direito Penal Sexual: conteúdo e limites, citando Rudolphi e Polaino Navarrete, Livraria Almedina, 1985, fls 114).

Impõe-se, pois, para determinar quais as condutas sexuais que ofendem o bem jurídico protegido, tomar em consideração elementos culturais, hábitos, costumes e convicções sexuais maioritariamente vigentes na sociedade numa dada época (ob. cit, fls 146).

Mas se é assim com grande número de comportamentos de índole sexual, não o é quando está em causa o relacionamento entre pais e filhos. Entre pais e filhos não pode, nem nunca pôde – mesmo que se recue, por exemplo, às Ordenações Filipinas, L 5º, Tit 17 - existir relacionamento sexual. Aos pais exige a sociedade que na fase da inexperiência, da curiosidade, da fragilidade de aquisições éticas que carateriza a infância e a adolescência, os pais sirvam de referência, de amparo e, até, de modelo. Quando são os que têm o dever de vigilância ou especial respeito para com a vítima, - como é o caso dos pais para com os filhos- que abusam, o abuso é intolerável pela perversidade que encerra, pela confusão de sentimentos que origina. E por isso a lei responde a estes comportamentos com a agravação das penas para os crimes, quando praticados por ascendentes.

O recorrente, provou-se, apalpou por duas vezes um seio da sua filha de 10 anos, cujo corpo começava a transformar-se.

Não acompanhou o gesto com palavras, não lhe atribuiu características de uma brincadeira de mau gosto. A criança pediu-lhe na primeira vez que estivesse “quieto” e ele repetiu o gesto. O seio, mesmo que o não fosse ainda para a criança, era, para o pai, homem adulto, uma zona erógena do corpo feminino.

Com aquele repetido gesto, o arguido desrespeitou a sua filha, quando ambos estavam na cama e a criança sentiu-se desrespeitada. Aquele gesto não foi só um apalpão fugaz praticado por um estranho… a criança atribui-lhe gravidade, teve relevância, constituiu, portanto, um ato sexual de relevo.

Entende o recorrente que se tratou apenas de um ato de importunação sexual.

O crime de importunação sexual, que foi objeto de alteração legislativa em 2015 (Lei 83/2015 de 05.08) operada para responder à Convenção de Istambul, destina-se a outro género de condutas, - que causam incómodo, que apoquentam, que transtornam a vítima ao nível da sua liberdade sexual, - mas de gravidade muito menor.

Dispõe o artigo 170º do Código Penal: “Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de caráter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

Trata-se de uma norma que previne comportamentos sexualmente indesejados por quem os sofre, entre adultos que, quando transpostos para o relacionamento com crianças de idade inferior a 14 anos, passam a constituir também abuso sexual de crianças (artigo 171º nº 3 alínea a) do Código Penal).

E assim é porque, se relativamente aos adultos é o valor da liberdade sexual que é protegido, já em relação a crianças é o valor da autodeterminação sexual que a lei pretende acautelar.

Ora o que está em causa nos gestos punidos na sentença recorrida vai para lá dos conceitos de incómodo ou transtorno típicos da importunação sexual. Não foram simples contactos de natureza sexual. Foram afirmações sem palavras, de um homem que se esqueceu que é pai daquela criança, o que torna o gesto - já de si ofensivo pela invasão de intimidade, - intolerável.

A qualificação jurídica da sentença recorrida não poderá, portanto, também neste segmento ser alterada.

III.
DECISÃO.

Em face do exposto decidem os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães negar provimento ao recurso, mantendo a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se em 4 Ucs a taxa de Justiça.
Notifique.
Guimarães, 17 de dezembro de 2018

(Maria Teresa Coimbra)
(Cândida Martinho)