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IMPOSSIBILIDADE DA PROVA POR AÇÃO CULPOSA DA PARTE CONTRÁRIA
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
Sumário
I – Como decorre do disposto no art. 344º, n.º 2 do Código Civil, a inversão do ónus da prova depende da verificação de dois pressupostos:
a) que a prova de determinada factualidade, por ação da parte contrária, se tenha tornado impossível de fazer ou, pelo menos, se tenha tornado particularmente difícil de fazer; b) que tal comportamento, da mesma parte contrária, lhe seja imputável a título culposo.
II – Não é de operar a inversão do ónus da prova quando:
- a recusa (ilegítima) da colaboração da parte não tiver tornado impossível a prova à outra parte, sobre quem recaía o ónus probatório de certo facto; e - a parte onerada com a prova do facto não esgotou os meios de prova que tinha ao seu dispor para o tentar demonstrar.
Texto Integral
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
I. Relatório
J. C. veio requerer a abertura de inventário judicial para partilha de herança aberta por óbito de sua mãe O. J., falecida em .. de .. de ….
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Por despacho datado de 22.06.2018 (refª/Citius 21151402), o Tribunal a quo decidiu:
«Em face do supra exposto, entendemos que R. L. ao ter repudiado a herança de O. J., não tem legitimidade para figurar como Interessado nos presentes autos de inventário, devendo, sim, figurar como Interessado o seu filho L. L.».
Para tanto, foi explanada a seguinte a motivação:
«Compulsados os presentes autos verificamos que a fls. 217-219 foi proferida decisão, transitada em julgado, que decidiu o repúdio de R. L. à herança de seu pai, P. M., cfr. fls. 67-68, em nada afetou a sua capacidade sucessória em relação à sua avó, O. J., também conhecida por O. N..
Assim, foi determinada a ingressão de R. L. ao leque de interessados deste processo.
Contudo, na decisão de fls. 67-68 nada se decidiu quanto à ‘validade’ do repúdio de R. L. à herança da sua avó, O. J., atento o facto de F. L. ter alegado que R. L. aceitou a herança da sua avó, O. J., tendo-se relegado para momento posterior tal apreciação (cfr. fls. 219).
Assim, cumpre apreciar e decidir.
Acresce que, a fls. 192-193 foi junta certidão de repúdio de herança de O. J. e datada de 14.01.2014 por parte de R. L. e esposa C. S..
A fls. 111 e ss., 152 e ss., 174 e ss., 199 e ss. veio o Interessado F. L. alegar que R. L. repudiou tão só a herança de seu pai, P. L., e não a herança de sua avó O. J., porquanto refere, em suma, que R. L. recebeu a quantia de €515,27 da conta de sua avó O. J., o que configura um ato inequívoco de aceitação do interessado R. L..
Em sede de contraditório, o cabeça de casal, J. L. impugnou, em suma o alegado por F. L., cfr. fls. 115 e ss., 146, 167 e ss.
Por outro lado, R. L. juntou a fls. 185 caderneta da Caixa ... onde consta a transferência no valor de €515,28 realizada a 07.11.2011.
Em face do supra exposto, de todos os documentos juntos autos presentes autos, bem como do resultado de todas as diligências efetuadas, não resultou provado que o cabeça de casal, J. L. efetuou, quer a transferência no valor de €515,28 para F. L., cfr. fls. 154-157, quer a transferência no valor de €515,28 constante a fls. 185.
Também não foi possível descobrir a identidade da pessoa que ordenou a realização das referidas transferências, muito menos a que titulo tais transferências foram realizadas (até porque nada é referido que J. L., na qualidade de herdeiro de O. J., também recebeu alguma quantia).
Resultou, sim, claro, que tais transferências no valor, cada uma, de €515,28 foram efetuadas após o falecimento de O. J., que ocorreu a 16.03.2011, e as transferências ocorreram a 07.11.2011.
Por fim, importa referir que do teor de fls. 184 e 185, bem como de toda a prova constante dos autos, não resulta que a quantia de €515,28 é feita para R. L. e não para outra pessoa, muito menos resulta quem é o titular da conta à qual a caderneta de fls. 185 diz respeito, até porque nenhum número de conta é referido.
Assim, não resulta da prova documental junta aos presentes autos que a caderneta de fls. 185 diz respeito a conta titulada por R. L., nem este em momento algum admitiu ter recebido a quantia de €515,28 e que a fez sua.
Em face do supra exposto, e porquanto só há aceitação tácita da herança se esta se deduzir de factos que com toda a probabilidade a revelem, entendemos que não se fez prova que R. L. recebeu e fez sua quantia respeitante a herança de O. J. e na qualidade de seu herdeiro, pelo que entendemos que não resultou provada a aceitação, tacita ou expressa, de R. L. da herança por óbito de O. J..
Neste jaez, o repúdio retroage ao momento da abertura da sucessão, considerando-se como não chamado o sucessível que a repudiou, cfr. artigo 2062.º do Código Civil».
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Inconformado com esta decisão, o interessado F. L. interpôs recurso e, a terminar as respectivas alegações, formulou as seguintes conclusões (que se transcrevem):
«1ª)- O aqui recorrente apresentou vários requerimentos aos autos, no sentido de fazer a prova de que o montante de 515,28€ transferidos para a conta do interessado R. L. (cfr. requerimento do mesmo R. L., datado de 01/07/2014, com junção de cópia de caderneta da Caixa …, no qual confessa ter recebido a transferência realizada a 07 de Novembro de 2011, no valor de 515,28€) provinham dos bens/conta bancária pertencente à Herança da sua falecida Avó e inventariada O. J., nomeadamente (entre outros, requerimento datado de 22/07/2015, ref. 19975750, requerimento datado de 17/03/2016, ref. 22154521, -Requerimento datado de 11/05/2016, ref. 22637993, e requerimento datado de 18/10/2016, ref.23848780). 2ª)- Não tendo sido, no entanto, possível obter as informações solicitadas, e nomeadamente após o último oficio do Caixa ..., junto aos autos em 30/03/2017, ref. 840375, no qual refere não ter informações centralizadas referentes aos clientes dos diferentes bancos pertencentes ao Grupo Caixa .... Perante tal, 3ª)- Por requerimento datado de 12/07/2017, ref. 26353903, o aqui recorrente requereu «a notificação de R. L., para ao abrigo dos princípios de gestão processual e da cooperação, vir informar aos autos a que titulo e de quem recebeu em 7/11/2011 a transferência de 515,28€ na sua conta da Caixa ... nib ... (constante de fls. 184 e 185), nomeadamente a origem da mesma, se provém de conta da inventariada O. J., sob a cominação de multa e de que se trata de facto pessoal e tem o mesmo necessariamente conhecimento da referida informação e que, no seu silêncio ou alegação de desconhecimento, se dará por assente/confessado que a mesma transferência proveio de conta da inventariada e foi aceite pelo mesmo R. L.». 4ª)- Por douto despacho ref 28091140, proferido nos autos em 22/02/2018, foi determinada a notificação do interessado R. L. para «no prazo de 10 dias, vir informar os presentes autos a que título e de quem recebeu em 07.11.2011 a transferência no valor de 515,28€ na sua conta da Caixa ... nib ... (constante de fls. 184 e 185), nomeadamente a origem da mesma, se provém de conta da inventariada O. J., com a cominação do disposto no artigo 417.º do Código de Processo Civil.»; 5ª)- Por oficio datado de 02/03/2018 (ref. 20965603) foi o interessado R. L. notificado do douto despacho atrás identificado. Porém, nada veio dizer.
Posto isto,
6ª)- Perante a falta de colaboração do interessado R. L., o Tribunal a quo, por douto despacho de 19/04/2018 (ref. 21044290), condenou o mesmo em multa. Porém, 7ª)- Para espanto e estranheza do aqui recorrente, veio o Tribunal a quo, posteriormente, em 22/06/2018, a proferir o douto despacho de que se recorre.
Com efeito,
8ª)- A informação a prestar pelo interessado R. L. era essencial para a prova de que a transferência de 515,28€ provinha de quantias pertencentes à herança da inventaria O. J.. 9ª)- O Interessado R. L., ao escusar-se a prestar a informação em causa, apesar de expressamente notificado da cominação prevista no art. 417º do CPC, impediu ou onerou deliberadamente (ou ainda que assim não se entenda, pelo menos de forma negligente e grosseira) a prova da proveniência dos aludidos 515,28€, por forma a impossibilitar igualmente o aqui recorrente de provar que o interessado R. L. havia aceite tacitamente a herança da inventariada, uma vez que tal meio de prova era de especial relevância para demonstrar a veracidade do facto alegado pelo aqui recorrente (recebimento de quantias da herança e consequente aceitação tácita da mesma pelo R. L.), e não tinha o aqui recorrente maneira de fazer de outra forma a prova do por si alegado. 10ª)- O nº2 do art. 344º do Código Civil, para que remete o nº2 do art, 417º do CPC prescreve que «há (…) inversão do ónus de prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei de processo mande especificamente aplicar à desobediência ou ás falsas declarações.»; 11ª)- A violação do dever de colaboração para a descoberta da verdade pode determinar a inversão do ónus de prova nos casos em que a recusa impossibilite como impossibilitou, a prova do facto a provar, a cargo da contraparte; 12ª) Acresce a própria confissão do interessado R. L., por requerimento de 01/07/2014 (conjugada com a junção pelo próprio de cópia da caderneta da Caixa ...), de ter recebido a transferência realizada a 07 de Novembro de 2011, no valor de 515,28€ (valor semelhante ao valor recebido pelo aqui recorrente proveniente de conta da inventariada, na mesma data- cfr requerimento e docs. juntos aos autos 02 de Abril de 2014, ref. 16439415), sendo que tudo conjugado, impunha decisão diversa da recorrida. 13ª)-Assim, errou o tribunal a quo ao não determinar a inversão do ónus de prova, bem como ao dar como não provado que a transferência da quantia de €515,28 foi feita para R. L., ao dar por não provado que a caderneta de fls. 185 diz respeito a conta titulada por R. L., ao dar por não provado que este em momento algum admitiu ter recebido a quantia de €515,28 e que a fez sua, bem como ao dar por não provado que R. L. recebeu e fez sua quantia respeitante a herança de O. J. e na qualidade de seu herdeiro, e ao entender por não provada a aceitação, tacita ou expressa, de R. L. da herança por óbito de O. J.. 14ª) Por todo o exposto, o douto despacho recorrido violou, por erro de interpretação e aplicação, o disposto nos arts. 344º, nºs 1 e 2 do C.C, (inversão do ónus de prova, não respeitado pelo tribunal a quo), e o disposto nos arts. 7º e 417º do CPC (princípio da cooperação) (pelas razões expostas nas motivações de recurso, para as quais se remete, bem como as expostas em 1ª a 12ª das conclusões; os quais deveriam ter sido interpretados e aplicados no sentido já supra exposto em sede de alegações de recurso!!
Nestes termos e nos melhores de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e ser o douto despacho recorrido revogado e substituído por outro que determine a inversão do ónus de prova e, consequentemente, dê por provado que o interessado R. L., por volta de 07/11/2011, recebeu quantia de 515,28€ por transferência de uma conta bancária da inventariada sita em França para uma conta do interessado R. L., quantia esta que o mesmo interessado R. L. fez sua; o que configura um ato inequívoco de aceitação do interessado R. L. da herança por óbito da inventariada O. J.. E, consequentemente, ser julgada procedente a presente impugnação relativa ás declarações de cabeça de casal, por provada e, consequentemente, ser julgado improcedente o requerimento de fls. 62 a 72, dando sem efeito a retificação das mesmas declarações de cabeça de casal na parte em passou a figurar no lugar do interessado R. L. o filho deste, L. L., mantendo-se assim o mesmo R. L. como interessado nos autos, na qualidade de representante do filho pré- falecido da inventariada, P. L., Com o que farão V.EX.as, Venerandos Desembargadores, a costumada JUSTIÇA!!»
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A curadora C. S., em representação do seu filho menor L. L., interessado nos autos, apresentou contra-alegações, pugnando pelo não provimento do recurso.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, em separado, com efeito meramente devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.
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III. Objeto do (segundo) recurso.
Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do(s) recorrente(s) [cfr. artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho], ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em saber: 1ª – Da verificação da inversão do ónus de prova por violação do dever de colaboração para a descoberta da verdade. 2ª – Da aceitação (tácita) pelo interessado R. L. da herança por óbito da inventariada O. J..
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IV. Fundamentação de facto.
As incidências fáctico-processuais relevantes para a decisão dos presentes recursos são os que decorrem do relatório supra – que por brevidade aqui se dão por integralmente reproduzidos –, a que acrescem os seguintes factos:
1. A 13/09/2013 (refª/Citius 14399666), o cabeça de casal formulou o seguinte requerimento:
«1 – O cabeça de casal aqui requerente prestou declarações de cabeça de casal, indicando os herdeiros que concorrem à herança da inventariada, O. J., tudo conforme habilitação de herdeiros celebrada no Cartório Notarial … em 21 de Março de 2011, escritura que foi junta com o Requerimento Inicial dos presentes Autos. 2 – Sucede que quando se preparava para juntar a relação de bens, veio a seu conhecimento que o neto da Inventariada, R. L., indicado como herdeiro por efeito de representação de seu pai, P. L., pré- falecido em relação à Inventariada, repudiou a herança aberta por óbito de seu pai, P. L., por escritura pública celebrada em onze de Fevereiro de 2009 na Conservatória de Registo Civil, Predial, Comercial e Cartório Notarial de …. Doc. 1 que aqui se junta e se dá integralmente por reproduzido. 3 – O interessado cabeça de casal aqui requerente desconhecia tal facto na data da celebração da escritura de habilitação de herdeiros, bem como na data em que prestou as declarações de cabeça de casal, como atrás se disse só muito recentemente teve conhecimento de tal fato. 4 – No modesto entendimento do cabeça de casal e sempre com o devido respeito por opinião contrária, se o neto da inventariada que foi indicado por direito de representação da herança deixada aberta por óbito de seu pai P. L., e pelo fato de ter repudiado a mesma, não poderá por efeito do direito de representação de seu pai, intervir como interessado nos presentes Autos de Inventário. 5 – O R. L. e esposa, C. S., declararam na escritura de repúdio atrás referida que têm um filho menor de idade. 6 – Porque o R. L. não quis aceitar a herança de seu pai, também não poderá ser chamado em sua representação, à herança da Inventariada dos presentes Autos, devendo, em sua substituição, ser chamado em seu lugar o filho deste, 7 – L. L., menor, nascido em .. de .. de .., tudo conforme assento de nascimento que aqui se junta e se dá integralmente por reproduzido. Doc.2. 8 – O cabeça de casal vem assim requerer a retificação das declarações de cabeça de casal já prestadas, indicando-se em substituição do neto R. L., o filho deste, bisneto da inventariada, L. L..
NESTES TERMOS, nos melhores de Direito e pelo atrás exposto, sempre com o douto suprimento de Vª Exª, requer-se:
a) A retificação das declarações de cabeça de casal já prestadas, passando a figurar no lugar do interessado R. L., o filho deste, L. L.. b) Que seja concedido novo prazo ao cabeça de casal para apresentar a relação de bens nos presentes Autos, após douto despacho que venha a recair sobre o ora requerido, evitando-se assim citações/notificações inúteis».
2. Por requerimento datado de 18/11/2013 (refª/Citius 15087463), o interessado F. L. requereu o seguinte:
«(…) 4º-O interessado R. L. repudiou tão só a herança de seu pai P. L., o que não afeta o direito de representação do executado relativamente á herança por óbito de O. J., herança essa que seu pai, por pré-morte, não pôde aceitar. 5º- Assim, e não tendo o interessado R. L. repudiado a herança de sua avó/inventariada, deverá o mesmo manter-se como interessado e herdeiro da inventariada.
Por outro lado,
6º-Por volta de 07/11/2011, o cabeça de casal J. C. transferiu de uma conta bancária da inventariada sita em França para uma conta do interessado R. L. a quantia de 515,27€, quantia esta que o mesmo interessado R. L. fez sua; o que configura um ato inequívoco de aceitação do interessado R. L. da herança por óbito da inventariada O. J.. Assim, 7º-O direito de repúdio da herança perdeu-se com a aceitação da mesma por parte do interessado R. L.. Neste sentido, por exemplo o douto Acórdão da RL, de 1/3/1978: BMJ, 277º-316:« Embora a lei não estabeleça qualquer prazo para repudiar a herança, é evidente que o direito de repúdio se perde com a aceitação da herança, expressa ou tácita». 8º-Não assiste assim qualquer razão ao requerimento de fls. 62-72, apresentado pelo cabeça de casal, pelo que vão impugnadas as declarações contantes do aludido requerimento, bem como as declarações de cabeça de casal de fls. 49 dos autos na parte em passou a figurar no lugar do interessado R. L. o filho deste, L. L..
Termos em que deve ser julgada procedente a presente impugnação relativa ás declarações de cabeça de casal, por provada e, consequentemente, ser julgado improcedente o requerimento de fls. 62 a 72, dando sem efeito a retificação das mesmas declarações de cabeça de casal na parte em passou a figurar no lugar do interessado R. L. o filho deste, L. L., mantendo-se assim o mesmo R. L. como interessado nos autos, na qualidade de representante do filho pré falecido da inventariada, P. L., o que se requer.
Mais deverá ser relacionado(s) pelo cabeça de casal o(s) saldo(s) bancário(s) em conta(s) bancária(s) da inventariada existentes em frança á data do óbito da mesma. Para prova do alegado requer sejam o cabeça de casal J. C., bem como o “interessado” R. L. notificados para virem juntar comprovativo documental da transferência efetuada em Novembro de 2011 da conta da falecida para a conta do R. L.».
3. A 11/02/2014 o Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
«Requerimento eletrónico 15087463:
Em face do alegado pelo interessado F. L. a fls. 111/112, antes de mais, notifique o cabeça-de-casal para, no prazo de 10 dias, juntar aos autos documento comprovativo da transferência bancária efetuada em Novembro de 2011 da conta da inventariada para a conta bancária de R. L.. DN».
4. A 27/02/2014, o cabeça de casal apresentou a seguinte resposta (refª/Citius 16080913):
«1 – O aqui cabeça de casal impugnou a matéria vertida nos pontos 6,7 e 8 do requerimento de fls., apresentado pelo interessado F. L.. 2 – O cabeça de casal não tem em sua posse qualquer documento referente a transferências bancárias e referentes a contas bancárias da Inventariada».
5. Por requerimento datado de 02/04/2014 (ref 16439415), o interessado F. L. requereu o seguinte:
«F. L., interessado nos autos à margem referenciados, notificado que foi para se pronunciar sobre o requerimento do cabeça de casal de 27/02/2014 (ref.16080913), vem expor e requerer o seguinte: Reitera o aqui interessado que, por volta de 07/11/2011, o cabeça de casal J. C. transferiu de uma conta bancária da inventariada sita em França (com o nº que se pensa ser …, NIB/IBAN …) para uma conta do interessado R. L. a quantia de 515,27€, quantia esta que o mesmo interessado R. L. fez sua; o que configura um ato inequívoco de aceitação do interessado R. L. da herança por óbito da inventariada O. J..
Nesse mesmo dia o cabeça de casal efectuou transferência de igual montante da conta da inventariada O. J. para a conta do aqui interessado/requerente F. L., com o nib …, da Caixa ... (cfr. docs. 1, 2 e 3 que se juntam e dão por reproduzidos). Aliás, o cabeça de casal alega que «...não tem em sua posse qualquer documento referente a transferências bancárias e referentes a contas bancárias da inventariada», apesar de (saber) que a conta bancária da inventariada existe, como se pode comprovar pelos documentos que agora se juntam e dão por reproduzidos. Ora,
Uma vez que a conta bancária existe, o cabeça de casal, nessa qualidade, tem a obrigação/dever de aceder á mesma, relacioná-la e juntar aos autos os documentos/extractos bancários respectivos. E se não tem em sua posse os documentos referentes às transferências bancárias, então, como se costuma dizer, que os arranje!!
Falta assim deliberadamente á verdade o cabeça de casal, e consequentemente, á sua obrigação como cabeça de casal (cfr. arts.344º nº2, 2079º, 2086º nº1 e seguintes do C.C., 1345º a 1347º do CPC), incorrendo em litigância de má fé e falsas declarações e, como tal deverá ser condenado.
Para prova do alegado requer:
-Seja o cabeça de casal J. C., no âmbito dos deveres que lhe cabem como cabeça de casal, notificado para vir identificar e relacionar a conta em causa pertencente à inventariada e, nomeadamente, vir juntar extracto completo da mesma conta bancária, desde a data do óbito e até á presente data; -seja o “interessado” R. L.” notificado para vir juntar comprovativo documental/extracto bancário referente á supra aludida transferência, efetuada em Novembro de 2011 da conta da falecida para a conta deste, bem como, caso venha a invocar não ter recebido a transferência bancária em causa, juntar extracto bancário de todas as suas contas bancárias referente ao período compreendido entre 01/11/2011 e 30/11/2011. -Requer seja oficiado à Caixa ... CRL para vir informar o NIB, IBAN e número de conta de onde foi ordenada a supra referida transferência para o aqui interessado, bem como a identificação do banco e agência a que a conta pertence. Junta: 3 documentos.».
6. O cabeça de casal, por requerimento de 28 de Abril de 2014 (ref. 16656393) respondeu nos termos seguintes:
«1 – O cabeça de casal desconhece em concreto os bens, nomeadamente as contas bancárias, deixadas pela inventariada. 2 – Por tal razão requereu as diligências de prova constantes e juntas com a relação de bens, requerendo a notificação de diversas entidades bancárias, para informarem os Autos dos saldos e respetivos extratos. 3 – O cabeça de casal não está a faltar à verdade, nem faz qualquer uso reprovável do presente processo, pelo que deve indeferir-se na sua totalidade a requerida litigância de má fé. 4 – O cabeça de casal reafirma tudo quanto deixou alegado nos seus anteriores requerimentos. 5 - Deixam-se especificadamente impugnados os documentos juntos pelo interessado reclamante, pois dos mesmos consta como ordenante da transferência a própria inventariada, sendo certo que o cabeça de casal não se recorda de qualquer partilha, ainda que parcial, das contas da inventariada.
PELO EXPOSTO, e sempre com o douto suprimento de Vª Exª, deve indeferir-se o requerido pelo interessado oponente/reclamante».
7. Notificado o interessado R. L. por ofício datado de 25/06/2014 (ref. 604312) do requerimento e documentos juntos aos autos pelo recorrente, bem como para «em DEZ DIAS , remeter aos autos o documento comprovativo da transferência bancária efetuada em Novembro de 2011, da conta bancária da inventariada para a sua conta bancária», o mesmo veio, por requerimento de 01/07/2014 (ref. 171766), «juntar cópia da caderneta da Caixa ..., por forma a comprovar a transferência realizada a 07 de Novembro de 2011, no valor de 515,28€»
8. O recorrente apresentou vários requerimentos aos autos, designadamente:
-Requerimento datado de 22/07/2015, ref. 19975750, no sentido de que o banco Caixa ... fosse notificado para prestar as informações relativas á origem da conta em causa.
-Requerimento datado de 17/03/2016, ref. 22154521, com comunicação aos autos de que o Caixa ... teria alterado o seu nome/Registo para … (Europe) com domicilio em …, bem como requereu nova notificação, com o novo nome/registo, quer para a anterior filial em Lisboa, quer para a supra referida morada no Luxembourg.
-Requerimento datado de 11/05/2016, ref. 22637993, no qual requereu a notificação da entidade bancária Caixa ... - escritório de representação em Portugal, sito na Avenida … Lisboa, e Crédito ... sito em … Luxembourg, para prestar as informações em causa.
-Requerimento datado de 18/10/2016, ref.23848780, no qual, após ter sido notificado do ofício do Crédito ... (ref. 6428579), e atenta a informação constante do mesmo, requereu a notificação do Caixa …, SA, com sede em …, França, para prestar as informações em causa. 9. Não tendo sido possível obter as informações solicitadas, e nomeadamente após o último oficio do Caixa ..., junto aos autos em 30/03/2017, ref. 840375, no qual refere não ter informações centralizadas referentes aos clientes dos diferentes bancos pertencentes ao Grupo Caixa .... 10. Por requerimento datado de 12/07/2017, ref. 26353903, o recorrente requereu «a notificação de R. L., para ao abrigo dos princípios de gestão processual e da cooperação, vir informar aos autos a que titulo e de quem recebeu em 7/11/2011 a transferência de 515,28€ na sua conta da Caixa ... nib ... (constante de fls. 184 e 185), nomeadamente a origem da mesma, se provém de conta da inventariada O. J., sob a cominação de multa e de que se trata de facto pessoal e tem o mesmo necessariamente conhecimento da referida informação e que, no seu silêncio ou alegação de desconhecimento, se dará por assente/confessado que a mesma transferência proveio de conta da inventariada e foi aceite pelo mesmo R. L.». 11. Por despacho proferido nos autos em 22/02/2018 (ref.ª 28091140) foi determinada a notificação do interessado R. L. para «no prazo de 10 dias, vir informar os presentes autos a que título e de quem recebeu em 07.11.2011 a transferência no valor de 515,28€ na sua conta da Caixa ... nib ... (constante de fls. 184 e 185), nomeadamente a origem da mesma, se provém de conta da inventariada O. J., com a cominação do disposto no artigo 417.º do Código de Processo Civil». 12. Por ofício datado de 02/03/2018 (ref. 20965603) o interessado R. L. foi notificado nos termos e para os fins do despacho atrás identificado. 13. O interessado R. L. nada veio dizer. 14. Perante a falta de colaboração do interessado R. L., o Tribunal a quo, por despacho de 19/04/2018 (ref. 21044290), condenou o mesmo em multa equivalente a 1 (uma) UC. 15. Posteriormente, em 22/06/2018 o tribunal a quo a proferiu o despacho recorrido (refª/Citius 21151402).
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V. Fundamentação de direito.
1. – Da inversão do ónus de prova por violação do dever de colaboração para a descoberta da verdade.
Conforme resulta do art. 341º do Código Civil (abreviadamente designado por CC), “[a]s provas têm por função a demonstração da realidade dos factos”.
Como referem Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora(1), o ónus da prova significa “a situação da parte contra quem o tribunal dará como inexistente um facto, sempre que, em face dos elementos carreados para os autos (seja pela parte interessada na verificação do facto, seja pela parte contrária, seja pelo próprio tribunal), o juiz se não convença da realidade dele”,
Segundo o critério geral de repartição do ónus da prova estabelecido no art. 342º do CC:
- Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado (n.º 1).
- A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação (do direito) é feita (n.º 2).
A inversão do ónus da prova, que pode acontecer por se verificarem diversas causas que se encontram discriminadas no art. 344º do CC, ocorre, umas vezes, porque é a lei que cria presunções, ou é a lei que dispensa ou liberta o demandado do ónus da prova relativamente a um facto, sendo que noutras essa inversão resulta de convenção celebrada entre as partes. Por fim, verifica-se a inversão do ónus da prova nas situações em que a parte, culposamente, torna impossível a prova (do facto) ao onerado.
É esta última modalidade de inversão do ónus da prova que nos interessa analisar.
Estipula o art. 344º, n.º 2, do CC, que há «inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei de processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações».
Prevendo a inversão do ónus da prova, a lei impõe a demonstração da realidade de um determinado facto à parte (recusante) que de acordo com o critério geral não carecia de desenvolver uma atividade instrutória nesse sentido. O que significa que, «em desvio à regra, a prova do facto não tem de ser feita pela parte a quem o mesmo aproveita, antes recaindo sobre a outra parte o encargo de provar o facto contrário» (2).
Decorre, assim, do citado preceito estar a inversão do ónus da prova dependente da verificação de dois pressupostos (3):
i) que a prova de determinada factualidade, por ação da parte contrária, se tenha tornado impossível de fazer, o que inculca que a prova que foi inviabilizada seja decisiva para demonstrar a realidade do facto (4); ii) que tal comportamento, da mesma parte contrária, lhe seja imputável a título de culpa, não bastando a mera negligência (5).
O supra mencionado normativo sanciona com a inversão do ónus da prova a atuação da parte com ele não onerada que culposamente impeça o onerado de fazer a prova do facto (6).
O princípio violado é o do dever de cooperação para a descoberta da verdade com vista a uma sã administração da justiça.
Segundo Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (7), verifica-se o condicionalismo do citado art. 344º, n.º 2 do CC quando o comportamento do recusante«impossibilita a prova do facto a provar, a cargo da contraparte, por não ser possível consegui-la com outros meios de prova, já por a lei o impedir (exs.: 313-1 CC; art. 364 C.C), já por concretamente não bastarem para tanto os outros meios produzidos (por exemplo, a destruição pelo condutor do automóvel, logo após o acidente, dos indícios da sua culpa no acidente de viação, o obstáculo eficaz erguido à deslocação a tribunal duma testemunha da parte contrária ou a não apresentação dum documento na posse da parte pode, se outra prova dos factos em causa não existir ou, existindo, for insuficiente, dar lugar à inversão do ónus da prova, que ficará a cargo da parte não cooperante)». O mesmo sucederá quando, por exemplo, «a parte notificada para apresentar um documento não o apresenta (art. 430º do CPC) ou declara que não o possui, tendo-o já possuído e não provando que ele desapareceu ou foi destruído sem culpa sua (art. 431º do CC» «e quando, duma maneira geral, a parte recusa colaborar para a descoberta da verdade» (8). Situação aqui enquadrável será a de o réu recusar submeter-se à realização do teste de ADN, já que, podendo não ser o único meio de prova, é “um meio de prova de especial relevância” (9). Ficando onerado com o ónus de provar que não é o pai, deverá o demandado ser advertido de que a recusa terá aquele efeito (10)
Nas palavras de Lopes do Rego (11), “[p]rovindo a recusa da colaboração da parte e revelando-se inviável (por razões de facto ou jurídicas) a realização específica e coerciva da diligência determinada, a recusa de cooperação é susceptível de influir no conteúdo da decisão do tribunal que aprecia as provas produzidas. Assim:
(a) se a recusa tiver tornado impossível a prova à outra parte, sobre quem recaía o ónus probatório de certo facto (v. g. a diligência probatória culposamente frustrada recaía sobre matéria de facto absolutamente essencial, que só podia ser demonstrada por esse meio, já que o onerado não dispõe de outros meios de prova que, em concreto, demonstrem o facto) ocorre a inversão do ónus da prova, nos termos do artigo 344.º, nº2, do Código Civil (…) (b) Se não for assim - isto é, se a recusa não implicar aquela impossibilidade de o onerado provar facto absolutamente essencial à acção ou à defesa - deverá o tribunal apreciar livremente o valor probatório da recusa (nomeadamente, dela inferindo que a parte, ao menos no plano subjectivo, receava seriamente o resultado daquela diligência instrutória)”.
A impossibilidade deve aferir-se pela importância do meio probatório inviabilizado, para provar um facto que, segundo Rui Rangel (12), deverá ser decisivo (facto principal). Não faz sentido penalizar a parte não colaborante, se o meio por esta inviabilizado não for de importância decisiva para o apuramento de facto principal e, portanto, para o desfecho da ação.
À impossibilidade da prova, por actuação culposa da parte não colaborante para com o onerado, deve ser equiparada [em termos de sanção do art. 344º, n.º 2, do CC para que remete o art. 417º, n.º 2, do CPC] uma colaboração reticente ou parcialmente inviabilizadora da prova, desde que, dessa falta de colaboração resulte, comprovadamente, fragilidade probatória causada pelo recusante, isto em homenagem ao princípio da colaboração – art. 7º do Código de Processo Civil – e da boa-fé, seja na perspectiva processual, seja na perspectiva substantiva – art. 762º, n.º 2, do CC (13).
A inversão do ónus da prova surge, assim, como uma sanção civil à violação do princípio da cooperação das partes para a descoberta da verdade material, consagrado no art. 417º, n.º 1, do CPC, quando essa falta de colaboração vai ao ponto de tornar impossível ou particularmente difícil a produção de prova ao sujeito processual onerado com o ónus da prova nos termos gerais e seja culposa, no sentido de que a parte podia e devia agir de outro modo (art. 344º, n.º 2 do CC e art. 417º, n.º 2 do CPC) (14).
Esta sanção de ordem probatória justifica-se, posto que «não é justo que fique exposto às consequências da falta de prova o onerado que não pode produzi-la devido a culpa da outra parte».
Traduz, por outro lado, uma regra ou presunção da experiência que leva a concluir que aquele que destruiu culposamente uma prova receia os seus resultados (15). É que quem coloca entraves excessivos, ou mesmo insuperáveis, à descoberta da verdade material é quem mas descrê da consistência do seu direito, para além de que viola o princípio básico da cooperação entre as partes, na sua vertente da colaboração processual instrutória e probatória (art. 417º, n.º 1 do CPC) (16).
Assinale-se, porém, que a circunstância da recusa da contraparte tornar culposamente a prova impossível ou tornar particularmente difícil a prova não importa, sem mais, que o facto controvertido se tenha por verdadeiro (ou como “irremovivelmente” ou “irrefutavelmente” provado). De facto, aquela recusa, não tem como consequência necessária que o facto se tenha por provado contra a parte recusante (17), pois, se «assim fosse, então estaríamos perante um meio de prova com força probatória plena, o que manifestamente não é ahipótese» (18).
Atender à dita recusa significa tão só que passou a caber à parte recusante a prova da falta de realidade desse facto, não estando, por isso, o tribunal dispensado de valorar essa recusa para efeitos da formação da sua convição com vista a dar, como provado, ou não, o facto em causa (19).
O art. 7º do CPC estabelece o princípio da cooperação, abrangendo as próprias partes, com vista a obter-se com brevidade e eficácia a justa composição do litígio (n.º 1).
Às partes compete prestar todos os esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinentes (n.º 2), devendo comparecer em juízo sempre que para isso sejam notificadas e a prestar os esclarecimentos que lhes forem pedidos, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 417.º (n.º 3).
Acresce que as partes devem agir de boa-fé e observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado no citado art. 7º (art. 8º do CPC).
Para além disso, o Código de Processo Civil consagra ainda a pena de multa como sanção (acessória) cumulável com a inversão ou livre apreciação da prova, para a falta de cooperação da contraparte, o que resulta da conjugação do art. 344º, n.º 2, do CC com o disposto nos arts. 437º e 417º, n.º 2 do CPC
Segundo o art. 417º do CPC:
«1 - Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados. 2 - Aqueles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil. (…)».
O dever de cooperação para a descoberta da verdade previsto no art. 417º do CPC traduz, enquanto radicado nas próprias partes, uma concretização do dever geral de cooperação consagrado no art. 7º no campo da instrução da causa (20).
Efetuando uma compatibilização da segunda parte do n.º 2 do art. 417º CPC com o art. 344º, n.º 2 do CC – livre apreciação da recusa e inversão do ónus probatório –, Lopes do Rego (21) defende que este último se aplicará aos casos em que ocorre frustração culposa de um meio de prova de especial relevância (nas situações em que a parte contrária inutilizou um documento que serviria ao autor para fazer a prova do fundamento do seu direito); pelo contrário, o n.º 2 do art. 417º do CPC estará vocacionado para se aplicar às situações em que uma das partes, através da sua recusa legítima, inviabilize à outra a produção de um meio de prova entre outros existentes – de tal modo que a «recusa» apenas dificultará a posição da outra parte, sem que lhe impossibilite propriamente a produção de prova sobre o facto essencial para o julgamento da causa (22).
Feitos estes considerandos de cariz teóricos vejamos, agora, o caso dos autos.
Cabe dizer em primeiro lugar que nos situamos no âmbito de um processo de inventário judicial para partilha de herança aberta por óbito da inventariada O. J., falecida em .. de .. de ...
Dissecando o histórico dos actos processuais praticados verificamos que, tendo prestado declarações, o cabeça de casal procedeu à identificação dos herdeiros que concorrem à herança da inventariada em conformidade com a escritura de habilitação de herdeiros celebrada em 21 de Março de 2011.
Ulteriormente, quando se aprestava para juntar a relação de bens, o cabeça de casal deu notícia nos autos de, entretanto, ter tomado conhecimento que o neto da Inventariada, R. L., indicado como herdeiro por efeito de representação de seu pai, P. L., pré-falecido em relação à Inventariada, havia repudiado a herança aberta por óbito de seu pai, por escritura pública celebrada em onze de Fevereiro de 2009 (que juntou aos autos).
Requereu, assim, a retificação das declarações de cabeça de casal já prestadas, de modo a passar a figurar no lugar do interessado R. L., o filho deste, L. L..
Nessa sequência o interessado F. L. deduziu impugnação relativa às declarações de cabeça de casal, pugnando pela improcedência da requerida retificação das mesmas declarações de cabeça de casal, com a consequente manutenção do R. L. como interessado nos autos, na qualidade de representante do filho pré falecido da inventariada.
Isto porque, alega, entre o mais, por “volta de 07/11/2011, o cabeça de casal (…) transferiu de uma conta bancária da inventariada sita em França para uma conta do interessado R. L. a quantia de 515,27€, quantia esta que” este “fez sua”, “o que configura um ato inequívoco de aceitação” daquele interessado “da herança por óbito da inventariada”, pelo que “o direito de repúdio da herança perdeu-se com a aceitação da mesma por parte do interessado R. L.”.
Regularmente notificado, veio o cabeça de casal dizer não ter na sua posse qualquer documento referente a transferências bancárias e a contas bancárias da Inventariada.
De seguida, o interessado F. L. reiterou o requerimento anteriormente formulado e, no final, requereu, entre o mais, a notificação do interessado R. L. para juntar aos autos “comprovativo documental/extracto bancário referente á supra aludida transferência, efetuada em Novembro de 2011 da conta da falecida para a conta deste, bem como, caso venha a invocar não ter recebido a transferência bancária em causa, juntar extracto bancário de todas as suas contas bancárias referente ao período compreendido entre 01/11/2011 e 30/11/2011”.
Posteriormente, por requerimento de 01/07/2014, o interessado R. L. juntou aos autos cópia da caderneta da Caixa ..., por forma a comprovar a transferência realizada a 07 de Novembro de 2011, no valor de 515,28€.
Subsequentemente, o recorrente apresentou vários requerimentos aos autos, tendentes a fazer a prova de que o montante de 515,28€ transferido para a conta do interessado R. L. provinha dos bens/conta bancária pertencente à Herança da sua falecida avó e inventariada, não tendo sido possível obter as informações solicitadas.
Mais uma vez o recorrente requereu «a notificação de R. L., para ao abrigo dos princípios de gestão processual e da cooperação, vir informar aos autos a que titulo e de quem recebeu em 7/11/2011 a transferência de 515,28€ na sua conta da Caixa ... nib ... (…), nomeadamente a origem da mesma, se provém de conta da inventariada O. J., sob a cominação de multa e de que se trata de facto pessoal e tem o mesmo necessariamente conhecimento da referida informação e que, no seu silêncio ou alegação de desconhecimento, se dará por assente/confessado que a mesma transferência proveio de conta da inventariada e foi aceite pelo mesmo R. L.».
Apesar de notificado para «no prazo de 10 dias, vir informar os presentes autos a que título e de quem recebeu em 07.11.2011 a transferência no valor de 515,28€ na sua conta da Caixa ... nib ... (constante de fls. 184 e 185), nomeadamente a origem da mesma, se provém de conta da inventariada O. J., com a cominação do disposto no artigo 417.º do Código de Processo Civil», o interessado R. L. nada veio dizer.
Perante a falta de colaboração do interessado R. L., o Tribunal a quo condenou-o numa multa equivalente a 1 (uma) UC e, posteriormente, prolatou o despacho recorrido, no termos do qual decidiu que o aludido interessado, ao ter repudiado a herança de O. J., não tem legitimidade para figurar como Interessado nos presentes autos de inventário, devendo, sim, figurar como Interessado o seu filho L. L..
Centrando-nos na questão essencial submetida a recurso importa tão só apreciar e decidir se a conduta omissiva do interessado R. L., traduzida na recusa em prestar as informações que lhe foram solicitados, justifica, ou não, a inversão do ónus da prova.
Com o devido respeito por opinião contrária, a nossa resposta não pode deixar de ser negativa.
Isto porque, ao contrário do que o recorrente defende, o comportamento omissivo do interessado R. L., consubstanciando de facto uma violação do princípio da cooperação em sentido material, não determinou culposamente a impossibilidade da prova do facto àquele a quem a competia fazer.
Aliás, em cumprimento do que lhe havia sido determinado, o interessado R. L. não deixou de juntar aos autos cópia da caderneta da Caixa ..., da qual consta uma transferência no valor de 515,28€, realizada a 7/11/2011.
Acontece, porém, que não foi possível apurar a identidade da pessoa que ordenou a realização da referida transferência e, muito menos, a que título essa transferência (bem como uma outra) foi feita.
Ora, nos termos do art. 344º, n.º 2 do CC, a inversão do ónus da prova apenas ocorre quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado.
Não basta pois que a parte recuse ou não justifique a falta de colaboração. É ainda necessário que essa falta de colaboração tenha tornado impossível a prova do facto ao onerado com essa prova, no caso, o recorrente, e que esse comportamento tenha sido culposo.
E nesse âmbito desde logo não se verifica uma impossibilidade de produção de prova por culpa da contraparte.
O recorrente não estava impossibilitado de cumprir o ónus da prova que o vulnera, já que lhe seria lícito utilizar qualquer outro meio de prova legalmente admitido (arts. 341.º e 345.º do Código Civil).
Com efeito, o (alegado) recebimento pelo interessado R. L. de quantia monetária respeitante à herança da inventariada, tendente a infirmar o repúdio (e a demonstrar a aceitação tácita) dessa herança por parte daquele interessado, não são factos de prova vinculada, podendo a sua prova ser feita por qualquer meio legal ou contratualmente admissível ou não excluído por convenção das partes.
Constata-se, aliás, que o recorrente não esgotou sequer os meios de prova que tinha ao seu dispor para tentar demonstrar o facto em causa, posto que não chegou a requerer o depoimento de parte do interessado R. L. ou inclusivamente dos demais interessados.
Não obstante os pedidos de informações solicitados e a não resposta por parte do recorrido, nada impedia que o impugnante/recorrente tivesse requerido o depoimento de parte do referido interessado para que este, uma vez ajuramentado (art. 459º, n.º 2 do CPC), depusesse sobre o circunstancialismo fáctico alegado de modo a obter a sua confissão sobre tais factos (art. 352º do CC), os quais, a provarem-se, tinham em vista demonstrar a aceitação tácita da herança (art. 2056º, n.º 1 e 2057º, ambos do CC) e infirmar o invocado repúdio da herança.
Serve isto para dizer que da recusa da prestação de colaboração por parte do interessado R. L., nos termos e no contexto em que a mesma se verificou, não é possível concluir que daí adveio a impossibilidade da prova do facto à parte onerada, até porque era possível consegui-la com outros meios de prova legalmente admitidos (mas que não foram requeridos).
Ora, até por apelo ao princípio da proporcionalidade, entende-se que não faz sentido penalizar a parte não colaborante se o meio por esta inviabilizado não for de importância decisiva para o apuramento de facto principal, e, portanto, para o desfecho da ação.
É indiscutível que, face à violação do princípio da colaboração, se justificou a condenação do interessado recusante na sanção acessória de multa prevista no art. 417º, n.º 2 do CPC, mas não é caso da aplicação de uma sanção gravosa, como seja a inversão do ónus da prova nos termos do art. 344º, n.º 2 do CC.
Como se disse, a prestação das informações solicitadas não era indispensável para a apreciação do pedido, pois a recusa ilegítima não implicou a impossibilidade de o onerado provar facto absolutamente essencial à verificação da exceção perentória por si invocada, já que dispunha de (outros) meios probatórios aptos à sua demonstração, designadamente o depoimento de parte do interessado recusante.
Nesta conformidade, improcedem todas as conclusões do apelante quanto a este fundamento (inversão do ónus de prova).
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2. - Da aceitação (tácita) pelo interessado R. L. da herança por óbito da inventariada O. J..
A eventual alteração da solução jurídica alcançada na decisão impugnada quanto a esta concreta questão dependia, na sua totalidade, do prévio sucesso da pretensão de inversão do ónus da prova (23), o que não sucedeu, pelo que se considera necessariamente prejudicado o conhecimento do pedido de alteração do decidido naquela decisão, o que aqui se declara, nos termos do art. 608º, n.º 2 do C.P.C. “ex vi” do art. 663º, n.º 2, in fine, do mesmo diploma.
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Sumário (ao abrigo do disposto no art. 663º, n.º 7 do CPC):
I – Como decorre do disposto no art. 344º, n.º 2 do Código Civil, a inversão do ónus da prova depende da verificação de dois pressupostos:
a) que a prova de determinada factualidade, por ação da parte contrária, se tenha tornado impossível de fazer ou, pelo menos, se tenha tornado particularmente difícil de fazer;
b) que tal comportamento, da mesma parte contrária, lhe seja imputável a título culposo.
II – Não é de operar a inversão do ónus da prova quando:
- a recusa (ilegítima) da colaboração da parte não tiver tornado impossível a prova à outra parte, sobre quem recaía o ónus probatório de certo facto; e
- a parte onerada com a prova do facto não esgotou os meios de prova que tinha ao seu dispor para o tentar demonstrar.
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VI. Decisão
Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedentes o recurso de apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas a cargo do apelante (art. 527º do CPC), sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que goza.
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Guimarães, 31 de janeiro de 2019
Alcides Rodrigues (relator)
Joaquim Boavida (1º adjunto)
Paulo Reis (2º adjunto)
1. Cfr., Manual de Processo Civil, 2.ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, p. 450. 2. Cfr. Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2ª ed., 2017, Almedina, p. 374. 3. Cfr., Ac. do STJ de 12/04/2018 (relatora Rosa Tching) e Ac. da RP de 1/02/2016 (relator Manuel Domingos Fernandes), ambos disponíveis in www.dgsi.pt. 4. Rejeitando a equiparação da dificuldade probatória à impossibilidade da prova e sujeitando, na primeira situação, a conduta da parte à livre apreciação do Tribunal, Acs. do STJ de 29/06/1999 (relator Garcia Marques), de 23/03/2000 (relator Ferreira de Almeida e de 20/02/2001 (relator Ferreira Ramos), todos disponíveis in www dgsi.pt.; todavia, alguma jurisprudência tem-se orientado no sentido de admitir a inversão do ónus da prova, nos termos do art. 344º, n.º 2 do CC, não apenas quando a prova seja impossível para a parte onerada, mas também quando esta se torne particularmente difícil. - cfr., neste sentido, entre outros, o Ac do STJ de 31.03.2009 (relator Fonseca Ramos), in www dgsi.pt. 5. Cfr., Ac. do STJ, de 23.02.2012 (relator Bettencourt de Faria), in www.dgsi.pt. 6. Cfr. José Lebre de Freitas, Código Civil Anotado (Ana Prata Coord.), volume I, Almedina, 2017, p. 427. 7. Cfr. Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 3.ª ed., Almedina, 2017, p. 222/223. 8. Cfr. José Lebre de Freitas, Código Civil Anotado (Ana Prata Coord.), volume I, pp. 427/428. 9. Cfr., Lopes do Rego, Relevância dos exames de sangue nas ações de investigação de paternidade – Recusa de cooperação do réu e inversão do ónus da prova, in Revista do Ministério Público, Ano 15º, abril/junho/1994, n.º 58, pp. 157-153. 10. Cfr., Acs. do STJ, de 23.02.2012 (relator Bettencourt de Faria), de 17/05/2016 (relator Paulo de Sá) e de 03/09/2017 (relator Pinto de Almeida), proc. 737/13.4TBMDL.G1.S1 - embora este último aresto para consulta na base de dados da dgsi se deva pesquisar com a data de 03/10/2017 -, Ac. da RP de 11/07/2018 (relator Rodrigues Pires) e Ac. da RC de 06/02/2018 (Vítor Amaral), todos disponíveis em www.dgsi.pt. 11. Cfr., Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, Almedina, 2ª Ed., 2004, em anotação ao artigo 519.º, pp. 454-455. 12. Cfr. O Ónus da Prova em Processo Civil, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2002, p. 191. 13. Cfr., Ac. do STJ de 31/03/2009 (relator Fonseca Ramos), in www.dgsi.pt. 14. Cfr., Ac. do STJ de 12/04/2018 (relatora Rosa Tching), in www.dgsi.pt. 15. Cfr., Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, obra citada, p. 467 e Rita Lynce de Faria, A Inversão do Ónus da Prova no Direito Civil Português, Lex, 2001, pp. 50/51. 16. Cfr. Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Vol. II, 2015, Almedina, p. 239. 17. Cfr., Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, obra citada, pp. 467 e 479. 18. Cfr. Ac. do STJ de 23.02.2012(relator Bettencourt de Faria), in www.dgsi.pt. 19. Cfr., Ac. do STJ de 12/04/2018 (relatora Rosa Tching), in www.dgsi.pt. 20. Cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, obra citada, p. 221. 21. Cfr., Relevância dos exames de sangue (…), p. 153. 22. Numa posição diferenciada, Rita Lynce de Faria, obra citada, pp. 51/52, sustenta que, quando na segunda parte do n.º 2 do art. 519º CPC se preceitua como cominação para a recusa de colaboração a livre apreciação desta atitude para efeitos probatórios, esta recusa será a da parte onerada com a prova daquele facto, pois nessa situação nunca poderia verificar-se uma inversão do ónus da prova. Já quando a recusa de colaboração provier da parte não onerada com a prova do facto, deverá entender-se ser aplicável o n.º 2 do art. 344º do CC, passando a ser a parte que não colaborou que fica onerada com a prova do respetivo facto. 23. Imprescindível de modo a, por um lado, poder valorar essa recusa para efeitos da formação da convicção do tribunal com vista a dar como provado que o interessado R. L., por volta de 07/11/2011, recebeu a quantia de 515,28€ por transferência de uma conta bancária da inventariada, quantia esta que o mesmo interessado fez sua, e, por outro lado, poder concluir-se que tal configura um acto inequívoco de aceitação do interessado R. L. da herança por óbito da inventariada O. J., com o que se lograria julgar procedente a impugnação das declarações de cabeça de casal, dando sem efeito a retificação de tais declarações na parte em passou a figurar no lugar do interessado R. L. o filho deste, L. L., mantendo-se assim o mesmo R. L. como interessado nos autos, na qualidade de representante do filho pré-falecido da inventariada, P. L..