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CRIME DE FURTO
REQUISITOS DA QUALIFICAÇÃO
VALOR
Sumário
I) Para que alguém possa ser condenado por crime de furto qualificado é não só necessário que da acusação ou da pronúncia constem factos que integram a previsão da respetiva circunstância qualificativa, mas também que dela resulte inequivocamente que o valor do furto é superior à unidade de conta.
II) Sempre que não for notório que os bens valiam mais do que a unidade de conta, nem se fizer prova bastante do valor dos bens, não pode o arguido ser condenado por mais do que um crime de furto "simples".
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:
I. RELATÓRIO
- 1. No processo comum, com intervenção de Tribunal Colectivo, com o nº 67/17.2JABRG, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, no Juízo Central Criminal de Viana do Castelo – Juiz 1, foi proferido novo acórdão a 29.10.2018, com a seguinte Decisão (transcrição):
“Pelo exposto, e na procedência parcial da pronúncia, os juízes que compõem o tribunal colectivo:
- absolvem o arguido B. F. da prática de um crime de roubo agravado;
- condenam o arguido B. F., pela prática de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos arts. 131.º, 132.º, n.º 1 e n.º 2, g), 22.º e 23.º do Código Penal, na pena de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão, e de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 204.º, n.º 2, f) e n.º 1, b), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;
- em cúmulo jurídico, condenam o arguido na pena única de 9 (nove) anos de prisão;
- mais condenam o arguido nas custas da parte crime, com 4 UC de taxa de justiça;
- determinam o cumprimento do art. 186.º, n.º 3, Código de Processo Penal, na pessoa do arguido, quanto ao telemóvel “Samsung”, bateria e cartão, ao cartão de suporte e ao casaco de homem castanho escuro apreendidos nos autos.
Nos termos do art. 213.º, n.º 1, b), Cód. Proc. Penal, por se mostrarem inalterados – e até reforçados pelo teor do presente acórdão – os pressupostos de facto e de direito que deram lugar à aplicação da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, determina-se, sem necessidade da respectiva audição, que o arguido continue a aguardar os ulteriores termos do processo sujeito a tal medida (art. 215.º, n.º 1, d), e n.º 2, Cód. Proc. Penal).
Boletins à Identificação Criminal.
Notifique, deposite e, após trânsito, envie cópia à DGRSP.”
- 2. Não se conformando com essa decisão o arguido interpôs recurso oferecendo as seguintes conclusões (transcrição):
“A)DA DESQUALIFICAÇÃO DO CRIME DE FURTO QUALIFICADO
1-No crime de furto deu o Tribunal como provado que, Facto 10- ….”tendo levado consigo a quantia de €90,00 e o telemóvel da empresa ao qual estava associado o cartão da operadora de comunicações NOS, com o nº. … e IMEI …, de valor não concretamente apurado mas superior a €12,00…” 2-Ora é desde logo incompreensível o valor atribuído ao telemóvel. 3-Nem na Acusação nem no douto Acórdão são sequer aludidas ou referidas as caracteristicas do telemóvel. 4-Aliás se algo que resulta da prova gravada é exactamente que o telemóvel não tem valor de mercado, não é um smarthphone mas sim um mero telemóvel com vários anos, que diz nos a experiência comum nem sequer tem valor de mercado, sendo que já não são sequer vendidos tais telemóveis nas lojas de artigos de 2º mão. 5-E assim bem andou o Tribunal face à ausência de outros elementos valorativos a referir que o telemóvel era de “valor não concretamente apurado”. 6-Ora sendo o telemóvel de “valor não concretamente apurado” não podemos tirar daí a conclusão de que este valia mais de 12 euros meramente para atingir os propósitos da unidade de conta. 7-Não resulta sequer da Acusação quanto mais da prova produzida as características do telemóvel usado que permitam sustentar que este valia x ou y quanto mais referir-se que este valia mais de 12 euros. 8-De resto sempre seria uma obrigação do Tribunal proceder a um exame ao telemóvel para lhe atribuir um valor especifico nos termos do artigo 171 do C.P.P sendo que não o fazendo e vindo mais tarde sem sequer se compreender porquê ou qual o raciocínio que teve por base, referir que o telemóvel valia mais de 12 euros, incorre o Tribunal em Erro notório sobre a apreciação da prova . 9-Entre outros Acórdãos cumpre chamar à colação aqui o Ac. da Relação de Évora de 21.10.2014,disponívelemhttp://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/c78d19e0c9f9a1b280257de10056ff28?OpenDocument “Erro notório na apreciação da prova” é o que é evidente para qualquer indivíduo de médio discernimento e deve resultar do texto da sentença conjugado com as regras da experiência comum.
Nos termos expressivos do acórdão do STJ de 12-11-1998, o erro na apreciação da prova só pode resultar de se ter dado como provado algo que notoriamente está errado «que não pode ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras de experiência comum, sendo o erro de interpretação detectável por qualquer pessoa.» BMJ481-325).
Erro notório na apreciação da prova é aquele de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio facilmente dele se dá conta.»(Ac.STJ,de9.12.98,BMJ482-68).
Ocorrerá esse vício no caso em apreço?
Parece-nos evidente a resposta afirmativa por mera leitura (e audição) da decisão recorrida.
Ou seja, os bens objecto de furto deveriam ter sido “avaliados” no decurso da realização de um “exame” que os descrevesse fisicamente e concluísse pelo seu valor para efeitos de integração jurídica.
Apesar da liberdade de prova e da liberdade de apreciação da prova, os meios de prova previstos pelo C.P.P. devem ser utilizados de forma vinculada, isto é, devem ter-se como obrigatórios em termos de necessidade e credibilidade probatória, quando a situação de facto o exige.
E aqui exige a realização de exame com avaliação já que esse é o meio de prova mais adequado para a prova de factos – valores – essenciais à subsunção jurídica, é uma necessidade que não pode ser substituída.
Desta forma, a convicção judicial é, no caso concreto, criticável em sede de erro de apreciação factual.
10-Assim temos que o arguido furtou 90 euros e um telemóvel de valor não concretamente apurado. 11-Nos termos do artigo 204 nº. 4 do Código Penal “ Não há lugar à qualificação se a coisa ou o animal furtados forem de diminuto valor.” 12-Valor diminuto é aquele que que não exceder uma unidade de conta no momento da prática do facto nos termos do disposto no art.202 c) do C.P. , ora a unidade de conta para 2017 é de 102 euros e realmente apurado nos autos resulta que o arguido furtou 90 euros e um telemóvel de valor não concretamente apurado. 13-Desta forma temos que o crime deve ser desqualificado e punido o arguido com a pena prevista para o furto simples. 14-Como bem refere a este respeito, entre muitos outros, o Ac. da Relação de Coimbra de 02.04.2014disponívelemhttp://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/816f76d5c3070ad480257cb7004b990f?OpenDocument
“Não se apurando em concreto os valores dos bens que os arguidos tentaram furtar, tem que em seu favor funcionar o benefício da dúvida e não concluir, como na sentença que os arguidos não queriam bens de valor inferior a 1UC.
Embora haja entendimento diferente sufragamos o expendido no acórdão do STJ de 10.12.1997 (www.dgsi.pt/jstj) onde se entendeu que deve beneficiar-se o arguido e considerar diminuto o valor da coisa:
“Não se conseguindo determinar o valor dos objetos subtraídos pelo arguido, tem de concluir-se, em benefício daquele, que o mesmo é insignificante e diminuto, o que exclui a qualificação do furto, nos termos do disposto pelos artigos 297 nº 3 do CP de 1982 e 204 n. 4 e 202 alínea c) do CP de 1995”.
E ainda nesse entendimento podemos citar o acórdão da Relação do Porto de 15.04.2009 (www.dgsi.pt) que onde é dito:
“Desconhecendo-se o valor dos bens objeto de tentativa de furto, a dúvida sobre se o valor de tais bens é ou não diminuto, porque se refere a um elemento de facto, tem de solucionar-se a favor do arguido, em obediência ao princípio “in dubio pro reo”, considerando-se ser esse valor diminuto e, em consequência, a tentativa de furto simples”.
E o Ac. da Rel. de Évora de 12-06-2012, no processo nº 330/10,3GDPTM.E1, refere, “Desconhecendo-se o valor dos bens objecto de tentativa de furto, a dúvida sobre se o valor de tais bens é ou não diminuto, porque se refere a um elemento de facto e o reenvio do processo para novo julgamento nada alteraria, tem de solucionar-se a favor do arguido, em obediência ao princípio “in dubio pro reo”.”
B) DA NÃO EXISTÊNCIA DA TENTATIVA DE HOMICIDIO QUALIFICADO
15-Vem o arguido condenado pelo crime de homicídio qualificado na forma tentada tendo para o efeito usado de dolo eventual afirmando o Tribunal que “Este comportamento deve ser censurado com uma pena severa”(3º Parágrafo in fine , da penúltima página do Acórdão). 16-Desde logo temos que em muitos ordenamentos jurídicos do mundo ocidental nem sequer existe crime de homicídio qualificado na forma tentada quando está em causa o dolo eventual pelo que razão temos para colocar uma pena menos severa do que aquela que caberia com dolo directo ao inverso daquilo que pretende o Tribunal. 17-No nosso próprio ordenamento jurídico nem sequer é unânime na jurisprudência e na doutrina que exista crime de homicídio qualificado na forma tentada quando está em causa o dolo eventual. 18-Como nos refere Maia Gonçalves, “Não há tentativa no contexto do dolo eventual, porque o art. 22 do Código Penal português expressamente se refere à prática de atos de execução de um crime que decidiu cometer, logo, não pode o agente ter assumido o risco.” 19-Como resultou provado o arguido desferiu um único golpe no ofendido, (Facto provado nº.5) 20-E em consequência da actuação do arguido , não resultou , em concreto , perigo para a vida do ofendido. (Facto provado nº.27) 21-Arguido e ofendido, passageiro e taxista estão sentados lado a lado nos bancos da frente de um automóvel. 22-Como ficou provado o arguido desferiu um golpe com um objecto tipo navalha/canivete que acabou por atingir o pescoço do ofendido que no mesmo momento da acção do arguido colocou um braço em frente tendo em resultado dessa acção o arguido sido atingido de forma superficial no pescoço como resulta do próprio relatório de medicina legal e demais documentos hospitalares junto ao autos. 23-Ora face, à posição em que se encontram, ao movimento defensivo do ofendido é evidente que o arguido acabou por atingir de raspão o pescoço do ofendido como podia ter atingir qualquer outra parte do corpo sendo que atingiu o pescoço em consequência do movimento defensivo do ofendido acabando o objecto cortante por atingir aquela parte do corpo. 24-O arguido efectuou “um golpe” de onde resultou um único ferimento do ofendido. 25-Se realmente o arguido pretendesse atentar ou prevesse atentar contra a vida do ofendido, não seria expectável que o arguido tivesse perpetrado outros golpes que levariam a vários ferimentos? 26-No nosso entendimento o Tribunal confunde o dolo de perigo de ofensas corporais graves com o dolo de morte e não ficou provado que como refere a doutrina “que quase necessariamente aquele tipo de ofensas provoca a morte.” 27-Pelo que não se percebe a fundamentação do Tribunal nem tão pouco são apresentados quaisquer motivos para imputar ao arguido a intenção a título de dolo eventual para o crime de homicídio na forma tentada. 28-Resultou provado que o arguido estava munido com um “objecto de natureza tipo navalha/canivete” e ainda de “uma arma de fogo de características não apuradas” e que disse ao ofendido “corre sem olhar para trás. Vou contar até 10. Senão dou-te um tiro.” 29-E assim armado o arguido não teve qualquer outro movimento que seja percepcionado como atentatório da vida do ofendido. 30-Bem pelo contrário, podendo atentar contra a vida do ofendido escolheu o arguido voluntariamente não o fazer dizendo-lhe “corre sem olhar para trás”. 31-Ora perante este circunstancialismo temos que afirmar que o arguido não atentou contra a vida do ofendido, nem sequer com dolo eventual. 32-O arguido não só não teve nenhum atentatório da vida do ofendido como podendo tal fazer escolheu voluntariamente deixar o arguido ausentar-se do local da prática do crime dizendo-lhe”corre sem olhar para trás” o que o ofendido fez pelo que mesmo que entendêssemos que anteriormente no momento em que efectuou um movimento com um objecto cortante o tivesse atingido preenchendo assim um dolo eventual sempre teríamos que em momento posterior o arguido teria desistido voluntariamente.
C) DA DESISTÊNCIA VOLUNTÁRIA DA TENTATIVA
33-Mas ainda que considerássemos que existe dolo eventual sempre temos que perante este circunstancialismo existe uma desistência voluntária da tentativa! 34-Verificou-se que o arguido voluntária e espontaneamente abandonou a execução do crime(Homicidio) isto é, omitiu a prática de mais actos de execução. 35-Como nos refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (AcSTJ de 26/3/1998, Proc. n.º 1511/97)”Assim, a desistência é relevante, quando o arguido, ainda que não se saibam os verdadeiros motivos subjectivos, retrocede no seu plano criminoso, podendo livremente optar por prosseguir na sua execução em vez de retroceder.” 36-A tentativa deixa de ser punível nos termos do artigo 24nº.1 do Código Penal quando o agente voluntariamente desistir de prosseguir na execução do crime , ora decorre dos factos dados como provados que assim se verificou, o arguido munido de armas deixou o ofendido ausentar-se do local do crime dizendo-lhe ”corre sem olhar para trás” .
D) DA QUALIFICAÇÃO DO CRIME DE HOMIDICIO NA FORMA TENTADA COM DOLO EVENTUAL
37-Vem o arguido condenado pelo crime de homicídio na forma tentada qualificado por entender o tribunal que existiu por parte do arguido uma especial censurabilidade na prática do mesmo. 38-Para o efeito fundamenta o Tribunal que “Ora , tendo o arguido usado de uma violência que só por acaso não matou ofendido, tudo com o objectivo – insignificante,comparado com o bem vida- de , a seguir,lhe poder furtar o dinheiro e o telemóvel (tudo no valor de pouco mais de uma centena de euros),é evidente que isso revela uma especial censurabilidade prevista no corpo do mesmo nº.2.” 39-Ora não se percebe que violência está o tribunal a falar quando estamos a falar de um único movimento do arguido que foi defendido pelo ofendido e que em consequência dessa acção acabou por causar um ferimento superficial no pescoço do ofendido que em momento algum correu perigo concreto de vida. 40-Como é que pode este comportamento em concreto do arguido, que o Tribunal até considerou como sendo com dolo eventual ser tido por especial censurabilidade? 41-É um completo oximoro dizer-se que o arguido com dolo eventual cometeu um crime de homicídio na forma tentada qualificado por especial censurabilidade é um verdadeiro contra-senso! 42-É óbvio que aqui não existe especial censurabilidade, o que até foi referido durante a audiência e julgamento pelo Dignissimo Procurador do Ministério Público aguardando-se com expectativa a sua posição sobre este desiderato em resposta às presentes alegações. 43-O tribunal praticamente limita-se a referir que como foi para executar a prática do crime tal faz operar automaticamente o artigo 132nº. 2 g , quando não é essa a intenção do legislador no artigo 132º , pretendendo aqui o legislador sobretudo censurar aqueles actos que revelem especial censurabilidade ou perversidade pelo que não se pode referir ou generalizar que tal apenas porque existe preparação , facilitação , execução de outro crime quando pelas circunstâncias do crime em concreto, como se vê no presente caso, se verifica até o dolo eventual , um único golpe , e a falta do perigo concreto para a vida do ofendido entre as demais circunstâncias do crime já descritas .
E) QUESTÃO DA IMPUTABILIDADE DIMINUIDA
44-Conforme resulta da prova produzida e dos factos dados como provados :
“20-À data dos factos , o arguido era toxicodependente , com uma adição à cocaína. 23- O contacto do arguido referido em 2. foi feito do telemóvel do arguido para a central de táxis. 24- O arguido chamou o táxi para uma rua muito próxima do seu local de residência. 25-Era habitual o arguido chamar esta empresa de táxis para o transportar em trajectos idênticos. 26-A rua referida em 4. era o local onde habitualmente o arguido recebia os produtos estupefacientes, sendo sua intenção telefonar ao respectivo fornecedor e aí ser fornecido de droga.” 45-O arguido alegou que praticou os factos com uma forte ressaca e com o seu raciocínio limitado e orientado por esta forte compulsão para o consumo e as perícias médicas efectuadas confirmam essa possibilidade. 46-O tribunal ignorando todo o circunstancialismo decorrente da prova que deu como provado afastou essa capacidade diminuída pela impressão do ofendido acerca de uma mera conversa de meia dúzia de minutos entre o arguido e o ofendido. 47-Só uma pessoa muito alterada:
-Liga do seu próprio telefone,
-Para a companhia de táxis que costuma utilizar nestes trajectos,
- Chama o táxi para uma rua muito próxima da sua residência,
-Para o transportar para o local onde habitualmente recebia os produtos estupefacientes. 48-Quem é que no seu estado normal e com a intenção de cometer um crime tem este comportamento? Ninguém! 49-Este é o comportamento revelador de alguém em desespero, de total desconsideração pelo crime que está prestes a cometer, o arguido está unicamente motivado para satisfazer as suas prementes necessidades de consumo desconsiderando qualquer planeamento ou reflexão sobre o acto que pretende executar. 50-Pelo que face à prova produzida deveria o tribunal dar como provado a imputabilidade diminuída do arguido na prática dos crimes.
F) DA MEDIDA DA PENA
51- O arguido viu a sua pena erradamente agravada pelo facto de não se ter entregue às autoridades. 52-Conforme consta dos autos o arguido desde que foi abordado pelas autoridades policiais , desde logo colaborou com estas, e sempre desde este 1º momento, passando pelo 1º interrogatório judicial , até à audiência final , confessando no essencial a prática dos factos em causa , ou seja , a prática de um assalto do qual resultaram ferimentos para o ofendido. 53-Solicitado para o efeito, participou voluntariamente o arguido em diligências de reconstituição efectuadas pela Policia Judiciária a quem prestou toda a colaboração, colaboração essa reconhecida em audiência e julgamento pelo Inspector J. F. que reconheceu expressamente que o arguido tinha sido “muito colaborante” , conforme constam das suas declarações gravadas. 54- O arguido tem a pena agravada por existir um especial alarme social dado que o crime foi cometido em Viana do Castelo ao contrário de outro meio mais populoso. 55- Desde logo há que referir que não existe nenhuma referência na acusação a um especial alarme social, nem tal decorre de algum dos factos dados como provados ou de resto da própria audiência ou prova produzida. 56-O entendimento que o Tribunal faz que pelo mero facto do crime ter sido praticado em Viana do Castelo e não numa cidade mais populosa tal impõe uma pena mais severa , tem desde logo uma premissa errada e ainda que assim não fosse semrpe seria um entendimento contrário à Constituição por ser violador , entre outros , do principio da igualdade . 57-Viana do Castelo é uma capital de Distrito, uma cidade com todos os elementos urbanos comuns a qualquer das outras maiores cidades Portuguesas. 58-É contrário à constituição que se considere que existe um maior alarme social pelo facto do crime ser praticado em Viana do Castelo ao invés de ser praticado no Porto ou Braga cidades que distam pouco mais de 60 kms e se utilize esse raciocínio para punir mais severamente um crime considerando-se que existe em abstracto um alarme social superior.
A favor do arguido e não considerados pelo Tribunal temos que :
59--O tempo decorrido desde a prática dos factos e a ausência de conhecimentos de novos crimes, sendo que o crime foi cometido a 20 de Janeiro de 2017. 60- O facto de que “em consequência da actuação do arguido, não resultou, em concreto, perigo para a vida do ofendido” (facto provadonº.27) 61-O comportamento do arguido enquanto em reclusão “Durante os dois meses de reclusão à ordem deste processo, o arguido manteve um comportamento adequado no estabelecimento prisional.” (Facto provado nº.28) 62- O comportamento do arguido no cumprimento da medida de coacção obrigação permanência na habitação , “Não há registos de incidentes no cumprimento da obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica nestes autos”. (Facto provado nº.29) 63- O facto de que “o arguido tem uma oferta de trabalho uma empresa de construção civil”. (Facto provado nº.30) 64- O arguido pediu desculpas ao ofendido na própria audiência e por carta remetida “ ao ofendido onde refere lamentar as lesões que lhe causou e a intenção de o ressarcir.” (Facto provado nº.31) 65- O facto de que desde logo que se encontrou em reclusão, o arguido agiu no interesse da sua ressocialização , “o arguido solicitou à DGRSP a sua integração em projectos de formação.” (Facto provado nº.32) 66- Não se percebe o porquê do tribunal constatar que “Apesar de reiterar o seu arrependimento e a sua integração anterior” veio a dar como não provado o arrependimento do arguido , que se constata nos autos por várias vezes e que deve ser levado em conta. 67- A colaboração do arguido para a descoberta da verdade, o arguido colaborou com as autoridades, prestou declarações tendo desde o 1º momento em que foi abordado pela Polica Judiciária, confessando no essencial o crime perante aquele órgão de Policia criminal ,em sede de 1º interrogatório judicial, em sede de instrução ,e mesmo em sede de audiência e julgamento em tudo colaborando na investigação chegou mesmo o arguido a efectuar diligência de reconstituição dos Autos a pedido da Policia Judiciária, tudo como consta dos autos . 68- O arguido nunca antes tinha sido condenado a uma pena de prisão constando do seu registo criminal apenas uma condenação referente à prática do crime de falsificação de boletins,actas ou documentos, crime que se refere a uma situação em que o arguido falsificou a assinatura do próprio pai num contrato de compra e venda para vender uma motorizada daquele e pelo qual foi condenado na pena de 90 dias de pena de multa, que foi cumprida.´ 69- A baixa/pouca intensidade do Dolo no crime de homicídio na forma tentada. 70- O arguido encontra-se integrado em termos sociais vivendo com os pais, como provado no facto 20 em fine “Actualmente , dispõe do apoio do agregado de origem , cujos elementos se têm constituido como fundamentais para a sua estruturação pessoal, mostrando-se disponíveis para o continuar a apoiar no seu processo de ressocialização.” 71- Como foi dado como provado no facto 20- “aquando da sua reclusão, o arguido foi encaminhado para acompanhamento especializado à toxicodepência, acabando por ter alta clinica por se encontrar abstinente…” (sendo certo que o tribunal recusou as respectivas perícias médico legais requeridas pelo arguido na contestação que provariam que na presente data se encontra igualmente abstinente e não valorou o depoimento do arguido e da testemunha por este arrolado nesse sentido) 72- O valor diminuto dos bens em causa (90,00 euros e um telemóvel de valor não apurado) 73- Como provado no último paragráfo do facto provado 20º , “O arguido é capaz de , em abstracto , elaborar um juízo de censura , e identificar os factos como um desvio às normas legais em vigor…” 74- E deve ser tido em conta o relatório de perícia médico legal efectuada ao arguido que refere que basicamente que estamos perante um individuo normal, não violento, que praticou os factos com base numa situação de ressaca de consumo de estupefacientes:
Fls 6“Exame do Estado Mental 75-O examinado manteve uma postura adequada ao contexto , monstrando ter a clara noção do teor da perícia e aceitando colaborar de forma livre. 76-Tem um contacto muito afável e educado… 77-Mantém um bom nível de linguagem expressiva e compreensiva e mostra-se congruente no seu discurso. Não apresenta alterações da forma nem do curso do pensamento. 78-No entanto quando aborda os factos descritos nos autos mostra-se francamente incomodado sendo evidente que o facto de não se lembrar de parte dos factos o perturba bastante.
Fls 7“Resultados da Avaliação da Personalidade 79 Durante a avaliação da personalidade realizada , as escalas clinicas apresentam valores normativos,não existindo nem na avaliação clínica efectuada nas entrevistas,nem na avaliação formal,nenhum indicador psicopatológivo de relevo.
Fls.7 Conclusões 80-Concluida a perícia constata-se que o examinado não apresenta qualquer comprometimento cognitivo ou indicador psicopatológicvo grave, para além do seu quadro de toxicodependência … 81-O examinado à data da perícia refere estar abstinente e mantém um contacto adequado e afável. 82-Mantém um discurso congruente e reage de forma adaptativa quando confrontado na entrevista , interagindo sem indicadores de agressividade. 83-Sobre os factos descritos nos autos o examinado mostra-se incomodada por não se lembrar de vários aspectos que lhe foram perguntados … 84-O examinado estaria há cerca de três dias sem consumir crack , mantenho apenas consumos de haxixe e de álcool. Descreve de forma congruente os sintomas de abstinência desta droga e verbaliza o seu desespero “da ressaca”. 85-Durante a privação de crack que experimentava a sua ideia objectiva seria a de conseguir dinheiro para consumir novamente, perdendo o foco de todas as outras questões em seu entorno. Ao que acrescem os elementos referidos pelo Tribunal mas não devidamente valorados: 86- O facto de que em causa está o dolo eventual, 87-A ausência de antecedentes criminais em crimes contra as pessoas.(que deve ser visto em conjunto com as circunstâncias de vida do arguido, dado que como ficou provado o arguido nasceu em 14 Março de 1983 e que era “toxicodependente desde a adolescência” (facto provado nº.21), ora numa vida inteira de consumo de drogas teve aqui o arguido o único episódio em que esteve em causa violência. 88- o baixo prejuízo causado . 89-o seu historial de toxicodependência e debilidade económica. 90-É certo que os crimes de furto e homicídio tentado que o arguido vem condenado têm autonomia jurídica e merecem penas parcelares próprias, na sua avaliação conjunta descortina-se uma “unidade” de acção que se deve reflectir numa menor censura quanto à pena única. De resto o arguido apresenta sinais positivos de uma futura reintegração. 91-Acresce que punir o arguido com 9 anos de prisão significa que estamos a efectuar uma punição muito próxima daquela que em muitos casos é aplicada em homicídios simples efectivamente concretizados pelo que será esta mesmo a mensagem que queremos passar? A mensagem de que matar uma pessoa ou tentar matar uma pessoa ainda por cima em dolo eventual é praticamente igual em termos de punição?
G) DA SUSPENSÃO DA PENA DE PRISÃO
92-No próprio relatório social para determinação da pena conclui-se por “Face ao exposto, avaliam estes serviços que a inversão do seu trajecto vivencial depende actualmente da sua vontade e da sua capacidade em manter uma conduta estável, assente no pressuposto basilar de se manter abstinente e da obtenção de actividade laboral estruturada “ 93-Ora como foi dado como provado, facto nº.20 , “aquando da sua reclusão , o arguido foi encaminhado para acompanhamento especializado à toxicodependência, acabando por ter alta clinica por se encontrar abstinente…” e no facto 30º “O arguido tem uma oferta de trabalho numa empresa de construção civil”. 94-O arguido é jovem e a condenação a uma pena de prisão de 9 anos é altamente estigmatizante e limitadora da sua reintegração na sociedade devendo ser imposta uma pena de prisão inferior a 5 anos e suspensa na sua execução. 95-As exigências de prevenção em geral e especial e de ressocialização do arguido, bem com a necessidade de protecção dos bens jurídicos violados, não implicam no caso sub judice, que ao mesmo deva ser aplicada uma pena de prisão efectiva , dado que estão verificadas as exigências para a realização de forma adequada e suficiente das finalidades da punição pelo que deveria o arguido ser condenado em pena de prisão suspensa na sua execução. 96-Face às circunstâncias do caso em concreto, à personalidade do arguido, considera a defesa que deve ser ponderado a suspensão da pena de prisão com as injunções de o arguido comprovar que está a trabalhar e que se encontra abstinente durante o tempo de suspensão da pena.
A Sentença do Tribunal “ a quo” violou assim entre outras, as disposições previstas nos arts. 410 nº2 a) c) , 374, 375 ,e 171º todos do C.P.P. ; 13 nº1 e 2, 32. nº1 ambos CRP e ;14 nº.3, 22 nº2 b) , 22 nº.1, 23 nº.2, 132 nº.1, 132 nº2 g), 204 nº.4 , 40 nº 1 e 2 , 50, 51, 71 ,72,72 nº.2 c) e d) todos do C.P.
NESTES TERMOS e nos mais de Direito que V.Exas. melhor e mais doutamente suprirão deve ser concedido provimento ao Recurso interposto, nos termos exarados, revogando-se a Douta Sentença recorrida, substituindo-a por uma que considere como não provado que o arguido tenha cometido um crime de homicídioqualificado na forma tentada e não provado igualmente um crime de furto qualificado.
E assim será feita a Costumada JUSTIÇA!”
3. O Exmº Procurador-Ajunto respondeu ao recurso.
Concluiu que “não há qualquer razão atendível seja de carácter pessoal ou resultante da prova produzida a propósito dos factos que autorize uma diminuição da culpa, uma atenuação em função de uma qualquer menor gravidade relativa na actuação do mesmo nem muito menos a justificação para a suspensão de pena de prisão nas circunstâncias concretas e perante a gravidade dos factos e culpa do arguido.”
E terminou entendendo que “não assistindo razão ao arguido recorrente deverá ser mantida a decisão em causa por ausência de violação e qualquer disposição legal, mormente as apontadas pelo recorrente.”
- 4. Nesta instância, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de “negar-se provimento ao recurso do arguido e confirmar-se a decisão recorrida.”
- 5. No âmbito do disposto no artº 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, o arguido apresentou resposta, concluindo que “deve ser concedido provimento ao Recurso interposto, nos termos exarados, revogando-se a Douta Sentença recorrida, substituindo-a por uma que considere como não provado que o arguido tenha cometido um crime de homicídio qualificado na forma tentada e não provado igualmente um crime de furto qualificado.”
- 6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no disposto no artº 419º, nº 3, al. c) do citado código.
II – FUNDAMENTAÇÃO
O objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, ou seja, as cominadas com nulidade de sentença, com vícios da decisão e com nulidades que se não encontrem sanadas (artºs 379º e 410º, nºs 2 e 3 do Código de Processo Penal), de harmonia com o disposto no artº 412º, nº 1, do mesmo diploma e, nomeadamente, a jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ nº 7/95, de 19.10, publicado in D.R. I-A Série de 28.12.1995 (acórdãos do STJ de 25.06.1998, in BMJ nº 478, pg. 242; de 03.02.1999, in BMJ nº 484, pg. 271; e de e de 12.09.2007, no proc. nº 07P2583, in www.dgsi.pt; Germano Marques da Silva, em “Curso de Processo Penal”, Vol. III, pgs. 320 e seg; e Simas Santos/Leal Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 3ª edição, pg. 48.
Invoca o recorrente as seguintes questões:
– Desqualificação do crime de furto qualificado;
- Inexistência da tentativa de homicídio qualificado;
- A qualificação do crime de homicídio na forma tentada com dolo eventual;
- A imputabilidade diminuída;
- A medida da pena e a suspensão da pena de prisão.
II. 1. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO CONSTANTE DO ACÓRDÃO RECORRIDO
- A) - Factos Provados (transcrição):
“1. L. C. é taxista, exercendo funções na empresa “Táxis F.”, com sede em …. 2. No dia .. de … de …, às 22:40 horas, o arguido contactou a empresa “Táxis F.” solicitando um transporte de ..., em Viana do Castelo, em frente ao Pingo Doce, com destino ao Cais Novo, em Darque, Viana do Castelo, com vista a apoderar-se de todas as quantias monetárias que o taxista que ali comparecesse tivesse em seu poder, uma vez que o arguido era consumidor de produtos estupefacientes e tinha dificuldades em lograr dinheiro para adquirir produto para seu consumo, tanto mais que se encontrava desempregado. 3. Na sequência do contacto do arguido, L. C. recebeu indicações da Central de Táxis para prestar o serviço e de imediato deslocou-se ao local, conduzindo o veículo “Seat” com a matrícula …, onde o aguardava o arguido. 4. Conforme combinado, o arguido foi transportado por L. C. até à Rua …, Viana do Castelo e, após o viaduto ferroviário, aquele ordenou que este encostasse a viatura, ao que L. C. acedeu, informando-o que o valor dos serviços perfazia um total de € 11,50. 5. Nesse momento e sem que nada o fizesse prever, o arguido de imediato retirou do bolso do casaco um objecto de natureza tipo navalha/canivete e desferiu um golpe no pescoço de L. C., tendo este colocado um braço em frente ao pescoço, impedindo, assim, de ser totalmente degolado. 6. Após, o ofendido – apesar de sangrar abundantemente – conseguiu imobilizar o arguido contra a porta do pendura, sendo que este conseguiu abrir a porta. 7. Em seguida, o arguido empunhou uma arma de fogo de características não totalmente apuradas e/ou réplica da mesma e afirmou “Está quieto. Dá-me tudo”. 8. Após, o arguido, enquanto mantinha empunhado o objecto referido em 7., disse ao ofendido “Corre sem olhar para trás. Vou contar até 10. Senão dou-te um tiro”. 9. Perante tal atitude, pela forma séria e determinada como o arguido proferiu as mencionadas palavras e empunhou tal objecto na sua direcção, o ofendido, intimidado e temendo pela concretização de mais um acto lesivo da sua integridade física ou da sua vida, correu em direcção a uns prédios localizados a seguir ao viaduto onde tinha parado o veículo. 10. De seguida, o arguido tentou conduzir o veículo, mas abandonou o mesmo alguns metros mais à frente, tendo levado consigo a quantia de € 90,00 e o telemóvel da empresa ao qual estava associado o cartão da operadora de comunicações NOS, com o n.º … e IMEI …, de valor não concretamente apurado mas superior a € 12,00, ficando o ofendido na posse do seu telemóvel pessoal. 11. Quando já se encontrava abrigado nuns prédios existentes no local, o ofendido contactou telefonicamente o seu patrão M. F., dando-lhe conta do sucedido e pedindo-lhe auxílio, o qual foi ao seu encontro e o levou para receber assistência médica. 12. Em consequência da conduta do arguido, resultou para o ofendido uma cicatriz aderente e dolorosa com 10 x 5 cm na face lateral do pescoço em região supraglótica e, como consequências permanentes, cicatriz retráctil e stress pós-traumático. 13. As lesões referidas em 12. são susceptíveis de determinar um período de 120 dias para a consolidação médico-legal, sendo 3 dias com afectação da capacidade de trabalho geral e 101 dias com afectação da capacidade de trabalho profissional. 14. Ao golpear o pescoço do ofendido, sabia o arguido que tal conduta era susceptível de provocar lesões graves e mesmo a morte daquele, conformando-se com a possibilidade da sua acção poder causar a morte do ofendido, e agindo no propósito de se apropriar de bens que sabia não lhe pertencerem, trazendo aquando da prática do crime um objecto de natureza cortante tipo navalha/canivete e arma de fogo e/ou réplica da mesma, cujas características conhecia. 15. Com esta conduta visou o arguido facilitar a subtracção dos objectos referidos em 10. 16. O arguido, recorrendo ao uso de uma arma e/ou réplica da mesma, fez com que o ofendido abandonasse o veículo em que circulava, bem como o local em que se encontrava. 17. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram puníveis por lei penal. 18. À data dos factos, o arguido tinha já sido condenado, em Setembro de 2015, em pena de multa substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade (entretanto cumprida), por crime de falsificação de boletins, actas ou documentos praticado em Março de 2014. 19. O arguido cresceu num agregado composto pelos pais (ele operário nos estaleiros navais de … e ela empregada de limpeza) e uma irmã, entretanto autonomizada, em Viana do Castelo, com dinâmica familiar estruturada e laços de afectividade. Face aos horários de trabalho dos pais, estes nem sempre terão sido capazes de assegurar uma supervisão eficaz do arguido, que desde cedo revelou dificuldades em cumprir as regras veiculadas. O percurso escolar do arguido foi marcado por desinteresse e desmotivação, com três retenções entre o 5.º e o 7.º ano e duas sanções disciplinares de suspensão na escola. Aos 16 anos, abandonou os estudos, apenas com o 7.º ano e, contra a vontade dos pais, começou a trabalhar de forma irregular na construção civil. Aos 18 anos, por intermédio do pai, passou a trabalhar nos estaleiros navais de …, onde esteve três anos como pintor naval. Entretanto, através de concurso, foi admitido como operário na empresa eólica de …, onde esteve durante seis anos. Nesse contexto laboral, o arguido conheceu uma colega, com quem começou a namorar, tendo horários idênticos; nos primeiros dois anos, a companheira pernoitava algumas vezes na casa dos pais do arguido, mas entre 2011 e 2013 o casal viveu maritalmente num apartamento arrendado na …, Chafé. Porém, dificuldades de relacionamento, que o arguido não enquadra nos seus problemas aditivos, terão ditado o fim do relacionamento, regressando o arguido a casa dos pais. Em 2013, alegadamente por dificuldades em aceitar o fim do relacionamento afectivo e uma vez que trabalhavam juntos, o arguido demitiu-se da empresa; desde então, nunca mais exerceu actividade de forma estruturada e regular, tendo feito uma tentativa de emigração em 2015 durante 3 meses, para França, numa empresa de montagem de painéis solares, mas sem sucesso, alegadamente devido às más condições de trabalho. Em Portugal, foi integrado num curso de formação profissional na área da Jardinagem, que o habilitou com o 9.º ano. O arguido iniciou o consumo de substâncias aditivas aos 16 anos, circunscrevendo-o a momentos de lazer e ao grupo de pares; a intensificação dos consumos surgiu por volta dos 18 anos, passando rapidamente para cocaína e heroína. Durante alguns anos, o arguido terá conseguido conciliar o consumo de drogas com o desempenho laboral e ocultar a situação aos familiares. Entre 2007 e 2008, começou a evidenciar comportamentos desajustados, culminando com o recurso ao CRI de Viana do Castelo para tratamento de desabituação. Segundo os familiares, no período desse tratamento o arguido apresentou um comportamento estável, com rotinas centradas na vida familiar. Com o fim do relacionamento afectivo e apesar de o tratamento se manter, o arguido recaiu no consumo de substâncias aditivas, com comportamentos de maior agressividade, instabilidade e retirada de objectos de valor aos pais como forma de sustentar a dependência, circunscrevendo as suas rotinas à satisfação das suas necessidades pessoais e ao convívio com grupos de pares conotados com práticas associais. À data dos factos, o arguido vivia com os pais numa moradia geminada T3, adquirida por estes com recurso a crédito bancário, cujo pagamento foi concluído há cerca de 1 ano, inserida em meio sem problemáticas sociais relevantes e dotada de condições de conforto. A dinâmica familiar caracterizava-se por um padrão de relacionamento instável e tenso, cuja origem reside nos consumos de estupefacientes por parte do arguido, que tem comportamentos agressivos para com os pais, nomeadamente com pedidos ilimitados de dinheiro e de objectos de valor, com o intuito de satisfazer as suas necessidades e as do grupo de amigos, e que resultaram em queixa apresentada pelos pais no órgão de polícia criminal da área de residência. Com quadro depressivo, os pais do arguido beneficiam de acompanhamento especializado ao nível da psiquiatria e psicologia. À data dos factos, o arguido encontrava-se desempregado, com a subsistência assegurada pelo rendimento dos pais (€ 1.200,00 da reforma do pai e € 155,00 da pré-reforma da mãe), o que se mantém; a mãe do arguido presta cuidados de saúde ao marido, na sequência de dois AVC sofridos por este. O agregado gasta cerca de € 600,00 mensais em água, luz, gás e medicação. Aquando da sua reclusão, o arguido foi encaminhado para acompanhamento especializado à toxicodependência, acabando por ter alta clínica por se encontrar abstinente, situação que refere manter na actualidade, não avaliando como necessário qualquer tipo de acompanhamento. Como perspectivas futuras, o arguido refere ter possibilidade de colocação laboral numa empresa de montagem de postes de alta tensão, o que está condicionado pela sua situação processual. O arguido é capaz de, em abstracto, elaborar um juízo de censura e identificar os factos como um desvio às normas legais em vigor, reconhecendo o impacto negativo que esta situação tem gerado no seio familiar. Durante o período de execução da obrigação de permanência na habitação com recurso a vigilância electrónica, o arguido manteve uma conduta na sua globalidade normativa. Em caso de condenação, o arguido manifesta adesão ao cumprimento de uma medida de execução na comunidade. Actualmente, dispõe do apoio do agregado de origem, cujos elementos se têm constituído como fundamentais para a sua estruturação pessoal, mostrando-se disponíveis para o continuar a apoiar no seu processo de ressocialização.
(Da contestação)
20. À data dos factos, o arguido era toxicodependente, com uma adição à cocaína. 21. Tinha estado em tratamentos no CRI de Viana do Castelo durante mais de 6 anos, período no qual raramente consumiu drogas, sendo toxicodependente desde a adolescência. 22. O arguido começou novamente a consumir produtos estupefacientes em meados de Dezembro de 2016. 23. O contacto do arguido referido em 2. foi feito do telemóvel do arguido para a central de táxis. 24. O arguido chamou o táxi para uma rua muito próxima do seu local de residência. 25. Era habitual o arguido chamar esta empresa de táxis para o transportar em trajectos idênticos. 26. A rua referida em 4. era o local onde habitualmente o arguido recebia os produtos estupefacientes, sendo sua intenção telefonar ao respectivo fornecedor e aí ser fornecido de droga. 27. Em consequência da actuação do arguido, não resultou, em concreto, perigo para a vida do ofendido. 28. Durante os dois meses de reclusão à ordem deste processo, o arguido manteve um comportamento adequado no estabelecimento prisional. 29. Não há registo de incidentes no cumprimento da obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica nestes autos. 30. O arguido tem uma oferta de trabalho numa empresa de construção civil. 31. A 23 de Março de 2018, o arguido remeteu carta ao ofendido onde refere lamentar as lesões que lhe causou e a intenção de o ressarcir. 32. Após a aplicação de prisão preventiva, o arguido solicitou à DGRSP a sua integração em projectos de formação.”
- B) – Factos Não Provados (transcrição):
“(Da acusação)
- Que, após a informação referida em 4., o arguido tenha afirmado “caro, isto é caro”;
- que o arguido tenha abandonado o veículo por não o conseguir conduzir;
- que o ofendido tenha entregue ao arguido o dinheiro e o telemóvel referidos em 10.;
- que da conduta do arguido tenha resultado, em concreto, perigo para a vida do ofendido;
(Da contestação)
- que, à data da prática dos factos, o arguido estivesse afectado por uma forte ressaca que lhe toldava o raciocínio e lhe limitava e determinava a vontade, dada a ausência de consumo de drogas;
- que o referido em 22. tenha acontecido pelo facto de o arguido deixar de ter as consultas e os tratamentos no CRI, com as doses de metadona, por ter tido um acidente de bicicleta com lesões e por ter perdido o emprego por causa disso;
- que, a 20 de Janeiro de 2017, o arguido não consumisse produtos estupefacientes nem o substituto metadona há vários dias;
- que, dada a abstinência, o arguido se encontrasse, a 20 de Janeiro de 2017, com uma ansiedade extrema, insónias, suores frios, dores musculares, agitação, perturbação emocional, falta de clareza de raciocínio, capacidade diminuída e quadro de desespero;
- que o arguido fosse conhecido de vista dos taxistas da empresa referida em 2.;
- que a ideia do arguido fosse de, quando o taxista chegasse ao local, pegar na carteira, abrir a porta e fugir com o dinheiro;
- que, depois de ter aberto a porta do veículo, o arguido tenha logo adquirido e consumido produtos estupefacientes em local próximo, debaixo da ponte velha de Viana do Castelo;
- que, mais tarde, o arguido tenha atravessado a ponte e consumido mais produto estupefaciente junto à Praça de … de Viana do Castelo, tendo aí desfalecido e acordado cerca das 5/6 horas da manhã;
- que em momento algum o arguido tenha pretendido ou previsto exercer qualquer tipo de violência contra o taxista;
- que o arguido tenha pegado na carteira que se encontrava no táxi e que, nessa altura, o ofendido o tenha encostado contra o vidro da porta da frente do lugar do passageiro e o tenha esbofeteado;
- que o golpe referido em 5. tenha sido desferido em consequência dessa bofetada;
- que o objecto aludido em 5. tivesse lâmina inferior a 6,5 cm e com 2 mm de espessura, e uma mola já sem força para a prender;
- que o ofendido tivesse o arguido preso de movimentos, manietando-o;
- que o arguido tenha golpeado o ofendido para se tentar soltar deste;
- que em momento algum o arguido tenha pretendido acertar no pescoço do ofendido ou atentar contra a vida deste;
- que o objecto referido em 5. tivesse 8 cm e que fosse também composto por uma lima, uma tesoura e um saca-rolhas;
- que o arguido não seja uma pessoa violenta, tenha bom relacionamento com a sociedade e os seus vizinhos e que trabalhe em biscates na área da construção, pintura e bricolage;
- que aqueles que lidam com o arguido tenham deste a ideia de uma pessoa calma e pacata e de um bom trabalhador;
- que não seja conhecida ao arguido qualquer altercação física com outra pessoa;
- que a actuação do arguido para com o ofendido tenha sido um acto isolado;
- que o arguido não constitua um perigo para a sociedade e não seja agressivo;
- que o arguido seja calmo e controlado;
- que o arguido já não seja consumidor de produtos estupefacientes;
- que não subsistam motivos para crer que o arguido voltará a incorrer nos mesmos comportamentos criminais;
- que o arguido tenha uma óptima relação com os pais, auxiliando-os na doença;
- que o arguido esteja arrependido dos actos que praticou.”
- C) – Fundamentação (transcrição):
“A convicção do tribunal assentou na análise crítica da prova produzida, à luz das regras de experiência comum.
O esteio fundamental dessa prova foi o depoimento lúcido, coerente e sério do ofendido L. C., que reportou em detalhe todo o sucedido, desde a recolha do arguido, passando pela viagem no táxi e pelo que aconteceu depois de chegarem: a forma como foi atingido pelo objecto cortante na posse do arguido e, já fora do táxi, o uso pelo arguido daquilo que lhe pareceu ser uma arma de fogo. Este depoimento pautou-se por enorme rigor – o que é difícil numa situação tão extrema –, concisão e segurança, não se escusando o ofendido, quando não tinha a certeza de algo ou não sabia, de afirmar isso mesmo. Apesar de ter visto que o táxi (com o dinheiro e o telemóvel referidos em 10. lá dentro, tendo este depoimento servido também para o valor de ambos, quanto ao telemóvel reforçado pelo que resulta das regras da experiência, já que se trata de um objecto que a esmagadora maioria das pessoas possui) foi levado pelo arguido para sítio diferente daquele em que o ofendido o deixou, desconhecia este por que razão o arguido acabou por o abandonar.
Em contraponto, as declarações do arguido foram fragmentárias e cheias de lacunas, que ele explica pelo seu estado de carência em relação ao consumo de cocaína. Além disso, nega o óbvio (por exemplo, ter subtraído o telemóvel, que desapareceu do táxi naquela noite, sendo depois activado a espaços e por pouco tempo, no concelho de Viana do Castelo e por vezes na zona de residência do arguido – fls. 107 e 159/160 – e ter conduzido o táxi) e insiste que saiu deste ainda com o ofendido lá dentro, levando o dinheiro (o que é terminantemente contrariado pelo ofendido, que nem sequer tinha a carteira destinada às contas do táxi em local visível aos clientes, mas debaixo do seu banco). Acresce que, ficando o ofendido a sangrar abundantemente após o golpe, segundo o próprio afirma (assim como o seu patrão M. F., que veio em seu socorro), dificilmente é concebível que o arguido possa, como diz, não ter percebido que o ferira…
Cabe aqui chamar à colação, a propósito do estado psíquico e psicológico do arguido, os detalhados exames feitos a pedido deste, e por peritas das respectivas áreas (ref.ª 1945468), que explicam em detalhe as alterações que a dependência do “crack”, substância com alto poder aditivo, causa nos seus consumidores, nomeadamente quando em estado de carência. Os sintomas descritos nesses relatórios (disforia, irritabilidade, insónia, agitação psicomotora e suores) – que, no parecer da perita de psiquiatria, levam a admitir a existência de imputabilidade diminuída do arguido – são claramente afastados, no caso concreto, pelo depoimento da única pessoa que esteve com ele naquela noite, o ofendido: ao longo do caminho, o arguido não deu qualquer sinal de agitação ou pressa, manteve uma conversa coerente e cordata, não tinha alterações físicas e nada fez o ofendido desconfiar do que se iria passar; por outro lado, e como bem notou o ofendido no seu depoimento, já depois de o ter golpeado no pescoço, o arguido não fugiu do local, mas teve ainda discernimento para, usando a arma, acabar por afastar o ofendido para concretizar a subtracção do dinheiro. Sendo embora certo que um toxicodependente procura satisfazer o seu vício, as acções do arguido naquela noite não são descontroladas, mas antes calculadas e com um objectivo preciso, mostrando bastante mais discernimento do que o invocado estado de carência lhe permitiria.
Para os ferimentos sofridos pelo ofendido – pelo objecto cortante que o arguido admitiu ter consigo, sem que se apurassem as características (já que, tal como a arma ou sua réplica, não foi recuperado) – serviram os documentos de fls. 27 e 301/302, resultando as suas consequências dos relatórios periciais de fls. 175 a 177 e 436 a 438 (complementados pelos esclarecimentos prestados em julgamento pela médica subscritora, C. S., quanto à falta de perigo concreto para a vida do ofendido).
A matrícula do táxi resulta do registo de fls. 29; o meio de chamada do táxi e respectivo destinatário, além de ter sido descrito pelo arguido, decorre dos dados de tráfego de fls. 268 e 413/414, conjugados com o print da página do “Facebook” do arguido (fls. 297/298) e da informação da DGRSP quanto ao número de contacto aí fornecido pelo próprio (fls. 409).
Foram ainda úteis os depoimentos sérios e credíveis do aludido M. F. (relativamente ao pedido de socorro do ofendido naquela noite e à intervenção subsequente da testemunha), F. C. (colega do ofendido que enviou este ao local de chamada do táxi e esteve mais tarde com ele no hospital) e F. A. (taxista na mesma empresa, que já tinha transportado o arguido noutra altura, o que corroborou as declarações deste quanto à utilização daqueles táxis dessa vez).
Já no que respeita às intenções do arguido, o próprio admite sem rebuço a referida na parte final de 2.; a circunstância de o arguido trazer consigo o objecto cortante e a arma ou réplica da mesma implica que ele estava disposto ab initio a usá-los (o que aliás fez), assim adquirindo superioridade sobre o ofendido.
Quanto ao golpe do arguido no ofendido, é evidente que, sendo desferido por um objecto cortante (que deixou, a final, uma cicatriz com 6 cm), de noite, dentro de um veículo onde só estão aquelas duas pessoas (ou seja, com pouco espaço) e atingindo uma zona tão sensível como a do pescoço (onde se alojam as carótidas, artérias onde circula um grande volume de sangue e cujo atingimento pode ser fatal), o arguido não podia deixar de ter a noção que a sua acção podia causar a morte do ofendido, e apesar disso desferiu aquele golpe. Refira-se, aliás, que este apenas não foi fatal porque, como o próprio ofendido referiu, teve a presença de espírito de colocar um braço à frente do pescoço, o que, com a sua forte compleição física (1,97 m), permitiu amortecer o impacto do gesto do arguido.
A intenção referida em 10. foi concretizada pelo arguido quando levou o veículo consigo.
Para a situação pessoal do arguido, e além dos citados relatórios psicológico e psiquiátrico, serviram o relatório social (ref.ª 1948034), a ficha biográfica de fls. 856 a 859 e informação do CRI de fls. 872. Foi ainda útil o certificado de registo criminal (ref.ª 42213924); os documentos juntos com a contestação valeram para a prova dos factos 30. a 32.
Apesar de reiterar o seu arrependimento e a sua integração anterior, aquela manifestação confunde-se com o estado anímico em que o arguido ficou por ter sido descoberto (note-se que, durante cerca de cinco meses, não se entregou nem se denunciou de alguma forma, o que seria, isso sim, manifestação de arrependimento) e as alterações de comportamento foram referidas pela sua própria mãe, L. R.. Também não há qualquer prova do estado actual da sua dependência.
Tendo explicado as diligências de investigação, nada acrescentou o depoimento de J. F., inspector da Polícia Judiciária.”
II. 2. APRECIAÇÃO DO RECURSO
- Da desqualificação do crime de furto qualificado:
Mesmo após a prolação de novo acórdão cremos não poder concluir, como aí se concluiu, que o valor do telemóvel ainda que não concretamente apurado é superior a € 12.00 (doze euros).
Resultar das regras da experiência, “já que se trata de um objeto que a esmagadora maioria das pessoas possui”, é de todo insuficiente para justificar o valor do telemóvel.
Como já anteriormente dissemos não é facto notório que um telemóvel valha sempre mais do que € 12,00, sendo certo que a circunstância da maioria das pessoas possuir telemóvel, não quer dizer que saibam o valor do aparelho em questão e que seja superior a €12,00. Porque não, por exemplo, superior a € 10,00?
Note-se que não se apurou a marca, o modelo, a idade e nem tão pouco o estado do telemóvel.
Por falta de prova consistente, não pode ser considerado assente que o valor do telemóvel seja superior a € 12,00.
Consequentemente, o facto 10 da matéria de facto considerada provada passará a ter a seguinte redação: “De seguida, o arguido tentou conduzir o veículo, mas abandonou o mesmo alguns metros mais à frente, tendo levado consigo a quantia de € 90,00 e o telemóvel da empresa ao qual estava associado o cartão da operadora de comunicações NOS, com o nº … e IMEI …, de valor não concretamente apurado, ficando o ofendido na posse do seu telemóvel pessoal.”
Como é consabido para que se possa considerar que o agente cometeu um crime de furto qualificado, não basta que os factos integrem a previsão de uma das alíneas dos nºs 1 ou 2 do artº 204º do Código Penal. É necessário, também, que o valor do furto exceda uma unidade de conta avaliada no momento da prática do facto, já que não há lugar à qualificação se o valor for igual ou inferior – artºs 202 al. c) e 204 nº 4 do Código Penal.
A norma do nº 4 do artº 204º do Código Penal consubstancia um contratipo, ou, citando o Comentário Conimbricense, “um pressuposto negativo da aplicação da norma incriminadora”. Se o valor da coisa furtada não exceder o da unidade de conta “não chega sequer a preencher-se o tipo qualificador, remetendo-se o comportamento proibido para o tipo matricial”.
Para que alguém possa ser condenado por um crime de furto qualificado é não só necessário que da acusação ou pronúncia constem factos que integram a previsão da respetiva circunstância qualificativa, mas também que dela resulte inequivocamente que o valor do furto é superior à unidade de conta. Se assim não for, não estará devidamente delimitado o “contra-tipo” do furto qualificado ou, para repetir a frase acima citada, o “pressuposto negativo de aplicação da norma incriminadora”.
Tal delimitação negativa faz-se, normalmente, através da indicação do valor dos bens furtados.
É certo que nem sempre será necessária a expressa indicação do valor dos bens. Se, por exemplo, alguém furta um automóvel topo de gama em estado novo, não é imprescindível a indicação do valor para que o tribunal possa concluir que a coisa valia mais do que uma unidade de conta (ou até que tinha um valor consideravelmente elevado). Trata-se de facto notório, de conhecimento geral, que não carece de alegação e prova.
Mas sempre que não for notório que os bens valiam mais do que a unidade de conta, nem se fizer prova bastante do valor dos bens, não poderá o arguido ser condenado por mais do que por um crime de furto “simples”.
No caso concreto não se tendo apurado o valor do telemóvel, “nem sendo facto notório que um telemóvel valha sempre mais do que € 12,00”, como referimos no anterior acórdão, não é possível concluir, sem possibilidade de margem de erro, que os bens subtraídos pelo arguido valiam mais do de € 102,00, valor da unidade de conta na data da prática dos factos.
Concluindo, o crime de furto perpetrado pelo arguido é um crime de furto simples e não qualificado.
E será por um crime de furto simples (artº 203º, nº 1 do Código Penal) que será condenado. Procede, assim, este segmento de recurso.
- Quanto ao crime de homicídio tentado:
Sobre a epígrafe “Homicídio” dispõe o artº 131º do Código Penal que: “Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos.”
De acordo com o artº 22º nº 1 do mesmo diploma legal “Há tentativa quando o agente praticar atos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se”, sendo que são atos de execução, nos termos do nº 2 al. b) deste mesmo artigo “os que forem idóneos a produzir o resultado típico.”
No caso, e como se diz no acórdão recorrido, o meio empregue – um objeto cortante -, a feição do golpe que o arguido com ele desferiu (na horizontal) e a parte vital atingida (pescoço), eram em conjunto idóneos a produzir o resultado morte, típico de um crime de homicídio, pelo que são atos de execução deste crime.
Não tendo sido produzido o resultado morte, por factos alheios à vontade do arguido – no caso o não ter atingido órgãos vitais - , verificou-se um crime de homicídio na forma tentada.
E este crime de homicídio na forma tentada foi praticado pelo arguido com dolo eventual.
Ao desferir o golpe no pescoço de L. C., o arguido sabia que isso era suscetível de provocar lesões graves e mesmo a morte daquele, e, mesmo assim, conformou-se com esse resultado. Assumiu esse risco como consequência possível da sua conduta.
Como nos diz o nº 3 do artº 14º do Código Penal, “Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da sua conduta, há dolo se o agente atuar conformando-se com aquela realização.”
Ora, apesar de saber que o golpe que desferiu no ofendido poderia vir a causar a morte daquele, o arguido desferiu-o na mesma, aceitando que esse resultado pudesse acontecer.
Cremos pois não haver dúvidas que o arguido praticou um crime de homicídio na forma tentada e com dolo eventual.
Tal como referiu a perita em sede de audiência de julgamento, o golpe que o arguido desferiu no ofendido não provocou diretamente perigo para a vida deste. Mas, tal golpe só não se revelou fatal “porque, como o próprio ofendido referiu, teve a presença de espírito de colocar um braço à frente do pescoço, o que com a sua forte compleição física (1.97m) permitiu amortecer o impacto do gesto do arguido.”
A atuação do arguido foi de molde a provocar a morte. Esta só não ocorreu devido ao facto de L. C., o ofendido, ter colocado o antebraço na frente do braço agressor do arguido levando a que o golpe não perfurasse “uns milímetros mais abaixo…onde se situam vasos” que, uma vez atingidos, o ofendido nem chegaria ao hospital, como esclareceu a perita médica.
Assim, e, assente que está que “ao golpear o pescoço do ofendido, sabia o arguido que tal conduta era suscetível de provocar lesões graves e mesmo a morte daquele, conformando-se com a possibilidade da sua ação poder causar a morte do ofendido, e agindo no propósito de se apropriar de bens que sabia não lhe pertencerem, trazendo aquando da prática do crime um objecto de natureza cortante tipo navalha/canivete e arma de fogo e/ou réplica da mesma, cujas características conhecia”, tem de se concluir que ele agiu com dolo eventual quanto ao crime de homicídio (ainda que “só” sob a forma tentada) em causa.
E aquela forma de dolo pode concorrer com o crime tentado. O arguido agiu com dolo eventual relativamente ao possível homicídio que viesse a ocorrer e que só não se consumou por circunstâncias externas à sua vontade.
Pela clareza de exposição citamos os acórdãos referidos na resposta ao recurso e que tem o seguinte teor, na parte que nos interessa:
Ac. do STJ de 14.06.95, processo nº 046599 “Ora, é bem certo que, no caso dos autos, tal como transparece da matéria de facto provada (v. supra, pontos 1.5 e 1.14), o recorrente decidiu-se mesmo a realizar o facto, prevendo o resultado como possível e conformando-se com ele. Não se limitou a "informar-se" dos pressupostos da sua comissão, pelo que não pode razoavelmente considerar-se que "ainda não se tinha decidido". Aliás tudo se passou com manifesta celeridade, após ter sofrido agressão da vítima a murro e possuído de um estado de excitação potenciado pela ingestão de bebidas alcoólicas, situação pouco compatível com um estado psicológico de reflexão preliminar da decisão de passar ao acto. Como descreve Jescheck (loc. cit.), o "conteúdo do injusto do dolo eventual é menor que o das outras classes de dolo, porque aqui o resultado não foi proposto nem tido como seguro, senão que se abandona ao curso das coisas. Pertencem ao dolo eventual, por um lado, a consciência da existência de perigo concreto da realização do tipo e, por outro, a consideração séria desse perigo por parte do agente. Considerar como sério esse perigo quer dizer que o agente calcula como relativamente elevado o risco da realização do tipo. Desse modo se obtém a referência à magnitude e proximidade do perigo, necessário para a caracterização do dolo eventual. Também o dolo aparece assim como componente do injusto da acção, já que se manifesta na estimativa do perigo para o objecto protegido da acção. À representação da seriedade do perigo deve acrescentar-se, além disso, que o agente se conforme com a realização do tipo. Entende-se por isso que se decida, para alcançar a realização do tipo, rectivo, do objectivo da acção que se propõe, por assumir a realização do tipo e suportar o estado de incerteza existente no momento da acção. Quem actua desta maneira ante o perigo de que se realize o tipo de acção punível denota uma postura especialmente reprovável frente ao bem jurídico protegido, no que, relativamente ao conteúdo de culpabilidade, cabe equiparar o dolo eventual à intenção e ao dolo directo. Essa postura do agente, caracterizada como em conformar-se com a possibilidade da produção do resultado, não é uma componente da vontade da acção, mas um facto da culpabilidade: faz-se ao agente uma reprovação maior do que no caso da negligência consciente dada a sua deficiente atitude mental relativa ao bem jurídico protegido e isto porque naquela é certo que reconhece o perigo mas confia na não produção do resultado típico. O dolo eventual é integral, assim, pela vontade de realização concernente à acção típica (elemento volitivo do injusto da acção), pela consideração séria do risco de produção do resultado (facto intelectual do injusto da acção) e, por último, pela conformação com a produção do resultado típico como factor da culpabilidade". Há boas razões, assim, para acompanhar a citada jurisprudência deste Supremo Tribunal, no tocante à compatibilidade da tentativa com o dolo eventual. E, nesta medida, a decisão recorrida não nos merece censura em tema de qualificação dos factos provados como crime de homicídio simples na forma tentada.”
E o Ac., também do STJ, de 8.3.2006, no proc. 06P269,”1 . É segura a compatibilidade entre dolo eventual e tentativa acabada. 2 . No crime de homicídio, ainda que tentado, as necessidades de prevenção geral são particularmente prementes. 3 . Não obstante, a pena de três anos de prisão deve ser mantida, relativamente a arguida que, tendo disparado, com uma carabina, sobre o companheiro, atingindo-o no peito: Agiu com dolo eventual relativamente à morte deste que não ocorreu (…)”
Considerando que a atuação do arguido, pelo instrumento utilizado e a zona do corpo escolhida, foi de molde a provocar a morte do ofendido, que o arguido configurou e com o que se conformou, não tendo a mesma ocorrido por circunstâncias alheias à sua vontade, está, repete-se, verificado o crime de homicídio na forma tentada e com dolo eventual.
- Quanto à desistência da tentativa alegada em sede de recurso, a mesma também não procede.
O arguido praticou, como se viu, atos de execução do crime de homicídio que só não ocorreu face ao comportamento do ofendido.
Mesmo admitindo que o arguido “desistiu” de novamente tentar matar “a posterior” o ofendido, tal não apaga o crime de homicídio tentado já antes perpetrado. Não houve qualquer plano prévio, sequer.
- Relativamente à qualificação do crime de homicídio na forma tentada:
Dispõe o artº 132º do diploma citado e sobre a epígrafe de “homicídio qualificado”, no seu nº 1, que: “Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.” E o nº 2: “é suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o ´número anterior, entre outras, a circunstância de o agente: “Ter em vista preparar, facilitar, executar ou encobrir um outro crime, facilitar a fuga ou assegurar a impunidade do agente de um crime;” (nº 2 al. g)).
Como é consabido as circunstâncias contempladas no nº 2 do artº 132º citado não são taxativas nem implicam só por si a qualificação do crime. Tais circunstâncias não são elementos do tipo e antes elementos da culpa não sendo o seu funcionamento automático.
A qualificação do crime de homicídio não é consequência irrevogável da existência de qualquer das circunstâncias constantes do nº 2 do artº 132º do Código Penal.
Essencial é que as circunstâncias em que o agente comete o crime revelem uma especial censurabilidade ou perversidade, isto é, uma censurabilidade ou perversidade destintas (pela sua anormal gravidade) daquelas que, em maior ou menor grau, se revelem na autoria de um homicídio simples.
No caso dos autos o motivo determinante da atuação do arguido foi o de se apoderar “de todas as quantias monetárias que o taxista tivesse em seu poder”
“Ao golpear o pescoço do ofendido, sabia o arguido que tal conduta era suscetível de provocar lesões graves e mesmo a morte daquele, conformando-se com a possibilidade da sua ação poder causar a morte do ofendido, e agindo no propósito de se apropriar de bens que sabia não lhe pertencerem, trazendo aquando da prática do crime um objeto de natureza cortante tipo navalha/canivete e arma de fogo e/ou réplica da mesma, cujas características conhecia.”
“Em consequência da conduta do arguido, resultou para o ofendido uma cicatriz aderente e dolorosa de 10x5cm na face lateral do pescoço em região supraglótica e, como consequências permanentes, cicatriz retráctil e stress pós-traumático.
Tendo o arguido usado de uma violência tal que só por acaso não tirou a vida ao ofendido, tudo com o objetivo de a seguir lhe poder furtar o dinheiro e o telemóvel, tudo no valor de pelo menos € 90.00, demonstra a especial censurabilidade prevista no corpo do nº 2 do citado artº 132º do Código Penal.
Há uma desproporção manifesta entre os valores tutelados pelo crime de homicídio e os meramente patrimoniais subjacentes ao crime de furto, a que o arguido foi de todo indiferente na sua forma de atuar.
A qualificativa prevista na al. g) do nº 2 do artigo referido encontra-se, assim, verificada.
- No que tange à alegada imputabilidade diminuída do arguido convém relembrar o que, a seu respeito, é dito no acórdão.
“(…) a propósito do estado psíquico e psicológico do arguido, os detalhados exames feitos a pedido deste, e por peritas das respectivas áreas (ref.ª 1945468), que explicam em detalhe as alterações que a dependência do “crack”, substância com alto poder aditivo, causa nos seus consumidores, nomeadamente quando em estado de carência. Os sintomas descritos nesses relatórios (disforia, irritabilidade, insónia, agitação psicomotora e suores) – que, no parecer da perita de psiquiatria, levam a admitir a existência de imputabilidade diminuída do arguido – são claramente afastados, no caso concreto, pelo depoimento da única pessoa que esteve com ele naquela noite, o ofendido: ao longo do caminho, o arguido não deu qualquer sinal de agitação ou pressa, manteve uma conversa coerente e cordata, não tinha alterações físicas e nada fez o ofendido desconfiar do que se iria passar; por outro lado, e como bem notou o ofendido no seu depoimento, já depois de o ter golpeado no pescoço, o arguido não fugiu do local, mas teve ainda discernimento para, usando a arma, acabar por afastar o ofendido para concretizar a subtracção do dinheiro. Sendo embora certo que um toxicodependente procura satisfazer o seu vício, as acções do arguido naquela noite não são descontroladas, mas antes calculadas e com um objectivo preciso, mostrando bastante mais discernimento do que o invocado estado de carência lhe permitiria.”
Face ao acima transcrito, que analisa criticamente o comportamento do arguido na data dos factos, falece a argumentação recursória.
Não cremos que, face às circunstâncias descritas pelo ofendido (única pessoa que no momento estava com o arguido), se possa falar em imputabilidade diminuída que, como sabemos, pressupõe a existência de uma anomalia ou alteração psíquica que afeta o sujeito e interfere na sua capacidade para avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída.
Por fim resta-nos apreciar a medida da pena:
A todo o crime corresponde uma reação penal, mediante a qual a comunidade expressa o seu juízo de desvalor sobre os factos e a conduta realizada por quem viola os comandos legais do ordenamento penal, estando a mesma definida no respetivo tipo legal.
Estabelecida a medida legal da pena, opera-se a sua determinação judicial, sendo certo que, segundo o artº 40º, nº 1, do mesmo diploma legal, “A aplicação das penas (…) visa a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, acrescentando o seu nº 2 que “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Isto significa que a pena, enquanto instrumento politico-criminal de proteção de bens jurídicos, tem uma função de paz jurídica, típica da prevenção geral, cuja graduação deve ser proporcional à culpa. (Veja-se a propósito Claus Roxin, em “Culpabilidad y Prevencion en Derecho Penal”, pg. 181; Figueiredo Dias, em “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime” (1993), pg.73 e no seu estudo “Sobre o estado atual da doutrina do crime”, na RPCC, ano I (1991), pg. 22; Maria Fernanda Palma, no seu estudo sobre “As alterações da Parte Geral do Código Penal na revisão de 1995: Desmantelamento, reforço e paralisia da sociedade punitiva”, em “Jornadas sobre a revisão do Código Penal” (1998), pg. 26, onde se traça as finalidades de punição deste artigo, com base no § 2 do projeto alternativo alemão (Alternativ-Entwurf).
De acordo com os critérios de determinação da medida da pena, fixados no artº 71º do Código Penal e conjugados com o aludido artº 40º, também do Código Penal, esta, numa primeira fase, é encontrada em função da culpa do arguido e das exigências de prevenção, atendendo ainda, numa segunda fase, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, rodearam o mesmo, antes ou depois do seu cometimento, quer resultem a favor ou contra o agente.
Assim, daquela primeira aproximação decorrem duas regras centrais: a primeira, que é explícita, consiste em que a culpa é o fundamento para a concretização da pena, devendo esta proteger eficazmente os bens jurídicos violados; a segunda, que está implícita, é que deverá ter-se em conta os efeitos da pena na vida futura do arguido na sociedade e da necessidade desta defender-se do mesmo, mantendo a confiança da comunidade na tutela da correspondente norma jurídica que foi violada.
Posto isto, podemos dizer que nesta ação a pena serve primacialmente, por um lado, para a responsabilização do arguido, atenta a sua culpa e a intensidade do bem jurídico violado, contribuindo ainda, por outro lado e ao mesmo nível, para a sua reinserção, procurando não prejudicar a sua situação social mais do que o estritamente necessário.
Na determinação da pena o tribunal deve considerar principalmente que meios são necessários para que o réu leve de novo uma vida ordenada e conforme a lei – (“Mitt IKV Neue Folge”, t. 3, pg. 7, citado por H. Jescheck, in “Tratado de Derecho Penal”, vol. II, pg. 1195).
Nesta sequência, e repetindo, na determinação da medida concreta das penas, tomar-se-ão em conta as circunstâncias norteadoras previstas no nº 2 do artº 71º do Código Penal, partindo-se da culpa do agente e da necessidade de ponderar as exigências de prevenção de futuros crimes (nº 1, do mesmo artigo).
Estabelece, por sua vez, o artº 70º do Código Penal que “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”
O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25 de Janeiro de 2001, proferido no âmbito do processo 3404/00, diz-nos claramente que “subjaz à norma constante do artº 70º do Código Penal, toda a filosofia informadora do sistema punitivo vertido no Código Penal vigente, ou seja, a de que embora se aceitando a existência da prisão (ou pena corporal) como pena principal para os casos em que a gravidade dos ilícitos, ou de certas formas de vida, a impõem ou justificam, a recorrência deverá ter lugar quando, face ao circunstancialismo que se perfile, se não apresentem adequadas, suficientes ou convenientes, as sanções não detentivas, às quais não é de recusar elevada capacidade (ou potencialidade) ressocializadora. Tudo isto se insere no desiderato de se evitarem as curtas penas de prisão (ou a eventualidade da efectivação dessas penas) donde que, por regra, a alternativa por pena de multa se autorize nos casos em que aos ilícitos caiba pena prisional não demasiado elevada.”
Nesta mesma linha podemos citar o Professor Figueiredo Dias que, em “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime” refere que “o tribunal deve preferir à pena privativa de liberdade uma pena alternativa ou de substituição sempre que, verificados os respetivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa ou a de substituição se revelem adequadas e suficientes à realização das finalidades da punição, o que vale logo por dizer que são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam (e impõem) a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua efetiva aplicação. Bem se compreende que assim seja: sendo a função exercida pela culpa, em todo o processo de determinação da pena, a de limite inultrapassável do quantum daquela, ela nada tem a ver com a questão da escolha da espécie de pena. Por outras palavras: a função da culpa exerce-se no momento da determinação quer da medida da pena de prisão (necessária como pressuposto da substituição), quer da medida da pena alternativa ou de substituição; ela é eminentemente estranha, porém, às razões históricas e político-criminais que justificam as penas alternativas e de substituição, não tendo sido em nome de considerações de culpa, ou por força delas, que tais penas se constituíram e existem no ordenamento jurídico.
Assim, o tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa ou de uma pena de substituição quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquelas penas e que deve surgir aqui unicamente sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, como limite à atuação das exigências de prevenção especial de socialização. Quer dizer: desde que impostas ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias.”
Volvendo ao caso que nos ocupa e, tendo em consideração os crimes perpetrados pelo arguido, vejamos:
O crime de furto simples, previsto pelo artº 203º, nº 1, do Código Penal é punível “com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”.
Por sua vez o crime de homicídio qualificado na forma tentada, previsto pelos artºs 131º, 132º, nº 1 e nº 2 al. g), 22º, 23º e 73º, nº1, als a) e b), também do Código Penal é punível entre um mínimo de 2 anos 4 meses e 24 dias e um máximo de 16 anos e 8 meses.
As exigências de prevenção geral revelam-se elevadas, atenta a inquietude que provoca na comunidade, não só de Viana do Castelo, diremos nós, ainda que percebamos a argumentação expendida no acórdão recorrido.
A frequência preocupante com que, nos últimos tempos, vêm ocorrendo crimes de homicídio (consumado ou tentado) a condutores de táxi, tornam prementes as exigências de prevenção e repressão desses crimes.
Cumpre acentuar e reafirmar, perante a comunidade, a validade das normas violadas.
Por sua vez, quanto às necessidades de prevenção especial positiva ou de ressocialização assume primordial importância que o arguido compreenda o desvalor do seu comportamento nos acontecimentos que, aqui, se apreciam, de forma a prevenir a prática de futuros atos delinquentes.
Como se refere no acórdão, “contra o arguido e no crime de homicídio tentado, militam o elevado grau de ilicitude do facto (atacando uma pessoa que lhe prestou um serviço e que o acolheu no seu espaço de trabalho, não estando a contar com a sua hostilidade), o modo da respetiva execução (a coberto da noite e num espaço confinado, o táxi), a gravidade das consequências (embora não tenha havido perigo para a vida do ofendido, ficou a cicatriz física e o stress pós-traumático, que é sempre de difícil tratamento) e a conduta posterior ao facto (não se entregando às autoridades durante meses e não assumindo em julgamento os atos que praticou); no furto, há a considerar como agravantes a intensidade do dolo (direto).
A favor do arguido, o dolo eventual (no caso do homicídio tentado), a ausência de antecedentes criminais em crimes contra as pessoas, o baixo prejuízo causado (no furto), o seu historial de toxicodependência e a debilidade económica, traduzida na dependência dos pais.”
Tudo ponderado entendemos como justas e equilibradas as seguintes penas que, por diferentes das estipuladas no acórdão sob recurso, alteramos:
- para o crime de homicídio qualificado na forma tentada a pena de 6 anos e 6 meses de prisão;
- para o crime de furto simples a pena de 1 ano e 3 meses de prisão, única capaz de cumprir, de forma adequada e suficiente as já mencionadas finalidades preventivas que a punição serve, consagradas no referido artigo 40º, nº 1, do Código Penal.
As regras da punição do concurso de crimes estão estabelecidas no artº 77º do Código Penal.
Ao que ora nos interessa, aí se diz no seu nº 1 que “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.”
E no nº 2 que “a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.”
Assim, no apuramento da pena única há que ter em conta o conjunto dos factos que integram os crimes em concurso, numa avaliação global da ilicitude, e a personalidade do agente, “revelada nesse conjunto dos factos, em ordem a descortinar se a prática dos vários crimes radica numa característica desvaliosa da personalidade do agente que o leva a repetir as condutas criminosas ou se, pelo contrário, essa repetição se fica a dever a uma pluriocasionalidade não relacionada com um desvio da sua personalidade.” (1)
Tudo sopesado, tem-se por adequada a pena única de 7 anos de prisão.
- Finalmente, quanto à pretendida suspensão de execução da pena:
Se outras razões não houvesse para afastar a suspensão da execução da pena – como é a de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão não realizariam, no caso concreto, de forma adequada e suficiente as finalidades de punição -, a medida da pena concreta aplicada ao arguido afasta o pressuposto formal dessa suspensão (artº 50º, nº 1, do Código Penal).
III - DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido B. F. e, em consequência:
- alterar o ponto 10 da matéria de facto nos seguintes termos: “De seguida, o arguido tentou conduzir o veículo, mas abandonou o mesmo alguns metros mais à frente, tendo levado consigo a quantia de € 90,00 e o telemóvel da empresa ao qual estava associado o cartão da operadora de comunicações NOS, com o nº … e IMEI …, de valor não concretamente apurado, ficando o ofendido na posse do seu telemóvel pessoal”;
- condenar o arguido pela prática de um crime de furto simples, previsto pelo artº 203º, nº 1, do Código Penal na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão e pela prática de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, previsto pelos artºs 131º, 132º, nº 1 e nº 2 al. g), 22º, 23º e 73º, nº1, als a) e b), também do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.
EM CÚMULO JURÍDICO DAS PREDITAS PENAS CONDENAR O ARGUIDO B. F. NA PENA ÚNICA DE 7 (SETE) ANOS DE PRISÃO.
Sem custas.
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(Texto elaborado pela relatora e revisto por ambos os signatários – artº 94º, nº 2, do Código de Processo Penal).
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Guimarães, 28.01.2019