VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
INIMPUTABILIDADE EM RAZÃO DE ANOMALIA PSÍQUICA
ACUSAÇÃO OMISSA
REJEIÇÃO
Sumário


I - Na acusação deduzida contra inimputável por crime de violência doméstica, com vista à aplicação, por perigosidade, de uma medida de segurança, têm que ser descritos os factos integradores dos elementos volitivo e intelectual do dolo, sob pena de rejeição.

Texto Integral


ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I. Relatório
No Processo Comum nº 1005/15.2PAENT, que correu termos no Juízo de Competência Genérica do Entroncamento do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, pela Exª Juiz titular dos autos foi proferido, em 27/4/2018, um despacho do seguinte teor:

«Em sede de contestação, o arguido veio suscitar, entre outras questões, a nulidade do despacho de acusação, alegando, para o efeito, em síntese que o mesmo é omisso quanto ao elemento subjectivo do tipo de ilícito que é imputado ao arguido, concretamente quanto à alegação que o arguido actuou com dolo. Conclui peticionando a rejeição da acusação, por manifestamente infundada.

O Ministério Público pugna pelo indeferimento do requerido, alegando, em síntese, que decorre do despacho de acusação que ali é imputado ao arguido o elemento volitivo do dolo, ou seja, que o mesmo apresentava capacidade para avaliar a ilicitude dos actos que desejou praticar (elemento volitivo do dolo), mas não possuía a capacidade para se auto determinar com essa avaliação (ausência do elemento intelectual do dolo, atenta o facto de estar condicionado pela perturbação psiquiátrica que o afectava no momento da prática dos factos).

Cumpre apreciar e decidir.
Dispõe o artigo 283º nº 3 do C.P.Penal que a acusação contém, sob pena de nulidade, entre outros elementos, “ a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” (al. b)).

Deste modo, por força do disposto no artigo 311º nºs 2 al. a) e 3 al. d) do C.P.Penal, se a acusação não contém os factos que integram a previsão de um ilícito criminal, a mesma, sendo considerada manifestamente infundada, deve ser rejeitada.

No que respeita ao elemento subjectivo, cumpre salientar desde logo que é evidente que os factos integradores do mesmo têm que estar alegados, a par com os referentes aos elementos do tipo objectivo, caso contrário não será possível imputar ao arguido a prática de um ilícito criminal e, consequentemente, fazendo-se prova em sede de audiência de discussão e julgamento, proceder à sua condenação.

Da mesma forma, entende-se que quando esteja em causa uma conduta praticada por um inimputável também o elemento subjectivo deve ter-se por alegado, mas crê-se que, neste tipo de casos, com contornos diferentes, concretamente quanto ao elemento intelectual do dolo, senão vejamos.

Dispõe o artigo 20º do C.Penal que:
1. É inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação.

2. Pode ser declarado inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída.

3. A comprovada incapacidade do agente para ser influenciado pelas penas pode constituir índice da situação prevista no número anterior.

4. A imputabilidade não é excluída quando a anomalia psíquica tiver sido provocada pelo agente com intenção de praticar o facto”.

Por sua vez, estatui o artigo 91º desse mesmo diploma legal que
“1. Quem tiver praticado um facto ilícito típico e for considerado inimputável, nos termos do artigo 20.º, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie.

2. Quando o facto praticado pelo inimputável corresponder a crime contra as pessoas ou a crime de perigo comum puníveis com pena de prisão superior a cinco anos, o internamento tem a duração mínima de três anos, salvo se a libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social”.

Para que uma pessoa seja declarada inimputável necessário se torna que previamente se verifiquem, em concreto, dois requisitos: a conexão biológica e o elemento normativo.

Quanto ao elemento conexão biopsicológica este manifesta-se no facto de o agente padecer de anomalia psíquica (artigo 20º, nº 1). Tem-se entendido que o conceito de anomalia psíquica compreende todo e qualquer transtorno de carácter permanente ou meramente passageiro ocorrido ao nível do psíquico, adquirido ou congénito, podendo manifestar-se, entre outras, nas patologias mentais no sentido clínico, como a esquizofrenia, e em certas psicopatias devidas à intoxicação por drogas ou pelo álcool1.

Essencial é que tal patologia se manifeste no momento da prática do facto ilícito.

Como bem refere Figueiredo Dias, fundando-se o conceito de culpa jurídico-penal numa liberdade concebida como modo-de-ser característico de todo o existir humano (2), a existência de uma anomalia psíquica, ao menos nas suas formas mais graves, destrói as conexões reais e objectivas de sentido da actuação do agente, de tal modo que os actos deste podem porventura ser "explicados", mas não podem ser "compreendidos" como factos de uma pessoa ou de uma personalidade.

Outro dos requisitos essenciais para a verificação de uma situação de inimputabilidade funda-se no facto de se poder concluir que a existência no agente de uma anomalia psíquica é tal forma que tornou impossível ou pelo menos manifestamente duvidoso o juízo judicial de compreensão, de apreensão da conexão objectiva de sentido entre a pessoa e o seu facto; que o torne impossível ou ao menos altamente duvidoso3.

A este propósito, o Prof. Figueiredo Dias, defende ainda que o elemento normativo acresce à base biopsicológica e que, deste modo, nada tem a ver com as questões irrespondíveis do livre arbítrio ou da liberdade da vontade. Assim sendo, torna-se ainda necessário determinar se essa anomalia «é uma tal que torne impossível o juízo judicial de compreensão, de apreensão da conexão objectiva de sentido entre a pessoa e o seu facto; que o torne impossível ou, ao menos, altamente duvidoso».

Deste modo, se quanto ao apuramento de uma anomalia psíquica se torna indispensável o recurso aos conhecimentos de peritos psiquiátricos, também aqui, na comprovação do elemento normativo, o perito prestará auxílio precioso ao juiz a quem, no entanto, caberá a última palavra, continuando a ajustar-se-lhe o cognome de perito dos peritos (cfr. Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais: A Doutrina Geral do Crime, págs. 517 e seguintes, e na intervenção Pressupostos da Punição nas Jornadas de Direito Criminal, edição do Centro de Estudos Judiciários, págs. 75 e 76).

É, por último, indispensável que a anomalia psíquica se tenha exprimido num concreto facto considerado pela lei como crime (um concreto facto "típico") e o fundamente (num sentido em certa medida análogo àquele em que a atitude interna do agente fundamenta a culpa pelo facto).

Da mesma forma, ensina Eduardo Correia (in Actas da Comissão Revisora do Código Penal, acta da 8.ª sessão, de 24 de Janeiro de 1964, edição da Associação Académica de Lisboa, pág. 145) que “uma de duas: ou a anomalia não é uma tal que furta ao agente a possibilidade de dominar os seus efeitos e, consequentemente, ele não incorre no âmbito do artigo 18.º [actual n.º 2 do artigo 20.º], sendo declarado imputável e a pena até porventura atenuada; ou ela tem aquela natureza, ele é perigoso e, portanto, terá de sofrer um internamento de segurança pelo menos igual ao mínimo correspondente ao tipo legal de crime que praticou. Em qualquer caso ter-se-ão eliminado os perigos que tradicionalmente se assinalavam ao tratamento da chamada imputabilidade diminuída”.

A este propósito, releva o entendimento propugnado no Ac. da Relação de Coimbra, de 04/02/2009 (processo n.º 618/05.5PBCTB.C1, disponível no site www.dgsi.pt), onde se defende que “como se sabe, a antijuridicidade e a culpabilidade são as duas referências de que depende a imputabilidade, uma vez que o comportamento humano só é jurídico-penalmente relevante se contrário ao Direito e pessoalmente censurável ao agente, censura só admissível quando o agente se encontra em condições para se comportar de outro modo, isto é, de acordo com as exigências do ordenamento jurídico. Certo é que nem todos possuem aquelas condições, as quais implicam, não só conhecimento e entendimento, mas também capacidade de auto-determinação, atributos de que alguns se mostram permanente e definitivamente desprovidos, outros parcialmente desprovidos e outros desapossados de forma meramente temporária. Por isso, a inimputabilidade, tal como a imputabilidade e a imputabilidade diminuída têm de ser aquilatadas e reportadas ao momento da prática do facto. Assim, a incapacidade de avaliação da ilicitude e de determinação de acordo com essa avaliação, tal como a diminuição da capacidade de avaliação da ilicitude e a diminuição capacidade de determinação de acordo com essa avaliação, elementos consubstanciadores da inimputabilidade ou da imputabilidade diminuída, respectivamente, só poderão integrar estas situações de supressão ou atenuação do juízo de culpabilidade, quando verificadas no momento da prática do facto. Com efeito, só assim se mostrará justificada a incapacidade ou diminuição da capacidade para o agente se comportar de outro modo, isto é, de acordo com as exigências do ordenamento jurídico”.

In casu, apesar de ser manifesta a forma sintética e sem usar as formas tabelares (jargões jurídicos) usualmente utilizados nos despachos de acusação, o Tribunal entende que na presente acusação estão alegados os elementos subjectivos do tipo de ilícito.

Contrariamente ao que refere o arguido, o Ministério Público não se limitou a alegar que ao actuar “do modo acima descrito, o arguido provocou na ofendida, a sua mulher, dores e lesões físicas, maus tratos (…)”, mas sim ao invés alegou ainda, com relevância para a questão em análise, que o mesmo “padecia então e padece ainda de perturbação psiquiátrica denominada Perturbação delirante de ciúmes, situação em que atuou aquando da prática dos factos acima descritos e que lhe limitou fortemente a capacidade de discernimento e de determinação, como já se referiu, aquando da prática dos factos acima descritos” e que “o arguido embora apresentasse capacidade para avaliar a ilicitude dos atos que desejava praticar, não possuía a capacidade para se auto determinar com essa avaliação”.

Encontra-se, assim, alegados quer factos atinentes ao elemento volitivo (“actos que desejava praticar”, quer quanto ao elemento intelectual (ou melhor ausência dele, em virtude da anomalia psíquica de que padecia aquando da prática dos factos e ainda padece: “embora apresentasse capacidade para avaliar a ilicitude dos actos que desejava praticar, não possuía a capacidade para se auto determinar com essa avaliação).

Aliás, a este propósito, concordamos com o entendimento propugnado pelo Ac. TRP de de 14/03/2007, onde se refere que “na acusação deduzida contra inimputável com vista à aplicação, por perigosidade, de uma medida de segurança não têm que ser descritos os factos integradores do elemento intelectual do dolo e da consciência da ilicitude (…). Na terminologia Penal, imputabilidade é a possibilidade de se atribuir a uma pessoa a prática de um ato ilícito, tipificado como crime, e de a responsabilizar penalmente pela sua prática responsabilização penal pressupõe que o agente tenha capacidade para avaliar o mal que pratica e se determinar de acordo com essa avaliação. Dito por outras palavras, é necessário que o agente disponha do discernimento suficiente para representar a situação, consciencializar a ilicitude da mesma e agir de acordo com essa avaliação. Ou seja, aquilo que no jargão jurídico é descrito com o uso da fórmula: “actuar voluntária e conscientemente, sabendo que a sua conduta é proibida por Lei”. Imputável é, assim, a pessoa em relação à qual é possível censurar a prática de um acto ilícito típico, e puni-la por essa prática, por meio da aplicação de uma pena; a pessoa a quem é possível atribuir uma culpa ou formular um juízo de culpabilidade. Aquele que não tem capacidade para avaliar o mal que pratica e/ou se determinar de acordo com essa avaliação é – do ponto de vista Penal – considerado inimputável. (…) O inimputável comete um acto ilícito (violador da ordem jurídica), típico (qualificado como crime), mas não culposo (não susceptível de ser objecto do referido juízo de reprovação jurídica ou censurabilidade penal). Assim sendo, têm de se ter presentes os actos ilícitos típicos, ou seja, os actos violadores da ordem jurídica qualificados como crime, e os factos que determinam a não censurabilidade penal (ou seja, a anomalia psíquica, determinante da inimputabilidade), a que acrescem – se for caso disso – os integrantes da perigosidade que imponha a aplicação de medida de segurança” – nosso sublinhado.

Face ao exposto, encontrando-se alegados todos os elementos do tipo de ilícito imputado ao arguido, inexiste qualquer nulidade que cumpra conhecer, razão pela qual se mantém o despacho de recebimento da acusação e, em consequência, indefere-se o requerido pelo arguido.

Notifique».

Do despacho transcrito o arguido AA interpôs recurso devidamente motivado, formulando as seguintes conclusões:

1) O presente recurso tem como objecto o douto despacho que indeferiu a questão prévia suscitada na contestação pelo arguido peticionando a nulidade da acusação, por manifestamente infundada e, decidindo manter o despacho de recebimento da acusação e o prosseguimento do processo para julgamento.

2) No modesto entender do arguido, o tribunal errou, violando a lei, designadamente o disposto no artigo 283º nº 3 e 311 nº 2 al. a) e 311 nº 3 do CPP.

3) Da referida acusação não consta a descrição de todos os elementos necessários ao preenchimento do ilícito-típico que foi imputado ao arguido, nos termos e de acordo com o artigo 283º nº 3 do CPP, designadamente, não contém os factos em que se traduz o dolo, enquanto elemento do tipo ilícito subjectivo.

4) Da acusação não resulta que o arguido tenha actuado como tendo representado e querido praticar os factos aí alegados, mas apenas que: “ao atuar do modo acima descrito, o arguido provocou na ofendida, a sua mulher, dores e lesões físicas, maus tratos ……”.

5) Os pressupostos da aplicação da medida de segurança, designadamente, de medida de internamento de inimputáveis, são para além das questões relacionadas com a perigosidade, a prática de um ilícito típico e a declaração de inimputabilidade, pelo que, também e em relação ao inimputável é fundamental a aferição do dolo e da negligência, pois que se tratam de formas de ilicitude e não formas distintas de culpa;

6) Só quando pelo agente se revele praticado um facto que possa ser considerado um ilícito típico se impõe ponderar a sua inimputabilidade, que se trata de um juízo de censura ao agente por ter atuado como fez. Sendo que os inimputáveis, quando perigosos, são agentes ativos de um ilícito criminoso, só que, em vez de uma pena, são passíveis de uma medida de segurança, cuja aplicação pressupõe a prévia dedução de acusação.

7) A acusação terá de conter os elementos mencionados no artigo 283º nº 3 do CPP, sob pena de nulidade, o que não sucede com a presente acusação, pelo que deveria ter sido rejeitada nos termos e de acordo com o artigo 311º nº 2 e 3 do CPP.

8) É maioritariamente aceite pela doutrina e jurisprudência que o dolo e a negligência são entidades complexas, cujos elementos constitutivos se distribuem pelas categorias da ilicitude e da culpa.

9) Assim, o arguido discorda quando o tribunal no seu douto despacho refere que, apesar da manifesta forma sintética e sem usar as formas tabelares (jargões jurídicos) usualmente utilizados nos despacho de acusação, que na presente acusação estariam alegados os elementos subjectivos do tipo de ilícito.

10) Não vislumbramos, de facto, quer quanto ao elemento intelectual, quer quanto ao elemento volitivo que tal suceda na presente acusação.

11) O douto despacho errou na aplicação da lei e quanto á sua fundamentação, dado que no entendimento propagado pelo Ac. Tribunal da Relação do Porto de 14.03.2007, não se mostra aplicável ao presente caso concreto, pois que, naquela acusação foi alegado o elemento volitivo ou intencional do dolo e, na presente acusação, verifica-se ausência de alegação qualquer dos elementos referentes ao dolo.

12) Pelo que se requer a Vs. Exªs a revogação deste despacho e a declaração de nulidade da acusação e assim ser feita a devida e acostumada JUSTIÇA

O recurso interposto foi admitido com subida a final e nos próprios autos.

O MP respondeu à motivação do recorrente, formulando as seguintes conclusões:

1.º No douto despacho recorrido fez-se uma correta interpretação e aplicação da lei.

2.º A acusação pública deduzida contra o arguido não é manifestamente infundada, mostrando-se ali devidamente elencados os factos/atos praticados pelo arguido (elemento objetivo do tipo de ilícito) a sua vontade em praticar tais atos e o conhecimento que tinha da sua ilicitude (elemento subjetivo do tipo).

3.º Não tem a acusação que recorrer ao habitual jargão jurídico «previu e quis praticar os factos, sabendo a sua conduta proibida e punível por lei» para que se mostre regular a alegação do elemento subjetivo do tipo de ilícito.

4.º Sendo o arguido inimputável em razão da perturbação psiquiátrica de que padece não lhe podia no despacho de acusação ser imputada a prática dos factos a título de culpa (dolo), já que por força daquela doença o arguido «não possuía capacidade de se determinar de acordo com a avaliação» «que realizou relativa a ilicitude da sua conduta.»

5.º Condição para o recebimento da acusação é a de que os factos nela descritos integrem – inequivocamente a previsão de um ilícito criminal. Só se assim não suceder é que a acusação é manifestamente infundada e pode, rectius, deve ser rejeitada (art. 311º nºs 2 al. a) e 3 al. d) do C.P.P.).

6.º Pelo que, encontrando-se devidamente descritos no despacho de acusação «os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma medida de segurança», a saber, «o tempo, o lugar e a motivação da sua prática», «o grau de participação que o arguido neles teve» e «as circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada» bem como «as disposições legais aplicáveis», não se vislumbra que se verifique qualquer nulidade deste despacho.

7.º Termos em que não se verificava, nem se verifica o fundamento previsto no artigo 311.º, n.º 2, al. a) do C.P.Penal para rejeitar, por manifestamente infundada, a acusação pública deduzida contra o arguido.

Pelo que negando provimento ao recurso e mantendo a decisão recorrida farão V.Exas.
Justiça!

No processo identificado supra, por sentença proferida em 27/6/2018, foi decidido:

julgar a acusação deduzida pelo Ministério Público procedente e, em consequência:

1. Julgar provada a prática pelo arguido AA de factos integradores de um ilícito típico de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º nºs 1, alínea a) e 2 do C.P.;

2. Declarar o arguido AA como inimputável perigoso, em razão de anomalia psíquica, ao abrigo do disposto no artigo 20º, nº 1 do Código Penal;

3. Aplicar ao arguido AA uma medida se segurança de internamento num estabelecimento de cura, tratamento e segurança adequado à sua patologia psiquiátrica pelo período mínimo legal de 3 anos;

4. Suspender a medida de segurança aplicada ao arguido AA pelo período de 3 anos, sob vigilância, acompanhamento e fiscalização da Direcção Geral de Reinserção Social, e subordinada à obrigação de o arguido ter acompanhamento psiquiátrico regular, de se submeter a exames e observações nos lugares que lhe foram indicados, proibição de contactos com a assistente AML (sendo que essa proibição de contactos inclui o afastamento do arguido da residência e do local de trabalho da vítima, sejam estes quais forem, e, bem assim, qualquer contacto telefónico ou correspondência electronicamente ou por carta e, obviamente, qualquer contacto físico) e não ter em seu poder quaisquer armas ou objectos perigosos que possam ser utilizados como armas ou causar dano físico a terceiros.

5. Arbitrar à assistente/demandante uma indemnização no montante de €2.000,00 (dois mil euros), a título de danos não patrimoniais por si sofridos, a pagar pelo arguido/demandado, a que acrescem juros de mora, à taxa legal desde a presente sentença até efectivo e integral pagamento.

Com base nos seguintes factos, que então se deram como provados:

Da acusação pública
1. O arguido e a ofendida AML casaram no dia 21 de Agosto de 1993;

2. O arguido e ofendida AML estabeleceram a sua residência comum na rua…, Entroncamento, até ao dia 20/12/2015, data em que a ofendida saiu da residência;

3. Desta relação amorosa o arguido e a ofendida tiveram dois filhos, JP, nascida em 16/1/1997 e TP, nascido a 24 de Abril de 2001;

4. Durante a relação amorosa, em data não concretamente apurada mas reportada a Setembro de 2013, o arguido agrediu AML com murros nas costas, causando-lhe dores;

5. E a partir dessa altura, nas discussões que tinham era habitual o arguido agredi- la com empurrões e apertões nos braços, reportando-se os empurrões a última vez a 6 de Dezembro de 2015, causando-lhe dores;

6. O arguido dizia à ofendida, em diversas situações e datas, que esta era uma “prostituta”, “mentirosa”, “ reles”, “ filha de um bêbedo” e dizia ao filho menor, TP que era “ preferível ser órfão a ser filho da puta”;

7. Durante o casamento, mais concretamente a partir do episódio de Setembro de 2013 descrito em 4), era habitual o arguido dizer à ofendida que a mataria, que mataria os filhos e que se suicidaria;

8. Em data não concretamente apurada mas situada entre o ano de 2010 até à separação do ex-casal ocorrida definitivamente a 20/12/2015, o arguido escreveu em diversas fotografias onde este, a ofendida e os seus filhos apareciam, que esta era “puta”, ele era “corno”, que os filhos não deviam ser seus e colou-as na parede da residência;

9. Em data não concretamente apurada, mas situada entre o ano de 2010 até à separação do ex-casal ocorrida definitivamente a 20/12/2015, o arguido escreveu nas paredes da cozinha daquela residência, frases como: “ Gente, lixo mal cheirosa (…) cabra destruidora, quem me traiu que fique com a puta que te pariu;

10. No dia 20/12/2015, na residência do casal, perante o filho TP, o arguido, na sequência de uma discussão, disse à ofendida que esta era uma “prostituta” e que mataria o filho TP e depois se mataria;

11. Acto contínuo, a ofendida telefonou para os seus cunhados AP e PC, que se dirigiram até àquela residência, para falar com o arguido, visando acalmá-lo;

12. Nessa conversa, o arguido repetiu diversas vezes que a ofendida “era uma prostituta” e que se suicidaria;

13. Nesse dia, a ofendida saiu daquela residência;

14. No dia 11 de Maio de 2016, o arguido, do nº de telemóvel 929---, enviou mensagens escritas à ofendida, dizendo-lhe que era “ mentirosa”, “puta” e que o filho TP nunca saberia quem era o pai;

15. No dia 6 de Junho de 2016, o arguido telefonou à ofendida dizendo-lhe que a iria matar e que não se importava de ir 25 anos para a prisão;

16. No dia 5 de Julho de 2016, o arguido, do nº de telemóvel 929----, enviou mensagens escritas à ofendida, dizendo-lhe que: “o tiro nos cornos devias tu e o teu cavaleiro ter apanhado a primeira vez na piscina ou então na festa de anos”; “se não transferires o reembolso das lentes, mais o IRS, tens os dias contados, serás abatida, vais fazer companhia à tua irmã, já me imagino na prisão a descansar 20 ou 25 anos”; “adultera, infiel, puta “; “quem se mete com putas, tem a vida fudida”; “a mãe vai estar morta, junto da tia”; “A Ana só terminará de destruir vidas, quando encontrar a morte”; “com a tua morte e a minha prisão, a casa sempre fica para os filhos”; “fiz muito concurso de tiro na polícia do exército, vai-me ser útil. As pessoas dirão que matou a mulher por 1500€, eu direi por 1488 que me roubou e muita traição”; “para ti não interessou que a picha do teu primo, cunhado ou irmão fosse maior ou menor que a minha, tinha é que ser outra, diferentes. Gostavas de várias, como as putas. Agora é tempo de por fim à puta que existe em ti”;

17. No dia 5 de Dezembro de 2016, o arguido, do nº de telemóvel 929---, enviou mensagens escritas à ofendida, dizendo-lhe que, entre outras coisas, era uma puta, uma ignorante, uma fraude, uma aberração e uma miserável;

18. No dia 7/12/2016, o arguido encontrou a ofendida no café da localidade do Entroncamento e disse-lhe que “tinha uma testemunha que confirma que tu disseste que ias deitar-te com o teu irmão que ele é todo bonzão”;

19. Ao actuar do modo acima descrito, o arguido provocou na ofendida AML, a sua mulher, dores e lesões físicas, maus tratos psíquicos, ofendendo-a na sua dignidade pessoal, humilhando-a e diminuindo-a, provocando na mesma, tanto sofrimento físico, como perturbações psicológicas, que afectaram o seu equilíbrio emocional;

20. O arguido praticou tais condutas na residência comum e perante filhos menores;

21. O arguido padecia então e padece ainda de perturbação psiquiátrica denominada “Perturbação delirante de ciúmes”, situação em que actuou aquando da prática dos factos acima descritos e que lhe limitou fortemente a capacidade de discernimento e de determinação, como já se referiu, aquando da prática dos factos acima descritos;

22. O arguido embora apresentasse capacidade para avaliar a ilicitude dos actos que desejava praticar, não possuía a capacidade para se auto determinar com essa avaliação;

23. Em virtude dessa perturbação de que ainda padece e da natureza e gravidade dos factos praticados, existe uma séria probabilidade de o arguido vir a praticar outros factos ilícitos - típicos da mesma espécie desses, ou até de outros.

Do pedido de indemnização civil
24. AML passou a refugiar-se em casa, muitas vezes não querendo conviver, pelo que foi vítima de depressões, tendo que ser assistida clinicamente;

25. Não conciliava o sono;

26. Perdeu o gosto de viver;

27. Só recuperando agora, pouco a pouco, e graças à separação;

Mais se provou que:
28. Aquando do episódio referido em 18) o arguido sabia que era esse o estabelecimento comercial que a assistente frequentava quando ia tomar café;

29. Em Dezembro de 2016, a assistente deixou de atender chamadas do arguido e de o contactar fosse para o que fosse;

30. Foram apreendidas na então residência do casal, referida em 2 uma caneta transformada em arma de fogo, uma catana com o comprimento total de 59 cm e cinco munições ponto 22;

31. Actualmente, desde que deixou de viver em casa dos seus pais e se mudou com os seus dois filhos para uma nova residência, o arguido tem sido visto na rua onde reside, ora frequentando um talho aí existente, ora passeando na rua olhando para as fachadas dos prédios;

32. Actualmente a assistente tem muito receio do arguido, não confiando nele, nunca ficando sozinha nomeadamente quando vai assistir aos jogos de futebol do filho do ex-casal;

33. O arguido foi apenas acompanhado pelo departamento de psiquiatria do CHMT de Tomar de Abril de 2015 a Abril de 2016, no âmbito de consultas externas;

34. Actualmente, não se encontra a tomar qualquer medicação respeitante à perturbação referida em 21);

35. O Gabinete Médico-legal e Forense do Médio-Tejo, no relatório de perícia médico-legal, datado de 30/08/2017, conclui o seguinte: “o examinando é portador de um quadro de perturbação delirante de ciúmes, englobável na Rubrica F22.0 International Classification of Diseases anda Related Health Problems, Tenth Revision (ICD-10). Pelo exposto, se depreende que à data dos factos que lhe são imputados, o examinando se apresentava delirante, estando os factos ilícitos em concordância com a temática delirante debitada. Embora apresentasse capacidade para avaliar a ilicitude dos actos que desejava praticar, não possuía a capacidade para se auto-determinar de acordo com essa avaliação. Do ponto de vista médico-legal, reúne por isso critérios para ser considerado inimputável”;

36. Mais consta das conclusões desse mesmo relatório pericial que “que no concerne à temática da perigosidade, pode afirmar-se que a mesma existe, dado que o examinando não possui ainda qualquer crítica para a sua doença, continuando delirante, mantendo o núcleo delirante centrado na traição da ex- esposa”, aí se referindo também que a perigosidade “existirá sempre”;

37. O arguido é maquinista de profissão, desde 1992;

38. Aufere cerca de € 1082,33 de salário;

39. O arguido tem um veículo automóvel registado em seu nome, de matrícula HC-;

40. Reside com a nova companheira desde Maio de 2016;

41. Tem dois filhos com a assistente, com 21 e 17 anos de idade, mantendo uma relação esporádica com os mesmos;

42. Estudou até 11º ano de escolaridade;

43. Nunca antes foi condenado pela prática de qualquer ilícito criminal.

A mesma sentença julgou os seguintes factos não provados:
a. No episódio descrito no ponto 12) dos factos provados, o arguido disse que mataria a ofendida AML;

b. No episódio descrito no ponto 18) dos factos provados, o arguido disse à ofendida AML que se esta não lhe desse as fotografias do casamento “não saberia o que lhe ia acontecer”, que era “uma mentirosa, não digna”;

c. No dia 12/12/2016, pelas 8h40, o arguido sentou-se na mesa do café onde a ofendida se encontrava, no Entroncamento, tendo esta saído daquele estabelecimento;

d. Ao longo destes mais de 20 anos em que viveu com a ofendida, aqui demandante, esta suportou estoicamente todos estes maus tratos, acima melhor discriminado, porque o demandado era o pai de seus filhos, que estes precisavam do apoio do pai;

e. Daí que muitas vezes tivesse encoberto as nódoas negras que resultavam das agressões;

f. E que mentisse quando interpelada sobre as mesmas, pelos seus amigos e vizinhos;

g. Porque o arguido era e é maquinista da C.P., não queria molestar a sua presumível reputação com aqueles problemas domésticos;

h. Daí nunca ter apresentado queixa-crime ou se aprestado a comparecer no hospital para tratamentos ou no Instituto de Medicina Legal para exames directos;

i. Quando questionada sempre tentava desculpar o pai dos seus filhos;

j. Tinha medo de noite, quando regressava a casa vinda da escola, onde leccionava, porque não sabia como se lhe apresentaria o marido AA;

k. Não convidava ninguém para a sua casa, já que tinha receio de que fossem maltratados;

l. Tinha sobressaltos permanentes e ataques de pânico frequentes;

m. Emagreceu e envelheceu;

n. O arguido e a ofendida AML durante muitos anos deram-se bem, viviam felizes e em pleno ambiente de mútuo respeito, colaboração, amor, carinho, etc.

Da sentença proferida o arguido AA interpôs recurso devidamente motivado, tendo formulado as seguintes conclusões:

1) Nos termos e de acordo com o artigo 407º nº 3 do CPP se requer a subida e julgamento conjunto do recurso que se encontra-se retido a fls. dos presentes autos da decisão que indeferiu a questão prévia suscitada na contestação, em que se peticiona a nulidade da acusação por falta de alegação dos elementos subjectivos do tipo de ilícito, nos termos e de acordo com o artigo 283º nº 3 e 311 nº 2 al. a) e 311 nº 3 do CPP.

2) O presente recurso tem como objecto a sentença que julgou provada: a) a prática pelo arguido de factos integradores de um ilícito típico de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º nº 1 al. a) e 2 do Código Penal, b) declarando o arguido como inimputável perigoso, em razão de anomalia psíquica, nos termos e ao abrigo do artigo 20º nº 1 do Código Penal, c) aplicando assim uma medida de segurança pelo período de três anos, suspensa pelo mesmo período. d) Mais decidiu o tribunal arbitrar à assistente uma indemnização a pagar pelo demandado e no valor de 2000,00 € (dois mil euros).

3) Tem como fundamento o presente recurso:
a) A nulidade da acusação dado que nesta se imputam factos genéricos, não concretizados no tempo e no espaço, o que resulta numa violação do artigo 283º nº 3 al. b) do CPP e das garantias de defesa do arguido previstas no artigo 32º nº 1 e 5 da CRP;

b) A acusação deve obedecer ao principio da suficiência e clareza e aí se define e fixa o objecto do processo que, por sua vez, delimita os poderes de cognição do tribunal que, segundo Figueiredo Dias é o efeito a que se chama vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstancia os princípios da identidade, da unidade, da indivisibilidade e da consunção do objecto do processo penal, ou seja os princípios segundo os quais o objecto do processo deve manter-se o mesmo, da acusação ao trânsito em julgado da sentença, deve ser conhecido e julgado na sua totalidade (unitária e indivisivelmente) e mesmo quando o não tenha sido deve considerar-se irrepetivelmente decidido.

c) Esta acusação não contém a indicação concreta dos factos e circunstancias de tempo, que no presente caso se mostra essencial quer para a integração normativa, quer para o direito de defesa, já que aqui se peticiona a declaração de inimputabilidade com fundamento não numa patologia de consciência, mas numa perturbação psíquica “delirante de ciúmes”, isto é, em que se mostra aferir nos termos e para os efeitos do artigo 20º do Código Penal, designadamente, se o arguido à data dos factos atuou ou não por força de uma anomalia psíquica que o tornava incapaz de avaliar a ilicitude ou de se determinar de acordo com essa avaliação.

d) Nesta acusação o Ministério Público acusa, entre o mais, diversa factualidade genérica, sem qualquer limite ou indicação temporal, tais como “durante a relação amorosa”, “era habitual”, “em diversas situações”, “durante o casamento”, factos estes que visam assim mais de 22 anos de casamento, desde o ano de 1993 (data do casamento) passando pela separação de facto em Dezembro de 2015 até Dezembro de 2016.

e) Sendo que o douto despacho que precedeu a leitura de sentença não conseguiu sanar ou suprir esta deficiência e que configura uma nulidade da acusação, que foi arguida em tempo e em sede de contestação.

f) Paralelamente, na douta sentença o tribunal acrescentou a factualidade aí descrita de 28 a 36 que aqui se impugnam por não provadas e se mostrarem em total contradição com a prova documental que consta do processo e as declarações das testemunhas que estão gravadas e consignadas em ata e aqui referidas e transcritas acima, nos termos e para o efeitos do artigo 412º nº 3 e 4 do CPP.

g) Sendo que estes factos que agora foram acrescentados na douta sentença referem-se aos factos concretizares da alegada perigosidade e da perturbação psíquica que a ver do tribunal visam consubstanciam a prova da inimputabilidade e da aplicação da medida de segurança.

h) Mas que, em nosso modesto entender viciam a douta sentença, pois que traduzem uma alteração substancial dos factos, dado que estes eram omissos na acusação e a sua falta implica a não aceitação da acusação, não podendo serem agora, em sede de sentença aditados como complementares sob pena de violação dos mais elementares princípios e já citados do processo penal (cfr. artigo 359º do CPP).

i) Com especial realce para o facto descrito em 30, referente á posse e detenção de armas pelo arguido, que para além de não corresponder à verdade, não foram objecto deste processo, sendo-o num outro processo a correr os seus termos neste douto tribunal sob o nº ---/15.1PAENT;

j) Assim, a douta sentença vir agora contemplar esses factos sem sequer dar o direito ao arguido de se pronunciar ou defender acerca deles, acrescido do facto que já existe acusação por tais factos, sendo que foi opção do Ministério Público, em sede de inquérito separar os processos, mostra-se ilegal e violador do principio constitucional previsto no artigo 29º nº 5 da CRP “de que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez”;

k) Para além disso, impugna-se e não se aceita este facto descrito em 30, pois que o tribunal errou ao valorar as provas, contrariando os documentos juntos ao processo e as declarações prestadas pela testemunha AP, pois:

- A fls. do processo resulta o termo de juntada nº 6 realizado pela PSP do Entroncamento e em que se verifica que a 03 de Março de 2016, foi esta irmã AP que se deslocou á PSP e entregou as armas.

- E esta testemunha, cujo depoimento se encontra gravado no sistema integrado de gravação em 10.05.2018 às 9:54 até 11:04 refere que foi ela quem, após a ex-mulher do arguido as mostrar à testemunha, em meados de 2013 trouxe aquelas armas para a sua casa e as escondeu, dizendo mais tarde ao arguido que as tinha atirado ao rio e conforme transcrição acima realizada, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 412´nº 3 e 4 do CPP;

- Pelo que, o tribunal incorreu em erro grave quando refere na factualidade descrita em 30. que foram apreendidas armas na residência do casal, sendo que esta factualidade não faz parte do objecto deste processo e por isso nem sequer deve constar da factualidade NÃO PROVADA.

l) Igualmente se impugna e não se aceita o facto acrescentado em 31., pois que ficou inteiramente esclarecido em tribunal que tanto o arguido, como a assistente frequentavam aquele talho, ainda casados e por isso o continuam a frequentar e ele é visto nessa rua, que conforme a própria assistente refere o arguido nem sabe onde ela vive. Declarações nesta parte que estão gravadas e foram prestadas pela assistente em 02.05.2018 às 16:27:58 até 17:46:00 e da testemunha MF proferidas em 22.05.2018 aos 11:37.59 até 11:55.47, que acima se transcrevem nos termos e par aos efeitos do artigo 412º nº 3 e 4 do CPP, pelo que também este facto 31. não pode constar do elenco dos factos provados.

m) Para além de que, a simples perigosidade do inimputável não constitui por si só fundamento para a aplicação de uma medida de segurança, exige-se que essa perigosidade se revele através de factos típicos penalmente relevantes e se mostre que eles se podem repetir. Num juízo de prognose dir-se-á que não há indícios suficientes dos pressupostos fácticos que permitem que ao arguido seja aplicada uma medida de segurança de internamento.

n) Acresce que o tribunal é totalmente omisso aos factos que se apuraram em julgamento, através de prova documental, complementada com o depoimento da médica psiquiatra Drª LC que acompanhou o arguido e que de uma forma objectiva, clara e sem qualquer parcialidade descreveu ao tribunal a situação clinica do arguido, as razões porque entende que não é inimputável e perigoso, que em nosso entender se mostram fundamentais para a prova e a verdade material deste processo, designadamente a absolvição do arguido.

o) Assim, relativamente á factualidade acrescentada em 33. e 34 é falsa, pois que ficou provado, esclarecido e demonstrado que o arguido foi assistido e submetido a tratamento com esta médica desde Abril de 2015 até Fevereiro de 2017 e não como aí se refere em 33 da sentença “que APENAS foi acompanhado de Abril de 2015 a Abril de 2016”;

p) A demonstrá-lo temos os documentos que foram juntos ao processo em 23 de Maio de 2018, designadamente:

- Relatório Médico da Médica psiquiatra que informa do inicio do acompanhamento em 15 de Abril de 2015 e,

- Uma informação da Autoridade de saúde em que atesta que o arguido tem tido regular consultas de rotina na Unidade de saúde da Locomotiva no Entroncamento, é assistido em psicologia com a Drª AP e em psiquiatria com a Drº LC desde 2015, com a última consulta de psiquiatria em 23 de Fevereiro de 2017;

- Estas informações foram juntas a pedido da defesa, relatam também que o doente em Setembro de 2017 se encontrava estável e não realizava qualquer medicação psiquiátrica porque não apresentava critérios que justificassem preocupação.

- Elementos e documentos que, por si só constam no processo e que provam erro na valoração da prova, pelo que os factos 33 e 34 devem ser corrigidos e de acordo com estas informações documentais, dada a relevância para o presente caso.

- Pois que, tais factos foram discutidos e confirmados em julgamento através do depoimento da médica psiquiatra Drº LC que acima se mostram transcritos e referenciados nos termos e para os efeitos legais.

q) Pelo que, também nesta parte, a sentença errou gravemente quanto á valoração da prova e insuficiência para a matéria de facto provada nos termos e de acordo com o artigo 410º do CPP;

r) Foi de facto, a médica assistente de psiquiatria que decidiu retirar-lhe a medicação, avaliando-o em consultas, sendo a última em 23 de fevereiro de 2017 e conforme declarações prestadas em audiência de julgamento de 2006.2018 e gravadas com inicio ás 14:24:36 até 14:52:28 acima transcritas, nos termos e para os efeitos do artigo 412º nº 3 e 4 do CPP;

s) Relativamente à verificação do ilícito de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º do CP, conjugada a prova, resulta-nos a dúvida acerca da verificação deste ilícito e da prova da factualidade descrita em 19. Do depoimento prestado pela assistente resulta a inexistência de qualquer domínio ou subjugação, uma superioridade sobre a pessoa da vítima.

t) As declarações da assistente estão gravadas na audiência de julgamento de 02.05.2018 no sistema de audio do tribunal ás 16:27:58 até 17:46:00 e acima transcritas para os devidos efeitos legais, acrescido dos depoimentos das testemunhas JP prestados em julgamento em 10.05.2018 e gravados no sistema às 12:49:13 a 13:18:20 acima transcritos e a MF prestado em 22,05.2018 às 11:37:59 a 11:55:47 acima transcritos.

u) Acresce o documento junto a fls. do processo referente ao número registo de chamadas efectuadas pela assistente ao arguido e onde se pode verificar que a assistente, mesmo após a separação do casal insistia veemente em telefonar ao arguido, bem como também lhe escrevia mensagens e cartas que alegou não ser possível a junção ao processo.

v) Resulta provado e a sentença refere na motivação da matéria de facto que a assistente também “admitiu ter proferido expressões injuriosas contra o aqui arguido”, chamando-lhe de “cabrão, chulo e porco - conforme o depoimento da assistente já referido e acima transcrito;

w) Pelo que, ambos praticavam contra si atos ofensivos, verificando- se a inexistência de qualquer ascendente um sobre o outro o que importa para afastar o tipo legal de violência doméstica.

x) O crime de violência doméstica não pode ser cometido em reciprocidade por ambos os cônjuges, não nos parecendo que as situações relatadas e as circunstâncias referidas possam traduzir numa sujeição da assistente a uma efectiva vivência de subjugação, domínio, medo, tensão, pelo que se impugna que o facto 9. da sentença esteja no elenco dos factos provados.

y) A assistente não revelou sentir-se humilhada, nem dominada, pelo contrário, teve comportamentos inadequados e anti-sociais no seu relacionamento conjugal, inexistindo uma supremacia de um sobre o outro, de modo a poder considerar-se que no caso concreto a assistente é vítima do referido crime de violência doméstica.

z) Relativamente à inimputabilidade, o tribunal limitou-se a aderir ao relatório de perícia médico-legal psiquiátrico que, em nosso modesto entender, considerando toda a prova carreada não se mostra suficiente, pois que o relatório é genérico, não analisa o caso concreto e aí refere que dada a existência desta perturbação “se depreende” que á data dos factos o arguido se encontrava delirante”, ficando por esclarecer, em concreto, como o arguido foi avaliado, quais as datas da pratica dos factos a que se refere no relatório, considerando que a acusação contempla factos desde o casamento 1993 até Dezembro de 2016;

a1) Entende-se que, nesta parte o tribunal errou ao aderir ao relatório, por falta de fundamentação e não cumprindo o disposto no artigo 163º do CPP, sendo que nesta parte foram transcritas as declarações do perito Drº AC que foram prestadas em julgamento de 22.05.2018 aos 11:08:01 até 11:37:57;

b1) Para além disto, a sentença é omissa quanto ao relatório médico pericial psicológico junto aos autos e que conclui que o arguido não padece de qualquer inimputabilidade e, não menos importante o juizo e opinião da médica assistente psiquiatra do arguido Drª LC que no seu depoimento prestado e gravado em 20.06.2018 aos 14:24:36 a 14:52:28 descreve o caso concreto do arguido, concluindo e explicitando as razões porque entende que o arguido é imputável e não perigoso.

c1) No caso concreto existem assim duas perícias (psicologica e psiquiátrica) com opiniões divergentes, pelo que caberá ao juiz decidir pelo valor probatório a atribuir às mesmas por adesão a uma delas no juízo global de inimputabilidade e perigosidade, sendo que os vícios do relatório pericial são um óbice a uma presunção absoluta de não valoração da perícia médico-legal pelo juiz.

d1) Sucede que, esta responsabilidade decisória no processo impõe ao tribunal um dever de avaliar os meios de prova na fundamentação de um juizo de inimputabilidade, o que não foi feito no presente caso. A desadequação da perícia ao agente e ás circunstancias do caso concreto indicam fundamento de divergência, nos termos e de acordo com o artigo 163º nº 2 do CPP.

e1) Corolários do artigo 205º da CR, artigo 97º nº 5 e 374 nº 2 do CPP proclamam a obrigatoriedade da fundamentação das sentenças, com invocação das razões de facto e de direito que fundamentaram a decisão, feita a menção critica do acervo probatório que serviu para formar a convicção do tribunal. Em aplicação, o exame critico das perícias valoradas no juízo de inimputabilidade deverá incidir nos pontos obscuros que o perito não conseguiu esclarecer, por tradução do correcto relacionamento dos factos com a sobreposta indicação da especifica anomalia psíquica e toda a ambiência que culminou na prática do facto.

f1) O exame critico das provas imposto pelo artigo 374º nº 2 do CPP é requisito fulcral da fundamentação da sentença, pelo que se conclui pela injustificada recusa de prova e de falta de exame critico quanto ás provas periciais e opinião da médica assistente e psiquiatra do arguido, o que implica a nulidade da sentença nos termos e de acordo com o artigo 379º nº 1 do CPP;

g1) Resultou ainda provado que o arguido desde Dezembro de 2015 já não vive com a sua ex-mulher, que já refez a sua vida e que vive com a atual companheira desde Maio de 2016 na Barquinha, pelo que na ausência de outra factualidade penalmente relevante não vislumbramos como o tribunal concluiu pelo fundado receio do arguido vir a cometer outros factos da mesma espécie.

h1) Pelo que e, sem prejuízo do que já ficou dito acima inexiste prova da perigosidade que legitime a aplicação de uma medida de segurança, mesmo que suspensa;

g1) Entendeu ainda o tribunal “ aquo” que, no presente caso, encontra-se verificado o acto ilícito praticado pelo demandando, o nexo de causalidade adequada entre o facto ilícito e o dano. Mas, no que se refere à culpa o douto tribunal é obrigado a aceitar o estado de inimputabilidade e por isso foi o arguido surpreendido na sentença com a atribuição do direito de indemnização à demandante no valor de 2000,00 €, “nos termos e com fundamento no artigo 489º do CC”, sem antes, lhe ter sido conferida o direito de defesa e contraditório relativamente aos pressupostos e aplicação do artigo 489º do CC.

h1) O que também aqui discordamos, desde logo, porque o tribunal não aferiu, nem averiguou da situação pessoal e económica do arguido, pois que não foi solicitado qualquer relatório social, o arguido não foi ouvido quanto ás suas condições económicas e sociais, bem como não ficou a constar na sentença e da matéria de facto provada a real situação económica deste que, não obstante, foi referida pela assistente e confirmada pela companheira do arguido.

i1) Na verdade e, como se refere na matéria de facto dada como provada, o tribunal limitou-se a consultar uma base de dados e a fazer constar da sentença que o arguido é maquinista de profissão, que aufere um salário de cerca de 1082,33 € e que possui um veiculo automóvel registado em seu nome. Nada mais … O Tribunal não procurou averiguar, como era seu dever, se o arguido tinha condições económicas, como pressuposto da aplicação deste artigo e, não obstante ter sido dito e atestado em tribunal, recusou atestar na sentença os factos essenciais quanto a este aspecto, designadamente:

- Que paga a quantia mensal de 250,00 € a título de alimentos ao seu filho T;
- Que paga a quantia mensal de 200,00 €, a titulo de alimentos á filha J, e
- Ainda que é quem assume as despesas e encargos referente á prestação bancária do crédito bancário que o casal tem no valor de 500,00 € e, que se encontra pendente em processo de partilha a correr os seus termos no cartório notarial do Entroncamento.

j1) O que foi referido em audiência de julgamento pela própria assistente e confirmada pela companheira atual do arguido, aqui testemunha MF e veja-se as declarações da assistente prestadas em 10.05.2018 e que estão gravadas aos 09:54:44 até 11:04:00 e as declarações prestadas em audiência de julgamento de 22.05.2018 aos 11:37 até 11:55:47, respectivamente, que acima se transcrevem;

l1) Ora, o artigo 489º estipula no nº 1 que “se o ato causador do dano tiver sido praticado por pessoa não imputável, pode esta, por motivos de equidade, ser condenada a repará-los, total ou parcialmente, desde que não seja possível obter a devida reparação das pessoas a quem incumbe essa vigilância.” Acrescentando o número 2 que: “a indemnização será todavia calculada de forma a não privar a pessoa não imputável dos alimentos necessários, conforme o seu estado e condição, nem dos meios indispensáveis para cumprir os seus deveres legais de alimentos. “

m1) Face á factualidade exposta verificamos claro que o disposto no nº 2 deste artigo não foi sequer tido em conta pelo tribunal e que não se encontra preenchidos os seu requisitos. Na verdade, o arguido vive, neste momento para cumprir as suas obrigações legais de alimentos aos filhos e para pagar as prestações da casa, que também são da responsabilidade da assistente, mas que se recusa a pagar, isto é, o arguido para além do rendimento que aufere de 1003 €, tem um encargo mensal de 450,00 € a titulo de alimentos aos filhos e de 500,00 € ao banco, pelo que pouco mais lhe resta para fazer face aos seus próprios alimentos e sustento!!

n1) Sendo certo que a sentença não fundamenta como concluiu a aplicação deste artigo 489º foi CC, limitando-se a exteriorizar conclusões, adjetivos qualificativos ou atribuição de valores numéricos e também aqui deve ser declarada nula, por falta de fundamentação.

o1) Quanto à equidade referida no nº 1 do artigo 489º do CC, o Tribunal igualmente não averiguou, nem sequer ficou demonstrado ou alegado que a lesada tenha ficado em difícil situação económica, ou tenha sofrido avultado prejuízo, bem pelo contrário, a assistente para além de auferir os seus rendimentos do trabalho, como educadora de infância, ainda recebe do arguido a quantia mensal de 450,00 € a título de alimentos dos seus filhos.

p1) A sentença recorrida não reproduz assim, os concretos pontos de facto que legitimam o juízo de equidade, fundamenta esse juízo de equidade na globalidade da matéria de facto provada, como tal descrita na sentença e que se mostra insuficiente para a condenação em indemnização nos termos e de acordo com o artigo 489º do Código Civil, pelo que se peticiona a revogação desta decisão de condenação e absolvição do arguido.

q1) Termos em que, pelo exposto devem os presentes recursos serem julgados procedentes e, consequentemente a acusação e a sentença serem declaradas nulas, revogando-se por outra decisão que absolva o arguido da prática do ilícito de violência doméstica e da indemnização a que foi condenado, com todas as consequências legais.

r1) E assim ser feita a devida e acostumada JUSTIÇA

O recurso interposto da sentença foi admitido com subida imediata, nos próprios autos, e com efeito suspensivo.

Mais uma vez, o MP respondeu à motivação do recorrente, formulando as seguintes conclusões:

1º Como resulta até das mais elementares regras da experiência comum, numa relação conjugal duradoura, há comportamentos humanos penalmente relevantes, em relação aos quais não é possível (ou humanamente exigível) a concretização, quanto ao dia e à hora, daí que a falta de indicação da circunstância temporal de certos factos não equivale a ausência de narração dos mesmos,

2.º Assim, é lícito ao tribunal explicar com pormenores os factos constantes do despacho acusatório e dar como assente matéria de facto que é mero desenvolvimento dos factos que dele constavam ou conexos com este, desde que resultem da prova produzida nos autos e se cumpra o respetivo contraditório ao arguido3,

3.º No caso, o Tribunal limitou-se a “limar” e a desenvolver, em termos de localização temporal, 4 pedaços de vida que já se encontravam descritos nos parágrafos 4 a 8 da acusação e a aditar factos instrumentais-nomeadamente referentes ao contexto que os restantes factos descritos foram cometidos, p.ex condições de saúde e de vida do arguido- extraídos da prova produzida, sem que com isso tenha havido qualquer alteração ou agravamento do tipo de crime pelo qual foi acusado, ou sequer alteração ao “quadro” de violência conjugal que já se encontrava ali descrito nos demais factos (vide factos 9.º e ss),

4.º Ainda que não fossem lícitas essas alterações, os restantes factos descritos na acusação (que não foram alvo de alteração) eram suficientes para o preenchimento do tipo de crime pelo qual o arguido foi acusado,

5.º Nestes termos, a acusação encontra-se fundada e cumpre todos os requisitos legais, sendo que as alterações de factos produzidas pelo Tribunal A QUO foram não substanciais (vide artigo 358 do CPP)4,

6.º Além disso, e mais importante, no caso, o Tribunal a Quo, anunciou aquelas alterações/aditamentos de factos aos sujeitos processuais, dando conhecimento pleno dos mesmos ao recorrente, facultando-lhe prazo para defesa e, não obstante, aquele, devidamente representado por Il. Advogada, em sessão de 27- 6-2018, declarou " nada a opor ou a requerer quanto aos mesmos”5

7.º Assim, o arguido deu, naquele ato de não oposição (em que prescindiu do prazo e respetiva defesa), o seu assentimento tácito a que o julgamento prosseguisse com o objeto processual alterado e alargado nos moldes ali definidos,

8.º Desta forma, ficou ali garantido e exaurido o exercício do contraditório quanto à alteração do objeto factual do processo, não podendo agora, em "venire contra factum proprium processual", deduzir oposição àquela decisão, uma vez que deixou de ter interesse em agir para recorrer nesta parte (Vide art. 358, 359 e 401 n.º2, todos do CPP).

9.º Por outro lado, o facto aditado pelo Tribunal com o n.º30 do elenco dos factos provados, não descreve qualquer ação ou omissão imputável ao arguido, nomeadamente de que as armas ali descritas pertenciam ou eram detidas por aquele,

10.º Neste sentido, não lhe foi ali imputado qualquer comportamento suscetível de integrar o crime de detenção de arma proibida nem aqueles factos foram tidos em conta para o preenchimento ou agravamento do crime de violência doméstica pelo qual foi unicamente condenado, logo não há aqui qualquer violação do ne bis inidem se o arguido foi acusado da posse ilegal das referidas armas noutro processo autónomo (pendente e ainda nem sequer julgado).

11.º Por seu turno, a prova da anomalia psíquica e sua caracterização depende da perceção, avaliação e caracterização de factos que apenas pode ser feita por perito de psiquiatria forense,

12.º A perícia realizada nestes autos, que concluiu pela inimputabilidade e perigosidade do arguido, só podia ser colocada em causa se existisse qualquer outro elemento cientifico ou técnico sustentado que infirmasse os seus argumentos/fundamentos (vide artigo 163 do CPP),

13.º Nesse sentido, não é fundamento científico a opinião pessoal dada em julgamento, “na tensão do momento”, sem qualquer estudo ou análise prévio, por uma Médica Psiquiatra- Exma. Dra. LC- que acompanhou o arguido em contexto Hospitalar e que até corroborou a patologia diagnosticada no aludido relatório,

14.º Assim, se a referida perícia foi alvo de um estudo prévio exaustivo (que teve em conta, inclusivamente, os relatórios elaborados pela referida Exma. Sra. Dra LC), foi cabalmente explicada em julgamento e foi "corroborada" pela demais prova produzida, nomeadamente pelo depoimento da testemunha Psicóloga Clínica (Exma Sra. Dra. AP), que acompanhou o arguido (testemunha de defesa deste), é forçoso concluir que os juízos de inimputabilidade e perigosidade clínica em relação ao recorrente são inatacáveis,

15.º A par, o Tribunal a Quo explicou, de forma clara e arrebatadora, na douta sentença, todo esse processo de formulação de motivação, com exame detalhado e crítico de todas as provas produzidas em sede de julgamento, cumprindo, de forma cabal, o disposto no artigo 374 n.º2, 127.º e 163, todos do CPP.

16.º Por outro lado, os factos dados como provados pelo Tribunal a Quo são graves, reiterados, injustificados, e foram cometidos sem que a vítima tivesse, de qualquer forma, contribuído para a causação dos mesmos (p.ex com insultos, ameaças ou agressões prévias na pessoa do arguido),

17.º Destarte, é evidente que o recorrente colocou a arguida numa situação permanente de medo, tensão, humilhação e subjugação, tendo praticado o tipo de crime de violência doméstica pelo qual foi, corretamente, condenado pelo Tribunal a Quo (vide artigo 152 do CP),

18.º Por fim, quanto ao juízo de prognose em sede de perigosidade, o Tribunal a Quo deu como provado que:
 num quadro de inimputabilidade assente numa perturbação delirante de ciúmes, no decurso da relação conjugal, o arguido praticou maus tratos físicos e psíquicos à vítima (vide factos provados n.º1 a 13)

 Após o terminus da relação e na pendência de um novo relacionamento amoroso do arguido, o mesmo continuou a ameaçar de morte a ofendida e a maltratá-la psicologicamente (vide factos dados como provados n.º (14.º a 18.º)

 Não está, hodiernamente, a ser acompanhado por Médico Psiquiatra (vide facto provado n.º 34) ;

 Na atualidade, é visto a frequentar um talho que nunca frequentou próxima da residência da vítima, sendo certo que não reside naquela localidade (vide facto n.º31);

 E, em sede de julgamento, mostrou ainda estar convencido e "revoltado" da veracidade das causas que originaram o ciúme, continuando, inclusivamente, com rancor em relação às suas irmãs (por defenderem a vítima), à ofendida e de alguns familiares desta (vide ficheiro áudio 20180502142247_2770423_2871722)

Tornando-se, assim, axiomático que existe “uma séria probabilidade de o arguido vir a praticar outros factos ilícitos - típicos da mesma espécie desses, ou até de outros”- vide facto provado 23 (“não impugnado”),

19. Nestes termos, há uma perigosidade real, efetiva, jurídica e clínica que determinam, necessariamente, para proteção da vítima e do próprio arguido, a aplicação de uma medida de segurança, ainda que suspensa na sua execução, tal como muito bem decidiu o Tribunal a Quo (Vide artigo 91.º do Código Penal).

Por todo o exposto, negando-se provimento ao recurso apresentado pelo arguido, se fará Justiça.

Pelo Digno Procurador-Geral Adjunto junto desta Relação foi emitido parecer sobre o mérito dos recursos, defendendo a respectiva improcedência.

O parecer emitido foi notificado aos sujeitos processuais, para sobre ele se pronunciarem, tendo o recorrente respondido em termos de pugnar pelo sucesso das pretensões deduzidas.

Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.

II. Fundamentação
Nos recursos penais, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, as quais deixámos enunciadas supra.

Encontramo-nos perante dois recursos, ambos encabeçados pelo arguido, um interposto de um despacho judicial, que lhe indeferiu um pedido de rejeição da acusação, por manifestamente infundada, que formulou na contestação, e outro da sentença condenatória.

Dado que a eventual procedência do recurso interposto do despacho seria susceptível de afectar a subsistência da sentença enquanto acto processual, a sua apreciação assume precedência lógica sobre a do recurso dirigido contra a decisão final.

O arguido AA fez basear o pedido de rejeição do libelo acusatório na alegação de que este não contém a descrição dos factos integradores do dolo do tipo de crime por que foi acusado.

Por seu turno, o despacho interlocutório recorrido indeferiu tal pretensão com fundamento, sintetizando, em que, tendo o arguido sido acusado enquanto inimputável por anomalia psíquica, não é necessária a descrição na peça acusatória dos factos que integram o nexo de imputação subjectiva (dolo ou negligência).

O nº 2 al. a) do art. 311º do CPP confere ao Juiz de julgamento, no despacho se recebimento da acusação o poder de a rejeitar por manifesta falta de fundamento.

O nº 3 do mesmo art. 311º do CPP estatui:
Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:

a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.

Os pressupostos da inimputabilidade por anomalia psíquica estão previstos no nº 1 do art. 20º do CP:

É inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação.

A medida de segurança de internamento, aplicável a inimputáveis, é regulada pelos arts. 91º e 92º do CP, cujo teor transcrevemos:

- Art. 91º
1 - Quem tiver praticado um facto ilícito típico e for considerado inimputável, nos termos do artigo 20.º, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie.

2 - Quando o facto praticado pelo inimputável corresponder a crime contra as pessoas ou a crime de perigo comum puníveis com pena de prisão superior a cinco anos, o internamento tem a duração mínima de três anos, salvo se a libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social.

- Art. 92º
1 - Sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo anterior, o internamento finda quando o tribunal verificar que cessou o estado de perigosidade criminal que lhe deu origem.

2 - O internamento não pode exceder o limite máximo da pena correspondente ao tipo do crime cometido pelo inimputável.

3 - Se o facto praticado pelo inimputável corresponder a crime punível com pena superior a 8 anos e o perigo de novos factos da mesma espécie for de tal modo grave que desaconselhe a libertação, o internamento pode ser prorrogado por períodos sucessivos de 2 anos até se verificar a situação prevista no n.º 1.

O art. 13º do CP estabelece que os factos previstos na lei como crimes só são puníveis, quando praticados com dolo ou, nos casos especialmente previstos, com negligência.

Por sua vez, os arts. 14º e 15º do CP define as diferentes modalidades do dolo e da negligência, respectivamente, cada uma das quais comporta um elemento intelectual (ou cognitivo) e um elemento volitivo, que poderemos resumir nos seguintes termos:

a) No dolo directo, o agente representa-se a realização do facto criminoso e deseja essa realização;

b) No dolo necessário, o agente representa-se como necessária a realização do facto e conforma-se com ela;

c) No dolo eventual, o agente representa-se como possível a realização do facto e conforma-se com ela;

d) Na negligência consciente, o agente representa-se como possível a realização do facto, mas não se conforma com ela;

e) Na negligência inconsciente, o agente não se representa a realização do facto, sendo-lhe exigível que o faça.

Para melhor compreensão, passaremos a reproduzir a narração factual e a conclusão jurídica contidas na acusação deduzida pelo MP contra o arguido, ora recorrente a fls. 450 a 453.

«O arguido e a ofendida casaram no dia 21 de Agosto de 1993.

O arguido e ofendida estabeleceram a sua residência comum na rua…, Entroncamento, até ao dia 20/12/2015, data em que a ofendida saiu da residência.

Desta relação amorosa o arguido e a ofendida tiveram dois filhos, JP, nascida em 16/1/1997 e TP, nascido a 24 de Abril de 2001.

Durante a relação amorosa, era habitual o arguido agredir com murros, empurrões e apertões a ofendida.

O arguido dizia à ofendida, em diversas situações e datas, que esta era uma “prostituta”, “mentirosa”, “ reles”, “ filha de um bêbedo” e dizia ao filho menor, TP, que era “ preferível ser órfão a ser filho da puta. “.

Durante o casamento, era habitual o arguido dizer à ofendida que a mataria, que mataria os filhos e que se suicidaria.

Em data não concretamente apurada, o arguido escreveu em diversas fotografias onde este, a ofendida e os seus filhos apareciam, que esta era “puta “, ele era “corno”, que os filhos não deviam ser seus e colou-as na parede da residência.

Em data não concretamente apurada, o arguido escreveu nas paredes da cozinha daquela residência, frases como: “ Gente, lixo mal cheirosa (…) cabra destruidora, quem me traiu que fique com a puta que te pariu. “

Em Setembro de 2013, o arguido desferiu dois murros nas costas da ofendida, causando-lhe dores.

Em 6 de Dezembro de 2015, o arguido, na cozinha daquela residência, empurrou a ofendida contra a parede, causando-lhe dores.

No dia 20/12/2015, na residência do casal, perante o filho TP, o arguido, na sequência de uma discussão, disse à ofendida que esta era uma “ prostituta mentirosa “ e que a iria matar e depois mataria o filho.

Ato contínuo, a ofendida telefonou para os seus cunhados AP e PB, que se dirigiram até àquela residência, para falar com o arguido, visando acalmá-lo.

Nessa conversa, o arguido repetiu diversas vezes que a ofendida “ era uma prostituta. “ e que a mataria e depois se suicidaria.

Nesse dia, a ofendida saiu daquela residência.

No dia 11 de Maio de 2016, o arguido, do nº de telemóvel 929---, enviou mensagens escritas à ofendida, dizendo-lhe que era “ mentirosa “, “puta” e que o filho TP nunca saberia quem era o pai.

No dia 6 de Junho de 2016, o arguido telefonou à ofendida dizendo-lhe que a iria matar e que não se importava de ir 25 anos para a prisão.

No dia 5 de Julho de 2016, o arguido, do nº de telemóvel 929----, enviou mensagens escritas à ofendida, dizendo-lhe que: “ o tiro nos cornos devias tu e o teu cavaleiro ter apanhado a primeira vez na piscina ou então na festa de anos “; “ se não transferires o reembolso das lentes, mais o IRS, tens os dias contados, serás abatida, vais fazer companhia à tua irmã, já me imagino na prisão a descansar 20 ou 25 anos. “; “ adultera, infiel, puta “;“ quem se mete com putas, tem a vida fudida “; “ a mãe vai estar morta, junto da tia”; “ A AML só terminará de destruir vidas, quando encontrar a morte. “; “ com a tua morte e a minha prisão, a casa sempre fica para os filhos. “; “ fiz muito concurso de tiro na polícia do exército, vai-me ser útil. As pessoas dirão que matou a mulher por 1500€, eu direi por 1488 que me roubou e muita traição“; “ para ti não interessou que a picha do teu primo, cunhado ou irmão fosse maior ou menor que a minha, tinha é que ser outra, diferentes. Gostavas de várias, como as putas. Agora é tempo de por fim à puta que existe em ti. “

No dia 5 de Dezembro de 2016, o arguido, do nº de telemóvel 929---, enviou mensagens escritas à ofendida, dizendo-lhe que, entre outras coisas, era uma puta, uma ignorante, uma fraude, uma aberração e uma miserável.

No dia 7/12/2016, o arguido encontrou a ofendida no café da localidade do Entroncamento e disse-lhe que se esta não lhe desse as fotografias do casamento, que “ não saberia o que lhe ia acontecer. “, que era “ uma mentirosa, não digna “ e que “ tinha uma testemunha que confirma que tu disseste que ias deitar-te com o teu irmão que ele é todo bonzão. “.

No dia 12/12/2016, pelas 8h40, o arguido sentou-se na mesa do café onde a ofendida se encontrava, no Entroncamento, tendo esta saído daquele estabelecimento.

Ao atuar do modo acima descrito, o arguido provocou na ofendida, a sua mulher, dores e lesões físicas, maus tratos psíquicos, ofendendo-a na sua dignidade pessoal, humilhando-a e diminuindo-a, provocando na mesma, tanto sofrimento físico, como perturbações psicológicas, que afetaram o seu equilíbrio emocional.
O arguido praticou tais condutas na residência comum e perante filhos menores.

O arguido padecia então e padece ainda de perturbação psiquiátrica denominada “Perturbação delirante de ciúmes “, situação em que atuou aquando da prática dos factos acima descritos e que lhe limitou fortemente a capacidade de discernimento e de determinação, como já se referiu, aquando da prática dos factos acima descritos.

O arguido embora apresentasse capacidade para avaliar a ilicitude dos atos que desejava praticar, não possuía a capacidade para se auto determinar com essa avaliação.

Em virtude dessa perturbação de que ainda padece e da natureza e gravidade dos factos praticados, existe uma séria probabilidade de o arguido vir a praticar outros factos ilícito – típicos da mesma espécie desses, ou até de outros.

Os juízos antecedentes constam, aliás, dos relatórios periciais de fls. 429 a 431 e 433 a 435, que aqui se dão por reproduzidos, elaborados na sequência de perícia psiquiátrica e psicológicas efetuadas ao arguido em 5/1/2017.

Pelo exposto, cometeu o arguido, em autoria material e na forma consumada:

Um crime de violência doméstica, p. e p. pelo disposto no artigo 152º, nº 1, al. a) e nº 2 4 e 5 do Código Penal;

Em face do que fica exposto, entende-se que, a final:
a) o arguido deve ser declarado inimputável, nos termos do art. 20º do Código Penal;

b) Dada a sua perigosidade, deve também ser-lhe aplicada uma medida de segurança de internamento, em estabelecimento adequado, nos termos do art. 91º do diploma citado».

Quer o dolo, quer a negligência são conceitos jurídicos, que carecem de ser integrados por factos, ainda que de natureza subjectiva.

O crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152º do CP, por que o arguido vem acusado, assume natureza dolosa, não estando legalmente prevista a sua punição a título de negligência

Por outro lado, a conduta concretamente imputada ao arguido, como frequentemente sucede, desdobra-se em diversos episódios e é dirigida contra uma pluralidade de bens jurídicos pessoais da ofendida, entre os quais se contam, pelo menos, a integridade física, a honra e consideração e a segurança.

Como tal, se tivesse sido deduzida contra arguido imputável, a acusação teria tido de conter, sob pena fracassar, referência aos factos integradores dos elementos intelectual e volitivo do dolo, em relação a cada um dos bens jurídicos vulnerados, o que não acontece.

Assim sendo, o sucesso do presente recurso depende exclusivamente da resposta que se der à questão de saber se, quando dirigida contra arguido inimputável, em razão de anomalia psíquica, a acusação tem ou não de conter a menção dos factos integradores do dolo (ou da negligência, se for esse o caso).

Após breve pesquisa em www.dgsi.pt, detectámos três Acórdãos da Relação do Porto, que trataram especificamente da questão que nos ocupa, dois deles em sentido convergente com o despacho agora sob recurso e outro em sentido oposto.

Em consonância com o Exº Juiz «a quo», decidiu-se nos Acórdãos de 14/3/2007, proferido no processo nº 0646651 e relatado pelo Exº Desembargador Dr. José Piedade e de 7/2/2018, proferido no processo nº 586/16.8PHMTS.P1 e relatado pelo Exº Desembargador Dr. Jorge Langweg.

Perfilhando a tese contrária temos o Acórdão de 10/7/2013, proferido no processo nº 327/10.3PGVNG.P1 e relatado pelo Exª Desembargadora Dra. Maria Leonor Esteves.

Muito sinteticamente, a orientação interpretativa perfilhada nos Acórdãos de 14/3/2007 e de 7/2/2018 e no despacho sob recurso assenta na concepção do dolo e da negligência como relevando, essencialmente do domínio da culpa, pelo que não teria sentido falar-se em dolo ou negligência, a propósito de uma conduta de um agente inimputável, em razão de anomalia psíquica, já que este, nessa qualidade, não seria susceptível do juízo de censura a ela inerente.

Diferentemente, o entendimento adoptado no Acórdão de 10/7/2013 concebe o dolo e a negligência também como elementos constitutivos do tipo de ilícito, razão pela qual a formulação de um juízo afirmativo sobre a tipicidade de uma conduta terá de abranger, entre outros, os factos integradores de alguma dessas realidades jurídicas.

Independentemente do modo como deverá ser resolvida questão no plano do enquadramento dogmático das figuras do dolo e da negligência, afigura-se-nos que o elemento sistemático da interpretação da lei fornece-nos argumentos a favor da tese sufragada no Acórdão de 10/7/2013 e oposta à que vingou no despacho em crise.

Referimo-nos ao regime da medida de segurança internamento, aplicável a inimputáveis, e, concretamente, às disposições do nº 2 do art. 91º e dos nºs 2 e 3 do art. 92º do CP, que remetem expressamente para as penalidades correspondentes ao crime preenchido pela conduta do inimputável.

Nesta conformidade, a aplicação da medida de segurança a que nos reportamos tem como pressuposto o enquadramento da conduta do inimputável em determinado tipo de crime ao qual corresponde certa moldura punitiva, o que implica também uma tomada de posição sobre a questão do dolo e da negligência.

Como é sabido, uma grande parte dos crimes tipificados no Código Penal não é punível a título negligente e existe quase sempre uma diferença sensível de gravidade entre as penalidades cominadas a crimes dirigidos contra o mesmo bem jurídico, quando praticados com ou dolo ou com negligência.

Assim, e exemplificando, o art. 131º do CP prevê para o crime de homicídio doloso simples uma pena de 8 a 16 anos de prisão e o art. 137º do CP comina ao homicídio por negligência, na sua versão mais grave pena de prisão até 5 anos.

De igual modo, o art. 143º nº 1 do CP faz corresponder ao crime doloso de ofensa à integridade física simples pena de prisão até 3 anos ou pena de multa (até 360 dias) e o art. 148º nº 1 do CP estabelece para idêntico crime, quando praticado por negligência, pena de prisão até 1 ano ou pena de multa até 120 dias.

Tanto quanto nos recordamos, constitui caso único a norma do nº 1 do art. 292º do CP, que comina a mesma pena abstracta ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez, independentemente de ter sido praticado dolosamente ou por negligência.

Importa termos presente que a anomalia psíquica que, nos termos do art. 20º do CP, pode dar origem a inimputabilidade penal, não exige que o agente fique desprovido da capacidade de querer e de entender, mas apenas que essa capacidade seja afectada ao ponto o agente não conseguir avaliar ilicitude da sua conduta e determinar-se de acordo com essa avaliação.

Para melhor compreensão, poderemos traçar um paralelo com a figura da inimputabilidade em razão da idade, a que se refere art. 19º do CP; que declara inimputáveis os menores de 16 anos de idade.

Ora, como é evidente, as crianças e os adolescentes com menos de 16 anos de idade são dotados da capacidade natural de querer e de entender, mas o exercício dessa capacidade é considerado criminalmente irrelevante, à face da lei, já que esta parte do princípio que os indivíduos desse escalão etário não são passíveis de um juízo de censura ética, por não se encontrar totalmente formada, por via de regra, a respectiva personalidade.

No caso previsto no art. 20º do CP, é a anomalia psíquica, com os contornos que acabámos de delinear, que obsta à formulação do juízo de censura.

É certo que, conforme se infere da própria fundamentação do Acórdão da RP de 10/7/2013 atrás citado, a tese interpretativa prevalecente nesse aresto deixa fora do âmbito da protecção dispensada pela medida de segurança prevista no art. 91º do CP a conduta de agente que enferme de patologia, que o prive radicalmente do entendimento ou da vontade.

De todo o modo, entendemos que a referida orientação é a única compatível com imperativo resultante do normativo dos arts. 91º e 92º do CP de os factos dos inimputáveis serem objecto de um enquadramento jurídico-criminal tão rigoroso quanto possível, no sentido de lhes fazer corresponder uma penalidade abstracto e, por isso, optamos por ela.

Em consequência, teremos de concluir que a acusação deduzida nos autos não contém a alegação dos factos integradores do dolo do crime de violência doméstica, por que o arguido vem acusado, enquanto inimputável por anomalia psíquica, e estaria votada ao fracasso, se o entendimento interpretativo agora por nós perfilhado tivesse vingado em sede de sentença.

Aqui chegados, importa ter em consideração o Acórdão nº 1/2015 do Supremo Tribunal de Justiça (publicado em DR, I série, de 27/1/15) veio uniformizar jurisprudência no sentido de a falta da descrição na acusação dos factos integradores dos elementos subjectivos de um tipo de crime não pode ser suprida, em julgamento, por apelo ao mecanismo previsto no art. 358º (alteração não substancial dos factos) do CPP.

Dado que o Colectivo de Juízes subscritor do presente acórdão tem seguido a orientação jurisprudencial consagrada pelo identificado Aresto uniformizador, a deficiência factual constatada no libelo acusatório não poderá ser objecto de ulterior suprimento.

Como tal, a factualidade descrita na acusação não é idónea preencher a tipicidade do crime de violência doméstica por que o arguido vem acusado, o que justifica a sua rejeição, nos termos do disposto no art. 311º nºs 2 al. a) e 3 al. d) do CPP

Nesta conformidade, merece procedência o recurso interposto do despacho interlocutório que indeferiu o pedido de rejeição do libelo acusatório, determinando-se a rejeição desta peça processual.

A decisão que agora vai proferir-se tem alcance estritamente processual, não equivale à absolvição do arguido e terá por consequência que os autos, depois de transitado em julgado o presente acórdão, serão remetidos ao MP junto do Tribunal «a quo», para os efeitos tidos por convenientes.

O mecanismo de rejeição da acusação, previsto no art. 311º nºs 2 e 3 do CPP, não se reconduz exactamente à figura das nulidades processuais, mas, quando decretado «a posteriori», exerce um efeito de aniquilamento do processado subsequente, semelhante ao que é atribuído pelo art. 122º do CPP às nulidades propriamente ditas.

Em consequência do agora decidido, fica prejudicada a apreciação do recurso interposto da sentença.

III. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

a) Conceder provimento ao recurso interposto do despacho interlocutório;

b) Revogar a decisão recorrida e substituí-la por outra que rejeite, por manifestamente infundada, a acusação deduzida pelo MP contra o arguido, ficando sem efeito o processado posterior dela dependente;

c) Determinar que, após trânsito em julgado do presente acórdão e descida à primeira instância, os autos sejam remetidos ao MP junto do Tribunal recorrido, para os efeitos tidos por convenientes.

Sem custas.
Notifique.

Évora, 20/12/18 (processado e revisto pelo relator)

Sérgio Bruno Póvoas Corvacho

João Manuel Monteiro Amaro