INTERNAMENTO COMPULSIVO DOS PORTADORES DE ANOMALIA PSÍQUICA
DESPACHO DE MANUTENÇÃO
PRAZO PARA PROFERIR DECISÃO
Sumário


I – O prazo de 48 horas para confirmação (ou não) do internamento compulsivo do arguido, previsto na LSM, tem natureza ordenativa (e não perentória), pelo que o seu excesso não acarreta a inviabilidade da confirmação judicial do internamento compulsivo e a consequente libertação da pessoa visada.

II - Uma vez ultrapassado o limite temporal previsto para o efeito, a colocação do internando em liberdade só ocorrerá, quando o Tribunal ajuíze que os pressupostos legais da medida manifestamente não se verificam.

Texto Integral


ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I. Relatório
Nos autos de confirmação judicial de internamento compulsivo nº 3095/18.7T8FAR, em que é internando BB, que corre termos no Juízo Local Criminal de Faro do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, o Exº Juiz titular do processo proferiu, em 1/10/2018, um despacho com o seguinte teor:

«FF, médico psiquiatra do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Centro Hospitalar Universitário do Algarve, E.P,E. veio, nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 22.° e 25º da Lei n.º 36/98, de 24/07 (na redacção conferida pela Lei n.º 101/99, de 26/07, vigente) - doravante designada por Lei de Saúde Mental - requerer a confirmação do internamento de BB, nascido em 27 de Junho de 1995 e residente na Rua …, Lagos. -----

Recebida a comunicação, procedeu-se à nomeação de Defensora Oficiosa ao internando. ---- Dada vista ao Digno Magistrado do Ministério Público, pelo mesmo foi promovido que se solicite informação sobre se o internamento foi comunicado ao Tribunal de turno no transacto dia 29 de Setembro, -----

Cumpre, em nosso entendimento e atento o supra consignado, apreciar e decidir se é de proferir decisão de manutenção do internamento compulsivo de BB ---

-- Dos elementos constantes dos autos, resulta que: -----

___ 1. Na sequência do cumprimento, pelas autoridades policiais competentes, de mandado de condução emitido por MFA, Autoridade de Saúde do ACES do Barlavento, BB foi internado de urgência no dia 28 de Setembro de 2018, pelas 19:55 horas, no Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Centro Hospitalar Universitário do Algarve, E.P,E., depois de aí haver sido observado no Serviço de Urgência; -----

___ 2. Foi-lhe diagnosticado, pelo Exmo. Médico psiquiatra que o observou, surto psicótico, no decurso do qual terá tido episódio de agressividade no interior da sua residência, partindo peças de mobiliário e evidenciando ideias delirantes várias que envolvem os seus próprios progenitores;

___ 3, O parecer médico vai no sentido da necessidade do internamento compulsivo para realização de tratamento com antipsicótico, por a gravidade da sintomatologia criar uma situação de perigo para bens jurídicos de relevante valor, designadamente, de terceiros;----

___ 4. O internando não tem consciência crítica do seu estado de doença e recusa o necessário tratamento médico, o qual se revela indispensável. -----
___ Assim, considerando que o doente se recusa a submeter-se a tratamento psiquiátrico voluntário e, consequentemente, a tomar a respectiva medicação; que não possui discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do seu consentimento; que o seu comportamento é susceptível de constituir um perigo, pelo menos, para terceiros; e que a ausência de tratamento deteriora de forma acentuada o seu estado clínico, representando evidente perigo, pelo menos, para integridade física dos seus familiares, impõe-se concluir que se encontram preenchidos os pressupostos para o seu internamento compulsivo, de acordo com os arts. 12º e 22.º da Lei de Saúde Mental (Lei n.º 36/98, de 24/07). -----

___ Pese embora se mostre excedido o prazo de 48 horas a contar da privação da liberdade do internando (art. 26º, 2, da Lei de Saúde Mental), cremos que tal não obsta à manutenção do internamento compulsivo de BB ainda que não se olvide que o portador de anomalia psíquica privado da liberdade possa requerer a sua imediata libertação com o fundamento de estar excedido tal prazo até à apreciação dos pressupostos do internamento por um juiz (art. 31.°, 1, a, da mesma Lei) - neste sentido, Leones Dantas, "O Processo de Internamento na Lei de Saúde Mental", in RMP, 2002, P: 162; na jurisprudência, Ac. TRE de 18/08/2017, processo 1704/17.4T8FAR.E1, disponível em dgsi.pt.-----

___ Com efeito, ao estatuir o aludido prazo, o legislador visou instituir um mecanismo de controlo da confirmação do internamento de urgência e evitar a manutenção do internamento provisório – decidido pelo médico – em casos de manifesta falta dos respectivos pressupostos ou desnecessidade de o doente se manter internado - vide autor citado, "Notas e Comentários à Lei de Saúde Mental", RMP, 1998, P: 62; quanto à ratio da intervenção judiciária neste momento processual e à assunção expressa da natureza ordenadora do prazo de 48 horas, vide também António João Latas e Fernando Vieira, in "Notas e Comentários à Lei de Saúde Mental", P: 157, -

___ Por conseguinte, e porquanto o fundamento específico do internamento compulsivo é a prevenção de perigo iminente para bens jurídicos de elevado valor, nomeadamente a vida, a integridade física ou a saúde do doente, concluímos que a ultrapassagem do prazo de 48 horas não acarreta a imediata libertação do internando e que esta libertação apenas deve ocorrer quando não se verificarem os pressupostos materiais de que depende a manutenção do internamento - o que não se verifica, in casu. -----

__ Nestes termos e com os fundamentos que antecedem, decido manter o internamento compulsivo de urgência de BB, nos termos e para os efeitos do disposto no art 26.º, 2 da Lei de Saúde Mental.

__ Sem custas - art. 37.° da Lei de Saúde Mental. -----

___ Notifique o Ministério Público e a ilustre defensora nomeada. -----

__ Notifique o internando, informando-o dos seus direitos e deveres processuais (e identidade da defensora nomeada), a que aludem os arts. 10.º e 11.° do supra citado diploma legal, se e quando o seu estado mental o permitir (prazo máximo de 5 dias após a presente decisão)».

Inconformado com o despacho proferido, o MP interpôs recurso, devidamente motivado, tendo formulado as seguintes conclusões:

1- De fls. 3 resulta que o internando ficou privado da liberdade no dia 28-9-2018, pelas 19h55mm.

2- O art. 26 n° 2 da LSM resulta que o juiz profere decisão de manutenção ou não do internamento, no prazo de 48 horas a contar da privação da liberdade.

3- De fls. 3 resulta que o processo deu entrada neste tribunal no dia 1-10-2018 e que o despacho de manutenção do internamento foi também proferido nesse mesmo dia, ou seja passadas mais de 48 horas da data da privação da liberdade.

4- Entende o despacho recorrido que o prazo de 48 horas referido no art. 26 nº 2 da LSM tem natureza meramente ordenativa.

5-. Contudo tal prazo não pode ter essa natureza, face ao disposto no artigo 31 n° 1 alínea a) da LSM.

6 - Efetivamente é fundamento de pedido de Habeas Corpus o facto do prazo previsto no art. 26 nº 2 da LSM ter sido ultrapassado.

7- A dita natureza ordenativa de tal prazo é incoerente com a possibilidade de habeas corpus.

8- Nenhum prazo que tenha as consequências mencionadas no art. 31 nº 1 da LSM (imediata libertação) pode ter natureza meramente ordenativa

9- Assim sendo o internando deveria ter sido imediatamente libertado, por ter sido ultrapassado o prazo estabelecido no artigo 26 n° 2 da LSM.

10- Pelo exposto é evidente que não poderia ter sido proferido despacho de manutenção do internamento.

11 - O despacho recorrido violou o disposto nos artigos 26 n° 2 e 31 n° 1 alínea a) ela Lei de Saúde Mental.

Pelo que o despacho recorrido deve ser substituído por outra decisão que determine a imediata libertação do internando.

Fazendo-se assim JUSTIÇA

O recurso interposto foi admitido com subida imediata, nos próprios autos, e efeito devolutivo.

Dado que o recurso admitido foi interposto pelo MP no exclusivo interesse do internando, não houve lugar ao exercício do contraditório relativamente à respectiva motivação.

O Digno Procurador-Geral Adjunto junto desta Relação emitiu parecer sobre o mérito do recurso, no sentido da sua improcedência, o qual foi notificado à defesa do internando, a fim de se pronunciar, não tendo exercido o seu direito de resposta.

Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.

II. Fundamentação
Nos recursos penais, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pelos recorrentes, as quais deixámos enunciadas supra.

A sindicância do despacho recorrido pretendida pelo Digno Recorrente, tal como transparece das conclusões formuladas, resume-se à pretensão de reversão do juízo nele emitido de confirmação do internamento compulsivo de BB, com a consequente restituição deste à liberdade, em virtude de ter sido proferido depois de ultrapassado o prazo previsto no nº 2 do art. 26º da Lei de Saúde Mental, doravante LSM (Lei nº 36/98 de 24/7).

Como pode verificar-se, na fundamentação do despacho recorrido, cujo teor integral consta do relatório do presente acórdão, a questão da ultrapassagem do prazo do nº 2 do art. 26º da LSM foi expressamente constatada e discutida, tendo o Tribunal «a quo» concluído, em síntese, que o referido limite temporal reveste natureza ordenatória e, por essa razão, o seu excesso não acarreta a inviabilidade da confirmação judicial do internamento compulsivo regulado pelo mesmo diploma legal e a consequente libertação da pessoa visada.

O Digno Recorrente faz basear a sua pretensão, em termos a bem dizer exclusivos, no argumento, segundo o qual a tese da natureza meramente ordenatória do prazo prescrito pelo nº 2 do art. 26º da LSM é incompatível com o facto de o art. 31º nº 1 al. a) do referido diploma legal prever a possibilidade do acionamento da providência de habeas corpus, no caso da sua ultrapassagem.

O nº 2 do art. 26º da LSM dispõe:
Realizadas as diligências que reputar necessárias, o juiz profere decisão de manutenção ou não do internamento, no prazo máximo de quarenta e oito horas a contar da privação da liberdade nos termos dos artigos 23.º e 25.º, n.º 3.

Por seu turno, o nº 1 do art. 31º da mesma Lei é do seguinte teor:
O portador de anomalia psíquica privado da liberdade, ou qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, pode requerer ao tribunal da área onde o portador se encontrar a imediata libertação com algum dos seguintes fundamentos:

a) Estar excedido o prazo previsto no artigo 26.º, n.º 2;
b) Ter sido a privação da liberdade efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

c) Ser a privação da liberdade motivada fora dos casos ou condições previstas nesta lei.

Ora, a questão da eventual incompatibilidade entre o carácter não peremptório do prazo de prolação do despacho de confirmação do internamento compulsivo em razão de anomalia psíquica e a previsão da providência de habeas corpus contra o seu esgotamento foi expressamente debatida na fundamentação do Acórdão desta Relação de Évora de 18/8/2017, proferido no processo nº 1404/17.4T8FAR.E1 e relatado pelo Exº Desembargador Dr. António Latas (disponível em www.dgsi.pt), a que se fez referência no despacho sob recurso e de cuja fundamentação foram transcritas algumas passagens, no douto parecer do Digno PGA.

Seguidamente, iremos reproduzir o segmento da fundamentação do identificado Aresto, que tratou a questão jurídica que agora nos interessa (transcrição com diferente tipo de letra):

2.1. Em primeiro lugar e contra o que pode ser sugerido por uma leitura menos atenta dos artigos 26º nº2 e 31º, da LSM (citados pelo recorrente), o art. 26º nº2 apenas estabelece um prazo máximo para prolação do despacho de confirmação judicial do internamento de urgência (48h), sem que se disponha aí – ou em qualquer outro normativo – que a consequência do incumprimento daquele prazo é a preterição da prolação do despacho de confirmação judicial e a imediata cessação daquele internamento de urgência.

Também o art. 31º da LSM prevê e regula o instituto do habeas corpus em virtude de privação da liberdade, ilegal, do portador de anomalia psíquica, sem que aí se estabeleça a colocação automática ou necessária do doente em liberdade, nomeadamente com fundamento em “estar excedido o prazo previsto no artigo 26º nº2”.

Esta última situação constitui um dos fundamentos da providência de habeas corpus, que terá que ser requerida - pelo portador de anomalia psíquica ou qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos - ao tribunal de competência genérica ou especializada de primeira instância a que se reporta o art. 30º da LSM, ordenando o juiz competente a apresentação imediata do internando se não considerar manifestamente infundado o requerimento, o que não se confunde com a imediata libertação do internando, nem pode ser interpretada literalmente, pois situações há em que o estado de saúde do internando não permitirá a sua deslocação a tribunal.

Por outro lado, a libertação do internando não é sequer consequência necessária da procedência do habeas corpus por excesso de prazo, pois o nº4 do artigo 31º não se lhe refere, deixando em aberto o conteúdo da decisão judicial a proferir. O regime estabelecido no art. 31º da LSM parece decalcado do estabelecido no art. 220º para o habeas corpus em virtude de detenção ilegal, cujo pedido típico é o de imediata apresentação judicial do detido e não a sua libertação, sendo certo que mesmo a entender-se ser igualmente admissível ao portador de anomalia psíquica ou outro cidadão requerer ao presidente do STJ a providência do “Habeas corpus em virtude de prisão ilegal” estabelecido no art. 222º do CPP [2], a libertação do internando é apenas uma decisões possíveis e, ainda assim, apenas se for caso disso, conforme dispõe expressamente a al. d) do nº4 do art. 223º do CPP.

2.2. Entende-se, pois, com Leones Dantas que aquele prazo de 48h tem natureza ordenativa, cuja ultrapassagem não implica a cessação do internamento ou outras consequências de ordem processual, para o que contribuem ainda os seguintes argumentos.

O internamento visa fazer cessar uma situação de perigo para bens e interesses do próprio ou do terceiro, que se manterá ou não independentemente da ultrapassagem do prazo. Não tem natureza idêntica à detenção em processo penal para que, no prazo máximo de 48h, o indiciado pela prática de um crime seja apresentado a julgamento sob a forma sumária, para ser presente ao juiz competente para 1º interrogatório judicial ou para aplicação ou execução de medida de coação (art. 254º CPP) aplicação ou cumprimento de medida de coação.

A confirmação judicial visa sobretudo garantir ao internando que a privação da sua liberdade, inerente ao internamento de urgência, será perfuntoriamente apreciada por um juiz no prazo curto de 48h, de modo a assegurar a sua cessação por decisão judicial em casos de manifesta ausência dos respetivos pressupostos ou desnecessidade de o doente continuar internado, finalidades estas que justificam a intervenção judicial mesmo para além do prazo de 48h, pois a incerteza processual sobre o estado de saúde do internando não é compaginável com a cessação do internamento como efeito automático da ultrapassagem daquele prazo, sem prejuízo de esta poder fazer incorrer em responsabilidade disciplinar ou penal quem lhe deu causa, de forma dolosa ou negligente.

Concordamos com o raciocínio jurídico desenvolvido no trecho de fundamentação acabado transcrever, ao qual nos permitimos aderir.

Nesta ordem de ideias, teremos de concluir que a providência de habeas corpus prevista na al. a) do nº 1 do art. 31º da LSM tem por finalidade, em primeira linha, assegurar que o controlo judicial do internamento compulsivo, prescrito pelo nº 2 do art. 26º da LSM, uma vez ultrapassado o limite temporal previsto para o efeito, e só dá origem à colocação do internando em liberdade, quando o Tribunal ajuíze que os pressupostos legais da medida manifestamente não se verificam.

No recurso em apreço, o MP não questiona a reunião dos pressupostos «materiais», isto é, médicos e de segurança, do internamento compulsivo de BB, mas apenas o facto de o despacho judicial de confirmação dessa medida ter sido proferido para além do termo do prazo do nº 2 do art. 26º da LSM.

Como tal, está o recurso votado à improcedência.

III. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso em apreço e manter inalterada a decisão recorrida.

Sem custas.
Notifique.

Évora, 20/12/18 (processado e revisto pelo relator)

(Sérgio Bruno Povoas Corvacho)

(João Manuel Monteiro Amaro)