Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento de ações, intentadas por concessionária de serviço público de tratamento de águas residuais, resíduos sólidos e recuperação de crómio, destinadas à cobrança de dívidas emergentes de taxas pela prestação dos serviços concessionados.
A Ré deduziu oposição excecionando a ilegitimidade da A. e a prescrição da dívida, e contradizendo os factos alegados pela A. considerou, em síntese, que as quantias peticionadas não são devidas por não haverem sido prestados os serviços a que as mesmas se reportam.
Concluiu, na procedência da exceção da ilegitimidade da A., pela absolvição da instância, na procedência da exceção da prescrição da dívida, pela absolvição do pedido e, em qualquer caso, pela improcedência da ação.
Finda fase dos articulados, a R. atravessou requerimento nos autos, suscitando a exceção da incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria, na consideração que a jurisdição administrativa é competente para conhecer do litígio.
A A. respondeu defendendo a competência dos tribunais comuns.
2. Houve lugar a audiência prévia, no decurso da qual foi proferido despacho a reconhecer competência aos tribunais administrativos e ficais para conhecer do litígio, concluindo, a final, pela incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria e pela absolvição da Ré da instância.
3. A A. recorre desta decisão e exara as seguintes conclusões:
“1. Na sentença o Meritíssimo Juiz “a quo” refere que as relações entre os associados e utilizadores dos serviços prestados pela Autora terão de ser dirimidos na jurisdição administrativa e não nos tribunais comuns.
2. Para fundamentar a sua decisão traz à colação o Dec.-Lei 379/93, de 05 de Novembro e considera, em nossa opinião erradamente, que a concessão está sujeita, em toda a sua amplitude, às normas do referido Decreto-lei.
3. Manifestamos, desde já, a nossa discordância com essa interpretação, pois consideramos que a sujeição é meramente residual, não tendo a ora Recorrente quaisquer poderes de autoridade, nem prossegue fins de interesse público, continuando esses na esfera da Câmara Municipal de (…), não tendo sido transferidos pelo contrato.
4. Tanto mais se analisarmos o art.º 39º do Regulamento de Águas Residuais (junto aos autos) verificamos que os diferendos serão resolvidos por um Tribunal Arbitral, exceção feita ao pagamento das faturas pela utilização do sistema.
5. As partes quiseram maior celeridade e menos custos na cobrança das faturas, retirando-as do Tribunal Arbitral, podendo lançar mão de um meio mais rápido na constituição de título executivo.
6. No parecer emitido pelo ESAR, que se encontra junto aos autos, conclui-se pelo carácter singular e atípico desta concessão.
7. É o próprio parecer da ERSAR que refere: “A situação da (…), explicável pelo contexto histórico acima descrito pode considerar-se atípica na medida em que não se enquadra em nenhum dos quadros legais em vigor “ e mais refere, “Acresce que esta qualidade (ser utilizadora do domínio público hídrico) não será título suficiente para a prestação do serviço público de saneamento de águas residuais” concluindo que “A (…) nunca se assumiu como sendo uma entidade gestora do serviço público de saneamento de águas residuais”
8. Nos termos do Contrato de Concessão, à (…) foi atribuída, a manutenção, a exploração, a gestão e a respetiva melhoria do sistema municipal de (…) de coleta e tratamento de águas residuais.
9. O Sistema de (…) gerido pela (…) apenas residualmente se encontra dedicado ao saneamento de águas residuais urbanas.
10. O rácio de dedicação da ETAR de (…) aos setores industrial e urbano é de 7/3 e as infraestruturas de drenagem são fundamentalmente usadas pelas águas industriais, uma vez que é feita pela (…) a recolha destas junto das empresas utilizadoras, o mesmo já não sucedendo com as águas residuais urbanas que são canalizadas para o Sistema pelo próprio Município.
11. Estes dados são de tal modo impressivos ao ponto de tornar incontornável, que se questione a sujeição da integralidade do Contrato de Concessão ao Decreto-Lei n.° 194/2009, de 20 de Agosto, e mesmo, ao seu tempo, ao Decreto-Lei n.° 379/93.
12. O Decreto-Lei n.° 194/2009, em cujo preâmbulo pode ler-se, que "[a]s atividades de abastecimento público de água às populações, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos constituem serviços públicos de carácter estrutural, essenciais ao bem-estar geral, à saúde pública e à segurança coletiva das populações, às atividades económicas e à proteção do ambiente".
13. Salienta-se, portanto, a alusão expressa a águas residuais urbanas.
14. Maior relevância assume, naturalmente, o corpo normativo deste diploma legal, em especial os respetivos artigos 1.º e 2.º, respeitantes ao objeto e ao âmbito do diploma legal em apreço.
15. A esse propósito, o legislador de 2009, declarou que, em matéria de saneamento, nele se estabelece o regime jurídico de “saneamento de águas residuais urbanas” (cfr. artigo 1.°) e que os serviços de saneamento de águas residuais urbanas compreendem “[a] gestão dos sistemas municipais de recolha, drenagem, elevação, tratamento e rejeição de águas residuais urbanas, bem como a recolha, transporte, e o destino final de lamas de fossas sépticas individuais” (cfr. artigo 2.°).
16. A alusão a águas resíduas urbanas é uma constante ao longo do diploma.
17. O conceito de águas residuais urbanas encontra-se definido no nosso ordenamento jurídico, no Decreto-Lei n.º 152/97, de 19 de Junho, que se aplica à recolha, tratamento e descarga de águas residuais urbanas no meio aquático, procedendo à transposição da Diretiva 91/271/CEE, do Conselho, de 21 de Maio de 1991.
18. Este diploma legal adota a definição de águas residuais que é também adotada pela mencionada diretiva europeia, decompondo o conceito em três outros conceitos operativos: a) as águas residuais domésticas: que são “as águas residuais de serviços e de instalações residenciais, essencialmente provenientes do metabolismo humano e de atividades domésticas”; b) as águas residuais industriais, que correspondem às “águas residuais provenientes de qualquer tipo de atividade que não possam ser classificadas como águas residuais domésticas nem sejam águas pluviais” e, finalmente c) as águas residuais urbanas que define como as “águas residuais domésticas ou a nústura destas com águas residuais industriais e ou com águas pluviais” (cfr. n.º 2 do artigo 2.º).
19. Também prevê no artigo 9.° as condições de descarga de águas residuais industriais nos sistemas de drenagem e nas estações de tratamento de águas residuais urbanas.
20. Esta definição de águas residuais urbanas, oferecida pelo Decreto-Lei n.º 152/97, constitui, pois, um importante auxílio para a compreensão da delimitação do âmbito de aplicação do Decreto-Lei n.º 194/2009 e do Decreto-Lei n.º 379/93.
21. Abrangido por aqueles Decretos-Lei, não está, portanto, o saneamento de águas residuais industriais, mas apenas das águas residuais urbanas.
22. É esse, de resto, o serviço que é responsabilidade e atribuição das entidades públicas prestar e assumir.
23. A responsabilidade das entidades públicas, em concreto dos municípios, é apenas o saneamento das águas residuais urbanas, pois o princípio geral é o de que a responsabilidade pelo saneamento das águas residuais industriais é dos respetivos produtores.
24. Este modelo encontra, aliás, paralelo, com o que se passa ao nível dos resíduos sólidos: a responsabilidade dos municípios também se limita aos resíduos sólidos urbanos.
25. A Lei n.° 159/99, de 14 de Setembro, que estabelecia o quadro de transferências de atribuições e competências para as autarquias locais (entretanto revogada pela Lei n.° 75/2013, de 12 de Setembro) deixava este recorte das atribuições municipais absolutamente claro, ao estabelecer que é da competência dos municípios o planeamento, a gestão de equipamentos e a realização de investimentos no domínio dos sistemas municipais de drenagem e tratamento de águas residuais urbanas (cfr. alínea b) do n.º 1 do artigo 26º da Lei n.° 159/99).
26. Atualmente, a Lei n.º 75/2013 não é tão detalhada, prevendo apenas o domínio do ambiente e saneamento básico como atribuições do município, muito embora esta opção generalista do legislador não comprometa ou abale o tradicional recorte das atribuições municipais neste domínio.
27. Com efeito, sempre se considerou que o Sector tradicionalmente designado por “saneamento básico” compreende a prestação dos seguintes serviços: o abastecimento público de água às populações, hoje classificado de abastecimento de água para consumo humano; o saneamento das águas residuais urbanas e os resíduos urbanos.
28. Poder dizer-se que saneamento básico pressupõe o saneamento para acorrer às necessidades básicas das populações, já não para a correr à rejeição de águas residuais pelas indústrias.
29. Não se ignora que o Decreto-Lei n.º 379/93, de 3 de Novembro, se referia aos sistemas de recolha, tratamento e rejeição de efluentes, não estabelecendo qualquer distinção entre águas residuais urbanas e águas residuais industriais.
30. Era esse também o modelo na Lei de Delimitação de Setores de 1977 (a Lei nº 46/77, de 8 de Julho, que se referia a “saneamento básico”).
31. E, no que toca ao recorte das atribuições municipais, o padrão é o que vinha já do Código Administrativo de 1940, que estabelecia, no seu artigo 49º, que são “atribuições de salubridade pública”, cuja competência pertencia à Câmara, o “estabelecimento das redes de esgotos, adentro das povoações”.
32. Não obstante a utilização destas fórmulas “efluentes”, “saneamento básico” e “rede de esgotos” – e não a formulação de águas residuais urbanas que foi introduzida por influência do Direito europeu, após a já mencionada Diretiva 91/271/CEE, do Conselho, de 21 de Maio de 1991 (transposta pelo Decreto-Lei n.º 152/97, acima referido), tal não pode significar, a nosso ver; que tais diplomas legais consagrassem atribuições municipais em matéria de saneamento mais amplas do que aquelas que ficaram consagradas, como se viu, na Lei nº 159/99 e no Decreto-Lei n.º 194/2009.
33. No sentido de que em causa sempre esteve, já na altura, apenas os efluentes produzidos nas habitações ou similares (por oposição aos efluentes das indústrias) milita, aliás, o texto do Código Administrativo que indica como atribuição camarária, como se viu, o estabelecimento das redes de esgotos “adentro das povoações”.
34. De resto, como atrás se sublinhou, a doutrina tem associado a expressão “saneamento básico” justamente à rede de águas residuais urbanas, e não a outras.
35. Na verdade, que se saiba, foi só a partir de 1994 que os conceitos europeus, constantes da referida Diretiva, começaram a ser usados pelo legislador nacional.
36. O Decreto-Lei nº 46/94, de 22 de Fevereiro, relativo ao regime da utilização do domínio hídrico, já alude a águas urbanas e a águas residuais provenientes de atividades industriais (alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 38.°).
37. Na Lei de Delimitação de Setores, o conceito de águas residuais urbanas foi introduzido pela Lei n.º 88-A/97, de 25 de Julho, que passa a referir-se ao setor vedado do saneamento em temos de “recolha, tratamento e rejeição de águas residuais urbanas”.
38. Atualmente, o tema encontra-se expressamente tratado no artigo 54.º do Decreto-Lei n.° 227-A/2007, de 31 de Maio.
39. De acordo com o n.º 1 daquele preceito legal, a rejeição de águas residuais industriais em sistemas de disposição de águas residuais urbanas só pode ocorrer mediante autorização das entidades gestoras desses sistemas, estando ainda sujeita ao cumprimento das disposições constantes do regulamento previsto no artigo 9.º do Decreto-Lei n.° 152/97.
40. Aqui chegados, pode concluir-se que os Decretos-Lei n.° 379/93 e, depois, o Decreto-Lei n.° 194/2009, ainda vigente, apenas regulam o regime jurídico dos sistemas municipais de águas residuais urbanas, ainda que permitam, verificadas certas condições, a canalização de águas industriais para tais sistemas urbanos.
41. Ora, sabendo-se que o sistema de águas residuais de (…), independentemente da sua titularidade, apenas residualmente constitui um sistema de águas urbanas, configurando, antes, a título principal, um sistema de efluentes industriais, parece poder afirmar-se paralelamente, com segurança, que o Sistema de (…) – e, concomitantemente, o Contrato de Concessão se encontra também apenas residualmente submetido ao regime jurídico previsto no Decreto-Lei nº 194/2009 (o mesmo se podendo concluir a respeito da sua submissão, ao tempo, ao Decreto-Lei n.° 379/93).
42. Nesta base, qualquer aplicação de tal regime jurídico ao Contrato de Concessão deve partir da consideração do cariz suis generis do Sistema e do próprio Contrato de Concessão, assumindo que a imperatividade para o Sistema e para o Contrato daquele bloco de normas se encontra significativamente condicionada, nomeadamente no que toca às relações dos associados e utilizadores industriais com a ora Recorrente.
43. A atividade da (…) é centrada no município de (…), prestando serviços aos seus associados e utilizadores industriais na coleta (em alta) e tratamento das águas industriais, cobrando, para esse efeito, um determinado valor que consta dos regulamentos aprovados em Assembleia Geral de Associados, ou seja, por quem paga.
44. No que toca ao tratamento das águas residuais urbanas, a Autora não cobra um cêntimo que seja ao Município nem à população, sendo que essa coleta é realizada pelo próprio Município.
45. Portanto, com exceção da vertente em “alta” do saneamento urbano do subsistema de (…), que se encontra concessionado à (…), o restante serviço municipal de coleta e tratamento de águas residuais urbanas é totalmente gerido pelo município de Alcanena, e isso sim, serviço público essencial.
46. Podemos afirmar que este serviço que a Recorrente presta e cobra é um serviço privado, prestado a um núcleo restrito de pessoas coletivas que se auto regulam aplicando o princípio do “Poluidor Pagador” e que se encontram em relação de paridade e não de autoridade.
47. É também referido no Saneador/Sentença, como justificativo de decisão, que o artigo 4.º, nº 1, alínea e), do Estatuto do Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), na redação introduzida pelo Dec. Lei nº 214-G/2015, de 02 de Outubro, preceitua que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a "Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes".
48. Concorda-se com esta interpretação, contudo, o que está em causa no caso concreto dos presentes autos, nada tem que ver com a validade e interpretação do contrato de concessão, mas apenas e só com o não pagamento de faturas resultantes da prestação do serviço.
49. Não é possível questionar que a caracterização do litígio que concorre para a determinação da jurisdição competente é aquela que resulta em exclusivo da configuração que o Autor dá a ação, ou seja, a competência tem que ser avaliada à luz dos elementos objetivos e subjetivos da ação, que derivam da Petição Inicial.
50. Se atentarmos na Petição Inicial, a sua configuração, ou seja, a causa de pedir e o pedido estribam-se respetivamente no não pagamento das faturas pela prestação do serviço, e no montante titulado por essas mesmas faturas.
51. Entendemos que o contrato de concessão não assimila o contrato de prestação do serviço, sendo que aquele se adequa às normas públicas e este a uma dimensão normativa de direito privado.
52. Na verdade em nada a cobrança de faturas devidas pela prestação de um serviço contratado em que as partes estão em posição da paridade onde a lógica de supra/infra ordenação não se coloca, pode ser vista como capaz de integrar a jurisdição administrativa, tanto mais que já vimos que a concessão é restrita às águas industriais e resíduos industriais.
53. Mas mesmo que assim não fosse, quer no âmbito do contrato de concessão, quer no âmbito do Regulamento de Águas Residuais, as partes acordaram submeter a um Tribunal Arbitral os litígios que se suscitem sobre a interpretação, validade ou execução do contrato.
54. Na verdade o pacto de desaforamento constante, quer do Regulamento de Águas Residuais, quer do contrato de concessão, já foi objeto de apreciação pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, 3ª Unidade Orgânica, no âmbito do processo nº 287/06.0BELSB, que opôs a ora Recorrente à (…) Gestão de Águas SA., decidindo pela competência do Tribunal Arbitral (sentença que se encontra junta aos autos).
55. Ora não exercendo a (…) qualquer poder público nem atuando na realização de um interesse público, e tendo, as partes, sujeitado qualquer diferendo a um Tribunal Arbitral, com exceção das faturas referentes à utilização do sistema, temos de concluir que a cobrança judicial destas cabe na competência dos tribunais comuns.
56. Não se verificaram os pressupostos da incompetência absoluta prevista na alínea a) do artigo 96.º do Cód. Proc. Civil, que foi violado;
57. Não se verificaram os pressupostos da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais prevista na alínea e) do nº 1 do art.º 4º e alínea c) do nº 1, ambos do ETAF, que foram violados;
58. A douta sentença deve ser revogada, substituindo-a por outra ordene o prosseguimento nos autos nos Tribunais Comuns, ou, caso assim não se entenda, para um Tribunal Arbitral.
E assim se fazendo JUSTIÇA!”
Respondeu a R., em aprofundada análise, por forma a concluir pela confirmação da decisão recorrida.
Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II. Objeto do recurso.
Vistas as conclusões da motivação do recurso e sendo estas que delimitam o seu objeto, importa decidir (i) se o tribunal judicial é competente, em razão da matéria, para conhecer da causa, (ii) não o sendo, se é competente o tribunal arbitral.
III. Fundamentação.
1. Factos
Para além dos factos que resultam do relatório, releva considerar os seguintes factos alegados no requerimento inicial:
“1 – A Requerente é uma associação de utilizadores sem fins lucrativos a quem, por contrato celebrado em 21 de Março de 1995 com a Câmara Municipal de (…), foi concessionado o Sistema de Tratamento de Águas Residuais de (…) e que presta serviços aos seus associados e demais utilizadores do referido Sistema.
2 – À Requerente foi concedido o estatuto de utilidade pública e é utilizadora do domínio público hídrico e tem como objeto o tratamento de águas residuais, resíduos sólidos e recuperação de crómio.
3- A Requerida é uma sociedade que se dedica à transformação de peles sem pelo que produz águas residuais, resíduos sólidos e utiliza crómio, sendo utilizadora do sistema de águas residuais.
(…)
2. Direito
2.1. A (in)competência do tribunal em razão da matéria.
A decisão recorrida julgou a jurisdição administrativa competente para conhecer da causa e a A,. diverge na consideração que o tribunal judicial é o competente para o efeito.
“Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais” – artº 211º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Na concretização deste enunciado constitucional, prevê o artº 64º, do Código de Processo Civil (CPC) que são “da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
A competência dos tribunais comuns, em razão da matéria, afirma-se na ausência de qualquer outra ordem jurisdicional com competência para a causa.
“A competência dos tribunais judiciais constitui a regra; é genérica. A dos tribunais especiais constitui a exceção; é específica”[1].
“Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” – artº 212º, nº 3, da CRP.
O conceito de relações jurídicas administrativas e fiscais, na lição de Gomes Canotilho e Vital Moreira, aliás anotada pela decisão recorrida, “(…) transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as ações e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal»[2] (Constituição da República Portuguesa, Volume II, Coimbra Editora, 2010, p.p. 566 e 567.).
Neste sentido, ajuizou o Acórdão Tribunal de Conflitos de 25-01-2007, “um litígio emergente de relações jurídicas administrativas é aquele em que existe controvérsia sobre relações jurídicas disciplinares por normas de direito administrativo”[3]
Releva, pois, verificar se a controvérsia documentada na causa é disciplinada por normas de direito administrativo e, nesta indagação, importa considerar os “termos em que foi proposta a ação - seja quanto aos seus elementos objetivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou ato donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjetivos (identidade das partes). A competência do tribunal (…) afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum); é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do Autor.”[4]
Tal como a A. configurou a causa, no âmbito do contrato de concessão do Sistema de Tratamento de Águas Residuais de (…), outorgado por si e pelo Município de (…), em 21/3/1995, prestou à R. serviços de tratamento de águas residuais, resíduos sólidos e de recuperação de crómio que a Ré não pagou, destinando-se a ação a condenar a R. no pagamento.
Por concessão de serviços público, entende-se o contrato pelo qual o co-contratante se obriga a gerir, em nome próprio e sob sua responsabilidade, uma atividade de serviço público, durante um determinado período, sendo remunerado pelos resultados financeiros dessa gestão ou, diretamente, pelo contraente público (artº 407º, nº 2, do D.L. nº 18/2008, de 29/1, republicado pelo D.L. nº 278/2009, de 2/10).
Os serviços prestados pelo A. à R., ao abrigo do contrato de concessão inserem-se, assim, numa atividade de serviço público gerido pela A. e a determinação da sua contrapartida, designada por tarifa no contrato, não obstante sujeita à aprovação do Município, incumbia à A., de acordo com pressupostos e métodos de cálculo previstas no contrato de concessão e no Regulamento do Sistema a este anexo (cláusula 22ª do contrato junto de fls. 150 a 164).
A determinação das taxas, sua liquidação e cobrança aos utentes constitui, aliás, uma prorrogativa dos concessionários de exploração e a gestão dos sistemas municipais de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, de recolha, tratamento e rejeição de efluentes e de recolha e tratamento de resíduos sólidos.
“A concessionária, precedendo aprovação pelo concedente, tem direito a fixar, liquidar e cobrar uma taxa aos utentes, bem como a estabelecer o regime de utilização, e está autorizada a recorrer ao regime legal da expropriação, nos termos do Código das Expropriações, bem como aos regimes de empreitada de obras públicas e de fornecimento contínuo” (artº 13º, nº 2, do D.L. nº 379/93, de 5/11, que aprovou o regime de exploração e gestão dos sistemas multimunicipais e municipais de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, de recolha, tratamento e rejeição de efluentes e de recolha e tratamento de resíduos sólidos, vigente à data da celebração do contrato de concessão).
O direito que a A. pretende fazer valer na ação – reconhecimento do direito a ser paga pela R. pela prestação de serviços de tratamento de águas residuais, resíduos sólidos e recuperação de crómio, pressuposto incontornável da pretendida condenação da R. – supõe designadamente a observância das regras de determinação das taxas e sua liquidação e, assim, a relação jurídica controvertida, tal como a A. a configura, é regulada, sob o ponto de vista material, pelo contrato de concessão do serviço público e pelas normas de direito administrativo a que se encontra subordinado.
Na terminologia da alínea e) do nº 1, do artigo 4º, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.° 13/2002, de 19/2, com alterações[5], o litígio tem por objeto a interpretação e execução de contrato celebrado por entidades adjudicantes [como o é a A. - cfr. artº artº 2º, nº2, al. i) do D.L. nº 278/2009, de 2/10], competindo aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a sua apreciação.
Contrapõe a A. como uma aprofundada motivação de direito (administrativo) destinada a demonstrar que o serviço por si prestado é um serviço privado, respeitante a um núcleo restrito de pessoas coletivas que se auto regulam aplicando o princípio do “poluidor pagador” e se encontram em relação de paridade e não de autoridade.
Será como argumenta, admite-se por mera necessidade de raciocínio, mas a competência, já se disse e merece a concordância da A., afere-se pelos termos em que a ação é proposta e, na configuração desta, a tarifa aplicável aos serviços prestados à R é fixada pela A. e não negociada entre a A. e os utilizadores a que presta serviços, ainda que estes sejam seus associados; de facto, mesmo neste último caso, não pode confundir-se o ato deliberativo dos seus associados com vista à formação da vontade da A., enquanto pessoa coletiva – v.g. na fixação de taxas – e os contratos que com estes celebra na prossecução dos seus fins sociais.
A argumentação do recurso assenta, assim, em considerações que a configuração inicial da causa não comporta e, como tal, não relevam para a apreciação da competência do tribunal.
Em conclusão, compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento de ações, intentadas por concessionária de serviço público de tratamento de águas residuais, resíduos sólidos e recuperação de crómio, destinadas à cobrança de dívidas emergentes de taxas pela prestação dos serviços concessionados.
2.2. Se ocorre a preterição de tribunal arbitral.
Prevenindo a possibilidade de não se reconhecer a competência dos tribunais judiciais e depois de afirmar que as partes sujeitaram qualquer diferendo a um Tribunal Arbitral, com exceção das faturas referentes à utilização do sistema, pretende a A que a competência seja deferida a Tribunal Arbitral.
A incompetência absoluta resultante da preterição de tribunal arbitral não é de conhecimento oficioso (artº 97º, nº 1 e 578º, ambos do CPC) e a questão é suscitada ex novo no recurso; não foi suscitada na 1ª instância, nem foi objeto de pronúncia na decisão recorrida.
Como é pacífico para a doutrina e para a jurisprudência, no nosso sistema, os recursos ordinários, como é o presente recurso de apelação, destinam-se à reponderação da decisão recorrida, o que significa que, em regra, “o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não foram formulados”[6], e isto porque os recursos visam modificar ou anular as decisões recorridas[7] e “não criar decisões sobre matéria nova não sendo lícito invocar e conhecer nos mesmos questões que as partes não tenham suscitado perante o tribunal recorrido”[8].
Assim, não tendo a decisão sob recurso resolvido qualquer questão relacionada com a preterição de tribunal arbitral, por não lhe haver sido colocada, não pode o recurso, neste particular, apreciar seja o que for, por se tratar de uma questão que nem a A. suscitou perante o tribunal recorrido, nem este resolveu.
Por esta razão não se conhece desta questão.
Improcede o recurso, restando confirmar a decisão recorrida.
2.3. Vencida no recurso, incumbe à A/recorrente pagar as custas (artº 527º, nº 1, do CPC).
IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, na improcedência do recurso, em confirmar a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Évora, 18/10/2018
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
________________________________________________
[1] Manuel de Andrade, Noções elementares de Processo Civil, 1979, pág. 95.
[2] Constituição da República Portuguesa, Volume II, Coimbra Editora, 4ª ed., págs.. 566 e 567.
[3] In www.dgsi.pt
[4] Manuel de Andrade, Ob. cit., pág. 91.
[5] Rectif. n.º 14/2002, de 20 /3, Rectif. n.º 18/2002, de 12/4, Lei n.º 4-A/2003, de 19/2, Lei n.º 107-D/2003, de 31/12, Lei n.º 1/2008, de 14/1, Lei n.º 2/2008, de 14/2, Lei n.º 26/2008, de 27/6, Lei n.º 52/2008, de 28/8, Lei n.º 59/2008, de 11/9, DL n.º 166/2009, de 31/7, Lei n.º 55-A/2010, de 31/12, Lei n.º 20/2012, de 14/5, DL n.º 214-G/2015, de 02/10.
[6] Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos, pág. 395 e Jurisprudência aí indicada; no mesmo sentido, Lebre de Freitas, CPC anotado, 2ª ed., 3º vol. Tomo I, pág. 5 e Abrantes Geraldes, Recursos, novo regime, pág. 23.
[7] É o que decorre, entre outros, dos artºs 627º, nº 1, 631º e 639º, nº 1, todos do C.P.C.
[8] Cfr., entre outros, Ac. STJ de 6/2/1987, BMJ, 364º - 714.