REQUERIMENTO PARA ABERTURA DA INSTRUÇÃO
REJEIÇÃO
Sumário


I. A fase processual da instrução é inadmissível:

i) quando requerida no âmbito de processo especial – sumário ou abreviado [artigo 286.º, n.º 3, do Código de Processo Penal];

ii) quando requerida por quem não tem legitimidade para o efeito – pessoas diversas do arguido ou o assistente,

iii) quando requerida pelo arguido ou pelo assistente, mas fora dos casos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 287.º do Código de Processo Penal;

iv) quando o requerimento do assistente não configure uma verdadeira acusação;

v) quando, requerida pelo arguido, se reporte a factos que não alterem substancialmente a acusação do Ministério Público, isto é, nos casos em que o assistente deduz acusação (artigo 284.º do CPP);

vi) quando, requerida pelo assistente, em caso de acusação pelo Ministério Público, se reporte a factos circunstanciais que não impliquem alteração substancial da acusação pública (artigo 284.º do CPP).

II. Considerando a previsão dos artigo 153.º, 154.º e 382.º do Código Penal, o requerimento para a abertura da instrução formulado pelo ora Recorrente não contém a factualidade necessária ao preenchimento dos elementos objetivos dos crimes de ameaça, de coação e de abuso de poder – por não concretizar (i) qualquer promessa de mal futuro e quem a tenha feito, (ii) situação de violência que exceda procedimento policial adequado à deteção de droga e que se revele incompatível com situação de detenção em instalação policial, e (iii) intenção de obtenção de benefício ilegítimo ou de causar prejuízo.

Ao que acresce que o requerimento para a abertura da instrução formulado pelo ora Recorrente não contém a factualidade necessária ao preenchimento dos elementos subjetivos dos crimes de ofensa à integridade física, de ameaça, de coação e de abuso de poder.

Sumariado pela relatora

Texto Integral


Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação do Évora

I. RELATÓRIO
No processo de inquérito que, com o n.º 1768/15.5T9STB, correu termos pelo Departamento de investigação e Ação Penal [1.ª Secção de Setúbal] da Procuradoria da República de Setúbal, foi proferido despacho onde se concluiu pelo arquivamento dos autos relativamente aos factos constantes de queixa apresentada por AA contra diversos agentes da Polícia de Segurança Pública da Esquadra da Divisão Policial de Setúbal e da Esquadra de Intervenção e Fiscalização Policial de Setúbal, por se entender não terem sido recolhidos indícios da prática dos crimes denunciados – de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punível pelos artigo 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, com referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea h), todos do Código Penal, de ameaça agravada, previsto e punível pelos artigos 153.º e 155.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal, e de abuso de poder, previsto e punível pelo artigo 382.º do Código Penal.

AA, constituído Assistente nos autos, requereu a abertura da instrução.

E distribuído que foi o processo – ao Juízo de Instrução de Setúbal [Juiz 2] da Comarca de Setúbal –, por decisão judicial datada de 5 de junho de 2018, foi rejeitado o requerimento de abertura de instrução.

Inconformado com esta decisão, o Assistente dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]:

«1. Vem o presente recurso interposto do despacho proferido pelo Senhor Juiz de Instrução Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal que decidiu indeferir liminarmente o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, em face do despacho de arquivamento do Ministério Público no termo do inquérito.

2. No entender do recorrente, o despacho recorrido considerou erradamente como legalmente inadmissível o requerimento, apresentado tempestiva e legitimamente pelo aqui recorrente, com o pretenso fundamento de que nele não se teriam observado os requisitos previstos nos art.ºs 287º, nº 2, e 2983º, nº 3, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal.

3. Ora, de harmonia com o disposto no art.º 287º, nº e, do CPP, o requerimento do assistente começa por expor as razões de facto e de direito que fundamentam a sua discordância relativamente à apreciação (distorção) feita pelo Ministério Público dos elementos de prova recolhidos no inquérito,

4. E finaliza (sem formalidades especiais, como refere o mesmo preceito legal) com a descrição dos factos acusatórios, sendo que, ainda assim, sempre seria facultativa - se possível (art.ºº 283º, nº 3, alínea b) – a inclusão do lugar, tempo e motivação da sua prática.

5. Ao contrário do que invoca e pretende o despacho recorrido, os factos constantes do requerimento do assistente são os necessários e suficientes para o preenchimento do tipo do crime de ofensa à integridade física qualificada: a ofensa deliberada (mais que comprovada) do corpo do ofendido.

6. Sem quebra de respeito, não faz qualquer sentido que, para que se verifiquem indícios suficientes da prática do crime de ofensa à integridade física, seja indispensável – para se admitir o requerimento de abertura de instrução – existir, na narração sintética dos factos, um facto concretizado que demonstre a intenção do agente de molestar o ofendido sobre quem o mesmo agente desfere vários socos e lhe provoca vários traumatismos.

7. Em face do teor do requerimento de abertura de instrução, designadamente, dos factos aí narrados, não se vê que a descrição em causa não seja suficientemente rigorosa que não permita aos arguidos organizar a sua defesa.

8. Pelo exposto, o despacho recorrido violou, por errónea interpretação e incorreta aplicação, as disposições conjugadas dos art.ºs 287º, nºs 2 e 3, 283º, nº 3, alíneas b) e c), e 309º, todos do CPP, pelo que deve ser revogado, declarando-se aberta a instrução.

Nestes termos e nos mais de direito que Vossas Excelências muito doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado integralmente procedente e, em consequência, revogado o despacho recorrido, substituindo-se por outro que admita o requerimento da assistente e declare aberta a instrução, porque só assim farão Vossas Excelências a costumada JUSTIÇA

O recurso foi admitido.

Respondeu o Ministério Público, junto do Tribunal recorrido, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:

«1. Interpôs o assistente AA recurso do douto despacho proferido a fls. 311-314 dos autos supra epigrafados, que, ao abrigo do disposto no art.º 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, rejeitou o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo mesmo sujeito processual, com fundamento na inadmissibilidade legal da instrução;

2. Pugna o ora recorrente no sentido de dever aquele despacho ser revogado e, em consequência, substituído por outro que admita o requerimento do primeiro e declare aberta a instrução;

3. Ora em causa no presente recurso estará a questão de saber se existe, in casu, qualquer deficiência do requerimento instrutório apresentado, designadamente, resultante do facto de não ter sido cabalmente observado o disposto no art.º 283.º, n.º 3, al. b), ex vi do art.º 287.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal;

4. Foi entendimento da Senhora Juiz que o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente não foi formulado nos termos legalmente exigidos e que tal deficiência não é suprível;

5. “O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º (…)” – art.º 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal;

6. Dispõe o referido art.º 283.º, n.º 3, al. b), do Código de Processo Penal que “[a] acusação contém, sob pena de nulidade: (…) [a] narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”;

7. “O processo penal tem estrutura acusatória, sendo o seu objeto fixado pela acusação que assim delimita a atividade cognitiva e decisória do tribunal; esta vinculação temática do tribunal tem a ver fundamentalmente com as garantias de defesa, protegendo o arguido contra qualquer arbitrário alargamento do objeto do processo e possibilitando-lhe a preparação da defesa no respeito pelo princípio do contraditório” (art.º 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa). Requerida a instrução pelo assistente relativamente a factos de que o Ministério Público se tenha abstido de acusar, o respetivo requerimento tem que enumerar os factos que fundamentam a eventual aplicação ao arguido de uma pena, que serão necessários para possibilitar a realização da instrução, particularmente no tocante ao funcionamento do princípio do contraditório, e a elaboração da decisão instrutória. A atividade cognitória do juiz de instrução está limitada, pois, pelo objeto da investigação (no caso de não ter havido acusação, pelos factos que o assistente pretende provar), o que implica a necessidade da respetiva enunciação no requerimento de instrução, até para possibilitar a sua realização” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05/05/93, C.J., tomo III, páginas 243 a 245);

8. No que concerne à observância (ou não), no requerimento de abertura da instrução, do disposto no art.º 283.º, n.º 3, al. b), ex vi do art.º 287.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal, e invocando o recorrente que explanou nesse R.A.I. factualidade que justificava a prolação de decisão diversa daquela ora posta em crise, sucede que, atentando na correspondente narração, sempre se concluirá (sem necessidade de mais e alongadas considerações) no sentido de que, podendo esta última ser, até, elucidativa no tocante a diversas considerações, é a mesma, porém, omissa no que tange a factos essenciais como os referenciados pela Meritíssima J.I.C. como encontrando-se em falta no requerimento instrutório aqui em apreço;

9. Como se nos afigura resultar à saciedade da motivação de que aqui se conhece, esta apenas afronta especificamente o decidido, com um mínimo de fundamentação, no que tange ao crime de ofensa à integridade física qualificada imputado aos arguidos no requerimento de abertura de instrução entretanto rejeitado pela Meritíssima Juiz a quo, só nessa parte existindo, assim, verdadeiramente, em sentido substancial, uma motivação (vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Abril de 2006, Relator: Soreto de Barros, Processo n.º 04P3976, acessível em www.dgsi.pt);

10. Efetivamente, sendo explicitados no despacho ora recorrido quais os concretos elementos tidos pela Meritíssima J.I.C. como encontrando-se então em falta, em nada equivale a contrariar semelhante entendimento da Senhora Juiz a singela alegação (tão somente “negatória” daquele entendimento) de serem bastantes os factos narrados no R.A.I.;

11. Relativamente ao crime de ofensa à integridade física qualificada é, já, avançado o argumento de que não será “indispensável - para se admitir o requerimento de abertura de instrução - existir, na narração sintética dos factos, um facto concretizado que demonstre a intenção do agente de molestar o ofendido sobre quem o mesmo agente desfere vários socos e lhe provoca vários traumatismos”;

12. Ora – e sendo certo que sufragamos o entendimento da Meritíssima J.I.C. no sentido de inexistir in casu a exigível descrição de “factualidade que possa preencher os elementos subjetivos dos ilícitos criminais. (…) inexiste qualquer facto concretizado sobre a intenção de cada um dos agentes, relativamente aos crimes de ofensas à integridade física qualificada, de ameaça, de coação e de abuso de poder imputados genericamente aos arguidos” –, temos, ao invés do sustentado pelo aqui recorrente, como absolutamente indispensável, para a admissibilidade do R.A.I., a narração de factualidade concretizadora do dolo, mormente, da intenção subjacente à atuação do agente;

13. Conforme, a título meramente exemplificativo, se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23 de Maio de 2012, Relatora: Maria Pilar Pereira de Oliveira, Processo n.º 630/09.5TACNT.C1, acessível em www.dgsi.pt: «Registe-se novamente que são precisamente os elementos subjetivos do crime, com referência ao momento intelectual (conhecimento do carácter ilícito da conduta) e ao momento volitivo (vontade de realização do tipo objetivo de ilícito) que permitem estabelecer o tipo subjetivo de ilícito imputável ao agente através do enquadramento da respetiva conduta como dolosa ou negligente e dentro destas categorias, nas vertentes do dolo direto, necessário ou eventual e da negligência simples ou grosseira. Como refere Figueiredo Dias, em Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª ed., pág. 379 “…também estes elementos cumprem a função de individualizar uma espécie de delito, de tal forma que, quando eles faltam, o tipo de ilícito daquela espécie de delito não se encontra verificado”»;

14. E prossegue o mesmo Ac. do T.R.C. de 23.05.2012 dizendo que, «[o]ra, por muito que a recorrente esgrima em sentido contrário, é incontornável que não contemplou na narração dos factos a totalidade destes elementos. Quanto ao elemento volitivo não se basta com a alegação isolada de uma atuação deliberada, mas antes com a descrição do que efetivamente foi querido pelo agente e que coincida com os elementos objetivos do crime imputado. Sem essa indicação não se mostra perfectibilizada a imputação criminosa e, sendo assim, jamais poderia ser proferido despacho de recebimento do requerimento de instrução»;

15. Referindo, depois, o mesmo douto aresto que «[o] dolo como elemento subjetivo - enquanto vontade de realizar um tipo legal conhecendo o agente todas as suas circunstâncias fácticas objetivas – constitutivo do tipo legal, será, então, em definitivo, um dos elementos que o artigo 283.º, n.º 3 do Código de Processo Penal impõe que seja incluído na acusação (por consequência também no requerimento de instrução do assistente). (…) Não constituindo esses factos crime por falta de descrição de algum dos seus elementos constitutivos, jamais a mesma pode ser suprida. Entendemos, pois, que não é admissível a ideia de um “dolus in re ipsa”, ou seja a presunção do dolo resultante da simples materialidade de uma infração»;

16. Em sentido idêntico, vejam-se, mais recentemente, de novo a título meramente exemplificativo (e também acessíveis em www.dgsi.pt): Ac. do T.R.L. de 04.06.2013; Ac. do T.R.C. de 27.11.2013; Ac. do T.R.C. de 25.06.2014; Ac. do T.R.C. de 28.01.2015; Ac. do T.R.E. de 17.03.2015; Ac. do T.R.P. de 23.09.2015; Ac. do T.R.G. de 02.11.2015; Ac. do T.R.G. de 11.07.2017; e Ac. do T.R.G. de 21.05.2018;

17. Refira-se ainda que, caso seja entendido ter o recorrente, na respetiva motivação, afrontado “especificamente o decidido, com um mínimo de fundamentação”, no que tange aos demais ilícitos criminais imputados no R.A.I. entretanto objeto de rejeição, a saber, crimes de ameaça agravada, coação e abuso de poder, sempre serão, (também) nessoutra parte, válidos, mutatis mutandis, todos os argumentos já aduzidos supra, designadamente, no sentido da insuficiência da narração constante daquele requerimento e, como tal, da concordância com o teor do douto despacho judicial ora posto em crise.

Face a todo o exposto, entendemos que não deverá ser dado provimento ao recurso ora interposto pelo assistente AA.

Não foi feito uso da faculdade consagrada no n.º 4 do artigo 414.º do Código de Processo Penal.

¯
Enviados os autos a este Tribunal da Relação, o Senhor Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

Observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, nada mais se acrescentou.

Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.

Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995[[1]], o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Posto isto, e vistas as conclusões do recurso, a esta Instância é colocada, apenas, a questão da admissibilidade da fase processual de instrução.

Com interesse para a decisão a proferir, o processo fornece, ainda, os seguintes elementos:

(i) O requerimento para a abertura da instrução, na parte em que visa observar o disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal, tem o seguinte teor:

«23º
Ora, o que resultou do inquérito e que a instrução agora requerida melhor comprovará, foi que o ora requerente foi detido na noite arbitrariamente por agentes da PSP de Setúbal na noite do dia 28 de Setembro de 2014, cerca das 00H30, sob pretexto de que estava a praticar o crime de recolha de imagens dessa intervenção policial injustificada.

24º
Algemado, foi conduzido levado para a esquadra da PSP da Av. Luísa Tody, onde começou aí por ser agredido com repetidos socos na cabeça pelo arguido FF, tendo este com uma luva colocada na mão agarrado o ofendido pelos cabelos, encostado a sua cabeça ao banco e, cerrando o punho, esmurrou repetidamente e com toda a força a cara junto ao olho direito e nas têmporas.

25º
Isto na presença dos outros dois arguidos CC e JJ que não esboçaram a mínima oposição à agressão.

26º
Depois do espancamento, o queixoso foi então levado para uma sala interior da esquadra onde, entre contínuas ameaças e humilhações, foi várias vezes revistado e obrigado a despir-se completamente e a agachar-se e a soerguer-se sucessivamente por três vezes.

27º
Durante cerca de 40 minutos, os mesmos três agentes obrigaram o queixoso a manter-se de pé, virado para uma das paredes com os braços erguidos e as mãos cruzadas atrás da nuca.

28º
O ora requerente suportou ainda várias ameaças, humilhações e vexames por parte dos arguidos, nos termos referidos na participação criminal, designadamente nos seus artigos 19º, 23º e 26º, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.

29º
O ora requerente foi depois levado por vários agentes (entre os quais os já identificados por ele) para outra esquadra, a da Bela Vista, tendo sido visto à saída da primeira por familiares e amigos.

30.º
Pelo que ficou mais do que evidenciado no inquérito e melhor se confirmará na instrução ora requerida, dúvidas não podem subsistir de que se acham reunidos indícios mais do que suficientes e sólidos da prática de atos criminosos por parte dos arguidos.

31º
Na prática dos atos descritos, os arguidos agiram de forma deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta lhes estava vedada por lei.

Nestes termos, deve ser declarada aberta a instrução ora requerida, promovendo-se as diligências de prova peticionadas e, a final, proferido despacho de pronúncia quanto aos arguidos FF, pela autoria material, e JJ e CC, como cúmplices, dos crimes de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punível pelos art.º 143º, nº 1, 145º, nº 1, alínea a), e nº 2, com referência ao art.º 132º, nº 2, alínea h), de ameaça agravada, previsto e punível pelos art.ºs 153º e 155º, nº 1, alínea d), de coação, previsto no art.º 154º, nº 1, e 155º nº 1, alínea d), e de abuso de poder, previsto e punível pelo art.º 382º, todos do Código Penal

(ii) O ponto 19 da participação criminal tem o seguinte teor:
«Numa das várias provocações que lhe eram dirigidas, um dos agentes bolçou esta: “Este também lá estava no 1º de Maio quando nos fartámos de lhes dar porrada (incidentes de violência policial ocorridos no ano de 2011, aquando de uma manifestação pacífica em Setúbal).»

O ponto 23 da participação criminal tem o seguinte teor:
«À porta da esquadra onde acabara de ser violentamente agredido, encontravam-se dois irmãos seus, tendo a irmã, ao ver os ferimentos e a cara inchada do queixoso, invectivado indignada os agentes, sem que estes respondessem, reservando o comentário para o percurso de carro para a esquadra (esquadra cuja localização haviam antes recusado ao seu outro familiar): A razão pela qual tu vais continuar a ser essa merda que és, é porque a tua família é como tu

O ponto 26 da participação criminal tem o seguinte teor:
«O agente de cabelo grisalho dá entretanto ordem para libertarem o queixoso e, antes de ele sair, dirige-se-lhe nestes precisos termos: O telemóvel não apareceu, mas se aparecerem as imagens e já sei quem é que as pôs e já sei como te apanhar… isto para ti foi só mais uma passagem pela esquadra e não vai mudar em nada a merda de pessoa que és; mas quero que saibas que o que tu sabes a gente também sabe outras coisas e depois pode ser que te toque às pessoas à tua volta e de quem tu gostas. Por mim … já está e podes-te ir embora mas eu acho que nos vamos ver por aí

(iii) A decisão recorrida tem o seguinte teor:
O assistente AA veio a fls. 296 e seg. a requerer a abertura de instrução.

Insurge-se contra o despacho de arquivamento proferido nos autos pelo Ministério Público no que tange ao despacho de arquivamento de fls. 262 a 264, alegando existirem indícios da prática dos crimes, devendo ser pronunciados.
***
No despacho de arquivamento entendeu, em suma, o Ministério Público arquivar os autos por não terem sido recolhidos indícios suficientes em face do que resultou dos autos de reconhecimento, do silêncio dos arguidos, restando apenas a versão do denunciante. Concluiu pelo arquivamento que, nos termos do preceituado no art.º 277º n.º 2 do CPP.

Apreciando e decidindo:
A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (cfr. art.º 286º, nº 1 do CPP).
De acordo com o previsto no art.º 287º, nº 1, al. a) e b) do CPP, a instrução pode ser requerida pelo assistente se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.

Dispõe o nº 2 da citada norma legal que o requerimento para abertura de instrução deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente desejaria que o juiz levasse a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que através de uns e outros se espera provar.

E, preceitua ainda o referido normativo que ao requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente é aplicável o disposto no art.º 283º, nº 3, al. b) e c) do CPP.

Assim, quando a instrução é requerida pelo assistente - como é aqui o caso - relativamente a factos pelos quais o Ministério Público se absteve de acusar, o respetivo requerimento deve enunciar os factos que fundamentam a eventual aplicação ao arguido de uma pena, que serão necessários para possibilitar a realização da instrução, particularmente no tocante ao funcionamento do princípio do contraditório e à elaboração da decisão instrutória.

Na verdade, o juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos pelos quais tenha sido deduzida acusação formal ou tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser o objeto da acusação do Ministério Público.

Com efeito, o requerimento para abertura da instrução formulado pelo assistente constitui substancialmente uma acusação alternativa que, dada a divergência com a posição assumida pelo Ministério Público, será necessariamente sujeita a comprovação judicial. Por outras palavras, o assistente deve requerer ao tribunal a submissão a julgamento pela prática de factos que descreve no seu requerimento, em conformidade com as disposições legais aplicáveis, que também deve indicar.

A comprovar tudo isto está o regime previsto no art.º 309º do CPP, onde se comina com a nulidade a decisão instrutória na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituem alteração substancial dos descritos na acusação ou no requerimento de abertura de instrução (cfr. art.º. 1º, nº 1, al. f) do C.P.P., quanto ao conceito de alteração substancial dos factos).

No caso em apreço, do requerimento não consta qualquer factualidade que possa preencher os elementos subjetivos dos ilícitos criminais. Na verdade, inexiste qualquer facto concretizado sobre a intenção de cada um dos agentes, relativamente aos crimes de ofensas à integridade física qualificada, de ameaça, de coação e de abuso de poder imputados genericamente aos arguidos.

Tiveram os arguidos intenção e quiseram molestar fisicamente, constranger e intimidar o assistente? Tiveram os arguidos a intenção específica, violando os deveres inerentes às suas funções, obter para si ou para terceiro benefício ilegítimo? Nada é alegado quanto a tal pelo assistente.

Com efeito, não está, factualmente expresso o elemento intelectual, volitivo e cognitivo do tipo subjetivo quanto a nenhum dos crimes.

E, mesmo quanto ao tipo objetivo, do crime de ameaças, do art.º 26º não se extrai, o que os agentes referiram em concreto, que ameaça, e por quem. Não se retira sequer, qual a conduta praticada por cada um dos arguidos.

Salienta-se ainda no que, aos crimes de coação e de abuso de poder diz respeito, a ausência de factos é total não estando concretizado nenhum dos elementos objetivos dos referidos tipos previstos, respetivamente, nos art.º 154º e 382º ambos do Código Penal.

Com efeito, e como é bom de ver, não há referência a quaisquer factos integradores do tipo, pelo que, tal como apresentado, nunca o(s) arguido(s) tendo-o por base, podia(m) ser pronunciado(s) e, sendo-o, o respetivo despacho seria nulo.

Acresce que, e de acordo com o Acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 7/2005 do STJ in DR I série de 4 de Novembro não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar (a que aludo art.º 123º n.º 2 do CPP), o requerimento de abertura de instrução, quando foi o mesmo omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido, neles se integrando, naturalmente, os relativos ao elemento subjetivo dos ilícitos.

Face a tudo o que ficou exposto, dúvidas não restam de que a presente instrução é inadmissível na parte que se refere ao despacho de arquivamento, uma vez que não obedece à estrutura acusatória do processo, nem assegura as garantias de defesa do arguido, estando em clara violação do disposto no artigo 283º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal, aplicável ex vi artigo 287º, n.º 2, do mesmo diploma, sendo o seu objeto impossível e consequentemente inexistente.

Pelo exposto, ao abrigo do disposto no artigo 287º, n.º 3, do Código de Processo Penal, decide-se rejeitar o requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal da instrução.

Notifique.
Nada mais sendo requerido, oportunamente, arquivem-se os autos.»
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Conhecendo.

O processo penal estabelece um conjunto de regras e de procedimentos que visam a aplicação do direito penal, sendo este considerado como o complexo de normas jurídicas que, em cada momento histórico, enuncia, de forma geral e abstrata, os factos ou comportamentos humanos suscetíveis de pôr em causa os valores ou interesses jurídicos tidos por essenciais numa comunidade, e estabelece as sanções que lhes correspondem.

O processo penal comporta diversas fases – a do inquérito, a da instrução e a do julgamento.

Interessa-nos a fase da instrução, a fase intermédia entre o inquérito e o julgamento.

Que tem carácter facultativo e compete a um Juiz de Instrução, visando a comprovação judicial da decisão [do Ministério Público] de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento – artigos 286.º, n.º 1 e n.º 2, e 288.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal.

Em conformidade com o disposto no artigo 287.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, o assistente tem a possibilidade de requerer a instrução em crimes de natureza pública ou semipública, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.

Nos termos do n.º 2 do preceito legal acabado de mencionar, o requerimento de abertura da instrução «não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º

Este artigo 283.º reporta-se à acusação formulada pelo Ministério Público.

E do seu n.º 3 consta, na parte que importa, que
«A acusação contém, sob pena de nulidade:
(...)
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
c) A indicação das disposições legais aplicáveis.
(...)»

De regresso ao artigo 287.º do Código de Processo Penal, importa, ainda, o disposto no seu n.º 3, de onde resulta que o requerimento de abertura da instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.

Importa-nos, tão só, a hipótese de inadmissibilidade legal da instrução.

Trata-se de conceito que abarca realidades distintas – sobre as quais se debruçou, de forma exaustiva, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005, de 12 de maio de 2005, de fixação de jurisprudência[[2]] – e de que deriva a inutilidade da instrução.

Nele se incluem as situações em que da própria lei resulta, inequivocamente, como não admissível a instrução:

i) quando requerida no âmbito de processo especial – sumário ou abreviado [artigo 286.º, n.º 3, do Código de Processo Penal];

ii) quando requerida por quem não tem legitimidade para o efeito – pessoas diversas do arguido ou o assistente,

iii) quando requerida pelo arguido ou pelo assistente, mas fora dos casos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 287.º do Código de Processo Penal;

iv) quando o requerimento do assistente não configure uma verdadeira acusação;

v) quando, requerida pelo arguido, se reporte a factos que não alterem substancialmente a acusação do Ministério Público, isto é, nos casos em que o assistente deduz acusação (artigo 284.º do CPP);

vi) quando, requerida pelo assistente, em caso de acusação pelo Ministério Público, se reporte a factos circunstanciais que não impliquem alteração substancial da acusação pública (artigo 284.º do CPP).

E aqui chegados, interessa-nos, apenas a situação de o requerimento para a abertura da instrução não respeitar o disposto no n.º 3 d artigo 283.º do Código de Processo Penal – por não configurar uma verdadeira acusação.

E antecipamos, desde já, que a decisão recorrida não merece qualquer reparo.

Constitui decisão que revela respeito pela lei vigente na questão que tratou e que se encontra devidamente fundamentada.

Correndo embora o risco da inutilidade – por repetição do que já consta da decisão recorrida – acentuamos agora que através da instrução, e em regra, o arguido pretenderá afastar a acusação e o assistente levar a julgamento o arguido, por factos que o Ministério Público não considerou.

É, por isso mesmo, essencial e ademais exigido pelo n.º 2 do artigo 287.º do Código de Processo Penal, que o requerimento para a abertura da fase processual da instrução contenha uma descrição clara dos factos capazes de acarretar responsabilidade criminal – ou seja, uma descrição competente da factualidade resultante do comportamento de alguém que preencha todos os requisitos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime que deu origem ao processo.

À semelhança do que é exigido para a acusação, pública ou particular.
Porque, tal como acontece com a acusação, o requerimento para a abertura da instrução tem em vista delimitar o thema probandum da atividade desta fase processual.

É, aliás, essa a perspetiva que se destaca no artigo 303.º do Código de Processo Penal, ao regular as situações da alteração dos factos descritos nesse requerimento, sendo que uma alteração substancial desses factos não pode ser tomada em consideração para o efeito de pronúncia no processo, sob pena de nulidade – cfr. artigo 309.º do mesmo diploma legal.

E tendo presente que a fase processual da instrução tem natureza judicial – e não de atividade investigatória -, destinando-se à comprovação da decisão tomada pelo Ministério Público de deduzir, ou não, acusação, a deficiência de conteúdo do requerimento destinado à sua realização, para além de a inviabilizar, implica a nulidade desse mesmo requerimento – cfr. artigos 283.º, n.º 3, e 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Diz o Recorrente que o requerimento para a abertura da instrução que apresentou satisfaz todos os requisitos impostos por lei.

Não lhe assiste razão.

A simples leitura desse requerimento evidencia os defeitos que lhe foram assinalados na decisão recorrida.

Tenha-se presente que os elementos objetivos do crime, que constituem a materialidade do crime, traduzem a conduta, a ação, enquanto modificação do mundo exterior apreensível pelos sentidos. E que os elementos subjetivos do crime traduzem a atitude interior do agente na sua relação com o facto material.

Ora, considerando a previsão dos artigo 153.º, 154.º e 382.º do Código Penal, o requerimento para a abertura da instrução formulado pelo ora Recorrente não contém a factualidade necessária ao preenchimento dos elementos objetivos dos crimes de ameaça, de coação e de abuso de poder – por não concretizar (i) qualquer promessa de mal futuro e quem a tenha feito, (ii) situação de violência que exceda procedimento policial adequado à deteção de droga e que se revele incompatível com situação de detenção em instalação policial, e (iii) intenção de obtenção de benefício ilegítimo ou de causar prejuízo.

Ao que acresce que o requerimento para a abertura da instrução formulado pelo ora Recorrente não contém a factualidade necessária ao preenchimento dos elementos subjetivos dos crimes de ofensa à integridade física, de ameaça, de coação e de abuso de poder.

Num crime doloso – como são aqueles que estão em causa nos autos e que se acabaram de nomear – da acusação há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu de forma livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua ação), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e consciente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objetivos do tipo).

O elemento volitivo não se basta com a alegação isolada de uma atuação deliberada e consciente.

Exige-o, antes, a descrição do que efetivamente foi querido pelo agente e que coincida com os elementos objetivos do crime imputado.

Por assim ser, dúvidas não restam de que o requerimento para a abertura da instrução em causa não integra, na narração dos factos que contém, a totalidade destes elementos.

Restará lembrar – como também se fez na decisão recorrida – ser jurisprudência fixada pelo Acórdão n.º 7/2005, de 12 de Maio [publicado no Diário da República - I Série A, n.º 212, de 4 de Novembro de 2005] que «Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido».

Por fim, impõe-se deixar expresso que por não terem sido cumpridas as exigências impostas por lei, bem andou a Senhora Juiz ao rejeitar o requerimento para a abertura da instrução apresentado pelo Assistente AA.

Decisão que se deixa, agora, confirmada.

Improcedendo o recurso.

III. DECISÃO
Em face do exposto e concluindo, decide-se negar provimento ao recurso e, em consequência, manter, na íntegra, a decisão recorrida.

Custas a cargo do Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC’s
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Évora, 2018 dezembro 20
(certificando-se que o acórdão foi elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelos seus signatários)
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(Ana Luísa Teixeira Neves Bacelar Cruz)
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(Renato Amorim Damas Barroso)
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[1] Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A.
[2] Publicado no Diário da República, I Série-A, n.º 212, de 4 de novembro de 2005.